LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio
eletrônico
As Maluquices do
Imperador, de
Paulo Setúbal
Edição de base:
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO
Devo à gentileza vencedora de Júlio de Mesquita Filho a
honra de haver ingressado nas colunas do "O Estado de São
Paulo". Colaborei durante meses na grande folha. Colaborei, com orgulho,
no jornal-padrão, legítima vaidade da imprensa brasileira.
Dessa colaboração, nasceu este livro. Botei-lhe o nome,
um tanto beliscante, de Maluquices do Imperador. Dentro dele, diga-se a
verdade, nem tudo são maluquices. Há muitas páginas
inocentes. Mas, isso não estorvou o batismo: as inocentes que paguem
pelas pecadoras! Que fazer? É a lei da nossa injustiça eterna...
Críticos de trabalhos meus anteriores, notadamente o Sr.
Aggripino Griecco, censuram-me o colocar, no fim das páginas, a
citação das passagens onde apanhei a anedota ou o fato curioso.
Acham que isto afeta o texto. É "mostrar os andaimes do
edifício". Não fiz desta vez, citação alguma.
Mas, é bom que o leitor saiba, desde agora, não haver eu
inventado a substância de nenhuma das histórias que aí
vão. Catei-as em vários autores. Uns já embolorados,
outros de uso corrente. Serviram-me de fontes, entre muitos outros:
Melo Morais, pai, ("Crônica geral",
"História das Constituições",
"Brasil-Histórico") H. Raffard ("Pessoas e Coisas do
Brasil") A. Augusto de Aguiar ("Vida do Marquês de
Barbacena") Francisco Gomes da Silva, ("Memórias Oferecidas a
Nação Brasileira"), Vasconcellos Drummond
("Memórias"), D. Vieira ("Memórias
Históricas"), A. Rangel, ("Textos e Contextos"), Alberto
Pimentel ("A Corte de D. Pedro IV"), Loureiro ("Cartas do
Brasil"), etc.
São Paulo, 926
PAULO SETÚBAL
BRASIL-REINO
7
de março de
-
Que lindo! que lindo!
No
ar que faisca, debaixo dum céu entontecedor, azul de Sêvres, o sol
escachoa avanhandavas de ouro. E sob a luz fúlgida, dentro da sua
virgindade selvagem, recorta-se em coloridos fortes a paisagem - maravilha,
Águas e morros! Tudo pródigo, tropical, cheirando a terra
moça, ineditamente belo. Como pássaros verdes, papagaios enormes
pousados à tona dágua, surge das espumas um bando arrepiado de
ilhas. Que pitoresco! E toda gente, na amurada, a apontar com o dedo:
-
É a "Rasa"!!
-
A "Comprida!"
-
A "Redonda"!
-
Os "Dois Irmãos"!
-
As "Palmas"!!
Ao
longe, magnífico bugre americano, lá está o Gigante de
Pedra, estendido no chão, tatuado, brônzeo, com a sua empolgante
monstruosidade rústica. Além, encoscorado e bravio, caboclamente
brasileiro, o Corcovado pintalga-se de mataria brava, a paulama enroscada no
cipoal, os nhacatirões gritando pelo carnavalesco das flores.
Acolá, esbeltíssimo, núncio da Terra Nova, o Pão de
Açúcar arremessa nas nuvens, arrogantemente, o seu pico de pedra,
que fura o céu.
E
o Príncipe Real, enfeitado de bandeirolas e de galhardetes, rasga
com bizarria a ondada mole.
As
fortalezas da terra, avistando-o, içam as cores portuguesas. E sob o
cascatear do sol, na alegria olímpica da manhã, estruge de súbito
uma atroada frenética. É a salva real que estronda, cento e um
tiros pipocando, sinos a carrilhonarem, roqueiras, estrépito de
rojões, zabumbas, charangas, fogos de artifício que riscam o ar.
De
todos os lados, às dezenas, já os escaleres engaivotam as
águas crespas da baia. Remam com fúria, rumo da nau que entra. Um
deles, leve barquito com grandes embandeirados, alcança-o logo. Chega-se
ao casco. Tomba-lhe da amurada a escadinha de bordo. Sôfrego, os olhos
chispando, sobe por ela um passageiro. É José Caetano de Lima.
É o primeiro carioca que se embarafusta pela nau. Os tripulantes abrem
alas. E o feliz morador do Rio de Janeiro, ao passar, corre uns olhos
atordoados pelo bando suntuoso.
Quanta
gente luzida! São todos fidalgos do mais velho sangue. As damas, em
grande decote, os cabelos encaracolados, chapéus de plumas berrantes,
faiscam de sedas e de pedrarias. Os cavalheiros, hirtos, espartilhados, as
casacas azuis de riço claro, trazem o peito estrelado de crachás.
Apenas, com um destoar chocante, vêm dum beliche gritos estranhos, gritos
roucos de mulher presa:
-
Não me matem! Não me matem!
O
embarcadiço continua varando a ponte. Em meio da turba, por entre a
mescla rutilante de fidalgos e fidalgas, destaca-se um casal muito grave, muito
protocolar, de que os demais circunstantes se distanciam com respeito. Ele
é gordo, muito rechonchudo, bochechas estufadas, olhos parados, de
suíças. Ela é áspera, feições de
homem, bigodes no lábio, pêlos no rosto, pêlos na
mão, pêlos por toda parte. Ele, o molengo é D. João
VI; ela, a cabeluda, é D. Carlota Joaquina. São os regentes de
Portugal.
José
Caetano de Lima precipita-se para os dois. Tomba-lhes aos pés.
Beija-lhes as mãos vitoriosamente: é o primeiro fluminense que,
tonto de gozo, tem a ventura de prestar vassalagem aos fujões reais!! Do
beliche soturno, porém, ecoa subitamente a estranha voz:
- Não
me matem!
É
D. Maria, a louca. É a rainha de Portugal que chega aos berros,
encarcerada, enfunebrecendo a nau:
-
Não me matem! Não me matem!
Assim,
naquele dia gloriosamente radioso, por entre ribombos formidáveis, com
espavento e gala, aportava ao Brasil, escorraçada por Napoleão
Bonaparte, a família Real Portuguesa.
* * *
Napoleão
Bonaparte e o embaixador de Espanha, trancados no salão nobre de Fontainebleau,
assinam um tratado secreto. O Imperador está irritadissimo. Ferreteado
por aquela idéia avassaladora, obcecante, de matar a Inglaterra pelo
isolamento, Bonaparte não admite que o misérrimo Portugal, depois
de decretado o bloqueio, ainda tenha o atrevimento de conservar as suas
amizades com a ilha. Eis porque, debruçado sobre o mapa, o lápis
em punho, o corso retalha o reino dos Braganças em três
pedaços. Acintoso, com a maior sem-cerimônia, distribuiu-os assim:
o norte, que ele denomina a "Lusitânia Setentrional", destina
galantemente a Maria Luísa de Bourbon e Parma, despojada agora do trono
da Etrúria; o centro, o "Principado dos Algarves", oferece ao
príncipe da Paz, o famoso espanhol Godoy; o sul, a "Lusitânia
Meridional", toma-o singelamente para si. Destarte, juntamente com a
Espanha, fica resolvido o destino da naçãozinha inútil.
Está riscado Portugal da Europa. E logo, sem grandes motivos,
começam as atitudes agressivas. Rompem-se as relações
diplomáticas. O embaixador português, D. Lourenço de Lima,
recebe de Talleyrand os seus passaportes. Essa notícia ecoa
aterradoramente
* * *
O
bergantim real, alcatifado de coxins de veludo., com o seu belo toldo de
damasco franjado, atracou debaixo do mais quente ribombo de festa. O povo
espremia-se no cais. Milhares de espectadores, com avidez mordente, o
coração aos saltos, contemplavam, fascinados, a
embarcação garrida. Tudo queria "ver o rei". O Conde
dos Arcos, que então governava o Brasil, correu a abrir a portinhola: e
do bergantim, muito ataviada de garridices, desceu lustrosamente a
família real. Era D. João VI, em grande gala. Era D. Carlota
Joaquina, com o seu fuzilante diadema de pedrarias. D. Pedro, o herdeiro do trono,
principezinho de nove anos, muito vivo, os cabelos crespos e negros, saltou
acompanhado de Frei Antônio de Arrábida, o preceptor. Seguia-o o
irmão mais moço, o infante D. Miguel, todo de veludo,
calças compridas, o gorro apresilhado por um fúlgido broche de
pedras. As princesas vinham enfeitadas com primor. Muito lindas. Vestiam sedas
dum azul pálido, enevoadas de arminhos, com grandes diamantes nas
orelhas e altos trepa-moleques nos cabelos. Viera, também, galhardo e
belo, um moço arrogante, muito simpático, olhos romanticamente
verdes: era o Senhor D. Pedro Carlos de Bourbon e Bragança, infante da
Espanha, sobrinho dos regentes.
No
cais, fora armado um altar. D. João e D. Carlota, seguidos pelo
príncipe e pelos infantes; ajoelharam-se diante dele. O chantre da
Sé tomou da água benta e aspergiu ritualmente os reais
hóspedes. Tomou do turíbulo de prata e incensou-os por três
vezes.
D.
João, com fervorosa compungência, caiu então por terra:
beijou o Santo Lenho. A corte, prosternando-se, acompanhou-o no beijo
tradicional. Depois, ao longo do cais, formou-se o séquito de honra.
Lá ia a bandeira, lá ia a cruz, lá iam os nobres,
lá ia o clero, lá ia a gente da terra. No meio das alas,
carregado pelo Senado da Câmara, franjado de ouro, rutilando ao sol, um
imenso pálio de seda: e, debaixo dele, com os seus atavios
carnavalescamente vistosos, a deslumbrar a colônia toda a família
real.
Nas
ruas, recobertas de areia branca, esparzidas de flores e de folhagens
profusíssimas, as casas enfaceiraram-se garridamente. Colchas de seda,
tapeçarias e veludos, damascos de coloridos fortes, tudo palpitava, ria,
baloiçava-se às portas e janelas, despencava-se festivamente das
varandas. Papagueantes, agitando o lenço com entusiasmo, despejando
braçadas de rosas, as donas enramilhetavam as sacadas, faiscavam de
louçanias, punham no quadro cores estonteantes, todas com muita pluma,
com muita renda, com muita seda, com muita pedraria de preço. E eram
foguetes pelo ar, estampidos nas fortalezas, músicas reboantes, vivas, alegrias
loucas, ensurdecedoras. O cotejo magnífico penetrou na Catedral.
Começou o "Te-Deum"...
* * *
Nessa
noite, houve grandes luminárias A casa dos Telles, em frente ao
Paço, resplandescia, fascinante. Chispava de tanta luz, tinha tantos
copinhos de vela, com tantas cores, que a própria D. Carlota Joaquina
mandara felicitar os donos pelo gosto. E enquanto, sob júbilos
barulhentos, o povo pasmava-se diante dos rojões de lágrimas que
subiam ao céu, D. João VI, sentado no trono, com o seu faustoso
manto de niza branca, dava no Brasil o seu primeiro beija-mão. O Rio de
Janeiro, a cidadezinha colonial, a terra selvagem dos macacos, viu estadear-se
nessa noite, com fausto espaventoso, a mais legítima aristocracia de
Portugal. Que desfilar empavonado!
A
corte atulhava garridamente os sabes toscos e nus daquele pobre Paço.
Era a Senhora D. Mariana Xavier Botelho, Duquesa de S. Miguel, camareira-mor da
rainha D. Maria, emproada e grave, com a sua riquíssima afogadeira de
pérolas ao pescoço. Era a Marquesa de Luminares, primeira dama de
D. Carlota Joaquina, muito broslada de rendas, toda a refulgir no seu bizarro
vestido cor de açafrão. Era a Duquesa de Cadaval, com os seus
gorgorões pesados, os caracóis brancos do cabelo tombando-lhe
versalhescamente pela nuca. A Marquesa de Belas, olheirosa e pálida,
ainda atordoada dos cambaleios da nau, desolava-se com a desolada Condessa de
Caparica, que deixara em Lisboa, no atropelo do embarque, o seu querido samovar
de prata manuelina. Mas, não eram apenas as donas. Perpassavam refulgentes,
o peito abrolhado de insígnias, os nomes mais retumbantes do reino. D.
José Noronha Camões de Albuquerque, Marquês de Anjeja; D.
Álvaro Antônio de Noronha e Castello Branco, Marquês das
Terras Novas; o Marquês de Alegrete, o Conde de Cavaleiros, O Visconde de
Anadia, José Rufino de Sousa Lobato, o guarda-jóias, o amigo
íntimo de D. João. Toda uma turba de marechais, de
desembargadores, de eclesiásticos, de moços da Câmara, de
guarda-roupas, de damas do paço, de damas de honor...
* * *
No
outro dia, com protocolos infindáveis, houve nova procissão no
cais. A Corte inteira abalou-se para receber a rainha, que ficara a bordo. D.
Maria I desceu da nau, espavorida, o oIhar tonto, muito pálida. A doida
contemplou estupidamente a turba. Um terror agoniante pintou-se-lhe no rosto.
Quis fugir. Mas agarraram-na logo. Meteram-na dentro duma cadeirinha dourada. E
quando, na cadeirinha, ouviu o baque da portinhola que se fechava, a louca
prorrompeu em berros, que faziam mal:
- Não
me matem! Não me matem!
E
recolheram-na ao Paço.
Durante
nove dias, a cidadezinha encheu-se de festa. Durante nove noites a cidadezinha
encheu-se de luminárias. Foi um estonteamento! D. João andava
radiante. Uma alegria torrenciosa borbulhava-lhe no peito: livre, enfim, das
garras de Napoleão Bonarparte! Uff!
E
pôs-se tranqüilamente a comer os seus três franguinhos no
almoço e os seus três franguinhos no jantar.
No
Brasil, durante largo tempo, a vida de D. João correu sem arrepios. Tudo
aqui lhe era propicio: o clima, a pacatez, a água da Quinta, as laranjas
da Bahia, a solidão. Apenas, na fazenda de Santa Cruz, um carrapato
ferrou-lhe na perna. D. João arrancou-o bruscamente: o ferrão do
animal ficou-lhe cravado na carne. Mordida feroz! O regente mancou durante vários
meses... A não ser isso, a não ser o dente do bicho, nada viera
quebrar a serenidade daquele viver. Tudo mar de rosas.
E
D. João, inspirado pelos ministros, começou a engrandecer o
país. Abriu os portos da Colônia ao mundo. Criou o desembargo do
Paço. Organizou o Banco do Brasil. Fundou a Escola de Medicina. Fundou a
Academia de Belas-Artes. Fundou a tipografia régia. Construiu uma
fábrica de pólvora. Mandou explorar as minas de ferro do Ipanema.
Fez o Jardim Botânico. Abriu a Biblioteca Nacional. Um infindar de
benefícios!
A
terra, com tais reformas, tomou um surto vertiginoso. Tamanho, tão
forte, que os ministros levantaram logo a idéia de se elevar o Brasil a
reino. D. João recebeu a medida com bom semblante. Formou-se em torno
dela uma forte corrente de simpatias. Cogitou-se afoitamente
Nesse
instante, em Viena, reunia-se um congresso formidável. É em 1815.
Enquanto Napoleão Bonaparte, sob o olhar implacável de Hudson
Lowe, escreve as suas memórias
-
Diante do que ouvistes, senhores ministros, vou elevar o Brasil a reino.
Precisamos ter assento e voto no Congresso de Viena. E é esse, como
vedes, o único alvitre para chegarmos até lá.
E
elevou o Brasil a reino.
* * *
Talleyrand,
ao ter ciência do ato, discutiu-o em Viena: Portugal, por consenso
unânime, foi reconhecido como grande potência. Sentou-se no recinto
do Congresso e teve voto nas deliberações. E assim, graças
ao famoso francês, o Brasil deixou de ser colônia. Ficou reino:
dera um passo formidável para a sua independência.
20
de março de 1816. O Rio de Janeiro amanheceu lúgubre. Tudo bruma
e cinza. Bóia no ar uma plangência estranha. Bandeiras enroladas
Na
Sala dos Despachos, transformada em câmara mortuária, repousa o
cadáver da rainha. É uma velha de oitenta e dois anos. As
mãos em cruz, muito longas e maceradas, um sorriso esvoaçante
gelado na boca, a morte está paramentada de grande gala.
Faísca-lhe ao peito a grã-cruz de S. Tiago. Traz a tiracolo a
banda da Ordem de Cristo. Traz a banda encarnada de Aviz. Envolve-lhe o busto,
com chocante suntuosidade, o manto real de veludo carmezim, forrado de seda
branca, todo borrifado de estrelas de ouro.
O
corpo ficara em exposição.
Espera-se,
apenas, que D. João VI venha beijar-lhe as mãos para franquear a
câmara ao público. D. Carlota Joaquina, essa, pela manhã,
já viera com as filhas. A rainha D. Mana, em vida, detestara D. Carlota
Joaquina. D. Carlota, por sua vez, detestara a rainha. Não se toleraram
nunca. Nesse dia, por mera etiqueta, D. Carlota penetrou na
câmara-ardente, beijou friamente a mão da morta, virou as costas
saiu sem derramar lágrima. Encerrou-se, depois, nos seus apartamentos. E
nunca mais tornou a penetrar na câmara. Nem sequer desceu para acompanhar
o esquife até ao coche.
O
pobre D. João VI, no entanto, desolara-se fundamente. Chorou como um
menino, aos borbotões. Filho incomparável, afetuosíssimo,
a perda da rainha lanhara-lhe o coração como uma espadeirada. E
agora, naquele instante, Sua Majestade deve descer para a despedida.
São
três horas da tarde. Os corredores estão coalhados de palacianos.
Todos esperam o rei. Nisto, de luto fechado, os olhos muito vermelhos, cabelos
em desordem, D. João aparece no salão mortuárIo. Vem
acompanhado de D. Pedro e D. Miguel. O Conde de Parati e o Visconde de
Magé, os seus validos, os dois amigos do coração,
circundam-no funereamente. Ambos choram. Na câmara-ardente, de pé,
os vestidos lantejoulados de vidrilhos negros, a Senhora Viscondessa do Real
Agrado, que é camareira-mor, e D. Margarida Sofia de Castello Branco,
que é dona da câmara, velam com fundos respeitos o corpo real. D.
João entra. O Marquês de Anjeja, reposteiro-mor, retira o manto
que cobre a defunta. E então, sinceramente ferido, as lágrimas a
saltarem-lhe dos olhos aquele homem gordo, bochechudo, abraça
desvairadamente o cadáver da mãe. Beija-o. Beija-o longas vezes.
Beija-o repetidamente, aos soluços, acabrunhado, num grande desespero
comovido. O príncipe e o infante debruçam-se também sobre
o caixão: e ambos, com um ósculo demorado, despedem-se da
avó. É tocante. Mas, o Senhor Marquês de Aguiar, D.
Fernando José de Portugal e Castro, ministro das três pastas,
suplica ao rei que se recolha. Os validos também suplicam-lhe que se
poupe a tanta dor. D. João, que chora sempre, deixa a câmara
mortuária. Retira-se para os seus aposentos. Uma angústia
cruciante rasga-lhe a alma: é a única dor sincera, a única
chaga viva que abriu a morte da louca.
* * *
Oito
horas da noite. Trancado no seu quarto, muito inquieto, o príncipe D.
Pedro passeia agitadamente. Tudo aquilo, aqueles lutos, aqueles
cortesões fúnebres, aqueles coches recobertos de crepe,
revira-lhe azedamente os nervos. De vez em quando, enfiando o olhar pela
janela, Sua Alteza vê os altos dignitários chegarem para o
beija-mão. É o Cardeal Capelli, núncio apostólico,
com as suas sedas escarlates; é Lorde Strangford, o ministro
inglês, de casaca negra, luvas, cartola felpuda de palmo e meio; é
o Conde de Cavaleiros, mordomo-mor, com o seu largo fitão a tiracolo e a
Ordem de Cristo vermelhejando na lapela; é o...
E
D. Pedro, aquele belo príncipe de dezessete anos, moreno, olhos muito
negros e muito românticos, aquele moço garboso, aquele moço
doidivanas e estúrdio, que enche a corte com os seus estouvamentos, D.
Pedro é talvez o único, na hora fúnebre, que não se
interessa por aquelas pompas, por aqueles crepes, aqueles lutos. O seu espirito
está longe dali. A sua ânsia é outra. Punge-lhe um desejo
estranho. Ferreteia-lhe uma vontade louca de voar, de deixar o Paço, de
fugir àquelas tristezas, de correr para um ninho amado... Para um ninho
que o espera com carícias entontecedoras. E D. Pedro, dentro dos seus
aposentos, numa irascibilidade mórbida, anda, fuma, agita-se. Goteja-lhe
no cérebro um pensamento só. É uma idéia fixa,
enrodilhante. No desvario duma paixão furiosa, paixão de
adolescente, D. Pedro não pensa noutra coisa senão no seu amor.
Não aspira outra coisa a não ser o saciar aquela tortura faminta
de amar e ser amado. E sozinho, naquela noite lúgubre, o príncipe
sonha com ela... E arde por ela... Ela por toda parte! De repente, num assomo,
D. Pedro bate palmas. O criado ergue o reposteiro. É Plácido
Pereira de Abreu: É o antigo barbeiro do Paço. É a pessoa
que o príncipe mais estima na corte. E D. Pedro, ao vê-lo,
ordena-lhe em voz baixa:
-
A minha capa negra e o meu sombreiro de abas largas.
Plácido
sorri. E o príncipe:
-
Você já sabe aonde vou, não sabe?
-
Sei! Vossa Alteza vai para o largo do Rocio.
-
Vou! Não posso mais. Aquela mulher é a minha paixão...
Mas,
é bom que Vossa Alteza se acautele, tornou o criado; é bom
não sair pela frente do Paço. Há muito coche, muito
escudeiro, muita gente graúda que vem chegando. Vossa Alteza pode topar
com muito mexeriqueiro. É mais prudente que Vossa Alteza saia pelo
alçapâo.
-
Você tem razão, Plácido. Traga-me a capa e abra o
alçapão. Plácido trouxe a capa. D. Pedro enrodilhou-se
profundamente nela. Enfiou o chapéu de abas largas, enterrou-o na
cabeça, quebrou-o nos olhos. O criado, depois de vestir o amo, recuou
uma pequena mesa que havia no meio do aposento. Ergueu o tapete. Depois, com
jeito, levantou um alçapão disfarçado no soalho. D. Pedro
meteu-se por ele. Pulou no andar térreo. Era exatamente a "Sala dos
Pássaros". Dai, abrindo as portas do fundo, D. Pedro precipitou-se
na rua. (1)
De
preto, enrodilhado - na capa negra, o vasto chapéu mergulhado até
às orelhas, o vulto misterioso esgueirou-se pelos becos escuros do velho
Rio. Um ou outro lampião de azeite. Escuridão espessa na
cidadezinha suja. De vez em quando, passava um capoeira assobiando. Tudo mais
silêncio. O príncipe alcançou o largo do Rocio. Estacou
diante dum sobrado. Bateu à porta. Uma luz súbita jorrou
lá dentro. E logo, na sacada, uma voz sonora, muito orvalhada, gritou do
alto:
-
"Qui est-lá?"
E
o príncipe, cá em baixo, com um sussurro:
-
Sou eu! Abra...
Instantes
depois, no sobrado do Rocio, D. Pedro, arremessando a capa, atirava-se
perdidamente nos braços duma linda moça. A rapariga, fina e leve,
ria-se daquela maluquice em noite tão fúnebre...
Era
a Noemi. Era a famosa bailarina do Teatro S. João.
Foi
numa noite de gala, aniversário do príncipe regente, que D. Pedro
viu no palco, pela primeira vez, a bailarina entontecedora. Era uma francesinha
de matar. Uma boneca de luxo, toda pluma frágil como um bibelô. E
tão loira! E tão fresca E dona duns olhos tão grandes,
tão liricamente azuis! D. Pedro era um príncipe impetuoso. Tinha
dezessete anos, o coração sôfrego. A bailarina, a criatura
pequenina e doce, fascinou-o doidamente. D. Pedro atirou-se às tontas na
aventura. Noemi foi o seu primeiro amor. Foi a loucura da sua
adolescência. O moço Bragança desatinou-se. Fez tudo o que
podia fazer, aos dezessete anos, um príncipe de sangue, herdeiro do
trono, desbragado e estróina. Viveu com a rapariga uma vida de romance,
boêmia, ensartado de noitadas febrentas, com serenatas de violão e
de lundus. Cobriu-a de sedas. Recamou-a de pérolas. Lantejolou-a de
pedrarias magníficas. Foi um estonteamento! A aventura custou-lhe uma
fortuna.
Um
dia, porém, o Plácido veio despertá-lo bruscamente daquela
embriaguez de amor. O criado falou com severidade:
-
É preciso liquidar as dividas, príncipe! Vossa Alteza está
encalacrado. A casa Phillips anda reclamando o pagamento... A coisa já
vai longe!
D.
Pedro, com indiferença:
-
Quanto é que eu estou devendo, Plácido?
-
É fácil dizer, Alteza.
Sacou
um caderninho do bolso e começou a fazer as contas:
-
Casa Phillips... joalheiro do Paço... ourives da Rua do Piolho...
modista da Rua do Ouvidor... modista da Ajuda... perfumista... florista...
luveiro... dinheiro fornecido... Tudo somado, como Vossa Alteza vê, faz
onze contos novecentos e oitenta. Digamos doze contos.
-
Doze contos?
E,
D. Pedro, estuporado, deu um salto da cadeira:
-
Doze contos?
-
Doze contos! E é preciso pagar. Os fornecedores vivem atrás de
mim. Eu sempre a adiar...
-
Diabo, exclamou o moço num esbraseamento, pondo ás mãos na
cabeça; diabo! Onde vou eu achar tanto dinheiro?
D.
Pedro recebia um conto de réis por mês. Aquela bagatela mal dava
para a tença dos seus moços da câmara, para pagar os seus
criados, fazer as suas esmolas, comprar os seus cavalos. Mas, D. João
era sovina. Um unhas-de-fome. Não havia meio de sair do conto de
réis. Por isso, diante da divida, diante daqueles doze contos de
réis, o príncipe desnorteou-se. Não sabia como
desentalar-se. O Plácido começou a sugerir planos:
-
Vossa Alteza procure o Targini, tesoureiro de el-Rei, conte o que sucedeu,
peça o dinheiro.
-
Está maluco, Plácido? O Targini faz um barulho de cair o
céu! Arrebenta o escândalo por aí. Meu pai enlouquece...
-
Neste caso, antes de falar ao Targini, Vossa Alteza fale com um valido do
Senhor D. João. O Visconde de Magé ou o Conde de Parati. Vossa
Alteza expõe o que há, pinta claramente o aperto, pede aos
validos que convençam D. João a fornecer o dinheiro.
D.
Pedro detestava os validos do pai. Nunca lhes dirigia a palavra. Achava-os
muito tolos e muito carolas. Dava-lhes a mão a beijar secamente. Nunca
teve um sorriso para eles. Eis porque, sem vacilar, exclamou com vivacidade:
-
Deus que me guarde! Eu prefiro morrer a pedir um favor àqueles
beatões. Aquilo é gente ruim. Uns pestes! Vamos bater noutra
porta...
E
começaram ambos, o amo e o criado, a engendrar um meio de pagar as
dividas. O Plácido lembrou timidamente:
-
O Pilotinho, se Vossa Alteza quisesse, emprestaria o dinheiro...
-
O Pilotinho?
-
Sim, o Pilotinho. Eu vou sempre molhar a goela, na bodega do homem; e o
homem, cada vez, não se esquece de me dizer: "oh! Plácido,
vê se arranjas um jeitinho de eu me encaixar nas boas graças do
Paço. Tu és tão amigo lá do
Príncipe..." Ora, como Vossa Alteza sabe, o Pilotinho é
rico. Uma palavra de Vossa Alteza - zás - estão aqui os doze
contos de réis...
D.
Pedro era um estróina. Um doidivanas completo. Não refletiu um
instante no disparate daquele alvitre. Pedir emprestado dinheiro ao Pilotinho
era para D. Pedro tão natural como pedir emprestado a D. João
VI. E o príncipe agarrou-se à idéia:
-
Bravos! Não há que discutir. Corra a casa do Pilotinho e
traga-me aqui o homem com os doze contos.
O
Plácido saiu.
Joaquim
Antônio Alves, o Pilotinho, era um pé-de-chumbo rico,
bodegueiro na rua dos Barbonos. O dinheiro dera-lhe prestígio. E o homem
andava faminto por doirar aquele prestígio com amizades vistosas, que o
honrassem. O Plácido contou-lhe o que havia. Transmitiu-lhe o pedido do
príncipe. O bodegueiro abriu dois olhos fuzilantes! Correu para dentro,
vasculhou uma empoeiradíssima arca, empacotou um monte de notas, veio
num aturdimento para o Paço. O Príncipe, ao vê-lo entrar,
recebeu-o com bulhento alvoroço. Pegou no dinheiro, fechou-o no
contador, virou-se esfuziante para o pé-de-chumbo:
-
Você é amigo, Pilotinho! Você é um grande
amigo! Tome lá...
E
abraçou-o. Abraçou-o com uma larga ternura comovida. O Pilotinho,
o tosco bodegueiro, para receber do herdeiro do trono um abraço
assim tão quente, tão apertado, não emprestaria apenas
aqueles misérrimos doze contos: daria ao príncipe toda a sua
fortuna...
II
A
aclamação de D. João VI foi um deslumbramento. A mais
soberba festa que a Colônia vira até então. Aquele rei
burguês, aquele homem bonacheirão e gordo, empenhara-se com alma, rasgadamente,
para que seu grande dia tivesse um brilho único, estonteante, Não
houve poupança. Targini. o tesoureiro de el-Rei, abriu os cofres
atulhados de barras de ouro E foi um gastar profuso, um enfeitar, um cobrir de
luxos desmedidos aquele pobre Rio de 1816.
São
três horas da tarde. A Varanda Real cintila. É um
pavilhão imenso, suntuosíssimo, que João da Silva Muniz,
arquiteto do Paço, sob o olhar vigilante do Barão do Rio Seco,
construíra exclusivamente para o ato supremo. Faiscam dentro dele atavios
régios. Toda a aristocracia da corte, a mais alta, a de sangue mais
limpo, borborinha por entre os capitéis dourados. Nas tribunas, de onde
jorra uma crua faiscação de jóias, papagueiam risonhamente
as damas, os decotes branquejando entre rendas e gazes, os altos trepa-moleques
de ouro cravados nos cabelos
De
repente, pelo ar festivo, rompem as charamelas. A corte inteira, ao toque
eletrizante, ergue-se com ânsia. Os olhares todos cravam-se ávidos
na entrada. O Porteiro Real escancara as portas. E o cortejo magnífico
surge. Que belo! À frente, com as grossas maças de prata ao
ombro, vêm os Porteiros da Cana. Depois, o Rei-d'Armas, com o seu vistoso
capacete empenachado. Seguem-se os dois Arautos, com as longas trompas de ouro.
Finalmente os Passavantes cobertos de ferro, as couraças de escamas refulgindo.
O Alferes-Mor empunha a Bandeira Real enrolada na haste. E o séquito
passa. São os Moços da Câmara, são os Moços
Fidalgos, são os Grandes do Reino, são os Bispos, é
Tomás Antônio Vila nova Portugal, Monistro e Secretário de
Estado.
Enfim,
o Rei.
Sua
Majestade tem à direita o Príncipe D. Pedro, herdeiro do trono,
descoberto, um largo fitão a tira-colo. À esquerda, servindo de
condestável, o Infante D. Miguel trazendo na mão um estoque
desembainhado. E D. João VI entra. A Varanda Real freme, sacudida.
Lá fora, uivando, O povo delira. E é uma atroada louca, ribombos
de canhão, morteiros, sinos bimbalhantes, charangas enchendo os ares de
marchas estrepitosas. O Rei está soberbo. É a primeira vez que os
vassalos o vêem com todas as galas da realeza. Faiscam-lhe ao peito as
insígnias de suas ordens. Pende-lhe do pescoço o colar do
Tosão de Ouro. Tomba-lhe dos ombros, com a mais grandiosa
magnificência, o manto real. É riquíssimo, de veludo
carmezim, bordado a fios de ouro, semeado de castelos e quilhas, apresilhado
por dois imensos broches de diamantes que fuzilam, fulgurantissimos. O Conde de
Parati, no oficio de camareiro-mor, carrega a cauda do manto. Sua Majestade
avança rutilando até a um alto estrado. Ai, sob largo dossel de
damasco, está armado o trono real.
O
Marquês de Castelo Melhor, reposteiro-mor, retira o damasco que o cobre.
O Conde de Parati entrega a Sua Majestade o cetro. D. João senta-se. Os
cortesãos, de acordo com seus cargos, espraiam-se pela Varanda. Ao lado
do trono, atendendo o Rei, ficam o Marquês de Torres Novas e D. Nuno
José de Sousa Manuel, gentis-homens honorários. Em frente, hirto
e solene, o Ministro do Reino. Depois, o Marquês de Anjeja, que serve de
mordomo-mor. Vêm após os seis Bispos. Depois, os Grandes do Reino.
Depois, os Titulares. Depois, o Senado da Câmara. Depois, a Mesa do
Desembargo do Paço. Depois, a Casa da Suplicação.
Depois...
Há
um instante de silêncio. O Ministro de Estado faz um sinal ao
Rei-d'Armas. O Rei~d'Armas avança até ao meio do Salão.
Curva-se diante de Luís José de Carvalho e Melo,
ilustríssimo Desembargador do Paço. O Desembargador levanta-se,
atravessa a Varanda, posta-se em frente ao Monarca. O Rei-d'Armas brada com
retumbância:
-
Ouvide! Ouvide! Ouvide! Estai atentos...
E
Carvalho de Meio, diante do trono, sob um silêncio grave, declama a fala
do protocolo. É rápida. Meia dúzia de frases rituais. E
logo, terminada a arenga, o Marquês de Castelo Melhor coloca diante de
Sua Majestade uma pequena mesa recoberta de veludo verde. É a hora do
"Juramento Real". Momento supremo. D. José Caetano, o
Bispo-Capelão, recebe do mestre de cerimônias o missal e o
crucifixo. Deposita-os sobre a mesa. Ajoelha-se. O Bispo de Azoto, Prelado de
Goiás, e o Bispo de Leontópolis, Prelado de Moçambique,
testemunhas do grande ato, ajoelham-se também. O ministro do Reino,
nesse momento, curva-se diante do trono: Sua Excelência suplica a el-Rei
que jure. D. João levanta-se. Passa o cetro para a mão esquerda.
Ajoelha-se numa vasta almofada acairelada de ouro. Estende a mão direita
sobre o missal e o crucifixo. E solene, com uma lentidão majestosa,
debaixo do olhar sôfrego da corte, el-Rei presta o juramento sagrado:
-
Eu, João, Rei de Portugal, do Brasil, dos Algarves, juro...
E
repete, palavra por palavra, a fórmula sacramental que o Ministro do
Reino vai lendo em alta voz. Está acabado o juramento. D. João
torna a sentar-se no trono: está definitivamente Rei.
Principia,
então, com as mais severas etiquetas, uma outra cerimônia.
Cerimônia das mais sérias e significativas: é o juramento
de "Preito e Vassalagem a el-Rei". O primeiro que jura é o
Príncipe Herdeiro. Em seguida, o Infante D. Miguel. Depois, segundo as
suas hierarquias, o Ministro do Reino, os Bispos, os Desembargadores, os Grandes,
os Titulares, a Nobreza. D. João, do alto do trono, recebe com um
sorriso o juramento dos cortesãos. Quando o desfile finda, cessado
aquele burburinhar de gente, o Alferes-Mor desenrola a bandeira real. E
festivamente, em altas vozes:
-
Real, Real, Real, pelo muito Alto e muito Poderoso Senhor D. João VI,
Nosso Senhor!
Toda
a corte prorrompe num brado só, entusiasticamente:
-
Real, Real, Real!
E
estrugem as músicas, largo vozerio, Há uma alegria desordenada
pela Varanda. O Alferes-Mor, com a bandeira desenrolada, grIta em meio do
tumulto:
-
Alas! Alas!
Todos
abrem alas. O Alferes-Mor embarafusta-se por entre as alas abertas.
Vão-lhe à frente os Porteiros da Cana, o Rei-d'Armas, os Arautos,
os Passavantes. E o préstito a passo lento, aproxima-se do balcão
que dá para o Terreiro do Paço. Ali, na sacada, diante de todo o
povo, o Rei-d'Armas brada retumbante:
-
Ouvide! Ouvide! Ouvide! Estai atentos.,. Há um relâmpago de
silêncio. O Alferes-Mor lança a bandeira real ao vento. E com
ufania, a pulmões plenos, berra para a massa:
-
Real, Real, Real, pelo muito Alto e muito Poderoso Rei D. João VI, Nosso
Senhor!
Que
delírio! O povo desanda
Debaixo
da baruheira, rindo-se, o ar de glória e festa, D. J0ão
ergue-se E todo aquele bando suntuoso ondeia. Lá vai a caminho da Real
Capela. Aí, sobre um troneto, rutilando de luzes, há. uma
relíquia do Santo-Lenho. El-Rei ajoelha-se. A corte inteira ajoelha-se.
Sua Majestade beija a relíquia. Levanta-se. E enfim, majestosamente,
senta-se no trono real, armado ao lado do altar. Rompe, no coro, a
música de Marcos Portugal. Começa o 'Te-Deum"...
* * *
A
Capela Real abriu-se para o povo. Grossas ondadas de gente inundaram
subitamente a nave. A igreja fervilhou. Não cabia dentro dela um
alfinete. Todo o mundo queria ver o Rei!
Lá
de cima, do alto duma tribuna, o Conde de Parati contemplava risonhamente
aquele burburinho. De repente, com espanto, o cortesão deu de chofre com
uma rapariga loira, muito linda, que cravava olhos sôfregos no trono. Era
a Noemi, a bailarina do Teatro São João. A moça sorria. O
Conde de Parati virou-se rápido: ao lado do trono, desempenado e belo,
D. Pedro fitava impavidamente a moça. E, por seu turno, diante da Corte,
acintoso e chocante, mandava-lhe um sorriso escandaloso. O Conde de Parati,
acotovelando o Visconde de Magé, murmurou baixinho:
-
Veja aquilo, Visconde!
-
É a paixão, meu amigo! É a paixão que faz daquelas
coisas...
E
o Magé, apagando a voz, num cicio:
-
Vossa Excelência já sabe o resultado desses amores, não
sabe?
-
O resultado desses amores? Não sei...
-
Que diz?
E
misterioso, bem ao ouvido do amigo:
-
Saiba, meu Caro Parati, que a francesinha vai ser mãe...
O
Conde de Parati olhou pasmado para o Visconde de Magé. Os seus olhos
fuzilaram:
-
Vossa Excelência está certo disso?
-
Absolutamente certo! Contou-me o Plácido. E o Plácido, como Vossa
Excelência bem sabe, é o amigo mais íntimo do
príncipe...
O
Conde de Parati calou-se. Aquilo era muito sério. O escândalo mais
atordoante que poderia estourar aos ouvidos de D. João. É que
agora, exatamente naquele momento, el-Rei tratava do casamento do filho. O
Marquês de Marialva já andava pela Europa a sondar as casas
reinantes. Parece que a da Áustria... Imagine-se um pouco se D. Pedro,
aquele estúrdio, aquele príncipe estourado, perdido de
paixão como andava, cometesse a loucura de casar-se às escondidas
com a bailarina. Que complicação! E o Conde de Parati, muito
apreensivo:
-
Essa aventura do príncipe, meu caro Visconde, pode ter
conseqüências brutais. É preciso que D. João saiba de
tudo, não acha?
-
É preciso! Vossa Excelência presta a el-Rei um altíssimo serviço,
contando o que se passa. É um caso grave.
-
Tem razão, Visconde! É um caso grave. Amanhã, el-Rei
saberá de tudo...
No
outro dia, ainda nos seus aposentos, D. João ouviu do Conde de Parati os
pormenores das maluquices do príncipe. O Monarca arregalava os olhos,
estuporado:
-
Doze contos? Pois o príncipe já gastou doze contos nisso?
-
Doze contos, Majestade. Dinheiro esse que pediu emprestado ao Pilotinho.
-
Ao Pilotinho? O bodegueiro da Rua dos Barbonos? Mas, é
incrível. Esse rapaz é um louco! Esse rapaz me mata de vergonha!
Veja que papel, meu amigo! Pedir dinheiro ao Pilotinho! Um
príncipe!
E
assim, trancados nos aposentos, el-Rei e o valido conversaram longamente. Que
é que decidiram? Ninguém o soube. Apenas, ao sair, o Conde de
Parati afirmou:
-
Vou providenciar os papéis para hoje mesmo. Amanhã, quando a
corveta partir, levará os dois...
E
saiu. Decerto, o Conde de Parati preparou os papéis. Pois, no dia
seguinte, seriam onze horas, o íntimo de D. João apareceu no
Largo do Rocio. A bailarina espantou-se imensamente:
-
Vossa Excelência, Senhor Conde?
-
Eu mesmo, Senhora Noemi. El-Rei mandou-me aqui para pedir que Vossa-Mercê
vá comigo até ao Paço.
-
El-Rei?
-
El-Rei...
A
ordem era estranha. Havia nela qualquer coisa de mistério. Mas, que
fazer? A francesinha não pôde recusar. Vestiu às pressas o
seu vestido rodado, cor de pinhão, enfiou as luvas, pôs o
chapeuzinho de pluma branca. E saiu saltitante, pequenina, pisando leve como um
passarinho. D. João recebeu-a com afabilidade. Fez-lhe um agradinho
paternal no queixo. E logo, sem mais rodeios, esfregando os dedos, com o seu
riso amarelo:
-
Mandei chamá-la, minha filha, para dar-lhe uma ordem. Uma ordem que
é necessário ser cumprida à risca: a menina tem de
retirar-se hoje mesmo da Corte...
-
Eu?
-
Sim, minha filha; Vossa-Mercê! Mas, eu não quero que a menina,
depois dessa aventurazinha que teve com o príncipe, se vá embora
ao desamparo, sem dinheiro, sem ter pessoa alguma que a ajude. Longe de mim tal
coisa! Eu resolvi, por isso, que Vossa-Mercê se case. Dou-lhe para marido
o tenente da minha guarda. É um rapagão bonito, um
belo moço da ilha Terceira. Nomeei-o para um ofício de
Pernambuco. Um oficio de primeira ordem, que rende oitocentos mil réis...
A
moça ouvia aparvalhada. Aquilo esmagava-a. Não sabia o que dizer.
E D. João continuava, esfregando os dedos, rindo aquele risinho amarelo,
muito dele:
-
Já dei ordem para que o meu Tesoureiro leve a bordo a quantia de seis
contos de réis. É uma ajudazinha para o enxoval do bebê que
vai nascer. Ordenei mais que entregue a Vossa-Mercê cinco contos. Isso
é uma lembrança minha: um dote para Vossa-Mercê. A Rainha,
ao saber do caso, também mostrou muita simpatia pela menina. Mandou, por
sua vez, que lhe desse um conto de réis. E ordenou ao
guarda-jóias que lhe entregue a Vossa-Mercê um anel de ouro, com
uma bonita pedra. É para Vossa Mercê depositar esse mimo no
berço do seu filhinho, no dia em que for batizado...
Noemi
compreendeu tudo. Sentiu bem a inutilidade de qualquer oposição.
Era baldado resistir. El-Rei podia fazer tudo o que quisesse. A bailarina viu
nítida a sua catástrofe. Fincou soturnamente os olhos no
chão; e as lágrimas, em fios, começaram a despencar-lhe
pelas faces...
-
Os papéis do casamento já estão prontos, continuou el-Rei.
Vamos realizá-lo, menina.
E
virando-se para o Conde de Parati:
Chame
o padre, Conde. E traga também o noivo. Estão ambos no
Salão dos Despachos...
Nessa
tarde, quando a corveta largou ferro, a bailarina do Teatro S. João
precipitou-se como louca no seu beliche. Atirou-se entre os almofadões
do leito. E ai, durante toda a noite, abafando os soluços, a rapariga
chorou num desespero.
Que
lua de mel!
* * *
D.
João acabara de jantar. Comera os seus três franguinhos. Comera-os
com os dedos, enlambuzando-se, atirando os ossos ao chão. O
infante D. Miguel correu ao aparador e trouxe a bacia com o jarro de prata. O
príncipe D. Pedro ergueu o jarro, despejou a água, ofereceu a
toalha ao Rei. D. João lavou-se, enxugou as mãos, fez o sinal da
cruz. Depois, feliz e bonacheirão, enlaçou o braço no
braço do Conde Parati:
-
Vamos dar graças a Deus, Conde. E partiram para o oratório.
D.
Pedro, livre do protocolo, correu ansioso ao seu apartamento. Que
alvoroço! O coração batia-lhe descompassado. Era o momento
de partir para o Largo do Rócio...
Naquela
tarde, porém, mal o príncipe entrou, o Plácido,
assustadíssimo, surgiu como um fantasma diante dele. D. Pedro estranhou
aquela fúria:
-
Que é isso?
-
Vossa Alteza ainda não sabe?
-
Você está louco, homem! Não sabe o quê?
-
Vossa Alteza não sabe o que aconteceu a Noemi?
D.
Pedro agarrou forte nos ombros do criado. Sacudiu-o violentamente:
-
À Noemi?
-
Pois Vossa Alteza não sabe? A menina partiu hoje para Pernambuco...
-
Para Pernambuco?
-
Sim, Alteza. Na corveta que acaba de sair do porto. Imagine Vossa Alteza o que
aconteceu: D. João obrigou a pobre rapariga a casar-se com o tenente da
Guarda. Deu-lhe cinco contos de dote...
E
desembuchou tudo. D. Pedro fremia. Os seus nervos estalavam. Os olhos
ardiam-lhe, febrentos. Aquilo desordenara-o. Era doloroso como um punhal que
lhe entrasse pelas carnes. Eis que o príncipe, no seu atordoamento,
começa a tremer. De repente, sem saber como, uma nuvem passa-lhe pelos
olhos. As órbitas dilatam-se-lhe. Uma súbita rigidez penetra-lhe
os músculos. A boca espumeja-lhe, sangrenta. E D. Pedro desaba
pesadamente no chão.
Era
o ataque.
* * *
Seis
meses depois, em Pernambuco, morria a filha da bailarina. O General Luís
do Rego, que governava a Província, ordenou para a bastardinha funerais
de princesa. Houve grande luto oficial. Não se pejou o general em
lançar mão de tão acintosa sabujice para ganhar o coração
do herdeiro do trono. A criança foi embalsamada. Veio para o Rio. E
dizem que D. Pedro, durante anos, guardou na Câmara dos Pássaros,
debaixo do alçapão, o cadaverzinho adorado, relíquia
fúnebre da sua grande paixão da mocidade.
As
negociações diplomáticas terminaram com êxito:
assentou-se, definitivamente, que o Príncipe D Pedro de Bourbon e
Bragança, herdeiro do trono de Portugal, do Brasil, e dos Algarves,
casar-se-ia com D. Maria Leopoldina Josefa Carolina, filha de Francisco I, grande
Arquiduquesa da Áustria. Faltava, apenas, solenizar o ajuste secreto dos
gabinetes. Saíram do Rio, nesse sentido, ordens sérias para o
Embaixador
A
aliança com a Áustria embebedara-o de gosto. E o rei desterrado,
aquele rei gordo e burguês, timbrara vaidosamente em estadear, ante a
aristocracia faustosa de Viena, a grandeza da sua casa e a opulência dos
seus reinos.
O
Embaixador em Paris era Pedro Joaquim Vito de Menezes Coutinho, o
fidalguíssimo Marquês de Marialva, um dos sangues mais nobres e
mais limpos da Península. Marialva recebeu as ordens como honra suprema.
Aquela missão de galantaria, envaidecedoramente elegante, vinha dourar
com refulgência os seus velhos brasões, já tão
famosos na história da graça e da cortesanice. O fidalgo
magnífico aprestou-se com pompas régias. Circundou-se dum aparato
à Buckingham. Gastou desordenadamente, como um rajá. E um dia,
enfim, cercado de equipagens brilhantíssimas, sonhando aureolar o seu
nome com a mais retumbante glória mundana, o Embaixador Extraordinário
enfiou as suas berlindas douradas pela estrada real. E partiu estrondosamente
para Viena.
EM VIENA
A
entrada do Marquês de Marialva fez época. Ainda não se
vira, na Áustria, embaixada mais luzida e mais ribombante. Nem a de
Napoleão Bonaparte, quando mandara buscar Maria Luísa, tivera
riquezas tão feéricas. A Corte Imperial, para corresponder aos
atroantes deslumbramentos de Marialva, ataviou-se com luxos desmedidos. Foi um
reboliço, uma loucura, formidáveis requintes de elegância.
É
o dia 17 de fevereiro de 1817. Um sol de ouro, estilhaçante. Alegrias
derramadas
-
É o embaixador! É o Embaixador!
É
o Embaixador Extraordinário de Portugal. É Sua Excelência,
o Senhor Marquês de Marialva, que entra espaventosamente
Era
de vê-lo! Setenta e sete homens rutilantemente agaloados. Todos criados e
pajens. Montam ginetes árabes, muito negros, que trazem arreios de prata
e telizes de veludo com largas bordaduras de ouro. Rebrilham por tudo, em
relevos fortes, as armas dos Marialvas. É fascinante!
Seguem-se,
depois, numa clareira, dois coches dourados. Faiscam nas portinholas as armas
imperiais da Áustria. Num deles, no coche de gala, senta-se
gloriosamente, olimpicamente, alvo de todos os olhares, o Embaixador
Extraordinário de D. João VI. Ao lado de sua excelência, em
nome de Francisco I, o estribeiro-mor da Casa Imperial. No outro coche, que
é mais singelo, vai o Secretário da Embaixada, aprumado e
refulgente. Ao lado do Secretário, às ordens dele, um camarista
do Imperador austríaco. Ao depois, vazias e graves, rodam as berlindas
em que jornadeara o Marquês. Que berlindas! Que riquezas atordoantes!
Vêm numa seis cavalos castanhos com arreios de prata. Vêm noutra
seis cavalos brancos com arreios de ouro. Ambas levam um cocheiro, um sota, um
moço de estribeira, catorze criados a pé. Tudo soberbamente
equipado!
O
povo freme, eletrizado. Reboam palmas. Estrondam vivas. É uma apoteose!
Enfim, fechando o séquito incomparável, desfilam as carruagens do
embaixador da Espanha, do embaixador da Inglaterra, do embaixador da
França.
Assim,
com essa pompa de príncipe oriental, deslumbrando, sob o delírio
da turba, Marialva seguiu até á sede da embaixada portuguesa,
onde se alojou.
No
outro dia, com protocolos severíssimos, o Palácio Imperial
abriu-se para receber o enviado de D. João VI. Francisco Leopoldo, na
sala do trono, revestido do manto real, recebeu diante de toda a Corte o
gentil-homem magnífico.
O
Embaixador entra. Seguem-no equipagens rutilantes. A corte abre alas. Alto e
moreno, desse belo moreno peninsular, olhos românticos e negros,
Marialva, com o peito chispando de insígnias, rompe orgulhosamente por entre
os palacianos. Curva-se diante do trono. Beija a mão augusta do
Imperador. Depois, solene e teatral, suplica a Francisco I, o mui alto e
poderoso senhor dos Reinos da Áustria e da Hungria, em nome de D.
João VI, o muito alto e poderoso senhor de Portugal, do Brasil e dos
Algarves, a graça de conceder a mão da Sereníssima
Arquiduquesa, Maria Leopoldina Josefa Carolina, ao Sereníssimo
Príncipe D. Pedro de Bourbon e Bragança, herdeiro do trono.
Francisco
I ouve. Depois, com singeleza, responde, do alto trono, que tem glória e
honra em conceder a mão de sua filha ao filho do Primo e Rei.
Marialva
curva-se de novo. Beija a mão do Imperador. E retira-se incontinenti do
Palácio Imperial: está ajustado o casamento de D. Pedro e D.
Leopoldina.
O CASAMENTO
Francisco
I designara gentilmente o dia 13 de maio, aniversário de D. João
VI, para a realização do casamento da filha. E enquanto, em
Viena, ia uma lufa-lufa de preparativos, a notícia do ajuste, no Brasil,
tinha uma repercurssão ruidosa. D. João comemorou-a com festas.
Decretou gala na Corte. Deu beija-mão ao corpo diplomático. As
fortalezas embandeiraram-se Salvas reais, repiques de sino, foguetório.
À noite, no Teatro S. João, houve espetáculo de honra.
El-Rei compareceu
Certo
dia, por um paquete inglês chegado de Falmouth, desembarcou no Rio o
Conde de Wrbna. Era o Mordomo-Mor do Imperador austríaco. Vinha especialmente
de Viena, como mensageiro de Francisco I, trazer a D. João VI a
notícia oficial de que se realizara, com grandes pompas, o casamento do
Príncipe e da Arquiduquesa. E o Conde Wrbna contou, com minúcias,
o que foram essas pompas. Que maravilha!
É
o dia 13 de maio. Oito horas da noite. A capela do Palácio Imperial
rebrilha. A corte austríaca, alvoroçada e sôfrega, acorreu
garridamente à cerimônia retumbante. Há um forte dardejar
de pedrarias. Branquejam decotes estonteantes. Ruge-ruge de sedas. Fuzilam
insígnias nas casacas verdes. Muitas casacas verdes. O Senhor
Marquês de Marialva, rodeado pelos nobres do seu séquito, atrai,
como um foco, os olhares de toda a Corte. A suntuosidade do Embaixador
estonteia. Ultrapassa tudo o que já se viu em Viena.
De
repente, na Capela Imperial, soa uma trompa de ouro. O Reposteiro-Mor levanta a
tapeçaria de veludo. Os cortesãos abrem alas respeitosas. O
Imperador e a Imperatriz da Áustria entram. Trazem a noiva. D.
Leopoldina vem toda de branco. Está deslumbradora! O seu vestido
é um poema de rendas de Bruxelas. Faisca nele, orvalhando-o de luzes,
uma pedraria imensa. Tomba-lhe da fronte, como uma cascata de espumas, a
grinalda finíssima, apresilhada nos cabelos por fuzilante diadema de
pedras brasileiras, mimo do noivo. A cauda tem cinco metros. Sustêm-na
oito damas de honor. Todas em grande gala, fulgurantes, com enormes
"balões" de seda rosa broslados de arminhos. É
encantador!
Ao
lado da noiva, magnífico na sua casaca preta, luvas brancas, brilhantes
chispando no peitilho rendado, vem o Arquiduque Carlos. Sua Alteza representa o
noivo. E ambos, sob a música aristocrática de Haydn, debaixo de
pétalas de rosas, que tombam num chuveiro, encaminham-se até ao
altar. Então, no vasto silêncio que se fez, Sua Eminência, o
Cardeal Camerlengo, assistido por quatro Bispos, realiza o casamento. A
grandiosidade do ato eletriza a todos. O Imperador está
comovidíssimo. A Imperatriz chora.
Nessa
noite, por entre júbilos fragorosos, Viena inteira iluminou-se. A cidade
estrugiu debaixo da mais frenética atoarda de festa. E enquanto, nas
ruas, o povo bramia de entusiasmo, lá dentro, no Palácio
Imperial, festejando o acontecimento altíssimo, Francisco I, oferecia
à Corte, na Sala dos Espelhos, o grande jantar de gala.
O BAILE DE MARIALVA
O
Marquês de Marialva deu um baile em honra de sua Princesa. Foi um dos
bailes mais culminantes da Europa. Acontecimento imorredouro nos fastos da
diplomacia galante. Marialva arruinou-se com ele. Não se contentou em
gastar as grossas ordens que vieram de D. João: dissipou nessa festa
toda a herança que herdara do pai.
O
grande fidalgo, desde a sua chegada triunfal, aturde a Corte da Áustria,
então a corte mais faustosa do mundo, com as suas esbanjadas
magnificências de nababo. E com uma prodigalidade torrenciosa, novo
Buckingham, o embaixador derrama às mãos cheias por todo o
Paço, desde Metternich até o último dos camareiros,
presentes de opulentissima suntuosidade, punhados de diamantes, soberbos fios
de pérolas, pedras de toda cor, pilhas de barras de ouro.
Para
o baile, esse baile nobre, gentilíssimo, em que empenhara com alma a sua
reputação de homem mundano, Marialva cometeu loucuras
incríveis. Verdadeiras fantasias de rei oriental! Mandou construir
pavilhões riquíssimos nos jardins de Rugarten. Recheou-os de
móveis italianos da Renascença. Decorou-os com tapeçarias
velhíssimas, "gobelins" raros, assinados Lebrun. Cobriu-os de
sedas e de damascos. Estrelejou-os de lustres de cristal. Inundou-os de quadros
e de mármores. E, enfim, com aquelas grandezas de espantar, o
gentil-homem abriu os seus salões para a. festa única. E recebeu,
na noite memorável, a corte inteira de Viena. A Duquesa de São
Carlos, embaixatriz de Espanha, mulher do célebre Duque de São
Carlos, amigo íntimo do rei, fez as honras da casa.
Às
nove horas, ao som do hino, entraram os Imperadores. Vieram com Suas Majestades
todos os Arquiduques e todas as Arquiduquesas. Vieram também o
Príncipe Real da Baviera e o Duque de Saxe. Metternich, com o
fardão recamado de crachás, compareceu em grande gala. Os
pavilhões borborinhavam. Trançavam por eles os nomes mais altos
da Áustria. Rompeu o baile a Senhora D. Leopoldina. Sua Alteza
dançou uma polonaise com o Senhor Marquês de Marialva. Os
monarcas não dançaram. Mas, Suas Majestades felicitaram
rasgadamente o Embaixador pelo deslumbramento da festa. Aquilo era um conto de
fadas! Metternich dizia a todo momento, alto, derramando olhos tontos por
aquele faiscar:
-
Mas é uma festa das mil e uma noites! É uma festa das mil e uma
noites!
* * *
As
onze horas, serviu-se a ceia. Marialva sentou-se com os Imperadores à
mesa da família real. Havia quarenta talheres. E toda a baixela desse
serviço, gravada com as armas dos Marialvas, era de ouro maciço.
Os demais convivas espalharam-se em pequenas mesas. Foram todos - e eram mais
de mil! - servidos em baixelas de prata. Os Imperadores retiraram-se às
duas. O baile continuou até ao amanhecer. Custou, nesses velhos tempos,
mais de um milhão de florins! E Marialva, num gest muito seu, ofereceu
no dia seguinte, aos pobres de Viena, os pavilhões com todas as
maravilhas que lá havia. Não retirou deles uma única
alfaia.
A PARTIDA
Dias
após, dentro dum coche dourado, partia D. Leopoldina para Liorne, onde a
aguardavam as naus de D. João VI. Em Florença, à espera de
Sua Alteza, chegara o Marquês de Castelo-Melhor, vindo especialmente do
Brasil para receber a noiva. Também já lá estavam o
Príncipe de Metternich e o Marquês de Marialva. O
Grão-Duque de Toscana, cunhado de D. Leopoldina, recebeu-a com grandes
brilhos. Hospedou-a no Palácio Pitti. E nessa mesma noite, no
salão nobre do velho Palácio, o Grão-Duque reuniu a Corte
numa solenidade de gala. E aí, com muitos ritos, entregou
protocolarmente a Arquiduquesa, em nome de Francisco I, ao Marquês de
Castelo-Melhor, o enviado de João VI.
A
comitiva, luzida e bela, partiu na manhã seguinte para Liorne. No porto,
muito airosa, ancorava nau "D. João VI" que devia conduzir Sua
Alteza ao Brasil. D. Leopoldina embarcou. Acompanhavam-na o Marquês de
Castelo Melhor, o Conde de Louzâ e o Conde Penafiel. A princesa escolheu
como camareiras, para servirem-na, a Condessa de Huembourg, a Condessa de
Berentheim, a Condessa de Londron, todas damas da Corte austríaca.
Comboiava a nau "D. João VI" uma corveta de guerra. Era a
"São Sebastião". Vinha nela o Conde de Eitzi, como
Embaixador Extraordinário de Francisco I, escudando a Princesa
até a América.
* * *
Assim,
na Aústri, realizou-se um dos mais estrondosos casamentos que já
viu o mundo. Mas, o brilho espaventoso das festas não se apagou
A
CHEGADA
Do
Arsenal de Marinha, vistosamente embandeirado, parte a galeota do rei. Vai nela
a Família Real. D. João VI viera com o fato novo de pano
inglês e a grossa bengala de castão de ouro. D. Carlota pusera o
vestido rodado, cor de pérola, e o seu famoso trepa-moleque de safiras.
D. Pedro embarcara, fremindo. Os seus olhos fuzilavam. O coração
batia-lhe aos saltos.
E
a galeota, com seus bigodões de espuma, fura a ondada mole, rumo dos
barcos que entram. Estaca. Na nau "D. João VI", com os seus
uniformes de veludo e prata, os marinheiros estendem-se
-
Minha filha!
D.
Carlota toma-a nos braços. Aperta-a. Beija-a longamente. Depois...
Depois é o momento curioso. Nada mais galante. D. João, com um
gesto, apresenta D. Leopoldina a D. Pedro:
-
Minha princesa, eis ai o teu príncipe!
Os
dois fitam-se. Sorriem. E na galeota, - sob a curiosidade brejeira dos
tripulantes, o príncipe e a princesa beijam-se na face. D. Pedro
é moço formoso. Com os seus dezoito. anos, sadio e desempenado,
com o seu moreno tropical, os seus olhos negros e enormes, o príncipe
é um galhardo tipo de homem, um mancebo varo nu e sedutor. D. Leopoldina
devora-o com os olhos. Toda ela ri! E afagando a mão do noivo, com
ternura:
- Mein liebling!
E
D. Pedro, radiante, num enlevo:
-
Minha princesa!
Na
galeota, com grandes ansiedades, esvoaçam logo as perguntas. E a
travessia? E a saúde? E a nau? D. Leopoldina responde. E sorri. E
papagueia. Sua Alteza fala em francês. Às vezes por mera
caçoada, tenta um português cômico;
-
"Prrazil mui linda! Mui linda"!
E
aponta as montanhas, a baía crespa, o céu, todas as embebedantes
maravilhas do Rio. Durante meia hora, foi um grulhar amistoso. A galeota
encheu-se dum alvoroço quente. Uma alegria! E assim, dadas as
boas-vindas, combinou-se o desembarque para o dia seguinte. D. João
marcou a hora. E D. Leopoldina ergueu-se. Beijou a el-Rei. Tornou para a nau.
D. Carlota e D. Pedro acompanharam-na até ao tombadilho.
OS ENFEITES E OS ARCOS
D.
João alindou a sua cidadezinha com atavios de gala. Enfeitou tudo com
garridices vistosas. O pobre Rei timbrou em receber a nora com luzimentos
únicos. No cais, em frente ao Arsenal de Marinha fez construir uma vasta
ponte de madeira que avançava pelo mar. A princesa poderia desembarcar
ali com mais comodidade. Alcatifou-se a ponte com tapetes caríssimos.
Cobriram-se os corrimãos de panos de Arrás. Ergueu-se, logo
à entrada, um pavilhão soberbo, muito berrante, onde se viam, em
cores fortes, as armas de Portugal e da Áustria. Quatro águias
enormes seguravam nos bicos festões de folhagem que tombavam
baloiçantes. Por toda parte, onde devia passar o séquito, houve
um esbanjar de aprestos. Areia branca, folhas esparzidas, pétalas de
rosa por todo o chão. Os monges de S. Bento alegraram de sedas ruidosas
as fachadas do seu mosteiro. Não houve casa, no itinerário, que
não se enfaceirasse. Eram colchas da Índia, tapeçarias nas
varandas, cortinas, veludos colgados à parede. Um esplendor! Na Rua
Direita, deslumbrando, ergueram-se três arcos. Foram a grande maravilha
decorativa. A maior suntuosidade dos festejos. Os jornais falaram deles com
louvores rasgados. Um, o "Arco Romano", era oferecido pelo
Comércio. Fora concebido e realizado por Grandjean de Montigny e por Debret,
os dois grandes artistas que o Conde da Barca mandara vir da França. Era
um arco magnífico, com cinqüenta palmos de altura, sustentado por
oito colunas dóricas. tendo no pedestal os símbolos do Rio de
Janeiro e do Danúbio. Um trazia as quinas e castelos de Portugal; outro,
as águias imperiais. Sobre cada um a legenda: "Januarius" -
"Danubius". Havia baixos-relevos de grande efeito. Dum lado, a Europa
e a Fama: uma tocava a trombeta; outra depositava sobre um altar as iniciais em
ouro dos noivos: P. L. Por baixo, também em ouro, fulgia a
inscrição típica: "À feliz união, o
Comércio".
Mais
além, na esquina da Rua do Sabão, o segundo arco. Era tão
alto como o de Montigny. Fora risco de Luís Xavier Pereira, maquinista
do Real Teatro. Destacava-se nele, lá acima, a figura do Himeneu,
circundada pelas figuras da Glória e da Fama. No meio, um
medalhão; e no medalhão, em relevo, os retratos de D. Pedro e D.
Leopoldina. No pedestal, em alegorias coloridíssimas, a Europa, a
Ásia, a África, e a América.
Enfim,
em frente à Igreja da Cruz, o último arco. Era um "Triunfo
romano". Oito estandartes fincados em terra recobertos de grinaldas e
flores. Palmas por toda parte. Em vez da águia romana, a águia
austríaca de duas cabeças. Em vez do busto dum general
conquistador, o busto em bronze da princesa. Em vez do nome de batalhas ganhas,
o rol das virtudes e graças de D. Leopoldina: "Bondade" -
"Amabilidade" - "Doçura" - "Sensibilidade"
- "Beneficência" - "Constância" -
"Espírito" - "Talento" - "Ciência" -
"Encantos" - "Graça" - "Modéstia".
O DESEMBARQUE
Onze
horas. Dia glorioso. Um sol de ouro redourando tudo. Do Paço da Cidade,
aos sons de caixas e de clarins, D. Carlota Joaquina toca para o cais em grande
estado. No cais, já na galeota real, D. João VI espera a Rainha e
as Princesas. Sua Majestade viera por mar da Quinta da Boa Vista. E a galeota,
sem mais tardança, zarpa rumo da nau "D. João VI".
Centenas de escaleres engaivotam o mar. Toda a corte parte na espumarada de
el-Rei. É um belo torvelinho de damas e de titulares. Balões de seda
rosa e casacas de riço
D.
João, nesse instante, abre uma caixa de xarâo que o
guarda-jóias trouxera. Toma dum colar de pérolas. É
magnífico. Tem quatrocentas pérolas. E cavalheiresco, todo num
sorriso, enrodilha-o no pescoço da nora. D. Carlota, por sua vez,
enroda-lhe nos braços duas pulseiras de safiras imensas. São
safiras incomparáveis, as maiores do Brasil. D. Miguel oferece-lhe uma
afogadeira de rubis. D. Maria Teresa um trepa-moleque de brilhantes. D. Maria
Francisca uma colossal borboleta cravejada. Todas as infantas trazem o seu
mimo. É uma profusâo de riquezas. D. Leopoldina a cada
jóia, sorri encantada:
-
Oh! oh!
D.
Pedro enfia-lhe no dedo um anel opulentissimo. Há nele uma pedra de dez
quilates, azul-querosene. Depois, galantemente, adorna-lhe os cabelos com um
diadema de pedrarias. E entrega-lhe, enfim, uma caixa de ouro muito lavrada. D.
João, vendo a Princesa abrir a caixa explica modestamente:
-
Estão ai dentro, minha filha, os frutos da terra. Este é o
país dos diamantes.
A
caixa estava atulhada de diamantes brasileiros.
O
veador de el-Rei, nesse instante, faz um sinal ao mestre da galeota. Os
marinheiros, a um só tempo, batem os remos na água. A
embarcação voa. E uns instantes depois, debaixo dum sol de ouro,
sob a alegria frenética dos campanários, D. Leopoldina pisa a
terra do Brasil.
Um
séquito único, brilhantíssimo, como nunca mais se viu no
Brasil, acompanhou os noivos até à Capela Real. Não o
descreva eu, para não me acoimarem de imaginativo. Descreva-o esse
tão saboroso cronista, o Padre Luís Gonçalves dos Santos,
testemunha presencial da festa. Lá diz o padre nas suas
"Memórias":
O SÉQUITO
"Vinha
adiante uma partida de Batedores. Seguião-se quatro Moços a
cavallo, e os Azemeis cobertos de veludos carmezim. Logo depois os Timbaleiros
com atabales. Todos a cavalo, agaloados de ouro, coletes azues agaloados de
prata. Seguião-se immediatamente oito Porteiros da Cana. Os dois
dianteiros com canas, os mais com maças de prata ao hombro.
Vinhão vestidos de casacas pretas com capas da mesma côr. E tudo
era de seda. Atraz delles, vinhão os Reis d'Armas, Arautos, e
Passavantes, vestidos com armaduras de seda ricamente bordadas. Marchava em um
soberbo cavallo o Corregedor do Crime da Côrte. Trazia a beca, a vara
alçada, o chapéo de plumas na mão. Acompanhavão-no
dous Criados da Casa Real a pé. Após do Corregedor seguindo-se
noventa e tres carruagens, todas de quatro rodas, puxadas a dous e a quatro. As
primeiras conduziam os do Conselho d'Estado, as últimas os Bispos e
Grandes do Reino. Levava cada huma dous Criados á portinhola, muito bem
fardados, segundo a variedade das librés dos seus Amos, trazendo todos
plumas brancas nos chapeos, que levavão nas mãos. Esta extensa
fila de carroagens, todas mui aceadas, e ricas, puxadas por soberbos machos
enfeitados com plumas e fitas, por longo espaço de tempo
entreteve com prazer os espectadores pela sua brilhante vista. Mas o que era
Estado da Casa Real, isto sim, surpreendia pela sua grandeza e magnificencia.
Estadeou-se nesta Côrte pela primeira vez, com todo o esplendor.
Vinhão tres coches da Casa Real. O primeiro levava os Guarda-Roupas; e
os outros os Estribeiros Móres, os Mordomos Móres, o Camarista,
os Viadores. Cada hum destes coches era puchado a seis, acompanhados de quatro
Criados a pé. O que occupava o ultimo lugar tinha mais dous Moços
da Estribeira ao lado das portinholas. Seguia-se o Tenente da Guarda Real e o Estribeiro
Menor, ambos a cavallo, cada hum assistido de dous criados a pé.
Via-se
então o coche de el-Rei. Era forrado de veludo carmezim. Este a todos
sobrepujava em riqueza e magnificencia. Era tirado por oito formosissimos
cavallos com areios de veludo e ouro. De cada lado tinha huma ala de
Moços da Camara a pé, e descobertos. Pela parte de fóra
destes, hião os Archeiros com as suas alabardas; e mais por fora ainda,
quatro Moços de Estribeira ricamente fardados. Ao pé do Real
coche, de cada lado, hião a cavallo dous Ferradores com pastas. Junto de
cada cavallo hum Criado a pé.
Neste
riquissimo coche conduzião Suas Majestades a Serenissima Senhora
Princeza Real, que vinha assentada á frente ao lado do Augusto Esposo.
Sua Alteza Real vinha riquissimamente vestida de seda branca, bordada de prata
e ouro, e riquissimamente ornada de brilhantes; hum finissimo véo de
seda branca, que da cabeça pendia sobre o rosto realçava a
belleza do seu Real semblante. Em seguida, noutro soberbo coche, forrado de
veludo verde, vinhão o Serenissimo Senhor Infante D. Miguel e as
Serenissimas Senhoras Princezas. Em outro, igualmente soberbo, o qual era
forrado de seda ouro, vinhão a Serenissima Princeza, e as Infantas.
lmmediato ao coche de Suas Magestades trotava o Capitão da Guarda Real,
o Excellentissimo Marquez de Bellas, seguido de varios Criados a pé.
Seguia-se atrás o magnífico coche do Estado, puxado a oito, com
oito Criados a pé. E fechavam este pompossissimo acompanhamento os
coches das Camareiras Móres, das Donas de Honor, das Damas
Açafatas. Hia ao lado do coche das Damas hum Moço de Camara, a
cavallo, servindo de Guarda-Damas, acompanhado de hum Criado a pé com
telis encarnado no braço.
Ao
passar Suas Magestades e Altezas Reaes por baixo do primeiro arco, fronteiro ao
Arsenal, dous lindos Meninos, ricamente vestidos, que estavam em pé
sôbre os pedestaes das columnas, hum com os emblemas do Amor, outro do
Himeneo, apresentaram a Suas Altezas Reaes huma grande corôa de flores
artificiaes, delicadamente dobradas. Esta corôa, no momento da passagem,
desceu da abobada do arco, donde estava suspensa: ao mesmo tempo, sobre o Real
Coche, esparziram-se nuvens de flores naturaes. Parou depois o coche por baixo
do segundo arco. Nesse instante voaram grandes volutas de aromas, que se
queimavam em dois vasos, ao mesmo tempo que cahiam chuveiros de flores da
abobada, das varandas, e das janellas das casas vizinhas. Penetrou depois o
Real Coche, por entre as verdes palmas do terceiro monumento, sob vivas e
aplausos que nunca mais cessaram até a Real Capella, onde chegou o
coche. Seriam tres horas da tarde.
Por
entre mil vivas e applausos, descerão do coche Suas Magestades e o
Serenissimo Senhor Principe Real, que immediatainente deo o braço para
descer sua Augusta Esposa. Apearam-se dos seus respectivos coches o Serenissimo
Senhor Infante D. Miguel e as Serenissimas Senhoras Princezas e Infantas. Assim
entrou El Rei Nosso Senhor, com toda Real Família, para dentro da
Egreja. Seguiram-n'o a Côrte, os Bispos, a Nobreza, o Senado da Camara.
Rompeu immediatamente a grande orchestra da Real Capella Mór, onde havia
hum riquissimo Solio de lustrina de ouro encarnado. Debaixo do docel
estavão dez cadeiras, nas quaes El-Rei, e as mais Pessoas Reaes se
sentarão. Entretanto o Bispo, Capellão Mór, subiu ao seu
Solio, e o Cabido tomou logar na quadratura. Feito hum breve repouso, o Mestre
de Ceremonias deo o signal. Levantaram-se todos. O Serenissimo Senhor Infante
toma pela mão o Serenissimo Senhor Principe Real. A Rainha Nossa Senhora
pegou na mão da Serenissima Senhora Princeza Real. E forão
apresentar os Augustos Desposados ao Bispo para lhes lançar as
Bençãos Nupiciaes. Puzerão-se então Suas Altezas
Reaes de joelhos sobre almofadas, diante do Altar. E Sua Excellencia deo as
Benções em canto festivo".
* * *
Assim,
com essas pompas incríveis, casou-se aquela que foi a nossa primeira
imperatriz. Assim, casou-se aquela que foi a mais humilhada das mulheres e,
talvez, a mais desgraçada de quantas já se sentaram em trono.
OS CIÚMES DA PRINCESA
Na
chácara do Cauper, à Rua Conde da Cunha, o Príncipe D.
Pedro acabara de almoçar. Era todos os dias a mesma coisa. D. Pedro
vinha sentar-se à mesa, pedia o almoço O Cauper, de Pé,
servia a sua Alteza. As filhas do Cauper, também de pé, assistiam
honradíssimas ao comer do herdeiro do trono. E D. Pedro, moço
democrático, inteiramente sem protocolos, jovializava a mesa com a
irrequieta folgazanice dos seus dezoito anos. O almoço corria sempre
alegre. Ferviam as futilidades. D. Pedro bisbilhotava tudo. Indagava dos
mexericos. Punha-se ao corrente dos escândalos sociais, das festas, dos
namoros que houve na serenata em casa do Marquês de Santo Amaro. E tudo
entre meado de muito mimo e de muita galantaria sem nenhuma
intenção. Tudo ingênuo. Tudo sem malícia.
O
Cauper - Pedro José Cauper - era o guarda-roupa do príncipe. Foi
o último guarda-roupa da solteirice de D. Pedro. Não havia nesses
tempos problema mais difícil do que descobrir um palaciano que calhasse
para tal cargo. Se o homem era sisudo e grave, pessoa de bons conselhos, D.
Pedro embirrava-se logo, metia-se a descompô-lo, armava ao pobre diabo
toda a casta de diabruras e de pervesidades. Se o homem era peralta e
folião, D. Pedro, de parceria com ele, botava-se a fazer estroinices,
patuscadas incríveis, ceatas no Botequim da Corneta, mil proezas
que, ao reboarem
Seguiu-se
no emprego Joaquim Valentim de Sousa Lobato. Este já ocupava o cargo de
guarda-roupa do próprio Rei. Era irmão dos Lobatos. Dos homens
mais afortunados no tempo de D. João VI. Daqueles que abiscoitaram os
empregos mais lucrativos da época. Tanto, e de tal forma, que no Rio se
tornou expressão corrente:
-
"Fulano é um sujeito muito feliz. É feliz como os
Lobatos!"
Este
Joaquim Valentim era um cortesão desbragado de modos, costumes soltos,
escandaloso. Fez com D. Pedro todas as peraltices imagináveis. Tinha
tais condescendências com o príncipe, tão despudoradas,
que, no dizer horrorizado e pitoresco do cronista, "chegava a ponto de
levá-lo à casa das moças!" D. João, ao saber
das inconveniências de Sousa Lobato, também lhe tirou o oficio.
Foi então que chamou Pedro José Cauper e nomeou-o guarda-roupa.
O
Cauper era homem excelente, casado, mas pouco cioso da reputação
da sua casa. O povo murmurava dele. E murmurava com razão. Cauper tinha
filhas solteiras e bonitas. Deixaram fama, no Rio, de raparigas
lindíssimas. Era natural que Cauper, nesses tempos de impiedosa
maledicência, zelasse ferozmente pela reputação delas. Mas
qual! O guarda-roupa recebia o príncipe todos os dias em sua casa. E
obrigava, todos os dias, as filhas a fazerem companhia ao moço
Bragança. E era certo, depois do almoço, D. Pedro virar-se com
singeleza para o Cauper:
-
Oh, Cauper! Fica-te por ai: eu vou me divertir um bocado com as tuas filhas...
E
lá se ia. Às vezes, metia-se no bilhar. Outras vezes, punha-se a
jogar gamão. E no mais das vezes, quase sempre, saia a passear com as
moças pela chácara. Não passava disso. Tudo ingênuo.
Tudo sem malícia. Mas era chocante! A nomeada do príncipe fora
sempre tenebrosa. Todo o mundo sabia que D. Pedro era um atrevido. Um grandíssimo
maroto que não respeitava sequer as famílias. Nada mais
lógico, portanto, que a freqüência do rapaz conquistador em
casa onde havia moças belas e solteiras desse muito que falar às
más línguas. E o povo falava sem dó. Diziam-se coisas
crespas...
Por
esse tempo, na Corte, andava uma lufa-lufa. Fervia um rodopio de preparativos.
Esperava-se a todo o instante a chegada de D. Leopoldina, arquiduquesa da
Áustria, noiva de D. Pedro. A nau "D. João VI", que se
redourara nos estaleiros, já havia partido para Liorne com o fim
único de trazer a escolhida do herdeiro do trono. E como partira linda a
nau! Novinha, toda alcatifada, muita seda, os marinheiros agaloados de veludo e
prata.
Foi
num daqueles dias, terminado o almoço, que D. Pedro falou comovido:
-
Hoje é o dia das despedidas, Cauper; amanhã, fundeia no porto a
"D. João VI", que vem ai com a minha noiva. E eu, ao depois,
não poderei cá vir todos os dias como agora venho.
-
Pena é, Senhor D. Pedro, tornou o Cauper, consternado; e pena grande!
Vossa Alteza honra tanto a nossa casa...
Caiu
um silêncio embaraçante. Mas, o príncipe, que não
suportava mágoas, quebrou logo o silêncio dorido:
-
Não falemos mais nisso... Tristezas não pagam dividas. Oh,
Cauper, fica-te um instante por ai; eu vou me divertir um bocado com as tuas
filhas...
E
saiu a passear com as moças pela chácara.
D.
Leopoldina chegou. O Brasil inteiro desentorpeceu-se com o ribombo das festas.
Que alvoroço! Revolucionou tudo. Saíram das velhas arcas mil
tafularias de gala. A corte cobriu-se de louçanias. Ferreteava toda a
gente uma grande ânsia por conhecer a futura imperatriz. Mas... que
decepção! D. Leopoldina era feia. Ruiva e gorda, lábios
grossos, olhos esverdeados, a princesa encarnava em si o tipo clássico
dos Habsburgos. Não tinha elegância e não tinha
graça. D. Pedro, como ninguém, sentiu o desfulgor da mulher.
Aquilo gelou-o.
Nada
mais explicável, nada mais humano, do que esse desapontamento do
príncipe. D. Pedro havia deixado os braços da Noemi, a bailarina
do Teatro São João, essa francesinha endoidecedora que enchera os
seus dezessete anos com o mais picaresco romance de amor. O
coração ainda sangrava-lhe. O moço boêmio ainda
sofria perdidamente de paixão. E eis que nesse momento, ainda na dor que
curtia, surge-lhe a mulher. Surge-lhe uma criatura sem encantos e sem
feitiços, D. Leopoldina era feia! E por isso, só por isso, a
filha de Francisco I não teve nunca a boa fortuna de seduzir o
coração do príncipe. Não pôde nunca
cicatrizar a ferida rasgada impiedosamente naquela alma de namorado.
D.
Pedro, desde o momento em que viu a esposa, comprendeu nítido o abismo
que foi intransponível. Dia a dia, quanto mais íntima se tornava
a vida conjugal, mais fundamente se acentuava a incompatibilidade daqueles dois
gênios.
O
príncipe foi sempre, em toda a sua existência, um louco por
mulheres. Foi o seu fraco. O traço culminante do seu caráter. D.
Pedro amou furiosamente na vida. Amou quando príncipe. Amou quando
imperador. Amou quando rei no exílio. E amou com todos os desbragamentos
da sua índole de fogo. Mas, por ironia, D. Pedro só não
amou a esposa. Por quê? É que D. Leopoldina não foi
hábil. Não teve a astúcia de se fazer amar: preocupou-se
muito pouco em ser mulher. Desleixou sempre a arte de seduzir pela
graça. Não cuidou nunca desses pequeninos nadas de toucador,
essas frioleiras encantadoras com que as "coquetes" tecem a rede
dourada de caçar os homens. D. Leopoldina nunca se enfeitou. Nunca teve
paixão por vestidos. Nunca mostrou capricho por um perfume. Nunca
pôs uma flor na trança. Nunca se carminou. Nunca se frisou.
Aparecia sempre com umas roupas muito amplas, o corpo muito largado, os cabelos
muito corridos, sem colete, os seios balouçando. Todos os
contemporâneos, afora Carlos Seidler, pintam-na assim. Jacques Arago, que
a viu muitas vezes, descreve-a num flagrante: "point de collier, point de
pierres aux oreilles, pas une bague aux doigts. La camisole attestait un grand
usage; la jupe était fripée..." E a baronesa de Fisson de
Montet, dama da corte austríaca: "I'archiduchesse Leopoldine
n'était pas jolie; elle n' avait ni grace, ni tournure, ayant toujours
eu l'aversion des corsets et des ceintures, etc.".
Além
desse feitio negligente, tinha ainda a princesa uma paixão que mais a
distanciava do marido; gostava loucamente de livros. Foi uma estudiosa
tremenda. Adorava as ciências naturais e positivas. Ficou célebre
o seu entranhamento por matemática e por botânica. Encerrava-se
dias e dias nos seus aposentos devorando Keppler. Passava dias e dias
empalhando sagüis ou catalogando flores exóticas. Foi ela quem
trouxe da Áustria os dois famosos sábios Spix e Martius, que
tão altos serviços prestaram à fauna e à flora
tropicais. Ora, contrastando com a mulher, D. Pedro era um ignorantão. O
que deixou nosso primeiro imperador como amostra das suas humanidades
envergonha a gente. As suas cartas arrepiam. Um ginasial, hoje, ri-se da
pasmosa incultura do Bragança. Nunca se preocupou com livros, e, muito
menos, com Kepplers e sagüis empalhados. Ele mesmo, ao mandar educar o
filho, o nosso grande Pedro II, dizia com chiste e bom humor:
-
Este há de aprender, garanto! Não há de ficar como o pai.
Porque eu, e o mano Miguel, se Deus quiser, havemos de ser os últimos
ignorantes da família...
D.
Pedro, portanto, não tolerava livros. Preferia descer às
cavalariças e ir ferrar, ele próprio, os seus cavalos. Ai, estava
à sua vontade. Apertava a mão dos picadores, igualava-se a eles,
discutia, montava em potros bravos. Uma verdadeira paixão! Ora, dada
essa diversidade de gostos, era evidente que o príncipe não
achasse na mulher a mulher sonhada. E foi um infeliz. A vida de ambos, portas a
dentro, tornou-se um pungente desfiar de rusgas. D. Pedro esfriou logo.
E
essa frieza veio à tona sem tardar. Mal findaram os festejos, quinze
dias após a chegada, já D. Pedro se enfarava da lua de mel. E
para desenfastiar-se, reprimindo a custo os bocejos, D. Pedro pensou logo no
Cauper. Certo dia, com espanto de toda corte, o príncipe levou a
princesa almoçar em casa do seu guarda-roupa. O palaciano e as filhas
receberam suas altezas com júbilos irreprimíveis. Foi uma festa!
Um renascimento! D. Pedro tinha a mesma jovialidade de solteiro. A mesma
alegria, a mesma folgazanice, a mesma simplesa. Ao terminar o almoço,
com a sem-cerimônia dos velhos tempos, D. Pedro lá foi bradando:
-
Oh, Cauper, fica-te por ai com a princesa; eu vou me divertir um bocado com as
tuas filhas.
E
saiu com as meninas pela chácara. Evidentemente, não passava
disso. Tudo ingênuo. Tudo sem malícia. D. Leopoldina,
porém, não gostou. Mordeu o lábio; achou estranho. Mas,
não deixou escapar palavra.
E
começou, na chácara do Cauper, a mesma freqüência de
antes. Era todos os dias a velha coisa. D. Pedro vinha, trazia a princesa,
almoçava. E depois do almoço:
-
Oh, Cauper...
E
saia com as moças. Mas, não passava disso. Tudo ingênuo.
Tudo sem malícia.
* * *
Aquela
assiduidade ao Cauper, aqueles passeios pela chácara, aqueles mimos e
galantarias para com as moças, foram um espinho na alma da princesa. D.
Leopoldina começou a sofrer. O ciúme, o tal "green ey'd
monster" de Shakespeare, cravou-lhe a primeira mordida no
coração. Tornou-se-lhe um suplício acompanhar o marido ao
almoço dos Caupers. Aquilo doía-lhe. Aquilo infernizava-lhe a lua
de mel. E D. Leopoldina não se conteve. Certa manhã, ainda nos
seus aposentos, D. João recebeu a visita da nora. A princesa vinha
nervosa, estranhamente inquieta. Entrou. Atirou-se aos pés do monarca,
soluçando. El-Rei ergueu-a carinhosamente. E condoído, muito
solicito:
-
Que há, minha filha? Que há?
D.
Leopoldina contou-lhe tudo. Os almoços, as intimidades, os passeios pela
chácara, o estribilho de todos os dias:
-
Oh, Cauper, fica-te por aí com a princesa: eu vou me divertir um bocado
com as tuas filhas.
D.
João ouviu. Consolou ternamente a desesperada austríaca. Fez-lhe
um agradozinho no queixo:
-
Eu sei de tudo, minha filha! De tudo! O Sousa Lobato já me pôs a
par dessas leviandades do Pedro. Aquele rapaz é assim mesmo, minha
filha: um desmiolado! Mas deixa o caso por minha conta. Eu serei por ti.
Beijou
a nora, fez-lhe outro agradozinho, mandou chamar ali mesmo o Visconde de
Parati, o valido, a fim de resolverem aquele caso de família.
* * *
Dias
depois, na corte, arrebentou uma notícia palpitante. Uma notícia
inesperada, ruidosíssima: o Cauper fora agraciado com um oficio em
Lisboa! Um oficio ótimo, dos melhores do Reino, que rendia a bagatela de
dezoito mil cruzados! Além do oficio, como alta prova da
confiança real, levava o guarda-roupa a missão de transmitir ao
governo português ordens e instruções secretas do rei.
Tornar
a Portugal! Por esse tempo, no Rio, o mais acarinhante desejo da corte era
voltar para o Reino. Ninguém se acostumava no Brasil. Os fidalgos
detestavam aluda vida sensaborona, colonial, numa cidadezinha suja,
tristíssima, cheia de negros e de mosquitos. Ficar com el-Rei era
sacrifício. Era um morrer de tédio. Um suicidar-se. Eis porque,
na corte, ao arrebentar a notícia do embarque do Cauper, não
houve cortesão que não suspirasse, invejoso:
-
Ora, vede o Cauper! Não há como ser valido do príncipe...
Que felizardo! É feliz como os Lobatos...
Enfim,
numa corveta inglesa, embarcou para o Reino o guarda-roupa do príncipe.
D. Pedro e D. Leopoldina foram a bordo levar aos amigos o abraço de
despedida. O Cauper estava chocadissimo. Ao dizer adeus, então,
desenrolou-se uma cena tocante. O guarda-roupa chorava. As moças
choravam. D. Pedro chorava. D. Leopoldina chorava... Foi um mar de
lágrimas.
* * *
Nessa
noite, depois do terço, no oratório, D. João perguntou
baixinho à nora:
-
Está contente, minha filha?
E
a princesa, com um súbito clarão nos olhos:
-
Contentíssima!
E
beijou, agradecida, a mão do rei.
-
Plácido!
O
favorito, que lia na antecâmara, acudiu imediatamente ao chamado do amo:
-
Majestade!
-
É hoje o aniversário da filha do Inhambupe?
-
É, Majestade. A moça completa hoje vinte anos...
-
E a que horas é a festa?
-
Às duas, Majestade. O Marquês de Inhambupe não dá
saraus à noite. O pobre homem anda muito atacado da gota. A filha,
à vista disso, oferece uma simples merenda aos amigos.
D.
Pedro, ouvindo, abriu o seu velho contador de jacarandá negro. Agarrou
numa caixa de veludo, milto donairosa, enfeitada gentilmente por um
laçarote de fita. E virando-se para o favorito:
-
Toma lá este mimo, Plácido. É um bracelete cravejado.
Leva-o de minha parte à filha do Inhambupe.
O
Plácido sorriu. E D. Pedro, com o seu bom humor inextinguível,
batendo maliciosamente nos ombros do criado:
-
É bonita aquela rapariga, hein, Plácido?
E
o Plácido, um tanto embaraçado:
-
É linda...
-
Aquilo é que é mulher, oh! Plácido: tu não achas?
E
o criado confuso, com um sorriso amarelo:
-
É uma rapariga e tanto! Mas...
-
Mas o quê? tornava D. Pedro irrequieto; vamos lá: mas o quê?
-
Mas é um perigo essa aventura de Vossa Majestade, afoitava o valido com
ares de prudência; a moça é solteira. A moça
é filha do Inhambupe. O Marquês, além de homem probo,
é ministro de Vossa Majestade. Tudo isso são coisas graves.
Coisas de se ponderar. Vossa Majestade, portanto, precisa ter cautela. Muita
cautela! Senão vem por aí um escândalo dos diabos...
E
D. Pedro, sempre estourado:
-
Qual escândalo, qual nada! Não arrebenta coisa alguma. Depois, meu
caro, o Marquês é como os outros. Um adulador! É o ministro
mais adulador que eu já tive. O Marquês não me assusta.
É deixá-lo... Trata, pois, de tecer a coisa, oh! Plácido,
e larga o resto por minha conta. Leva hoje, de minha parte, este presente
à moça...
D.
Pedro, últimamente, encaprichara-se amalucadamente pela rapariga. Raro o
dia
Era
sempre um recadinho amável, uma caixa de confeitos, uma prenda. O
Plácido trançava dum lado para outro. Fizera-se o leva-e-traz
daquele namorisco. E vinha sempre com mil coisas. Que a moça delirara!
Que a moça estava louca por D. Pedro! Que a história ia às
mil maravilhas! O Imperador, no entanto, retrucava sempre:
-
Mas é curioso, só Plácido: ela não dá
amostra. Nem um sorriso, nem um olhar, nem uma palavra mais denunciativa...
E
o Plácido:
-
Está claro, Senhor D. Pedro! Haverá nada mais melindroso do que
isso? A moça tem lábias. Porta-se assim por manha: não
quer que o caso dê na vista... E é natural. Pode lá a
moça gostar que falem dela? Mas fique Vossa Majestade tranqüilo:
vai tudo muito bem: muitíssimo bem!
D.
Pedro aceitava. E todo dia, com mais afinco um galanteio tentador.
Agora,
no aniversário, era aquele bracelete cravejado. Um escândalo!
Mas,
o Plácido, sem comentário, lá foi cumprir a ordem do amo.
Vestiu a casaca verde. Espremeu o pescoço num colarinho de palmo.
Alastrou no peito um "plastron" vistoso. Borrifou-se de
água-de-cheiro. Calçou luvas. Pôs um cravo na botoeira. E
assim, casquilho e taful, partiu com elegância para a merenda em casa do
Ministro dos Estrangeiros.
* * *
Plácido
Antônio Pereira de Abreu, ou melhor, e simplesmente, o
"Plácido", tivera uma sorte curiosa. Fora um caso
interessantíssimo de boa-estrela. Um amimado da fortuna! E esse, que, ao
depois, conquistaria tão largamente as boas-graças do Imperador,
começou na vida como "varredor do Paço". Um dia, todo
ronhas e habilidade, aplainou as coisas e subiu de posto: conseguiu insinuar-se
como barbeiro de D. Pedro.
D.
Pedro, por esse tempo, ainda era príncipe. E além de
príncipe - toda gente sabia - um desmiolado e estróina. O
barbeiro, por seu turno, um sujeito folião, muito patusco, amador de
regabofes, grande conhecedor de mulherinhas.
D.
Pedro afeiçoou-se logo ao barbeiro. Era natural... Fê-lo seu
camarada de todas as noites. Ligou-se ao homenzinho com um entusiasmo
boêmio. O Plácido tornou-se o amigo de toda hora, o
imprescindível, o companheiro único. Foi então, nessa
quadra maior, o mais acarinhado dos validos do príncipe.
O
nosso primeiro Imperador teve, durante a vida inteira, essa fraqueza
imperdoável: gostou sempre de gente canalha. Circundou-se continuamente
da ralé, tipos à-toa, escória apanhada no enxurro da vida.
Os seus três favoritos, os servidores mais do peito aqueles que D. Pedro
mais amou, demonstram-no dolorosamente. Um foi o Plácido; outro, o
Chalaça; o terceiro, o João Pinto. O Plácido iniciou-se na
vida como varredor do Paço; o Chalaça, como criado de
galão; o João Pinto, como negociante falido e expulso da
alfândega por ladrão. Esses três homens, no Primeiro
Império, ergueram-se a alturas vertiginosas. Tornaram-se os poderosos do
dia. Não houve mercê que pleiteassem e não
alcançassem.
O
Plácido conquistou o seu valimento desde os belos tempos
Foi
até (não podia haver posto de maior confiança...), foi
até espião de D. Leopoldina! O Imperador, por tão altos
serviços, condecorou-o com a Ordem do Cruzeiro e com a Ordem da Rosa. O
Plácido fizera-se benemérito da pátria.
E
como conseguiu o "varredor" do Paço infiltrar-se de tal jeito
no coração do amo? Por um acontecimento cômico. Uma
verdadeira maluquice de D. Pedro. Uma dessas muitíssimas maluquices do
nosso simpático primeiro Imperador. O caso foi assim:
* * *
D.
Pedro, como príncipe, recebia muito pouco dinheiro. A sua pensão
era ridícula: um conto de réis E não havia força de
D. João sair daquilo. O rei era um sovina tremendo. D. Pedro,
temperamento de irrefletido, inteiramente oposto ao do pai, gastava ás
mancheias, estouradamente, esbanjadamente. Por isso mesmo, enquanto
príncipe, D. Pedro viveu em aperturas desesperadas. Mais duma vez, nos
seus apuros, o herdeiro do trono recorreu a empréstimos envergonhantes.
O Pilotinho, bodegueiro da Rua dos Barbonos, forneceu-lhe certa ocasião
doze contos de réis. Manuel José Sarmento, pessoa pacata, antigo
oficial de secretaria, socorreu-o muitíssimas vezes com quantias fortes.
Ora, diante da usura do pai, para sair daquela situação
humilhante de empréstimos e mais empréstimos, o príncipe
tomou uma resolução heróica: resolveu ganhar dinheiro
Resolveu ganhar dinheiro a todo transe, de qualquer jeito, desse no que desse.
E que é que engendrou aquela cabeça de vento? Apenas isto: fazer
uma sociedade mercantil com o Plácido. Imaginar e executar foi um
pronto. Apalavraram logo o contrato. E ambos, unindo os seus destinos,
meteram-se a negociar. Um príncipe, o herdeiro do trono, a negociar de
parceria com o seu barbeiro! Imaginai um pouco... E negociar em quê? Na
única coisa de que D. Pedro realmente entendia: compra e venda de
animais...
A
sociedade principiou a funcionar sem demora. D. Pedro, em companhia do
Plácido, ia quase toda a manhã ver as tropas que chegavam.
Escolhia, num relance, os animais mais belos. Um golpe de vista espantoso! Apartava-os,
pagava-os, mandava-os para as cavalariças do Paço. Diziam os
tropeiros que o "moço tinha faro: enxergava logo a flor da
manada..."
Depois,
na cidade, a engrenagem do negócio era das mais simples. Uns dias de
trato, os animais engordavam, o pêlo reluzia. O Plácido
saía então em busca dos compradores. Uma facilidade. Bastava
dizer a um daqueles fidalgotes endinheirados:
-
O príncipe resolveu vender um belo animal. Belíssimo animal!
É um dos mais soberbos das cavalariças do Paço. Por que
Vossa Mercê não aproveita a ocasião?
O
homem não titubeava. Corria ao Paço, via o cavalo, achava-o
perfeito, comprava por qualquer preço. E saía
honradíssimo, cheio de orgulho, a esparramar pela corte que adquirira um
"cavalo das cavalariças reais..."
A
sociedade, evidentemente, começou a prosperar. Os dois parceiros
puseram-se a ganhar dinheiro à vontade. Dinheiro a rodo. D. Pedro andava
contentíssimo O negócio era dos melhores, dos mais certos.
-
Um negocião da China, como dizia alvoroçadamente o
príncipe ao barbeiro; um negocião da China! E dizer que
até hoje ninguém teve ainda essa idéia.
Mas,
um dia, por fatalidade, aquela história foi parar aos ouvidos do Rei. D.
João VI branqueou. Nunca, na sua vida, o pobre monarca enfureceu tanto!
Aquela leviandade do príncipe revirou-lhe os nervos. Sacudiu-o! Mandou
chamar imediatamente o filho.
D.
Pedro, ao entrar, deparou com o pai de pé, revolucionado, o cenho
torvamente cerrado. O rei tinha na mão a sua grossa bengala de
castão de ouro. E numa fúria, espumejando:
-
Então, seu grandíssimo canalha, vosmecê a negociar em
animais? E a negociar de parceria com o Plácido, o barbeiro? Pois
vosmecê, o herdeiro do trono, não tem vergonha nessa cara? O que
eu devia fazer, seu cachorro, era quebrar-lhe a cara com esta bengala? Quebrar-lhe
a cara, ouviu?
E
erguia a bengala no ar, e bramia, e descompunha, e gaguejava de cólera.
D. Pedro não negou. Confessou tudo com firmeza. D. João mandou
buscar o Plácido. E ali mesmo:
-
Você, de hoje em diante, está proibido de se meter em qualquer
negócio com o príncipe. A sociedade está liquidada. Lucro,
se houve, que fique para você. Não admito que meu filho toque num
real dessa patifaria.
E
desfez a sociedade.
Está
claro que havia muitíssimo lucro no negócio. E o Plácido, o
felizardo, ficou-se com aquele dinheirão todo. Principiou desde ai, com
esse capital, a prosperar na vida. Ficou riquíssimo. Terminou numa das
mais grandiosas fortunas do Primeiro Império.
* * *
Rompeu-se
a sociedade mercantil, é verdade, mas não se rompeu a amizade
velha que unia o amo e o criado. Ao contrário: afeiçoaram-se
ambos mais estreitamente. Continuaram pela vida afora companheiros e
íntimos. E agora, já imperador, D. Pedro não dispensava o
Plácido. Naquele momento, então, mais do que nunca, o favorito
desempenhava esta nobre e alta missão: era o recadeiro entre D. Pedro e
a filha do Inhambupe. Diga-se outra vez, a bem da justiça, que o
Imperador, até aquele momento, não recebera da rapariga uma
só prova, por pequenina que fosse, que demonstrasse ser correspondido na
sua maluquice. Nunca a moça dissera-lhe um "muito obrigado!"
Nunca, nos beija-mãos, esboçara um sorriso mais significativo.
Nunca, no teatro, erguera ao camarim imperial um olhar que prometesse. D. Pedro
notava aquilo. Reclamava. Mas, o Plácido, astucioso e hábil,
explicava sempre:
-
É para não dar na vista. Ela não quer comprometer-se.
Haverá nada mais justo? Mas fique Vossa Majestade sossegado! Deixe o
caso por minha conta...
Um
dia, enfim, depois daquele suave período de galanterias, D. Pedro tomou
uma resolução de louco. Uma resolução
verdadeiramente incrível. Sua Majestade ordenou ao criado:
-
Vá à casa do Inhambupe e traga-me a filha aqui.
-
Aqui no Paço?
- Aqui
no Paço! Vá já. Eu fico à espera...
E
ficou à espera. As horas começaram a passar. Uma só
idéia mordia-lhe o cérebro: será que a moça vem? E
D. Pedro andava. Agitava-se. Fumava. O coração batia-lhe forte.
Será que a moça vem? As horas passavam... Nada do Plácido!
E o Imperador ansioso. E o Imperador cada vez mais aflito. E nada do
Plácido! De repente, erguendo o reposteiro, surge o camarista de
serviço. D. Pedro, ao vê-lo, arregalou os olhos,
espantadíssimo:
-
Que há?
-
O Senhor Marquês de Inhambupe está na antecâmara. Veio em
companhia de Plácido. O Marquês pede para falar urgentemente a
Vossa Majestade.
D.
Pedro empalideceu. O coração esfriou-lhe. Que diabo teria
acontecido? Mas ordenou sem vacilar:
-
Que entre!
O
Marquês entrou. D. Pedro recebeu-o secamente. Estava nervoso e
trêmulo.
-
Que deseja Marquês?
O
Inhambupe entrou logo em matéria:
-
Vossa Majestade há de saber que o Plácido, há
vários meses já, vem cortejando a minha filha...
-
O Plácido?!
-
Sim, o Plácido... Aparecia-me ele, quase todo o dia, com mimos para a
rapariga. Era uma flor, uma caixa de confeitos, uma prenda. Eu nunca disse
coisa alguma. O Plácido é bom rapaz, muito sensato, pessoa de
bem. Homem um pouco madurão, é verdade; Vossa Majestade sabe que
o nosso Plácido já passa dos quarenta! Mas eu também
não gosto lá de peralvilhos... E por isso deixei a coisa
tomar vulto. Hoje, para encurtar histórias, hoje, o homem surge-me
lá em casa e pede-me a rapariga em casamento...
E
D. Pedro, com assombro:
-
O Plácido?
-
Sim, Majestade. O Plácido! Pediu-me a rapariga
D.
Pedro ouviu, estuporado. A cabeça dançava-lhe. Estava
boquiaberto! Mas respondeu logo, automaticamente, num alvoroço:
-
De pleno acordo, Marquês! De pleno acordo! O Plácido é
excelente pessoa. A filha de Vossa Excelência faz um ótimo
casamento. E um casamento do meu inteiro agrado! Pode ajustar as bodas...
O
Marquês iluminou-se. E baboso de contentamento:
-
Pois folgo muitíssimo em ver que Vossa Majestade consente... Folgo
muitíssimo... À vista disso - não há mais
dúvida - está ajustado o casamento. Vou levar já a boa
nova à minha filha...
Ergueu-se,
beijou a mão do Imperador, saiu tonto de felicidade. D. Pedro acompanhou-o
até à porta. E com um sorriso:
-
Diga ao Plácido que entre, Marquês... Quero
abraçá-lo!
E
D. Pedro, um fundo vinco na testa, os braços cruzados, esperou o antigo
barbeiro. O Plácido entrou. Vinha agoniado, o ar zonzo. Não teve
coragem de fitar o amo: apenas, num aturdimento, atirou-se como louco aos
pés do Imperador. E chorando, as mãos postas, pôs-se a
bradar num desespero:
-
Perdoe-me, Senhor D. Pedro! Perdoe-me! Eu fui um traidor! Um infame! Eu bem sei
que fui indigno da confiança de Vossa Majestade...
E
chorava desabaladamente. D. Pedro ergueu-o desarmado: aquelas lágrimas
do amigo abrandaram-lhe imediatamente as iras. D. Pedro sorriu um sorrisinho
malicioso. E:
-
Mas que é que aconteceu, homem? Que é que significa esta
comédia? Vamos lá. Explica-te...
-
É que eu gosto da moça, Majestade! Eu sempre gostei dela! Aquela
rapariga é a minha paixão! É o meu sonho! E eu - Vossa
Majestade me perdoe! - eu não pude resistir: cortejei-a para mim...
D.
Pedro, no fundo, era uma alma encantadora. Aquela aventura do criado,
verdadeira página de opereta, entrou-lhe vencedoramente pelo
coração adentro. Todo o seu furor, dissipou-se. Aquilo era dum
cômico feroz, irresistível... E ali, diante do noivo
trêmulo, de olhos molhados, D. Pedro não pôde reprimir-se:
soltou uma gargalhada gostosa, uma gargalhada que lhe brotou sonoramente na
alma!
-
Oh! seu moleque, eu devia mandar-te para a forca; ouviste? Então,
canalha, em vez de conquistar a moça para mim, foste arranjar noiva para
ti? Oh! grandíssimo tipo...
-
Perdoe-me, Senhor D. Pedro, tornava Plácido, murcho. Perdoe-me! Foi uma
traição, eu sei, mas eu gosto tanto da moça! Perdoe-me...
E
D. Pedro, jovialmente:
-
Pois estás perdoado! Estás perdoado, seu traste! E agora, como
Imperador, ordeno que faças a rapariga feliz. Se a não fizeres -
vê lá - mando-te para o aljube...
O
Plácido abriu-se num sorriso. Era uma delícia o vê-lo
assim, diante do amo, rindo e chorando, o ar aparvalhado. E D. Pedro, para
coroa daquilo tudo, abriu o contador, escolheu uma bela borboleta de pedras,
entregou-a cavalheirescamente ao Plácido:
-
Toma lá, meu amigo. Coloca isto nos cabelos de tua noiva... É uma
lembrança minha.
E
mandou a jóia para a filha do Inhambupe.
* * *
A
notícia do casamento estrondou como uma bomba. Foi um choque! O Rio
inteiro comentou...
João
Loureiro, que viveu no Brasil uma larga temporada, tendo a boa idéia de
escrever montes de cartas sobre tudo quanto se passava na Corte por esse tempo,
mandou ao Reino um comentário ao inesperado acontecimento social.
Lá diz o curioso bisbilhoteiro:
"Isto,
e "o casamento do Plácido", criado do Imperador, com huma
filha do Marquez de Inhambupe, tem ocupado todas as atencões e
conversas, já não digo dos salões, que cá não
há, mas das salinhas..."
Saíra
da Fortaleza de Santa Cruz o préstito estranho. Vinha, doloroso e
fúnebre, torcicolando pelas ruelas da Corte, a caminho do Largo da
Prainha. Fora aí que se levantara a forca. O povo, consternado e murcho,
apinhava-se pelas esquinas e becos. As janelas atulharam-se de gente. Havia uma
curiosidade espicaçante. Todos queriam ver a procissão soturna. E
a procissão desfilava, triste e confrangedora, solenemente vagarosa...
Um irmão do Santíssimo, com a opa escarlate, ia à frente,
carregando a Cruz. Dum lado, em longa fila, cabisbaixos e graves, os
Irmãos da Misericórdia; doutro lado, com os seus hábitos
negros, o ar condoído, os Irmãos das Almas. Um quadrado de
cavalaria. Dentro, montado num zaino vistoso, todo metido na sua beca negra,
debruada de arminho branco, o Corregedor do Crime. Enfim, trágicos e
lúgubres, três homens a pé. Os condenados... Iam
descobertos, curiosamente revestidos por uma alva de linho, o pescoço
enfiado na laçada duma grossa corda, cujas pontas dois outros homens
sustentavam. Eram os dois carrascos. Caminhava entre eles sacerdote velho.
Melancólico, o roquete branco e a estola, roxa, o homem do Senhor segui
a cristãmente os que deviam morrer. Um rapazola, coroinha da Sé,
batia sem cessar, desconsoladoramente, uma campainha tenebrosa. Que tanger
arrepiante! Aquilo esfaqueava o coração... O povo sentia aquela
angústia. Contemplava, sofredor e mudo, o espetáculo desolante.
Quem
eram esses desgraçados que iam para a forca? Ouvi o meirinho do crime,
esse que vai a cavalo, a vara simbólica na mão. Lá diz
ele, aos berros:
-
Justiça! Justiça!
"Justiça
que manda fazer o Imperador constitucional do Brasil aos réus
João Guilherme Ratcliff, João Metrowich, Joaquim Loureiro, por
crime de rebelião e alta traição. Que sejam com
baraço e pregão levados pelas ruas públicas ao lugar da
forca, onde morrerão de morte natural para sempre.
Justiça!
Justiça!"
Ali
estavam, portanto, os homens implicados no movimento revolucionário de
1824. Ali estavam os últimos ecos da "Confederação do
Equador", essa temerária empresa republicana de Manuel Carvalho
Paes. De todos os envolvidos na revolta famosa, só aqueles homens, os
três que lá seguiam foram julgados na Corte. O processo deles, o
mais retumbante processo do primeiro reinado, empolgou furiosamente a
opinião pública do Rio. A cidade inteira interessou-se pela sorte
dos miseráveis. É que havia entre eles um personagem sedutor:
Ratcliff.
Inteligentíssimo,
muito culto, falando eximiamente várias línguas, soube o
fascinante revolucionário atrair em torno da sua desdita uma larga aura
de simpatias. Todo o mundo apiedou-se dele. Todo o mundo suplicou por ele.
Subiram aos ouvidos do monarca as implorações mais
enternecedoras. Em vão! Ratcliff e os companheiros foram condenados
à morte. E agora, naquele dia taciturno, marchava o préstito
horrorizante a caminho da forca.
Mas,
o préstito caminhava numa lentidão anormal, esquisita. Havia um
propósito de retardar o enforcamento. Em frente à igrejinha de
Santa Rita a procissão estacou.
Os
condenados ajoelharam-se. Longo tempo ai estiveram num estacionamento
visivelmente intencional. Um irmão das Almas, acotovelando o
companheiro, indagou com desânimo:
-
Será que ainda vem o perdão?
-
Pode ser... Agora o pedido é grave! Vossa Mercê não sabe?
-
Não...
-
Pois a maçonaria saiu a campo. Foi há pouco uma comissão
urgente à casa da Senhora Marquesa de Santos.
-
À casa da Marquesa?
-
Sim, senhor! À casa da Marquesa. Foi implorar à favorita que
interceda junto ao Imperador. Só ela, só a Marquesa é quem
pode salvar a Ratcliff...
-
Não há dúvida! A Marquesa é a única pessoa
que pode salvá-lo. É a mulher mais poderosa do Império.
É quem manda
E
todos penalizados, a alma compungida, quedaram-se silenciosos em frente
à Igrejinha de Santa Rita.
Era
um fremir. Era uma ânsia desesperada por que viesse o perdão.
Enquanto
isso, no palacete da senhora marquesa de Santos os maçons suplicavam
angustiadamente pelo "irmão Ratcliff!"
D.
Pedro, por golpe de força, dissolvera acintosamente a Assembléia
Constituinte. O ato despótico teve nas Províncias uma
repercussão sangrenta. O norte, de armas na mão, protestou contra
aquela violência ditatorial. Rebentou por lá, temerosamente, a
"Confederação do Equador".
Manuel
de Carvalho Paes encabeçou o movimento. Pernambuco, terra do caudilho,
tornou-se o cérebro da revolta. Ceará, Paraíba, R. Grande
do Norte, agruparam-se logo em torno da grande província. As
idéias democráticas, a ambição de formar no Brasil
uma vasta República livre, alastraram-se triunfalmente entre aqueles
visionários rebelados. Manuel de Carvalho Paes trouxera dos Estados
Unidos a semente sagrada. Semeou-a com um entusiasmo heróico.
Arregimentou parceiros ardentes. Tramou a insurreição. Insuflou.
Num relâmpago, sacudindo o país, a
"Confederação" encorpou assustadoramente. Foram
depostos os governadores legais. Os rebeldes apossaram-se de toda a
região. Mas D. Pedro sorriu daqueles tresloucados. Aprestou
vertiginosamente as suas tropas. E fez partir às lufadas o General Lima
e Silva à frente delas.
Levava
o soldado ordens ferozes. Ordens que Lima e Silva cumpriu com selvageria.
É que uma boa-estrela, desde logo, alumiou as armas imperiais.
Os
revolucionários foram batidos em "Couro d'Anta" Foram batidos
no "Agreste". Foram batidos em "Engenho do Juiz". Carvalho
Paes, vítima da própria imprudência, separado
imprevistamente das suas tropas, fugiu para bordo da nau inglesa "Tweed",
onde se asilou.
Os
imperiais triunfaram. Começou, então, pelas províncias
confederadas, tremenda enfiada de vinganças.
D.
Pedro foi inexorável. Não teve um gesto de clemência. A
fúria sanguinária de Pedro, o Cru, acordou insopitável na
alma do neto. O Bragança afogou em jorros de sangue a idéia
republicana. Todos os envolvidos na insurreição estrebucharam na
forca. Não escapou um só. De nada valeu o clamor público a
favor de Frei Caneca. Nem o prestígio do simpático Major
Agostinho Bezerra Cavalcanti, o mulato probo. Nem os serviços
patrióticos de Nicolau Martins. Nem a batina do padre Gonçalo
Bororó. Nem a velhice do Ibiapina. Nada!
D.
Pedro foi cruel. Mandou traspassar a todos. Não houve súplica,
não houve lágrima que abrandasse as suas cóleras.
Nunca
mais na vida, até morrer, o Imperador se mostrou tão sem
entranhas. D. Pedro, com assombro de toda gente, revelou-se verdadeiramente
tigrino. Pôs bem a nu a faceta despótica do seu caráter.
Diante dessa dureza estranha, tão em contraste com as gaiatices daquele
Imperador folgazão, um historiador sensato ponderou com acerto: "O
movimento republicano foi sopeado, mas - coisa triste de recordar-se - D. Pedro
I, não satisfeito de ter vencido pelas armas, inspirado por uma
política de rancor e de vingança, recorreu ao expediente vulgar
dos cadafalsos. Ele, que havia se revelado contra a própria
Pátria, contra seu Rei e contra seu Pai; que dissolvera a
Assembléia Constituinte, violando o dogma da soberania nacional,
constituindo-se em estado de flagrante ilegalidade; este Príncipe,
enfim, grande e ilustre revolucionário, fez enforcar e fuzilar outros
revolucionários pelo crime de haverem protestado contra o golpe de
Estado. Vítimas ilustres cujo perdão mal bastaria para honrar a
demência imperial, e cujo sacrifício foi assaz poderoso para
perpetuar uma tirania odiosa, posto que passageira".
* * *
Ratcliff
implicara-se na revolução republicana de 1824. Quem era esse
personagem? Di-lo o Conselheiro Moreira Pinto: "João Guilherme
Ratcliff nasceu na cidade do Porto, freguesia da Sé, na Rua das Flores,
em 1770. Seu pai era polaco. Sua mãe era portuguesa, filha de polacos.
Seu pai tinha negócio de instrumentos náuticos e de
música. Ratcliff navegou muitas vezes para a Ásia. Possuía
esclarecidíssima inteligência. Era alto, gordo, claro, corado,
cabelos louros.
Partidário
feroz do constitucionalismo, palpitante de idéias liberais, Ratcliff
meteu-se exaltadamente na revolução portuguesa anti-absolutista
de 1820. Era, por esse tempo, oficial de secretaria.
Quanto
se tratou de lavrar o decreto de banimento da rainha D. Carlota Joaquina,
não houve oficial (é pasmoso!) que tivesse a coragem de se
incumbir da melindrosa tarefa. Ratcliff, com grande afoiteza, apresentou-se
para lavrar o decreto. Lavrou-o. Mas quando foi jugulado o movimento liberal,
vitoriosos os absolutistas, Ratcliff viu-se tremendamente perseguido pelos
triunfadores. Fugiu para o Brasil. Asilou-se
Mas,
a coparticipação de Ratcliff nesse movimento foi mínima. O
chefe da Confederação mandou-o para Alagoas, a fim de atrair
aquela província à causa dos insurgentes. Ratcliff embarcou no
brigue "Constituição ou Morte", de que era comandante
João Metrowich, marujo maltês. Comboiava-os a escuna "Maria
da Glória", capitaneada pelo pernambucano João Loureiro. Os
comissários rebeldes desembarcaram em Tamandaré onde deixaram
quinze contos de réis. De Tamandaré seguiram até Barra
Grande, onde apresaram o brigue "Bandurra". Aí, tomados de
surpresa, foram os revoltosos aprisionados por dois navios imperiais. O
capitão Teodoro de Beaurepaire mandou-os imediatamente para o Rio.
Não
podia haver, portanto, colaboração mais apagada. Foi
ridícula. Mas, D. Pedro para aterrorizar o império ordenou uma
formação de culpa severíssima. E os juizes, por sabujice,
porfiaram em rigores, clamorosos. O processo correu arrochado, com
muitíssimas testemunhas, com formalidades infindáveis,
extenuantes. Apurou-se muito pouco. Quase nada. A responsabilidade dos
indiciados resultou das provas levissimamente comprometidas. Mal comportaria
uns anos de prisão. A pena de morte seria de uma injustiça
uivante. E o povo, que acompanhava o processo com ardente sofreguidão,
implorou com alma, abundantemente, um pouco de brandura para os infelizes. Todo
o Rio de Janeiro movimentou-se.
Foi
um interesse, uma palpitação! O "caso Ratcliff"
empolgou e arrastou a corte inteira! O advogado Ovídio Saraiva de
Carvalho fez prodígios. A maçonaria, força
pujantíssima que era, agitou-se fervilhosamente em torno dos ministros e
do monarca. E era uma ânsia!
Discutiam-se
todos os gestos e todas as frases do revolucionário. Os poetas
vergilianos sabiam de cor aqueles dois versos latinos que ele escrevera nas
paredes do cárcere:
Quid mihi mors nocuit? Virtus post facta virescit.
Nec illa perit gladio saevi tyranni. (2)
Os
letrados comentavam entusiasticamente as notas eruditas que o encarcerado,
mesmo na prisão, ia escrevendo à obra "Principes
éternels de politique constitutionelle", de Desquirou Saint-Agnan.
E tudo isso. versos e notas, gestos e frases, incendiava a imaginativa popular.
D. Pedro, porém, não se abalava. As ordens que dera a monarca aos
julgadores eram inflexíveis: condenar à morte. Nada de cadeia;
nada de expulsão. Forca! Forca simplesmente. Um dos desembargadores,
modelo vivo de bajulação, trouxe a S. Cristóvão o
rascunho da sentença. Era uma peça rancorosa, sem
equilíbrio, crivada de pesadíssimos impropérios.
D.
Pedro leu-a. E como sempre, em meio de tanta severidade, teve um gesto
simpático:
-
Desembargador, esse palavrório não está direito! Condenem
o homem, isto sim; mas, não o insultem...
E
mandou reformar o teor da sentença.
Não
houve, portanto, indulgência alguma. Os homens ouviram no cárcere
a leitura do despacho fatal. E nesse mesmo dia, com aquele ritual
bárbaro, partiram da Fortaleza de Santa Cruz a caminho da Prainha.
Surgiu
a notícia da condenação. Foi uma tristeza áspera. O
povo inteiro consternou-se. Partiram de todas as camadas brados de piedade. A
maçonaria, naquela angústia, lembrou-se dum expediente supremo:
recorrer à Marquesa de Santos! Recorrer à poderosíssima
paulista, à mulher mais alta do Império, à que subjugara o
moço reinante com os seus abraços de veludo e os seus beijos de
fogo. Formou se logo uma comissão. À frente dela, ia o Dr.
Domingos Ribeiro dos Guimarães Peixoto, gentil-homem da câmara,
cirurgião imperial, futuro Barão de Inhomerim. Os
peticionários voaram ao palacete da favorita. D. Pedro estava lá.
D. Pedro, na insânia da sua paixão, passava agora dias inteiros
grudado às saias da favorita. Tinha mesmo o despudor de receber
aí os seus ministros e despachar aí com eles! Naquele dia, ao
sentir o vozeiro dos maçons, o Imperador percebeu logo o que significava
aquilo. Fugiu às pressas para o quarto. Trancou-se por dentro a sete
chaves. A Marquesa, ouvindo a súplica dos intercessores, apiedou-se
também dos miseráveis. E a linda moça correu pressurosa
à cata do amo. Bateu sofregamente à porta. Nada! Bateu outra vez.
Nada! Embalde a procissão retardava-se em frente à igrejinha de
Santa Rita. O Imperador, trancado no quarto, não dava sinal de si.
Ondeou novamente pelas ruelas da corte. Alcançou enfim o largo da
Prainha...
Nesse
instante, em casa da Marquesa, D. Pedro enfiava pelo buraco da fechadura um
pequenino bilhete. A Marquesa agarrou-o com ânsia. Abriu-o. Havia nele
apenas isto:
-
É tarde.
Era,
de fato, tarde. Ratcliff subira o estrado da forca. E virando-se para o povo,
tranqüilo, a voz forte:
-
Brasileiros! Eu morro inocente! Morro pela causa da Liberdade! Praza aos
céus que o meu sangue seja o último que se derrame no Brasil por
motivos políticos.
O
sacerdote tocou-lhe no ombro. Pediu que não continuasse. O condenado
sorriu:
-
Eu me resigno, padre. E morro pela causa da Liberdade!
A
corda caiu-lhe ao pescoço. Girou a roldana. Rangeram as traves do
madeirame. E o corpo de Ratcliff desabou, pesado e solto...
Pela
primeira vez, (talvez a única!) a Senhora Marquesa de Santos não
conseguiu uma graça do Imperador. E foi pena. D. Pedro, com aquela
selvageria, com aquele emperramento em não anistiar um só
criminoso político, acendeu rancores, acirrou as mais vermelhas
paixões partidárias. Impopularizou-se fortemente. Fomentou aquela
grossa onda de descontentamentos que fervilhava no país inteiro, e que
afinal explodiu no 7 de abril de 1831, cuspindo-o fora daquele mesmo trono que
ele criara na América.
* * *
Diziam
os coevos, até (aonde vai a verdade disso?) que D. Pedro, no furor
sangrento que então o dominou, mandara cortar a cabeça do
cadáver de Ratcliff. Incumbira-se da monstruosidade o Dr. Francisco
Júlio Xavier. E o Imperador, por uma galantaria fúnebre, mandara
o horrendo mimo à sua Mãe, a Rainha D. Carlota Joaquina, a fim de
saciar-lhe o ódio que tinha ao liberal de 1820. "Esquiros",
pseudônimo do Dr. Alfredo Moreira Pinto, ilustre biógrafo do
condenado, diz textualmente: "Seria, porém, o seu corpo entregue
à sepultura como os de seus dois companheiros? Não!
Infâmia! Ratcliff havia copiado em Portugal o decreto de expulsão
da Rainha D. Carlota. E D. Pedro I salgou a cabeça de Ratcliff e
remeteu-a à sua Mãe!"
Melo
Morais Pai recolheu a mesma tradição e estampou-a sem medo, ao
tempo de Pedro II, no seu "Brasil Histórico". É lenda?
É verdade? Teria D. Pedro a coragem dessa barbaridade?
A
atriz Ludovina, nessa noite, dava um espetáculo de gala no Teatro S.
João. Era como uma coroa dos grandes regozijos públicos do dia. O
Rio de Janeiro, de fato, fervilhara de contentamento. As fortalezas
embandeiraram-se. Foguetes estrondaram no ar. Charangas por toda parte. Um
alvoroço! No Paço de S. Cristóvão, inquieto e
radiante, D. Pedro embriagara-se de felicidade. Fora-lhe o dia uma apoteose. A
grande vitória do seu reinado. O Paço borborinhara de diplomatas
e de cortesãos. Choveram lisonjas e cumprimentos. E agora, antes do
espetáculo, naquele instante de tréguas, o Imperador decidira-se
a terminar as suas alegrias com uma noite foliona. Depois de tanta luta, de
tantas negociações diplomáticas, o coração
borboleteante daquele moço pedia um desafogo boêmio. E o
Imperador, abancando-se à secretária negra, tracejou um bilhetinho
às pressas. Assim:
"Senhora
Ludovina:
Esta
noite, depois do teatro, trate de me esperar. Quero cear com Vmcê. Vou
sozinho.
Imperador".
Borrifou
areia no papel e ergueu-se palpitante. Sua Majestade estava
contentíssimo. Que é que aconteceu? Uma notícia
alviçareira: nessa manhã, chegando de Lisboa, uma corveta inglesa
trouxera de Portugal o decreto por que D. João VI reconhecera a
Independência do Brasil. Não podia haver acontecimento mais
jubiloso. Era um final sereno ao drama brasileiro. E D. Pedro sentia largamente
a felicidade da hora. E na sua felicidade sentia um acutilante anseio por dar
largas àquele gênio estúrdio e doudivanas. Sua Majestade
bateu palmas. O Chalaça apareceu. E D. Pedro, entregando o bilhete ao
valido:
-
Leia!
O
Chalaça correu os olhos pelo papel. E com espanto:
-
Vossa Majestade vai cear com a Ludovina?
-
Vou!
-
Eis um perigo, Majestade, tornou o Chalaça, precavido. Eis um perigo! A
Ludovina é casada. É casada e séria. O marido - o Soares
da Costa - um homem de maus bofes. Vossa Majestade se arrisca...
-
Deixe-se de asnices, Chalaça! Você já viu atriz
séria? Deixe-se de asnices... Leve o bilhete e diga que vou lá
depois do teatro. Hoje é dia de festa, Chalaça! Hoje o Brasil
é Brasil! Hoje é dia maior do que o 7 de Setembro! Toca a
divertir um pouco, homem!
E
D. Pedro delirava de gosto.
* * *
Tinha
razão o monarca para aqueles júbilos. O 15 de Novembro fora a
culminante vitória da obra que o jovem Bragança realizara.
Não se trata, evidentemente, do 15 de Novembro republicano, o de 89.
Não! É o 15 de Novembro de 1825, o monárquico. Foi ali -
nesse famoso 15 de Novembro - que Portugal reconheceu por um decreto,
definitivamente, a independência do Brasil. Reconheceu enfim a
legitimidade desse império novo, autônomo, que a audácia
galharda dum Príncipe moço criara na América. A
história desse decreto é longa. Representa ela, com todas as suas
tricas, a mais porfiada luta diplomática do Primeiro Reinado.
Forçoso
é proclamar, desde logo, que o Brasil deve o reconhecimento da sua
autonomia à cooperação enérgica da Inglaterra.
Foram os ingleses - não há dúvida - que decidiram da nossa
sorte, há de parecer estranho (e o é de fato) que a ilha, a
protetora, a amiga, a tradicionalmente aliada de Portugal, assumisse, em
emergência tão áspera, essa atitude imprevista de sustentar
a colônia contra a metrópole. Pois assim foi. E como se explica
essa atitude? Por uma simples questão financeira. A Inglaterra foi
sempre um país eminentemente prático. E no caso brasileiro,
então, nada mais fez a Grã-Bretanha, ao sustentar o Brasil, do
que defender o seu dinheiro e o seu comércio. Expliquemo-nos.
* * *
Portugal,
quando estourou a notícia do 7 de Setembro, contava certo com a sua
poderosíssima aliada. Os canhões ingleses haveriam de reconduzir
a terra rebelde à sua velha situação de colônia. Mas
as coisas, com assombro dos gabinetes europeus, tomaram um rumo atordoante. A
causa da independência incendiara o Brasil inteiro. Desencadeara-se pela
colônia uma rajada febrenta de patriotismos. O General Madeira, que se entocara
na Bahia, em defesa de Portugal, fora já vencido e expulso da terra. Os
Estados Unidos, com a sua larga liberalidade, reconheceram logo a
independência da irmã americana. Um triunfo! O "caso"
complicara-se assustadoramente. Como resolver? A Inglaterra, sempre fria e utilitária,
encarou de frente a situação. Viu, astuta e gananciosa, que tinha
um soberbo tratado de comércio com o Brasil. Fora por esse tratado que a
ilha se tornara a única nação que mercadejava sem concorrência
na terra do pau-brasil. Ora, em 1823, esse tratado vencera. Carecia, portanto,
reformá-lo. E para reformá-lo, urgia captar as boas graças
do país novo.
Demais
(e isto era o grave) a Áustria, por interesses de família, via
com os melhores olhos a independência do Brasil. Francisco Leopoldo
queria assegurar à filha o trono da América. Compreendeu bem a
Inglaterra que Metternich, a primeira cabeça diplomática da
época, esboçava já os primeiros passos para intervir a
favor do reconhecimento. Resultaria disso - era fatal! - que o tratado de
comércio escapuliria da Inglaterra e iria cair nas mãos da
Áustria. Seria a maior das impolíticas. Seria a perda duma
posição comercial vantajosíssima.
Além
disso - e aqui a situação tomava proporções
alarmantes - a Inglaterra havia emprestado a Portugal a soma carrancuda de
Mas,
não houve meio de se chegar a acordo. Portugal não cedia um
palmo. Os seus estadistas, por uma inabilidade que custa a crer, impunham que o
Brasil, antes de mais nada, antes de qualquer confabulação,
reconhecesse a D. João VI como rei do Brasil. E isto depois do 7 de
Setembro, depois da derrota do General Madeira, depois de proclamado e coroado o
nosso Imperador, depois de haverem os Estados Unidos reconhecido a nossa
Independência! Impossível, portanto, uma
conciliação. Portugal estava irritante. Canning, diante disso,
resolveu entender-se diretamente com D. João VI. Suspendeu as negociações
diplomáticas de Londres. E mandou "sir" Charles Stuart
parlamentar
Já
em nota oficial declarara Canning, sem reservas, que a Inglaterra
"não admitia intervenção de nenhuma
nação no Brasil, o qual estava ligado à Grã-Bretanha
por TRANSAÇÕES MERCANTIS E NEGÓCIOS DA MAIS ALTA
IMPORTÁNCIA COMERCIAL". E Stuart, além disso, levou a
Portugal uma intimação crua. Dizia Canning a D. João VI,
entre outras coisas:
"A
Inglaterra está resolvida a reconhecer as repúblicas americanas e
não pode excetuar o Brasil. Este tem direito de tomar assento entre as
nações livres e já os Estados Unidos trocaram com D. Pedro
diplomatas para representarem os respectivos países. Não pode a
Inglaterra sacrificar as suas conveniências, e deixar a grande
república tomar a dianteira nos negócios políticos e comerciais.
O Governo inglês, portanto, considera terminada a questão
do reconhecimento do Brasil. Seguirá para o Rio de Janeiro
"sir" Charles Stuart, em caráter diplomático, a fim de
negociar com D. Pedro um tratado amistoso que muito interessa à
Inglaterra. Aproveite Sua Majestade a perícia do negociador para um
entendimento com o filho, de modo a finalizar a guerra. Se o Rei de Portugal
não ouvir estes conselhos, o governo inglês
abandoná-lo-á na luta: e, sem mais considerações,
declara que reconhece a independência do Brasil".
D.
João VI andava às tontas. O reino convulsionadíssimo.
Disputas internas as mais tremendas. Naquela angústia, urgido pelo seu
grande e onipotente aliado, não teve o pobre Rei outro meio de
desentalar-se: conferiu a Stuart poderes plenos para negociar definitivamente
com D. Pedro a independência. E Stuart, já então certo do
êxito, embarcou para o Rio de Janeiro.
* * *
D.
Pedro recebeu o diplomata com grandes alvoroços. Ouviu-o logo numa
audiência reservada. Stuart expôs, com a maior sem-cerimônia,
as condições do reconhecimento. Se D. Pedro aceitasse, a
Inglaterra sustentaria o Brasil contra Portugal; se não aceitasse,
sustentaria Portugal contra o Brasil. Que fazer? O monarca reuniu o seu
Conselho de Ministros. Era o gabinete Visconde de Barbacena. D. Pedro
transmitiu-lhe a fórmula do acordo. E frisou bem os três pontos
substanciais:
A
Inglaterra exige, para o reconhecimento, que o Brasil pague o empréstimo
de
Os
homens ouviram, estatelados, a proposta. Aquela idéia de pagar em
dinheiro (dois milhões de libras!) o reconhecimento da
independência repugnou-lhes. Era indigno! O Ministro da guerra objetou,
com grande ira, teatralmente:
-
Mas é um recuo, Majestade! Depois da luta, depois de vencidos todos os
estorvos, senhores do país, vamos nós agora voltar para
trás? Vamos pagar, em dinheiro, o que já conquistamos com sangue?
Por quê? Não há motivo que justifique... Se Portugal quiser
reconhecer o novo Império, reconheça. Se não quiser,
paciência!
-
Mas, nesse caso, Senhor Ministro, a Inglaterra intervém, redarguia D.
Pedro conciliador; veja a gravidade disto: a Inglaterra, que é hoje toda
poderosa, intervém a favor de Portugal!
-
E que mal há nisso, Majestade?
-
Que mal há nisso?
-
Sim, Majestade, tornou o ministro com espavento; que mal há nisso? Se a
Inglaterra intervier, Majestade, nós nos bateremos contra a Inglaterra!
Nós nos bateremos até à última gota de sangue!
D.
Pedro irritou-se! Aquela patriotada recendia fortemente a estultícia. O
Brasil a bater-se contra a Inglaterra em 1825! Vede um pouco! O Brasil sem
dinheiro, sem armas, sem gente, inteiramente desguarnecido, a enfrentar a
Inglaterra, o país mais rico e mais forte do mundo! Que basófia!
D. Pedro não se conteve; e carrancudo:
-
Mas, enfrentar com que, Senhor Ministro? Nós não temos nada...
Enfrentar com quê?
-
Enfrentar de qualquer jeito, Majestade!
-
Mas, enfrentar de que jeito, Senhor Ministro? De que jeito? Só se for
com...
E
D. Pedro, furioso, disse
"Sir"
Stuart partiu para Portugal. E a 15 de Novembro de 1825, em Lisboa, D.
João VI reconhecia afinal a independência da sua colônia...
D.
Pedro cumpriu a palavra: pagou as libras e assinou o tratado.
O
ato do soberano ressente-se - não há dúvida - duma
ilegalidade clamante. D. Pedro não podia dispor assim, arbitrariamente,
de dois milhões de esterlinos. Mas essa ilegalidade foi a mais
abençoada das que praticou D. Pedro. Conseguiu o monarca, por ela,
alicerçar a sua grande obra. Evitou a guerra. Serenou as
agitações patrióticas. Não se derramou mais uma
gota de sangue. Criou afinal um Império. E o Brasil, como por encanto,
serenamente, sem ódios e sem lutas, apareceu como nação
livre aos olhos do mundo!
* * *
Nada
mais explicável do que o júbilo de D. Pedro. A notícia do
reconhecimento embandeirara-lhe a alma. Sacudira-o! Aquilo era a alta
vitória do seu governo. E D. Pedro, por isso mesmo, podia permitir-se
naquela noite uma ceiata alegre: ganhara-a com justiça. Foi, portanto,
com a alma em festa, radiantíssimo, que Sua Majestade se ataviou para o
espetáculo da Ludovina.
Que
noite! O teatro de S. João atulhara-se. De instante a instante, com os
seus trintanários de libré agaloada, as seges despejavam
emproados nomes. A corte inteira acudira luzidamente à
representação de gala. Eram oito horas justas, quando o coche
imperial estacou à porta. D. Pedro, muito gaIhardo, casaca verde, o
pescoço afogado num colarinho de palmo, a Ordem do Cruzeiro chamejando
ao peito, saltou por entre vivas furiosos da multidão:
-
Viva D. Pedro! Viva D. Pedro!
O
Imperador entrou. Rompeu o hino. Todos se ergueram eletrizados. No camarim
real, de pé, um sorriso de glória no lábio, Sua Majestade
soltou os olhos por aquele povo. Tudo galas! Havia um ruge-ruge de sedas.
Decotes estonteantes. Saltavam coriscos de jóias profusíssimas.
Faiscavam nas lapelas enormes crachás embrilhantados. Era soberbo! A
Senhora Viscondessa de Paranaguá trazia ao pescoço a sua famosa
gargantilha de pérolas. A Baronesa de Jundiaí, fidalga das mais
ricas, vestia um corpilho de veludo negro, muito atacado, inteiramente bordado
a fios de prata. Carvalho e Melo, Ministro dos Estrangeiros, tinha no seu
camarote a Marquesa de Gabriac, Ministra da França, uma loura
magnífica, a mulher mais elegante da corte. Lá estava o velho
Maricá, a calva rebrilhante, todo rugas, os óculos de ouro
encavalgados no narigão vermelho. A Senhora Viscondessa de Santos
também viera. Tinha a sua frisa em frente ao camarim do Imperador.
Sozinha, o ar atrevido, recamada de pedras a pele trigueira mordiscada de
volúpia, movendo senhorilmente o seu vasto leque de marfim e ouro, a primeira
Dama da Imperatriz era o foco de todos os olhares, o comentário
obrigatório de todos os cochichos...
Começou
o espetáculo. Representava-se a "Caçada de Henrique
IV". A atriz Ludovina, trágica de subida fama, tornara-se por esse
tempo o ídolo dos cariocas. A comediante endoidecera o Rio. Era a mulher
da moda. E, realmente, a deliciosa atriz tinha tudo para fascinar e provocar:
era linda, era inteligentíssima, era honesta.
Os
casquilhos da Rua do Ouvidor, moços fidalgos de casa imperial, tudo
rapaziada guapa de lacaio e coche, adejavam-lhe em torno às saias, as
mãos cheias de jóias, rivalizando-se num cortejar faminto. Mas,
tudo inútil. A Ludovina não se deixava aturdir por galanteios. E
dizia sempre, rindo-se muito, ao que se afoitava mais do que devia:
-
Eu sou casada, Visconde. Sou casada e adoro o meu marido!
Ora,
por um capricho desarrazoado, D. Pedro pôs-se a cobiçar a
trágica da voga. Aquelas linhas flexuosas, aqueles dentes carniceiros,
aqueles dois olhos negríssimos que derramavam chamas, todo aquele ar
felino de beleza sã, aguçou desejos na alma vulcânica do
moço monarca. D. Pedro sentiu pela comediante uma atração
de abismo. Escreveu-lhe... Aquele bilhetinho denunciava-lhe a alma. Por isso,
durante a noite, naquele espetáculo de gala, o coração
batia-lhe descompassado, aos saltos. Não pelos lances da peça,
que eram velhos e banais, mas pela idéia beliscante da ceia, daquela
ceia que prometia ser cor-de-rosa...
* * *
Caiu
o pano. O Imperador desceu vitoriado as escadas do teatro. O coche imperial,
tirado a quatro, partiu a galope. E o Rio, a cidadezinha triste e feia,
retombou no silêncio. Tudo deserto. Escuridão. De repente, no
Paço, pelas saídas do fundo, surde misteriosamente um vulto. Vem
cauteloso, pisando leve, enrolado na capa negra. O vulto embarafusta-se pelas
ruelas pretas. Mete-se pela Rua Direita. Corta o Largo. Entra na Rua do Cano.
Estaca diante dum casarão chato. É a morada da atriz Ludovina. O
vulto espreita. Tudo trevas. Põe o ouvido á fechadura. Tudo
quieto. Então, naquela hora morta, o curioso personagem bate devagarinho
à porta... Bruscamente, como por milagre, jorram lá dentro
clarões fortes de luz. O homem da capa negra sente um arrepio:
-
É ela!
A
porta escancara-se. O vulto recua, aterrado: diante de si, na porta, surde uma
chusma de cômicos! São os atores da companhia... E o bando
inteiro, abrindo alas, com fachos na mão, alumia sarcasticameute a
chegada do embuçado... O vulto foge, espavorido!
No
mesmo instante, atroando a noite, estronda uma gargalhada formidável.
Uma gargalhada de todos os comediantes, ferina, demolidora. E uma voz veludosa,
uma voz acariciante de mulher, grita para o homem que foge:
-
Queira entrar, meu senhor! A ceia está na mesa...
Dentro
da capa espanhola, furioso, o vulto sente o sangue chofrar-lhe nas veias. Uma
grande cólera estruge nele. Mas, para evitar o escândalo,
estugando o passo, apenas murmura entre dentes, fulo de ira:
-
Cachorra!
* * *
E
foi assim, naquela noite, depois do espetáculo de gala, que terminou a
ceia cor-de-rosa do Imperador D. Pedro com a trágica Ludovina.
Duas
horas da noite. Negra massa de populares apinha-se curiosíssima em torno
de S. Cristóvão. Fora, no pátio, muita sege. Dentro, pelos
salões, um vaivém estranho. Todas as luzes acesas. Os lacaios,
cá em baixo, reconhecem os vultos, através das vidraças
iluminadas:
-
D. Mariana!
-
O padre Boiret!
-
O Chalaça!
A
arraia-miúda ferve. Ninguém dormira nessa noite. Que aconteceu?
É que pela cidade, sacudindo-a, estourara a notícia febrentamente
esperada: Sua Majestade, a Imperatriz, sentira as primeiras dores... Foi um
reboliço! As igrejas abriram-se. Começaram devoções
infindáveis. O povo, ao eco da notícia, acudira num
alvoroço bisbilhoteiro. Partiu tudo, bulhentamente, numa sôfrega
romaria, para S Cristóvão. As cercanias do Paço
abarrotaram-se. Havia mulheres que rezavam terços em voz alta. Outras
que acendiam velas bentas. E em todos, naquela mescla, a mesma pergunta ia de
boca em boca:
-
Um foguete? Três foguetes?
Fora
este o sinal convencionado: um foguete, princesa; três foguetes,
príncipe. E discutia-se. E faziam-se apostas. E sempre a mesma tecla,
sempre o mesmo palpitar: um foguete? Três foguetes?
Nisto,
dentro do Paço, há um férvido corre-corre. Os
cortesãos precipitam-se avidamente em volta dum homem que entra, o vulto
do Dr. Guimarães Peixoto, médico imperial. O velho
cirurgião carrega nos braços qualquer coisa... E o povo,
espicaçado, num anseio:
-
Será? Será?
Era!
Era a criancinha que nascera... E eis que, chamejando, uma súbita
girândola risca o céu: e um grande estrondo fura o silêncio
estrelado. O povo, os olhos no alto, freme. Será princesa. Um momento de
ansiedade... Não! Não era princesa: nova girandola espouca
estrepitosamente no ar. E logo outra, a terceira, a última, a do
príncipe herdeiro!
Desencadeia-se
pela turba um vendaval frenético. Algazarra bravia, chapéus no
ar, grossa barulheira infernizante. Príncipe! Príncipe! Viva! E
em meio a esses júbilos furiosos, na noite chagada de astros, a
fortaleza de Santa Cruz, com um retumbar solene, dispara majestosamente, um por
um, os 101 tiros da salva imperial.
Nascera
o herdeiro do trono.
* * *
D.
Pedro, perdido de contentamento, marcou para este mesmo dia a
apresentação do príncipe à corte. Céus, que
alvoroço!
São
três horas. Um dia glorioso, tropical. Tudo ri. O Paço faisca. As
bandeiras trepidam risonhamente ao sol. Folhagens. Tufos de flores.
Galhardetes. Os arqueiros, com o tope verde e amarelo, perfilam-se ao longo das
escadarias. Todos os criados agaloados de primeira gala. De instante a
instante, estacando com estrépito, as carruagens despejam nomes
retumbantes. Os salões fervem. Risos em toda boca. Um tom de festa, um
magnetismo vivido pelo ar. Ah, um príncipe! E as damas grulham numa
tagarelice vivaz. Num canto, junto à consola de ébano, a Senhora
Marquesa de Aguiar, camareira-mor, está rodeada de emproadíssimas
fidalgas. É a Viscondessa de Paranaguá, é a Baronesa dos
Goitacases, é a Senhora Carvalho e Melo, ministra dos estrangeiros,
é D. Mariana Laurentina da Silva e Sousa Veloso de Barbuda... E que
crivar de perguntas!
-
É grande, Senhora Marquesa, é?
-
Enorme! Pesou oito libras...
-
Oito libras! Jesus! E é bonito?
-
Nem fale! Muito moreninho. Tem uns olhos deste tamanho! É a cara do
pai...
Nisto,
um súbito rumor. Sousa Lobato, porteiro imperial, brada alto:
-
Alas! Alas!
Todos
abrem alas. Um instante de comovido silêncio. O Marquês de
Jacarepaguá, reposteiro-mor, suspende a tapeçaria de veludo. D.
Pedro I entra. Ao lado de Sua Majestade, radioso e empavonado, o General Lima e
Silva, camareiro da semana. O gentil-homem, baboso de felicidade, todo riso e
glória, traz nos braços o pequerrucho. Que lindo! É um
bebê molengo, enevoado de gazes e de fitas, muito gordanchudo, uma rica
touquinha de seda rosa, babador finíssimo de rendas, a chupeta com a
argolinha de ouro... Nada mais delicioso! A corte inteira finca olhos
ávidos na criancinha. Ali está, cercado dos Altos
Dignitários, aquele que vai ser o rei... Ali está naquele pedaço
de gente, naquele anjo trigueiro, redondinho, aquele que vai ser, na
História, o vulto inconfundivelmente superior de D. Pedro II, o monarca
republicano, o mais culminante dos brasileiros.
E
D. Pedro? É de ver-se o júbilo entontecido de Sua Majestade! D.
Pedro ri-se! E ri-se à toa, ri-se com um riso alagado de gozo. Um filho!
Ah, bem sabe o pai ditoso que, naquela pequenina fronte, galantemente afundada
na touquinha de seda, irá refulgir um dia, majestosa e nobre, a coroa do
novo Império que ele criara na América! E D. Pedro ri-se...
* * *
9
de dezembro. Um séquito estrepitoso corta galhardamente as ruas
formigantes de povo. Marcha à frente um garboso piquete de lanceiros.
Depois, tirado a oito, o coche imperial. Nele, em grande gala, vem D. Pedro I.
Ao lado de Sua Majestade, refulgindo nas suas sedas negras, D. Mariana Carlota
Verna de Magalhães, Condessa de Belmonte. A velha dama traz ao colo o
príncipe herdeiro, perdido em rendas, muito recamado de
laçarotes. Atrás do coche, floridas e douradas, passam as
berlindas das princesinhas. Que bonecas de luxo! É D. Maria da
Glória, com seu vestido balão, tufado como o das altas fidalgas.
É D. Francisca, toda de seda pérola, uma plumasita
esvoaçando no coque. É D Januária, leve e decotadinha,
luvas de oito botões, um gracioso leque de marfim e ouro... E o
séquito passa. São as carruagens dos camareiros. É a sege
do Sr. Visconde da Cunha, Mordomo-Mor da Imperatriz. É um vistoso
quadrado de lanceiros, com as flâmulas palpitando nos piques.
No
Paço da cidade, garrida e refulgente, a corte aguarda com ânsia o
Imperador. Vai pelos salões um redemoinhar de sedas e veludos, casacas e
fardões, becas e dragonas. Tudo a fulgir, a palpitar! É que nesse
instante, com solenes protocolos, vai realizar-se o batizado do herdeiro do
trono.
Forma-se
o cortejo. Do Salão Encarnado, aristocrática e fulgurante, ondula
a procissão faustosa até à Capela Imperial. Quatro
girândolas, estrelejando no ar, anunciam que o cortejo partiu. O povo,
que entope a Praça, desanda em berros:
-
Viva o Príncipe!
E
o cortejo lá vai. O protocolo é rigoroso. Sua Majestade à
frente. De lado, muito cônscias e aprumadas, as princesinhas. Depois os
Ministros. Depois os Diplomatas. Depois os Conselheiros de Estado. Depois os
Grandes do Império. Depois a Nobreza. Seguem-se três gentis-homens
da Imperial-Câmara, levando as insígnias. Um traz a vela; outro, a
candeia; outro, o maçapão. Enfim largo e vistoso, o pálio
de seda escarlate. Sustêm-no seis Altos Dignitários. Debaixo dele,
carregado mimosamente pelo Visconde da Cunha, mordomo da Imperatriz, a
criaturinha galante.
E
o bando lá vai. Corta os salões, atravessa o passadiço,
alcança a Capela Imperial. D. José Caetano, o
Bispo-capelão, cercado de cônegos, mitrado, o báculo na
mão, recebe à porta, aparatosamente, o Imperador e as filhas. E a
corte entra. - Lindo! A Capela é um brinco. O ar trescala a rosas. E que
faiscação! Ouros, pratas, candelabros, seiscentas luzes acesas!
D. Pedro ajoelha-se. A corte inteira ajoelha-se. Rompe, no coro, a música
do Padre José Maurício... Findas as orações, o
Imperador senta-se no trono. A corte, segundo a etiqueta, toma os seus lugares.
E o Bispo-capelão, formalizado e grave, realiza o ato. O padrinho
é São Pedro de Alcântara. A madrinha é D. Maria da
Glória, irmãzinha do príncipe, a futura rainha de
Portugal. E o senhor Bispo capelão põe o sal. Põe os
santos óleos. Derrama, com a concha de prata, a água sagrada na
cabecita peluda: o pequerrucho faz uma careta e choraminga alto,
sentidamente... Todos riem! E o lindo príncipe, ali na pia, solenemente,
pomposamente, recebe os nomes de:
D.
Pedro de Alcântara, João Carlos, Leopoldo, Salvador, Bibiano,
Francisco, Xavier de Paula, Leocádio, Miguel, Gabriel, Rafael, Gonzaga.
Sobem
aos ares, de repente, seis girândolas. Estruge lá em baixo uma
gritaria ensurdecedora. Viva! Viva! Os sinos carrilhonam, rompem
músicas, estrondos de morteiros, as fortalezas salvam a salva de 101
tiros!
Está
batizado o filho do Imperador.
* * *
26
de agosto de
Canto
e Melo sobe o estrado da presidência. E lá de cima, com um sorriso
de glória, apresenta o menino à Assembléia. O Ministro do
Império, alto e grave, exclama:
-
Senhores representantes da Nação! Eis aqui Sua Alteza o
Príncipe D. Pedro de Alcântara, filho varão de S. M. Dom
Pedro I, Imperador Constitucional do Brasil, e de S. M. Dona Maria Josefa
Leopoldina, Imperatriz, sua Mulher, Arquiduquesa da Áustria:
reconhecei-o nos termos constitucionais!
O
Barão de Santo Amaro, estendendo a mão:
-
De acordo com o artigo 117, capítulo 4.", título 5." da
Constituição brasileira, nós, em nome da
Nação, reconhecemos a D. Pedro de Alcântara,
Príncipe Imperial, como herdeiro e sucessor do seu Augusto Pai no Trono
e na Coroa do Brasil.
E
todos os congressistas, as mãos estendidas, a voz forte:
-
Reconheço!
Rompe
o hino nacional. Sobem girândolas. Salvas, Vivas, Berreiros uivantes da
multidão.
Das
galerias, num chuveiro, rodopiando, tombam flores de toda cor, muitas flores,
muitas flores... E o herdeiro do trono, aquele pequenino gordo, olhando as
flores que caem, tão bonitas, sorri ingenuamente dentre as rendas do seu
vestido novo, enfeitado de rosinhas...
Luís
Ribeiro dos Guimarães Peixoto, filho do Dr. Guimarães Peixoto, o
grave Barão de Inhomerim, médico da Imperial Câmara, era
aí por 1833, um rapazinho sem relevo, tinha catorze anos
raquíticos, estudava humanidades num internato de Paris.
Certo
domingo, saindo a passeio, quis o menino, por ingênua fanfarronice,
estadear importância e proa ante os seus camaradas de estudo: dependurou
na farda de colegial uma ostentosa condecoração do hábito
de Cristo.
Riram-se
os rapazes, à farta, de tão velhaca peraltagem, imaginando logo
os apuros em que andaria o pai, o velho Guimarães Peixoto, para
descobrir no Brasil o paradeiro da dignificante mercê. E saíram
todos, num farrancho gaiato, grulhando como baitacas palradeiras...
Na
Praça da Concórdia, porém, ao desembocarem nos Campos
Elíseos, um guarda civil pôs reparo naquele rapazola, franzino, o
mais enfezado do bando, em cuja farda chamejava a bela venera de honra. Deteve
imediatamente o curioso sujeitinho. E apontando-lhe o peito:
-
Que é isto?
-
Uma comenda do hábito de Cristo. É minha...
O
guarda nem pestanejou: arrebanhou o farcista para o posto da
circunscrição. Aí, diante do comissário, o estudante
franziu o sobrolho, encarou-o frente a frente, bradando firme e ríspido:
-
Esta comenda é minha. Há oito anos que eu sou comendador!
A
autoridade soltou uma gargalhada retumbante.
-
Há oito anos? Então, pelo que vejo, o fedelho tinha seis anos
quando foi agraciado?
-
Seis anos, retorquiu o pirralho com ar severo: e se não acredita,
faça o favor de averiguar o caso na Legação do Brasil.
Vá ao ministro, diga quem eu sou, verifique se estou mentindo.
O
comissário foi. O caso era estranho, beliscante, jamais visto
Horas
depois, quando voltou, o comissário desmanchou-se
Como
isto? Um comendador aos seis anos? No Brasil? Sim, senhores! No Brasil. Eis a
história:
* * *
Passa
de meia-noite. No Paço de S. Cristóvão, apesar de hora
tão morta, há muita gente acordada. Vultos cautelosos, pisando no
bico dos pés, trançam sutilmente pelos corredores. Vai pelo
ambiente uma ânsia, um fremir; anda por todos uma opressão que
angustia. Na "Sala Encarnada", onde os tocheiros de prata acendem
fogaréus crepitantes, D. Pedro passeia agitado, as mãos
atrás, numa irascibilidade que lhe morde os nervos.
Ocorrera-lhe
o dia tumultuoso, atordoante, num torvelinho de festas. Fora o primeiro de
dezembro, aniversário da Coroação. O Paço da
Cidade, vistosamente enguirlandado de bandeiretas, escancarara os amplos
salões para o beija-mão protocolar. E dentro deles, mesureira e
palaciana, desfilara a corte inteira, aquela faustosa e garrida corte do
Primeiro Império, com as damas e camareiras farfalhando sedas pesadas,
com os altos dignitários empertigados nas casacas de riço verde.
A
Imperatriz fora a única pessoa que não comparecera aos festejos.
O seu estado não permitia exibições: Sua Majestade estava
para toda hora.
E
exatamente naquela noite - quem diria? - logo depois que amorteceu tanta
ruidosidade, a Quinta da Boa Vista alarmara-se de súbito.
Seriam
dez horas. D. Francisca de Castelo Branco, camareira efetiva, correra
desabalada aos aposentos do Imperador. Ribeiro Cirne, guarda-roupa de
serviço, atendeu-a.
E
logo, afobado, precipitou-se nos aposentos do Imperador. D. Pedro, mal escutou
a palpitante notícia, ergueu-se dum salto, trêmulo.
-
E o médico?
-
Já está no Paço o Dr. Guimarães Peixoto.
Já
se haviam, depois disto, escoado duas horas seculares, martirizantes, dolorosas
demais para a sofreguidão daquele monarca impetuoso.
E
D. Pedro, as mãos atrás, nervoso, vagueia agitadamente pela
"Sala Encarnada". Num canto, solitário e plácido,
cabelos brancos, o Padre Boiret, confessor da Imperatriz, desfia resmungando as
contas do seu terço. Em frente, num ângulo da janela, o
Barão de Mareschal, ministro diplomático da Áustria, que
tinha morada no Paço, o amigo íntimo e fiel de D. Leopoldina
masca soturnamente as pontas do bigode, numa exacerbação. A
Marquesa de Aguiar, camareira-mor, com seu vestido de gorgorão negro,
uma grossa afogadeira de brilhantes ao pescoço, conversa aos cochichos,
muito interessada, com a Senhora Condessa de Belmonte, aquela
distintíssima dama que teve a honra de ser chamada ao Paço como
preceptora da criança que ia nascer.
Quem
era a Condessa de Belmonte?
Era
D. Mariana Carlota Verna de Magalhães. Era a pessoa mais circundada e
mais acatada no Paço, depois dos imperadores e dos príncipes. O
marido, que viera com D. João VI, sendo então moço da Real
Câmara, tivera uma morte curiosa, largamente comentada na corte. Apesar
de muitíssimo doente, a arder em febre, Verna Magalhães,
rastejante servidor da etiqueta, timbrara em comparecer a certa missa que se
rezara em ação de graças pelo restabelecimento de D.
Pedro. Vestiu o seu fardão de gala, espremeu o pescoço num
colarinho de palmo, abrolhou o peito de insígnias, surgiu faiscante na
igreja da Glória. No momento exato da elevação, quando ia
mais rígido o silêncio pela nave, o cortesão desabou com
estrondo no lajedo.
Que
foi? Verna de Magalhães, vítima dos rigores do protocolo,
estourara de uma apoplexia cerebral!
D.
Mariana Carlota, mais do que nunca, foi então carinhosamente protegida
pelo imperador. Teve sempre, na corte de D. Pedro, o mesmo destaque brilhante
que já tivera na corte de D. João VI. E era, realmente, uma
senhora de virtudes altíssimas. Moça e bela, ilustre pelo nome e
pelo talento, cortejada e adulada, condessa com aposentadoria no próprio
Paço, a viúva Verna de Magalhães, nesses tempos de
costumes fáceis, deixou a memória de ter sido a mais honesta e
mais inatacável das fidalgas do seu tempo. Nada mais a calhar, portanto,
que fosse a ilustre dama quem recebesse a honra de ser preceptora do futuro
príncipe.
E
naquela noite, a cochichar com a camareira-mor, D. Mariana espera o desenrolar
dos acontecimentos.
D.
Pedro, num crescendo de nervos, continua a andar dum lado para outro, vibrando,
o coração disparado. Nisto, erguendo o resposteiro, surge o Dr.
Guimarães Peixoto, avental branco, mangas arregaçadas. D. Pedro
correu para o médico.
-
Então, doutor? Então?
-
Tudo normal. Pode Vossa Majestade sossegar. Não há incidente, nem
complicação. Mais um pouquinho de paciência; terá
logo Vossa Majestade um novo príncipe nos braços...
D.
Pedro, que foi sempre pai amorosíssimo, abre um sorriso de puro gozo. E
num alvoroço, infantilmente:
-
O seu palpite, doutor?
-
Para mim, desta vez, é homem... Para mim, não resta
dúvida, é príncipe...
-
Príncipe?
D.
Pedro, só com a idéia, todo numa alegria borbulhante, bate forte
nos ombros do médico:
-
Pois se for homem, meu caro doutor, pode vossa mercê pedir aquilo que
entender: está concedido!
O
Dr. Guimarães Peixoto ri-se:
-
Tenho a palavra de Vossa Majestade!
E
sai, com uma reverência, para acudir à imperatriz.
* * *
Um
homem! Um príncipe! O herdeiro da coroa! Ah, era o desejo mais
aguilhoante de D. Pedro, a ambição que ferreteava mais fundamente
a sua vaidade de imperador! Os Braganças, era sabido, tinham esta
fatalidade na sua casa: morriam-lhes os primogênitos. O próprio D.
Pedro já sentira a chicotada dessa desgraça. Nascera-lhe um filho
homem: D. João. Mas este falecera, quando arrebentou a revolta da
divisão auxiliadora. Nos dias negros
Conta
um livro velho, um desses livros esburacados que nos transmitem lendas e coisas
delidas, a razão desse infortúnio. Assim:
"É
a tradição na ordem (de S. Francisco) que indo um leigo
franciscano pedir esmola a D. João IV, rei de Portugal, ainda sendo
Duque de Bragança, em um dia que se achava de mau humor,
impacientando-se, despediu o pobre leigo, dando-lhe um pontapé na
canela. Ressentido o frade da sem-razão com que fora molestado,
rogou-lhe a seguinte praga: que a sua descendência nunca passaria pelo
primogênito; e os que lhe sucedessem haveriam de ter na perna o mesmo
sinal que produzira o ponta-pé - coisa que aliás se realizou sem
exceção de Bragança algum.
"Como
arrependimento, fez D. João IV, já rei de Portugal, o seguinte
voto: que todos os membros de sua família e descendência
não só seriam apresentados aos altares da ordem mendicante de S.
Francisco, como assistiriam em pessoa às festas do patriarca S.
Francisco e teriam no convento desta ordem as suas sepulturas.
"El-rei
D. João VI e o imperador D. Pedro I procuraram sempre cumprir esse voto
dos seus maiores, porque, perdendo os seus primogênitos, viram realizados
os prognósticos do franciscano; então, acrescentaram sempre a
esmola de 6OO$OOO para ajutório na festa do Patriarca, vindo assistir a
ela e jantar em comum no refeitório, com os frades".
* * *
Nada
mais explicável, portanto, do que aquela ânsia com que D. Pedro
esperava a criaturinha. E a andar de um lado para outro, opresso, com um forte
nervosismo, pintado no rosto, o monarca estacava, de quando em quando, em
frente à camareira-mor:
-
E a ama?
A
Marquesa de Aguiar repetia as explicações já dadas. A ama
era Catarina Equery, uma suíça, rapariga sólida, trazida
de Friburgo. Havia um mês que estava instalada no Paço. É
verdade que até agora, com surpresa de toda gente, a Equery ainda
não dera à luz. Mas era coisa para toda hora, talvez para hoje
mesmo. Por isso, enquanto se esperava, Madame Protte amamentaria a
criança por uns dias. Estava tudo pronto, tudo providenciado; Sua
Majestade que não se inquietasse...
D.
Pedro ouvia, cruzava as mãos nas costas, continuava a passear...
De
repente, com brados de júbilo, o Dr. Guimarães Peixoto entrou.
Vinha iluminado, uma alegria louca por todo ele, carregando triunfalmente o
recém-nascido:
-
É príncipe, Majestade! É príncipe!
D.
Pedro voou ao encontro do médico. Agarrou alucinadamente naquele bolo de
rendas e laçarotes, ergueu a touquinha de fitas, cravou uns olhos
sôfregos no pequerrucho.
-
É homem? É homem?
Radioso,
emocionadíssimo, sem poder refrear-se, o imperador desandou a beijar
perdidamente o principezinho, chorando aos borbotões, sufocado pela mais
embriagadora das felicidades. Que contentamento o que estourou pela "Sala
Encarnada"! Correram todos, barulhentos, rindo às tontas, em torno
da criancinha. D. Mariana Carlota, o Barão de Mareschal, o Padre Boiret,
a Marquesa de Aguiar, um tumulto de camareiras, de açafatas, de
retretas, de guarda-roupas, de moços da câmara, tudo a grulhar,
tudo festivo, tudo com um sorriso irreprimível nos lábios, tudo a
acompanhar o júbilo enternecido do imperador.
Mal
sabia D. Pedro I, naquele instante, naquele transbordar de felicidade
egoística, que aquele cariocazinho rechonchudo, aquele pedaço de
gente que dormitava nos seus braços, não ia ser apenas o
continuador da sua dinastia na América: ia ser também o maior e o
mais glorioso dos brasileiros. Ali estava, vermelho, redondinho, aquele que
devia ser, no Brasil, o homem que nunca teve uma fraqueza, o caráter que
nunca teve uma falha, a individualidade que nunca teve uma descaída.
Sábio, honrou a ciência; cidadão, honrou a pátria;
rei, honrou o cetro.
O
Dr. Guimarães Peixoto tinha a palavra do imperador. Podia pedir tudo o
que quisesse. Mas o médico foi modesto. Solicitou apenas - que caprichosa
fantasia! - uma comenda do hábito de Cristo para um filhinho de seis
anos. D. Pedro sem titubear, agraciou o petiz. Fez mais: mandou-lhe a comenda
numa caixa de xarão incrustada de prata.
E
foi assim que aquele empertigado estudantezinho de Paris, Luís Ribeiro
dos Guimarães Peixoto, pôde afirmar petulantemente ao
comissário que o prendera:
-
Esta comenda é minha. Há oito anos que eu sou comendador!
O
homem saltou da sege, pagou duas patacas ao boleeiro, despediu-o. Depois, com
ar de mistério, galgou as escadarias do Paço. Lá em cima,
à porta da secretaria, ergueu discretamente o resposteiro:
-
V. Excia. dá licença?
O
secretário, abancado à escrivaninha, ergueu os olhos dos
papéis que lia. E, com indiferença:
-
Entre!
O
homem entrou. Fez um polido aceno de cabeça. E:
-
V. Excia. é o Sr. Comendador Francisco Gomes da Silva, secretário
do Imperador?
-
Sou eu mesmo!
-
Nesse caso, Sr. Comendador, é mercê avisar a Sua Majestade que eu
acabo de chegar do Reino com despachos...
-
Do Reino?
-
Do Reino. Trouxe despachos graves de Lisboa. Eu sou o Capitão Trigoso
Madureira.
O
Chalaça ergueu-se dum salto. Despachos de Lisboa? A D. Pedro? Aquilo
espicaçou o secretário. Mas logo, muito adocicado, apontando uma
poltrona:
-
Oh! Sr. Trigoso, muito prazer! Queira sentar-se, Capitão. Faça o
favor! Queira sentar-se...
O
recém-chegado sentou-se. E o Chalaça, afável e pressuroso:
-
O Imperador não está no Paço. Mas é fácil
para mim o entender-se com Sua Majestade. O negócio que trouxe V. Excia.
até cá é urgente?
-
Urgentíssimo, Comendador. Urgentíssimo e gravíssimo.
É, talvez, o negócio da mais alta importância que já
teve o Imperador!
-
Sendo assim, Capitão, peço licença para ir comunicar sem
tardança a chegada de V. Excia. a Sua Majestade. O Capitão
terá a bondade de esperar-me aqui na secretaria...
-
Pois não, Comendador! Esperarei de muito bom grado.
-
Casa da Sé-Sé!
* * *
O
cocheiro chicoteou a parelha. Atravessou a cidade e enfiou-se pela Rua dos Ourives.
Ali, em frente, a loja do Wallenstein, por esse tempo, era a casa em voga na
Corte. Era quem dava a suprema nota da elegância e chiquê.
Não havia fidalga de tom que não fizesse as suas compras no
Wallenstein. Não havia casquilho que não se vestisse no
Wallenstein.
Ah,
o Wallenstein & Cia.!
O
"Cia." da firma era um tal Pedro Saissait, francês, homem, no
dizer simplório do cronista, manso e pacífico de gênio. A
mulher dele - Clemência Saissait - deslumbrava por esse tempo a corte.
A
Sé-Sé... Era uma francesa realmente fascinadora, muito requintada
em vestidos, grandes ares. O Rio ainda não tinha visto olhos mais
verdes, nem cabelos mais crespos, nem boca mais sangrenta, nem talhe mais
espiritual. E os dentes? E as mãos branquíssimas? E a vozita clara,
muito doce, por onde escorria mel? Que maravilha! Uma criatura estonteante...
D.
Pedro conheceu os Saissait. E como Imperador bonacheirão, monarca
democratissimo que sempre foi, o soberano dava-lhes a honra de
visitá-los a miúdo. Isto (nada mais natural) projetou no casal
uma evidência retumbante. E começou desde então, como por
milagre, o êxito tremendo dos franceses.
Mas
o Saissait, homem que não pregava prego sem estopa, conseguiu logo um
decreto, referendado pelo primeiro Ministro, conferindo à sua casa
comercial a mercê de: fornecedora imperial.
E
um dia - oh, surpresa! - os tafuis da Rua do Ouvidor pasmaram. É que, na
loja do francês, amanheceu uma tabuleta nova, com letras ostentosas,
dizendo isto: Wallenstein & Cia., FORNECEDORES DE S. M. O IMPERADOR".
Quê? O Saissait fornecedor de D. Pedro? E todo o mundo riu...
Ora,
naquele dia, o Chalaça embarafustou pelo sobradão da
Sé-Sé acima. Sua Majestade, como de costume, lá estava. O
Sé-Sé como de costume, lá não estava. Mr.
Sé-Sé era um comerciante ocupadissimo!
D.
Pedro acolheu o favorito com espanto:
-
Que há, Chalaça?
-
Acaba de chegar do Reino um emissário. Traz despachos
urgentíssimos de Lisboa. O homem está no Paço à
espera de Vossa Majestade...
D.
Pedro Virou-se desconsolado para a francesa:
-
Tenho de partir! Veja que aborrecimento! Não há nada mais
detestável do que este ofício de Imperador.
E
ela com um arzinho de mágoa, muito provocadora:
-
Já? Que pena! Mas Vossa Majestade volta amanhã, não volta?
-
Volto!
E
Sua Majestade abalou para o Paço.
D.
Pedro recebeu o curioso emissário. O homem entrou muito respeitoso.
Tinha o aspecto estranho. E com solenidade:
-
Sou portador de notícia dolorosa: el-Rei, o Senhor D. João VI,
nosso Augusto Amo, faleceu em Lisboa...
D.
Pedro estremeceu, chocado. Aquilo foi-lhe uma estocada. E agarrando o
mensageiro, sacudindo-o:
-
Meu Pai? Meu Pai morreu?
-
Em Lisboa, Majestade, a 10 de março de 1826. E a regência, que ora
governa o Reino, acaba de proclamar Vossa Majestade o legítimo herdeiro
do trono: Vossa Majestade, neste momento, é o Rei de Portugal!
O
Imperador, atordoado, os olhos fuzilantes:
-
Eu?! Rei de Portugal?
-
Rei de Portugal, debaixo do título de Pedro IV!
A
notícia era estuporante. Mas D. Pedro, filho amorosíssimo,
esquecido da inesperada realeza, com os olhos molhados:
-
Mas de que morreu el-Rei? De que, Capitão? Que coisa brusca!
-
Dizem que foi veneno...
-
Veneno?
-
Sim, Majestade
E
o emissário entre sigilos, narrou o que se murmurava
* * *
Morreu
o Rei, viva o Rei!
D.
Pedro I, Imperador do Brasil, foi, durante oito dias, o rei de Portugal. Foi,
durante oito dias, senhor de duas Coroas! Esses oito dias, febrentos e
magníficos, deram a esse rapaz coroado, a esse galhardo imperador de
romance, a mais alta, a mais estrondosa de todas as apoteoses. Hoje, em Lisboa,
mesmo no coração da formosa cidade, lá está em
bronze, glorificado, o vulto simpaticamente varonil de Pedro IV, o filho de D.
João VI, esse curioso e irregular fundador do império brasileiro.
Por quê?
Portugal
cindira-se numa luta de morte. Luta feroz, luta que arrastou todos os
portugueses de 1820. E as razões dessa fervura tinham uma causa
só: a constituição.
Constituição!
Eis a palavra mágica. A grande idéia! Os realistas, que eram a
maioria, batiam-se de corpo e alma pelo regime absoluto. Os liberais, que eram
a flor da intelectualidade, batiam-se com loucura pela carta constitucional. Os
dois partidos extremaram-se. As paixões desencadearam-se com
fúria. Espumejavam ódios. Os vencedores não poupavam
vencidos. Eram incontáveis os foragidos. É nesse instante, no
mais acirrado da crise, que morre D. João VI. A regência, depois
de muitas hesitações, reconhece a D. Pedro como sucessor de D.
João. Que é que faz o moço Bragança? Por um decreto
- o primeiro decreto de D. Pedro IV! - outorga aos portugueses;
fulminantemente, a carta constitucional! Dois dias depois, por um novo decreto,
concede anistia ampla, incondicional, a todos os criminosos políticos!
Três dias depois - estuporando os povos - abdica a coroa de Portugal na
sua filha Maria da Glória! Não pode haver, na história dos
povos, reinado tão curto e tão cheio: uma
constituição - a suprema conquista do povo: uma anistia - o
supremo perdão do político; uma abdicação - a
suprema desistência do rei!
Assim,
com três penadas, mudou D. Pedro a sorte dum país inteiro. E
feliz, a alma leve, revolveu novamente à sua vida de imperador desordenado.
Na noite mesma da abdicação, depois de lançar fora o reino
que herdara dos seus maiores, o rapaz coroado, rindo-se, com o
coração em festa, desceu brejeiramente as escadarias da Quinta,
assobiando uma solfa gaiata. E quando o trintanário, chapéu na
mão, fechava a portinha da sege, o imperador boêmio ordenou com
alvoroço:
-
Para a casa da Sé-Sé!
* * *
Aquela
assiduidade junto à Sé-Sé continuou por largo tempo.
Corria-lhe a amizade sem tropeços, florida e romanesca. Mas um dia,
não se sabe porque roncou na alma do Sé-Sé um tardio
assomo de cólera. O homem preparou-se então para a
tragédia. Saiu da loja, desceu à confeitaria do Carceller,
abancou-se, pediu genebra.
-
Focking, hein?
E
emborrachou-se conscienciosamente. Aos cambaleios, agarrado a um grosso porrete
de caviúna, o marido vingador entrou
-
Ai, mataram-me! Assassinos!
E
sai, como um louco, à cata do ministro de França.
O
escândalo estourou com retumbância. O Rio inteiro comentou a sova
da Sé-Sé. O Rio inteiro deu gargalhadas. Foi, por todas as salas
e salinhas, um motejar só...
Miguel
Calmon, ministro de Estado, interveio sisudamente no caso. Era preciso acabar
com aquilo! E acabar já, de qualquer jeito. D. Pedro concordou. E para
evitar complicações, o monarca partiu para a Serra dos
Órgãos, para o sítio do Padre Correia, enquanto o ministro
determinava a saída imediata do casal bufo. Miguel Calmou teve
habilidade. Apaziguou tudo com muito tato e arte. Assim:
Clemência,
para consolo das suas lágrimas, recebeu, contra os Rothchilds, um cheque
de setenta e cinco mil francos. Assentou-se mais que a ditosa francesa teria,
para o resto da vida, uma pensão de seis mil francos.
Dias
depois, a bordo do "Salisbury", zarpavam os Saissait para a Europa.
João Loureiro, o anotador de todas as miudezas da Corte, escrevia
então a um amigo de Lisboa: "Agora, foi o Imperador passar o natal
à Serra, devendo voltar no dia 27. Demorou-se o Paquete Inglês
para sair, mas saiu a 30, levando o Guerreiro, como correio, com ofícios
para Palmella e Barbacena. Também levou o Paquete M. e Mme.
Sé-Sé que começaram a atrair as adulações da
Corte pelo favor da beleza de Mme. Sé-Sé e "pelo bom
gênio do marido", que enfim pegou-a à unha por ajuste de
contas e foram barra fora..."
* * *
No
dia 23 de agosto de 1829, em Paris, na Rua Bergére n.o 7 bis, nasceu um
menino. A este menino, estranhamente, foi dado o nome de Pedro de
Alcântara Brasileiro. Era "filho de Pedro Félix Saissait
casado com Clemência Saissait, nascida Josefina Henriqueta Mees".
* * *
Há,
no testamento do Imperador, uma cláusula comprometedora. É a dos
filhos naturais. Lá diz o nosso simpático Bragança e
Bourbon, "estando em meu perfeito juízo e saúde, declaro
neste meu testamento...
............................................
............................................
Cláusula
5.a - Recomendo a S. M. Imperial, D. Amélia Augusta Eugênia de
Leuchtemberg, Duquesa de Bragança, minha Adorada Esposa, que chame para
o pé de si Minha querida Filha Dona Isabel Maria de Alcântara
Brasileira, Duquesa de Goiás, bem como a Rodrigo Delfim Pereira e a
Pedro de Alcântara Brasileiro...
Na
Rua do Ouvidor, em frente ao Wallenstein, grandes caleches envidraçadas.
Nas oficinas da casa elegante, entre modistas que alinhavam e chuleiam, vai um
formigante entra e sai de damas fidalgas. E que tagarelar! É tudo assim:
-
Vai hoje ao baile do Paço, viscondessa?
-
Vou, marquesa! Mas foi um custo para eu ter o meu vestido! Não há
mais seda cor-de-rosa. Vossa Excelência como se arranjou?
-
Eu tinha já um corte que me viera do Reino. É aquele que
lá está...
-
Aquele cor-de-rosa de florzinha?
-
Não! O cor-de-rosa desmaiado. Aquele cor-de-rosa de florzinha é o
da Viscondessa de Rio Seco. E aquele outro, o cor-de-rosa vivo, de
manga-presunto, é o da Marquesa de Valença, a Sousa
Queirós. E o seu, viscondessa?
-
É este, aqui, este cor-de-rosa chamalotado. Não é
lá muito do meu gosto; mas, que fazer? Acabou-se toda a seda cor-de-rosa
da cidade...
Acabara-se
de fato. É que o Paço de São Cristóvão,
nessa noite, abria os salões para o "baile cor-de-rosa".
O
baile cor-de-rosa! Foi o mais rutilante, o mais famoso da época. A corte
ofereceu-o a D. Amélia Eugênia Napoleona de Leuchtemberg, filha do
Príncipe Eugênio, a lindissima neta de Josefina Beauharnais, que
havia chegado da Europa, apenas havia dois dias para ser a segunda Imperatriz
do Brasil.
* * *
A
11 de dezembro de 1826, faleceu no Rio de Janeiro a Senhora D. Leopoldina.
Passou, na data lúgubre, aquela que foi a nossa grande Imperatriz.
Aquela que foi a Boa e a Santa. Aquela que soube ter sempre, na glória e
na desdita, nos triunfos e nas humilhações, a mesma
plácida majestade da rainha, a mesma evangélica serenidade
cristã.
Durante
quase três anos, nos salões vazios de São
Cristóvão, D. Pedro arrastou uma existência seca de
viúvo. Era-lhe impossível, no entanto, permanecer na
solidão desolante. Mil razões - razões de Estado,
razões de família, razões de moralidade - clamavam aos
brados por um segundo casamento. D. Pedro chamou Felisberto Caldeira Brant, o
louro Marquês de Barbacena, o homem do seu enlevo, o fidalgo da sua
paixão. Meteu-lhe nas mãos três cheques em branco contra os
Rothchilds. Deu-lhe, além disso, ordens amplas para dispor de toda a
legítima que herdara de D. João VI. Assim, com esse dinheiro e
com essas ordens, mandou o embaixador para a Europa. E no abraço de
despedida, aconchegando-o ternamente ao coração, pediu que lhe
trouxesse uma noiva. Com o abraço, entregando ao diplomata um papel
confidencial, o Imperador especificou as qualidades necessárias para que
a noiva fosse do seu agrado. O papel dizia assim:
"O
meu desejo e grande fim é obter uma princesa, que, por seu
"nascimento", "formosura", "virtudes",
"instrução", venha a fazer a minha felicidade e a
felicidade do Império. Quando não seja possível reunir as
quatro condições, podereis admitir alguma
diminuição na "primeira" e na "quarta",
contanto que a "segunda" e a "terceira" sejam
constantes".
Levava
o Marquês, além dessa missão honrosíssima, a
incumbência não menos subida de acompanhar à Europa D.
Maria da Glória, já então D. Maria II, rainha de Portugal,
aonde ia aperfeiçoar estudos na corte de Viena.
* * *
Barbacena
partiu. Alto e belo, tipo magnífico de homem, o gentil-homem de Minas
ostentou durante meses, pelas mais emproadas cortes européias, a sua
forte e simpática estampa de plenipotenciário. Jorge IV recebeu-o
com grande acolhimento. Luís XVIII, com muitas e decididas
deferências. Francisco Leopoldo, com as mais alevantadas honras e
fulgores. Tratou,
Barbacena
desanimara, enfim, com aquela enfiada de fracassos tristíssimos. E
arrasado, a pena em crepes, tracejou ao Amo a carta fúnebre:
"Brilhante
casamento, no estado atual das coisas, não se consegue sem tempo,
paciência, e muita dexteridade, visto que princesas só há
presentemente na Alemanha, onde a influência de Metternich é
decisiva. Digo que só há na Alemanha, porque as da Itália
se recusaram; na França, Grã-Bretanha e Rússia não
há; na Dinamarca, são horrendas; e o parentesco da Suécia
não convém. É preciso parecer, em suma, que se não
pensa por ora em casamento..."
Foi
nesse instante de suprema derrota, que, providencialmente, o Visconde Pedra
Branca, ministro em Paris, lançou as suas vistas sobre uma sobrinhazinha
do Rei da Baviera. Tratava-se da princesa Amélia Eugênia Napoleona
de Leuchtemberg. A moça era linda, lindíssima. Mas (verdade se
diga !) não primava muito pelo sangue. D. Amélia era apenas meia
princesa. Vinha do príncipe Eugênio de Beauharnais, a quem
Napoleão Bonaparte, no auge do fastígio, fizera casar com uma
grã-duquesa da Baviera. Descendia, portanto, burguesissimamente, daquela
Josefina de Beauharnais, aquela tão falada "brune" que a boa
fortuna guindara às culminâncias de Imperatriz dos Franceses.
Estava longe, portanto, de ser um casamento brilhante. Mas, que fazer? Foi tudo
o que se pôde conseguir... Pedra Branca teceu os pauzinhos. E Caldeira
Brant agarrou-se de unhas e dentes à rapariga que tão
audaciosamente se arriscava a ser Imperatriz do Brasil...
Arranjaram-se
os papéis. líquidou-se tudo num relâmpago. E a 16 de
outubro de 1829, na baia do Rio de Janeiro, ancorava a fragata
"Imperatriz". Nela - enfim! trazia o Marquês de Barbacena a
suspirada noiva do Sr. D. Pedro I.
O
plenipotenciário gastara nessa missão
* * *
A
galeota imperial, com as cores amarelo-verde tremulando à popa, estacou
diante da fragata "Imperatriz". D. Pedro, com mordente
sofreguidão, galgou a quatro e quatro a escadinha de bordo.
Ferreteava-lhe um desejo insopitável de conhecer a noiva. Como seria D.
Amélia? Bonita? Feia? Barbacena, com tubas altissonantes, apregoara
rasgadamente a formosura da Beauharnais. A última carta dizia assim:
"A
Imperatriz é linda, lindíssima, como V. M. verá pelo
retrato que vai nesta ocasião. Até aqui foi sobre o testemunho de
outros que tenho dado a V. M. notícias de sua augusta noiva. Hoje,
dá-las-ei fundado no testemunho próprio e na minha
convicção. É indubitavelmente a mais linda princesa e mais
bem educada que, presentemente, existe na Europa! E quando eu a vi emparelhada
com as primas, que foram primeiramente pedidas, dei muitas graças a Deus
de haver V. M. escapado daqueles casamentos".
Nem
só ao Imperador escrevera o diplomata tão reboantes
afirmações. Ao Chalaça, pelo mesmo correio, bradava
Barbacena com a mesma efusão:
"Prepare~se
V. S. para ver um anjo na Imperatriz. Formosura, juízo, virtudes,
maneiras polidas, tudo enfim, que há de mais amável, está
reunido nesta princesa..."
Assim,
pois, ao subir a escadinha de bordo, o coração do viúvo
bate aos saltos. Os marinheiros, uniformizados de gala, estendem-se em alas
pela ponte. O Imperador, os nervos tinindo, atravessa por entre aquela.
continências, debaixo do estrépito do hino.
D.
Pedro penetra no salão da fragata. E eis que, ao lado de Barbacena, de
pé, sorri brejeiramente, luminosamente, uma criatura doce, muito loira,
magnifico Sèvres de luxo! É D. Amélia. Que maravilha! A
neta de Josefina Beauharnais herdara, com o sangue atávico da francesa,
todas as graças e feitiços da raça: fina, leve,
elegantíssima, mulher-pétala, uns olhos muito quentes, uns
cabelos muito crespos, um sorriso muito cândido, e, com os seus dezessete
anos, viçosos e frescos, é toda ela uma orvalhada primavera de
carne.
D.
Pedro, por um instante, contempla emocionadíssimo aquele poema de
linhas. Contempla, com essa cúpida volúpia de joalheiro, os
fúlgidos detalhes daquela jóia perfeita. De repente, sem saber
como, o Imperador sente estranha névoa toldar-lhe a vista. A
cabeça roda-lhe. As pernas afrouxaram. E D. Pedro - oh fraqueza! - tomba
sobre uma poltrona, pesadamente, sem sentidos...
Cinco
minutos depois, ao voltar da tonteira, o Imperador vê ao pé de si,
muito loira e muito fina, D. Amélia acariciando-lhe as mãos com o
mais veludoso dos afagos...
E
pôs-se, então, a beijá-la como louco.
No
Paço de S. Cristóvão, depois da bênção
nupcial, o Imperador apresentou os filhos a D. Amélia. Foi uma cena
encantadora. A deliciosa Beauharnais, com afetuosidades de comover, toda
macieza e ternura, cobriu de carinhos longos, inundou de beijos e de
abraços, maternalmente, as princezinhas e o príncipe herdeiro. D.
Pedro sorria, feliz. Mas em meio daqueles mimos, quebrando aquele transbordar
de galantezas, o Imperador, o eterno irrefletido, virou-se com singeleza para a
Marquesa de Itaguaí, que assistia comovidamente ao quadro:
-
Minha boa Francisca! Vá buscar a Duquesinha de Goiás...
Aquela
ordem foi um choque! D. Amélia estremeceu. Secou-lhe bruscamente o riso
no lábio. O seu olhar fuzilou, áspero. E com um gesto
autoritário:
-
Um instante, Marquesa!
A
Marquesa de Itaguaí, que saía, estacou à porta. E D.
Amélia, a voz fremente, o cenho cerrado, fitando o Imperador nos olhos:
-
Majestade! Poupe-me a dor dessa apresentação. Eu quero ser
mãe dos filhos de D. Leopoldina. Mas "unicamente" dos filhos
de D. Leopoldina. Eu não quero conhecer - nem sequer conhecer! - a
bastarda da Senhora Marquesa de Santos...
D.
Pedro ouviu, atônito. E D. Amélia, imperturbável:
-
Peço a Vossa Majestade, portanto, que faça retirar imediatamente
essa menina do Paço! É o primeiro pedido, Senhor D. Pedro, que a
Imperatriz faz ao Imperador.
E
sem esperar resposta, incisiva e ríspida, ordenou a D. Francisca:
-
Marquesa! Vá avisar as açafatas que a Duquesa de Goiás
deve sair já deste Paço. Que preparem as malas!
A
Marquesa embasbacou. Não sabia o que fazer. Olhou aturdida para D.
Pedro, suplicando uma decisão...
D.
Pedro quase chorava. Mas, como recusar? Vencido, olhos no chão,
balbuciou apenas, num cicio:
-
Cumpra as ordens da Imperatriz, Marquesa...
A
Duquesinha de Goiás, nessa mesma tarde, saiu enxotada do Paço de
S. Cristóvão. Trasladou-se para Niterói, onde foi morar
com as primas da Marquesa de Santos.
E
foi assim, com esse gesto ferozmente rude, que estreiou no Brasil aquela
deliciosa Imperatriz de dezessete anos, fina e frágil, loira como uma
boneca...
* * *
Os
salões do Paço fervem. Anda por eles um redemoinho cor-de-rosa.
Cor-de-rosa em tudo! Cor-de-rosa nas flores, cor-de-rosa nos enfeites,
cor-de-rosa nas tapeçarias. Todas as damas vestidas de cor-de-rosa.
Todos os cavalheiros com a banda cor-de-rosa a tiracolo.
D.
Amélia, ao saltar de bordo, trouxera um soberbo vestido cor-de-rosa. Era
a cor da sua paixão. E a Corte, por gentileza, oferecera à
Imperatriz um baile cor-de-rosa. O próprio D. Pedro, por uma galantaria
principesca, criara nesse dia a "Ordem da Rosa".
O
Paço freme. Formigam nele os nomes mais altos do Império. Vai um
áspero refulgir de jóias nos decotes e nas orelhas. Lampejam
crachás em todas as lapelas. Súbito, reboa uma trompa. Sousa
Lobato, porteiro imperial, anuncia com retumbância:
-
Suas Majestades!
D.
Pedro e D. Amélia entram. Um par garboso, fascinante. Ele, moreno, dois
olhos negríssimos, um desgarre magnificamente varonil. Ela, muito clara,
muito esgalga, um sorriso diáfano nos lábios, o diadema de
pedrarias na fronte, vasta cauda de seda rosa, carregada por oito damas.
Todos
abrem alas. Os imperadores avançam. E no salão, diante da curiosidade
irrequieta dos cortesãos, D. Pedro faz um gesto ao guarda-jóias.
O guarda-jóias apresenta a Sua Majestade uma caixa de xaráo,
embutida de ouro. O Imperador abre-a. Retira dela uma insígnia ricamente
cravejada de brilhantes enormes. É a Grã-Cruz da Ordem da Rosa.
D.
Pedro, com fina gentileza, passa o mimo às mãos da Imperatriz. E
D. Amélia, docemente, com vencedora cortesanice, ali, diante de todos,
dependura a Grã-Cruz no peito de Barbacena... Caldeira Brant
embranquece. E trêmulo e ébrio de gozo, murmura às tontas:
-
Oh! Oh!
A
Corte inteira vibra. É uma apoteose. Mas aquilo dura um instante. D.
Pedro, sem tardar, faz um gesto ao mestre-sala. A música rompe. É
a quadrilha! Os pares agitam-se para a velha, a clássica, a
queridíssima quadrilha. Tudo a postos! D. Pedro e D. Amélia
vão dançar. Os Marqueses de Barbacena têm a honra de ser os
vis-a-vis dos soberanos. E o mestre-sala, quando as filas cor-de-rosa se
estendem ao comprido do salão, grita com entono:
-
Attention!
Há
um relâmpago de silêncio. E o mestre-sala, alto e solene:
-
En avant, tous!
O
homem culminante do Primeiro Reinado não foi José
Bonifácio. Também não foi o Marquês de Barbacena. O
homem culminante do Primeiro Reinado foi o Chalaça. Ninguém conseguiu
no Império, durante aqueles nove anos desordenados, uma influência
tão alta e tão decisiva. D. Pedro teve para com esse grotesco
dizedor de piadas, para com esse seu disparatadíssimo amigo, umas
ternuras imperdoáveis. O Chalaça fascinou-o. Foi o seu fraco.
Foi, talvez, a única afeição certa daquele incerto
Bragança. Dai, do favoritismo incrível, resultou que o poderio
desse homem não encontrou limites. Num determinado momento - pode-se
proclamar afoitamente - o valido mandou à vontade no Brasil. Conseguia
tudo. Fazia e desfazia. Diga-se sem receio: o Chalaça, num dado
instante, repartiu com D. Pedro o poder supremo. Não há exagero
nisso. Armítage, testemunha presencial, historiador severo e reto, diz
textualmente:
"O
caráter dos políticos de que o Imperador se cercara não
assegurava a confiança pública. A frente destes, estava um
português de nome "Chalaça". Tinha um caráter
bulhento, extravagante, insolente e dissipado. De simples criado do Paço
foi promovido a ajudante da Guarda de Honra e Secretário Privado. E
tão grande ascendência ganhou sobre D. Pedro, que se pode
avançar sem rebuço que PARTILHAVA COM ELE A AUTORIDADE
SUPREMA!"
Mas
não é só Armitage. Todos os que trataram, nesse tempo, com
o curioso personagem, apregoam a inconstrastável influência dele.
João Loureiro, que viveu pelas Secretarias de Estado, que conferenciou
com todos os Ministros, que passou anos na Corte a deslindar negócios
atrapalhados, afirma-o nas suas cartas, alto e firme. Eis uma delas:
"O
Imperador disse-me que ele sempre estaria pronto para me ouvir. Mas, se
quisesse, eu dissesse a Francisco Gomes QUE ERA O MESMO QUE TRATAR COM
ELE".
Eis
outra:
"He
sabido que, nestes negócios de Portugal, quem se abaixa a Francisco
Gomes, quem vai com as suas chalassas, e quem o ellugia, e serve com
humilhação, tem sido sempre attendido".
E
noutra parte:
"E
a todos aqui está fechada a alta política, menos a Francisco
Gomes. Mas este não falla senão em petiscos e moças: aqui
tem V. Sa. como isto por cá vai".
Melo
Morais, por seu turno, di-lo categoricamente. Assim:
"Estes
dous validos (o Chalaça e o João Pinto), ambos portuguezes, ambos
debochados, corrompidos, ignorantes, e de baixo nascimento, eram os mais
perniciosos, PORQUE ERAM OS QUE GOZAVAM
Quem
é afinal, esse homem tão em destaque?
Quem
é esse íntimo de D. Pedro? Quem é êsse
enigmático personagem, tão enigmático que a
História do Brasil, a História com H maiúsculo, nem sequer
se digna de lhe mencionar o nome? É fácil dizer.
* * *
O
Chalaça nasceu
Mas
o destino, por um desses caprichos de espantar a gente, reservara a esse
aventureiro, a esse boêmio, a esse famigerado berrador de modinhas, uma
sorte brilhantíssima. D. Pedro, numa das suas noitadas de
príncipe estróina, topara certa vez com aquele exótico
figurão, muito alto e muito magro, a entoar as suas trovas e lundus no
"Botequim da Corneta". Ninguém mais patusco, nem mais
folião! E o Príncipe, num daqueles seus repentes,
afeiçou-se desmedidamente àquele tipo estranho, tão
galhofeiro, sabedor de tão boas piadas e chalaças: e no dia
seguinte a esse encontro providencial, o Senhor Francisco Gomes da Silva,
fechando a loja de barbeiro, aboletava-se no Paço de São
Cristóvão, onde o Príncipe lhe mandara dar ótimo
agasalho e ótima tença. Dai em diante, por essa boa-estrela,
tornou-se o Chalaça um personagem relevantíssimo, o mais adulado
dos fâmulos de D. Pedro. Para fazer-se idéia das mercês com
que foi aquinhoado o tipo reles, basta ler o resumo que dele traçou
Alberto Rangel. Lá diz o ilustre historiador de "D. Pedro I e da
Marquesa de Santos":
"A
19 de novembro de 1822, foi-lhe mandado entregar ouro para fatura da Coroa e do
Cetro. Em dezembro de 1823, encontra-se oficial da Secretaria dos
Negócios do Império: depois, a 4 de abril de 1825, oficial maior
graduado da mesma Secretaria, com exercício no gabinete imperial; e a 16
de abril de 1827, um decreto mandava que ele, a seu pedido, recebesse
emolumentos em "todas as Secretarias de Estado", como se fosse
Oficial efetivo delas! Intendente Geral das Cavalariças,
Secretário do Gabinete Imperial, Conselheiro de Estado, Comandante da
Imperial Guarda de Honra, Concessionário da exploração do
ouro, oficial da Ordem do Cruzeiro, comendador honorário da Torre e
Espada, comendador da Ordem de Cristo e de S. Leopoldo, ministro plenipotenciário,
procurador e "fac-totum" de D. Amélia viúva, tudo isso
Gomes o foi".
Conseguiu
o Chalaça, como se vê, posições e dignidades
altíssimas. No entanto - é curioso notá-lo - o valido
não teve a ambição das riquezas. Apesar de receber
emolumentos por todas as Secretarias de Estado, como se fosse oficial efetivo
delas, apesar de ser o único concessionário da
exploração do ouro, apesar de ser o mais querido e o mais
íntimo dos amigos do soberano, o Chalaça não enriqueceu. O
dinheiro, ao que parece, não o fascinou. As honrarias, sim, essas
é que o deslumbraram. Ele próprio é quem o confessa numa
das suas cartas ao Marquês de Barbacena, então seu nobre e
poderoso amigo. Assim:
"Relativamente
aos presentes do estilo, Sua Majestade Imperial ordenou que se fizessem; isto,
creio, lhe será participado pelo ministro dos negócios
estrangeiros; sei bem que não se há de esquecer de mim;
porém sempre lhe lembro que eu tenho servido de secretário de Sua
Majestade Imperial; de Oficial maior da Secretaria, etc., nada mais lhe digo,
pois que, além de ser amigo sabe que eu ambiciono mais as honras que o
dinheiro".
Dessa
forte ambição por honras, nasceu a causa da sua ruína. A
história dessa queda foi curiosa. Ei-la:
* * *
Barbacena,
o afortunado Caldeira Brant, estava então no auge do poder. Era Primeiro
Ministro. D. Pedro tinha por ele uma estima cega. D. Amélia amava-o com
ternuras de filha. Um dia, no Ministério, o Chalaça procurou o
velho diplomata.
-
O Imperador pede a Vossa Excelência que passe hoje à tarde por S.
Cristóvão. É para Vossa Excelência resolver um
negócio meu...
Barbacena
intrigou-se. E com o seu velho faro político, conhecedor do Amo como
ninguém, Caldeira Brant suspeitou logo que ali andava dente de coelho.
Mas, não se perturbou. À tarde, entrando para a sege, ordenou
secamente ao trintanário:
-
São Cristóvão!
No
Paço, porém, antes de falar ao Imperador, enveredou o Primeiro
Ministro pelos aposentos da Imperatriz. Ai conferenciou em sigilo, longamente,
com Sua Majestade. Depois, sereno, com a sua bela estampa decorativa, Barbacena
penetrou no Salão dos Despachos. D. Pedro recebeu-o de braços
abertos, jovialíssimo. E logo, sem preâmbulos, foi entrando em
matéria:
-
Meu Barbacena! O Chalaça, como Vossa Excelência sabe, tem
trabalhado com afinco nos meus negócios particulares. É de uma
dedicação rara. Eu preciso, portanto, dar uma prova de amizade ao
Chalaça. Preciso, galardoar os seus serviços. Vossa
Excelência conhece a paixão que ele tem por dignidades. Vamos, por
conseguinte, satisfazer-lhe a vaidade. Vossa Excelência mande lavrar um
decreto concedendo ao Chalaça o título de Marquês...
Barbacena
ergueu-se, chocadíssimo:
-
Marquês? O Chalaça?
-
Sim, meu Barbacena. E por que não? O Chalaça é o mais
devotado de todos os meus criados. E eu quero recompensá-lo. Não
discutamos, pois: mande lavrar o decreto!
Caldeira
Brant ouviu, estupefato. E ali diante do soberano, enfunou-se o ministro duma
audácia louca:
-
Perdão, Majestade! Mas é necessário ponderar um pouco.
Esse decreto é uma temeridade. É um ato comprometedor...
-
Comprometedor?
-
Sim, Majestade. Elevar o Chico Gomes a dignidade tão alta, fazer do
nosso vulgaríssimo Chalaça um marquês, é
graça verdadeiramente escandalosa. Vossa Majestade vai irritar o
país com tão acintosa mercê...
-
Deixe-se de baboseiras, Marquês! - Ninguém neste país tem
opinião. Opinião, aqui, é a opinião do Imperador.
Não há outra. Toda gente engole o que eu quiser: Deixe-se de
baboseiras! Vamos lá: mande lavrar o decreto.
Barbacena
sorriu. E sem azedume, mas reto e digno:
-
Vossa Majestade há de me escusar. Mas eu, como Primeiro Ministro,
não referendo esse decreto.
D.
Pedro fuzilou:
-
Não referenda?
-
Não!
E
impávido, com dignidade, Barbacena lançou ao Monarca esta coisa
enorme:
-
Não referendo! E digo mais: se Vossa Majestade quiser conservar-me no
Ministério, há de fazer a mim esta mercê, que reputo
essencial à moralidade e ao prestígio do Trono: despedir o
Chalaça! Mandar o Chalaça embora do Brasil!
D.
Pedro escutou aquilo, assombrado! Não podia acreditar no que ouvia. E
com os olhos arregalados, tonto:
- Mandar
o Chalaça embora do Brasil?
Barbacena
ia responder. Mas nisto, erguendo o reposteiro, surgiu no salão a figura
doce e espiritualizada de D. Amélia. Naquele ambiente sombrio,
tão carregado de trovoada, a silhueta moça e luminosa da
Imperatriz foi como um raio de sol. D. Pedro, ao vê-la, sorriu. E
galhofeiro:
- Sabe?
Aqui o Barbacena está a me pedir uma graça incrível...
E
a Imperatriz, toda luz e brejeirice:
-
Uma graça? Então, Majestade, é necessário
concedê-la já. Não se pode negar coisa alguma ao nosso
Barbacena.
- Mas
é preciso ver o que pede o Barbacena...
-
Que há de ser, meu Deus?
D.
Pedro, com um gesto largo:
-
Um disparate! Isto: a saída do Chalaça do Brasil!!
D.
Amélia tomou uns ares sisudos. Tornou-se, bruscamente, pensativa e
grave. Aquela boneca frágil, tão galante e loira, sabia ser
imperatriz nos momentos exatos... E ali com uma solenidade súbita,
tornou para o Imperador:
- O
nosso Marquês tem razão, Majestade! Esse homem precisa sair do
Império...
-
Que diz Vossa Majestade?
-
Digo que o Chalaça precisa sair daqui. Vossa Majestade perdoe... Mas eu
digo mais: esse tipo é abominável! Eu o detesto. E detesto-o,
porque ele desmoraliza o Paço. Porque prejudica o Império. Porque
impopulariza o regime. Porque compromete a Vossa Majestade!
-
É um homem nefasto! É um...
E
ambos, Imperatriz e Ministro, assediaram o Imperador de argumentos ferozes. Mas
qual! D. Pedro não se deixava vencer. Resistia. Discutia. E afinal, para
cortar o assunto:
-
Bem, eu vou pensar...
Barbacena
cintilou. Estava ganha a cartada... Sabia bem o astucioso ministro que D.
Amélia, a deliciosa Beanharnais, com os seus radiosos dezessete anos, com
aquela sua mocidade fresca e resplandescente, havia agrilhoado o
coração borboleta do moço Imperador. D. Pedro teve pela
mulher uma paixão desordenada. Amou-a desvairadamente. Amou-a com toda a
explosão do seu temperamento vulcânico. E Barbacena sabia bem que
D. Pedro, no seu enlevo, perdido de paixão, jamais teria para com aquela
doce criatura a áspera rudeza de um "não".
Não
se iludira o velho ministro. D. Amélia, realmente, deveria ter inventado
carícias atordoantes, filtros estranhos, amolecedores. D. Pedro
não resistiu à mulher. A linda moça, com os seus amavios,
com os seus feitiços, conseguiu o milagre único: afastou o
Imperador de, seu maior valido. Mandou o Chalaça embora!
Um
dia, enfim, estourou na Corte a notícia surpreendente: Francisco Gomes
partia do Brasil. Que é que aconteceu? Por que tamanho desfavor? D.
Pedro interveio. Não admitiu que o amigo partisse enxovalhado. Fez tudo
por dourar aquele desterro. Fez tudo por suavizar aquela enorme queda. E
então, contra o sentir de todos os ministros, afrontando o
escândalo, D. Pedro timbrou em engrandecer o seu amigo: nomeou-o ministro
diplomático em Nápoles!
O
Chalaça ministro! O Chalaça, o antigo ourives, o antigo criado do
Paço, aquele rastejante tocador de violão, elevado às
culminâncias de diplomata brasileiro!
* * *
A
partida do favorito foi dum burlesco espantoso. D. Pedro andava numa
desolação. Abraçava o amigo, acariciava-o, chorava.
Preocupava-se com todas as miudezas da viagem. Ia em pessoa ver o arranjo das
malas. Descia às adegas buscar os vinhos prediletos do Chalaça.
Providenciava as maiores comodidades para a travessia. Uma dobadoura!
Não a descreva eu, que não hão de acreditar-me. Fale o
cronista a sua língua desataviada, o que foi essa partida, essa
verdadeira página bufa. Eis:
"O
valido partiu, por ordem do imperador, a bordo de um paquete inglês para
a Inglaterra. O imperador concedeu do seu bolsinho uma pensão anual ao
Chalaça de vinte e cinco mil francos. Ao imperador custou muito esta
separação. Encarregou-se ele próprio de todo o
necessário da bagagem, para que nada faltasse. Lembrava-se das coisas as
mais miúdas para cômodos do seu amigo. Tudo o que fazia o
imperador comunicava aos ministros. E entretinha-os antes dos despachos com
essas ridicularias. Era assim: estive toda esta manhã a fazer arranjar
tal ou tal mala: um estojo para aqui, um copo para ali, um talher e outras
coisas para Francisco Gomes levar. Isto mortificava o ministério! E como
o Chalaça bebia muito, o imperador teve grande cuidado em arranjar-lhe
as frasqueiras para a viagem..."
Não
haveria por aí, entre os nossos caricaturistas, alguém que fixe
esse lance saboroso?
* * *
Assim,
graças a essa patriótica urdidura do Barbacena, partiu enfim do
Brasil o grandíssimo patife. Esse homem, que subiu tão vertiginosamente,
soube apenas, para conseguir tantos triunfos, servir-se deste singelo ardil:
explorar a boemia do soberano. Que é que fez o Chalaça na vida?
Acompanhou o Amo nas patuscadas, preparou-lhe ceiatas, com violão e
lundus, descobriu vinhos velhos, inventou petisqueiras, arranjou-lhe
mulherinhas para os regabofes, alimentou à farta o temperamento patusco
do monarca. Com isso, com alcovitismos e sabujices, conseguiu tudo. Cobriu-se
de honras. Distribuiu favores. Protegeu amigos e apaniguados. Foi um homem
culminante no seu tempo. No seu tempo só, não: hoje ainda, em
plena democracia, seria o rufião uma pessoa relevantíssima. Quem
não conhece, meus senhores, os Chalaças da República?
II
O
paquete "Swallow" enfiou a proa nas águas atlânticas. Ia
nele, enfim, o senhor ministro diplomático de Nápoles, rumo do
seu exílio dourado. Lá ao longe, entre morros, a cidadezinha
diluía-se, confusa. No tombadilho, encostado à amurada, o grande
amigo de D. Pedro, com ar murcho, cravava um olhar comprido naquele pequenino
casario que se ia apagando na distância. Apertava-lhe o
coração um despeito sangrento. Bailava-lhe no lábio um
sorriso vago, mas feroz. Todo ele era sombra e fel. E crispando o punho, num
gesto de ira, o favorito ciciou acerbamente:
-
Deixe estar, Barbacena! Deixa estar...
E
em segredo, bem dentro do coração, pôs-se a forjar
vinganças espantosas...
* * *
O
Marquês de Barbacena, triunfalmente, prestigiadíssimo,
começou então a governar o Brasil numa rósea
tranqüilidade. A boa-estrela de Caldeira Brant tocara o mais alto do
céu. Tudo sorria-lhe. Tudo, as coisas e os homens, rastejavam-lhe aos
pés, com docilidade. Não havia mais estorvos no seu caminho. O
Chalaça partira. A Marquesa de Santos partira. João Pinto da
Rocha partira. A própria Duquesinha de Goiás fora banida do
Paço. Além de tão vastos triunfos, para coroa de tudo, a
Imperatriz adorava-o. José Bonifácio, que voltara do
exílio, prestigiava-o. E D. Pedro, com as desbordâncias de sua
estima, tinha para com o Primeiro Ministro deferências únicas,
envaidecedoras. Tratava-o com rara afetuosidade. Abria-lhe a alma em
intimidades de irmão. As cartas do soberano, por esse tempo, revelam
alto essas amizades fortes. Eram da mais carinhosa confiança. Vede uma pequena
amostra:
"Meu
Barbacena - Grande dia hoje e memorável será em sua casa, pois eu
nomeei-o mordomo-mor da imperatriz; e ela nomeou dama a sua filha.
Agora
segredo. Custou-me a vencer a imperatriz para que a "Pedra Parda"
não fosse nomeada; mas finalmente esteve pelas minhas reflexões,
e não a nomeou. Creio que a Pedra-Parda tangeu o negócio por boa
parte, digo pela duquesa-mãe, mas tudo foi baldado.
Estimarei
que acredite que sou e serei, seu amo e amigo - Pedro".
Eis
outra:
"Barbacena
- Remeto-lhe esse papel, a fim de que mande examinar se o que esse homem
representa é verdade.
Desejo
muito que essa o ache bom e mais toda a sua família.
Eu
estou bom, a imperatriz igualmente os dois príncipes. A Paula
está um pouco incomodada, mas vai bem.
Perdoe
que lhe lembre esporear o promotor dos jurados: há papéis que
merecem bem de ser lidos e considerados pelo ministério. Isto é
muito amical, pois de todo o coração sou seu amigo. -
Pedro".
Barbacena,
realmente, saboreou então o pináculo do fastígio. Foi a
sua hora suprema. O Brasil inteiro, fascinado, ajoelhou-se diante do Grande
Homem, como um inca diante do sol. Mal imaginava o ditoso Marquês,
naquele momento de glória embriagante, que em Londres, lá por
esse remoto Londres, sob o fog, trotando por Picadilly, andava alguém,
espumejando, com um ódio de morte fincado no coração, a
forjar contra o Primeiro Ministro vinganças espantosas...
* * *
- O
Imperador!
As
ruas abarrotam-se de gente. Grande correria. As janelas abrem-se com
estrépito. Que há?
- O
Imperador!
É
o Imperador que passa. Sua Majestade guia um coche tirado a seis. O fraco de D.
Pedro, toda gente o sabe, é guiar. Não há para Sua
Majestade paixão que o empolgue tanto.
Naquele
dia, então, como o sol luzisse magnífico, D. Pedro saiu com
espavento. Soberbo, o chicote em punho, o boleeiro imperial largara o coche num
galope solto. Vinha dentro a Imperatriz D. Amélia. Dum lado, D. Maria da
Glória, a rainhazinha de Portugal. Do outro lado, o Príncipe
Augusto, irmão da imperatriz. Um bando luzidissimo! De repente, a uma
chicotada mais violenta, um dos cavalos pula, as guias quebram-se, o coche
revira com estrondo! Grande pânico! D. Pedro é arremessado longe.
A Imperatriz e a Rainha caem de borco no chão. O Príncipe Augusto
bate a cabeça no lajedo. Um desastre completo. Todo o mundo precipita-se
numa ânsia. Que foi? Que foi? Os viajantes reais estavam feridos. O
Imperador, gemendo, vermelho de sangue, tinha duas costelas quebradas. Era na
Rua do Lavradio. Era em frente à casa do Marquês de Cantagalo. O
Marquês corre com todos os escravos a socorrer os feridos. Recolhe-os.
Presta-lhes auxílios enérgicos. Vieram logo os médicos.
Veio o cirurgião. Encastoaram fortemente o Imperador. E Pedro, durante
largos dias, até curar-se da fratura, deixou-se ficar na casa amiga do
Cantagalo.
* * *
Um
dia, ao fim da doença, recebeu o monarca a correspondência de
Estado. Era imensa. D. Pedro pôs-se a correr os olhos por aquele monte de
papéis. Havia, entre eles, uma carta que chegara de Londres. Carta
grossa, recheada de documentos. D. Pedro leu-a, com espanto. Depois, com mais
vagar, tornou a ler. Meditou. Tornou a ler... Aquela estranha carta chocara
vivamente o soberano! D. Pedro bateu palmas. Apareceu o guarda-roupa de
serviço:
-
Vá buscar o Barbacena. Que venha já!
O
guarda-roupa saiu. Devia existir nela qualquer coisa de muito grave, de muito
impressionante. Aquelas letras tiveram influência radical no
espírito de D. Pedro. Perturbaram-no. Um ricto de cólera
enrugou-lhe o lábio. O olhar lampejou-lhe, bravio. Não restava
dúvida: aquela estranha carta revirou-lhe os nervos. Assim, quando
Barbacena entrou, D. Pedro fervia.
O
Ministro notou logo aquele azedume, aquelas sombras, D. Pedro, encastoado nas
faixas, fez um enorme esforço para sentar-se. Sentou-se. E
áspero:
-
Diga-me aqui, Marquês: quanto V. Excia. gastou na Europa com o meu
casamento?
Barbacena
petrificou-se! Olhou o Amo assombrado. E D. Pedro, cada vez mais rude:
-
Vamos lá, Marquês: quanto V. Excia. gastou?
Barbacena
reconcentrou-se. Um instante depois:
-
É fácil dizer. Gastei:
-
Mas é fabuloso, Marquês! E em que coisas dispendeu V. Excia. tanto
dinheiro?
E
Barbacena, olhos escancarados:
-
Eu já expliquei tudo, Majestade! E expliquei de tal forma, que Vossa
Majestade aprovou as minhas contas...
-
O Marquês não explicou coisa alguma. Eu não vi coisa
alguma! V. Excia. mostrou-me aí uma papelada. Uma papelada que eu
não examinei, que fui aprovando à toa, confiado
-
Majestade!
- Patifaria,
sim senhor! Patifaria grossa! Eu sei agora - tenho provas - que V. Excia., em
Londres, recebeu comissão de todos os fornecedores. V. Excia. mandou
passar os seus recibos por um preço, mas pagou outros. V. Excia.
inventou despesas que não se fizeram. V. Excia..
Barbacena
tremia, indignado. E com fúria, chamejante:
-
Mas isso é calúnia, Majestade! Isso é infâmia dos
meus inimigos!
-
Não é calúnia, não senhor! Onde está,
Marquês, o tal adereço de pérolas que V. Excia. diz que
comprou para a Imperatriz? Onde está? E a afogadeira de rubis? Onde está?
Ora, sabe o que mais?
Afogueado,
os olhos chispantes, com aqueles seus eternos ímpetos de estouvado:
-
Sabe o que mais? Escute lá: V. Excia. roubou-me!
-
Majestade!
-
Roubou-me, sim senhor! V. Excia, é um ladrão...
Barbacena
não se conteve. Pulou:
-
Vossa Mejestade enlouqueceu! Vossa Majestade não sabe o que diz! Vossa
Majestade...
Ferveu
entre ambos uma altercação furiosa. Disseram-se os mais tremendos
desaforos. Conta o velho Melo Morais:
"Foi
tão vergonhosa a polêmica entre o Imperador e o Marquês de
Barbacena, que o Imperador, furioso chamou a Barbacena de ladrão. A
Imperatriz D. Amélia caiu doente!"
Resultou
do atrito incrível - era fatal! - a demissão imediata de
Barbacena. O homem do dia ruiu por terra. Espatifou-se o deus da hora. Mas, de
que jeito? O ídolo tombou por um decreto famoso, decreto de uma secura
achincalhante, decreto que o enlameava. Dizia. com todas as letras, que:
-
"Sendo necessário tomarem-se as contas da caixa de Londres, e
examinarem-se as grandes despesas feitas pelo Marquês de Barbacena com
minha Augusta Filha, e, especialmente com o meu casamento... hei por bem
demiti-lo do cargo de Ministro e Secretário de Estado dos
Negócios da Fazenda".
Barbacena
veio a público defender-se da pecha infame. Mas antes de assumir assim
uma atitude de ostensiva luta, o velho ministro tentou conciliar um pouco as
coisas. E lançou esta ponte: endereçou ao soberano uma
petição em que solicitava, com certa malícia
amedrontadoramente, autorização para publicar documentos graves.
A resposta foi duma rudeza desaforada. Proclamava mais uma vez nuamente, o
desvalimento em que caíra o Marquês. Dizia o Ministro do
Império:
"O
Augusto Amo e Senhor ordenou que participasse a V. Excia. que, pela garantia do
art. 179 parágrafo 4.o da Constituição do Império,
é desnecessária a licença que requer".
Não
podia mais, diante da resposta, haver um instante de protelação.
Barbacena despejou a sua defesa. Trouxe à baila cartas
reservadíssimas. Desvendou toda a vergonheira do casamento. Explicou as
instruções secretas de D. Pedro, os requisitos que exigia da
noiva, as casas reinantes antipáticas, o diabo! Espalhou com
retumbância as tábuas de D. Pedro, o enxoval, os
empréstimos, mil intimidades ridículas e comprometedoras.
E
foi só assim, graças à briga indecorosa, que a posteridade
soube afinal das miudezas daquele célebre casamento imperial, miudezas
tão cômicas, é verdade, mas tão dolorosas para os
brios do Imperador e para as nossas arrogâncias de nação.
Aquele
desvendar de coisas limpou galhardamente a memória de Barbacena. O
embaixador e plenipotenciário entupiu a boca dos maledicentes
pósteros. Mas não o redimiu perante o Amo. Ao contrário:
agravou-lhe mais a desvalia. O Marquês de Barbacena, desde então,
despenhou-se irremissivelmente na desgraça!
* * *
O
Chalaça, lá em Londres, haveria de sorrir um belo sorriso
satânico, ao saber da queda fragorosa do seu imenso inimigo. E haveria de
sentir, com legitimo orgulho, o seu ainda formidável prestígio
ante o coração do Amo e Amigo. D. Pedro não o esquecera. E
a sua influência era ainda tão alta, tão decisiva, que,
mesmo do exílio, mesmo de muito longe, bastava uma simples carta, uma
pequenina palavra sua, para arremessar do pedestal um ministro onipotente,
validíssimo, amigo e confidente da Imperatriz.
Não
há que fugir, esta é a rude verdade: o Chalaça foi o homem
culminante do Primeiro Reinado.
Eis
uma coisa chã, coisa das mais vulgares, que muitíssimo brasileiro
desconhece: o Brasil já deu uma rainha. Sim, uma Rainha! Uma rainha
autêntica, uma que sentou no trono, que dirigiu povos, que deixou na
História um largo traço da sua passagem. Quem é?
-
D. Maria da Glória, a filha de D. Pedro I. Essa que se chamou, na
crônica dos monarcas, D. Maria II, rainha de Portugal.
A
vida da galante princesa tomou proporções de romance. Destino
tumultuoso, altos e baixos curiosíssimos, a história dessa
brasileirinha coroada merece decerto uma página de
divulgação.
A
4 de abril de 1819, no Rio de Janeiro, dentro do Paço de 5.
Cristóvão, nasceu a primogênita de D. Pedro e de D.
Leopoldina. Era D. Maria da Glória. Era a Princesa do
Grão-Pará. Os cortesãos, durante dois anos, viram na
pequerrucha a herdeira do Trono. D. Maria da Glória recebeu, no meio das
rendas do seu bercinho, os mimos e os agrados mais rastejantes. Foi uma
pequenina deusa. No entanto, em 1821, nasceu o príncipe D. João
Carlos. O menino eclipsou a irmã. O sucessor à coroa tornou-se o
foco das adulações. A Corte prostrou-se diante do bebê
imperial como um hindu diante dum buda. D. Maria da Glória despenhara-se
do pedestal...
Mas
eis que arrebentam na Corte os episódios gravíssimos do
"Fico". D. Pedro, toda gente sabe, recusara-se definitivamente a
partir para a Europa. Jorge d'Avilez, que então comandava as tropas,
assestou contra o regente as suas bocas de fogo. Queria, a toda força,
coagi-lo a cumprir as ordens do Reino. Ante a ameaça, sob o pânico
dum bombardeio, D. Pedro ordenou que a Imperatriz e os filhos partissem
às pressas para a fazenda de Santa Cruz. Era noite. Chovia. O
príncipe herdeiro apanhou um grande frio. Veio a febre. Pneumonia. D.
João Carlos não resistiu: morreu no dia 4 de fevereiro de 1822.
Tinha nove meses de idade.
Maria
da Graham, famosa touriste inglesa que andou por cá nesses
trevosos tempos, deixou da sua viagem um diário pitoresco, muito vivo -
"Journal of a voyage to Brasil" - em que narra o incidente
fúnebre. Lá está na data certa:
"The
princess D. Leopoldina and children are gone to Santa Cruz, a country estate
fourteen leagues on the road of S. Paulo. This journey was very disastrous, as
it caused the death of the Infante Prince".
Eis
porque D. Pedro, quando se falava em Avilez, dizia com um ódio bravio:
-
Foi esse infame o assassino do meu filho!
Do
desastre, como era natural, resultou a brusca reviravolta: D. Maria da
Glória tornara-se mais uma vez a herdeira do Trono. De novo, em redor da
princesinha, rodopiaram zumbaias e rapapés. A deusa retornou ao nicho. E
parecia, realmente, que o céu destinara a essa criança a coroa do
Brasil: não mais apareceu um só filho varão. Era tudo
princesa: D. Januária, D. Paula, D. Francisca... Mas de repente, com
alvoroçados júbilos de D. Pedro, eis que surge um
Príncipe! Um homem! O menino, o sucessor à coroa, veio eclipsar
mais uma vez a filha primogênita: D. Maria da Glória passou a ser,
muito naturalmente, uma simples princesinha. Caiu de novo... Mas qual! Aquela
frágil criatura viera ao mundo para coisas grandes. Talharam-lhe os
fados um destino de novela. Vede um pouco:
Em
1826, um ano após o nascimento do príncipe, morre D. João
VI
D.
Pedro, para cortar complicações políticas, agiu com o mais
habilidoso tino prático. Estabeleceu como essencial à
abdicação: 1.o) que D. Maria da Glória se casasse com o
irmão D. Miguel; 2.o) que D. Miguel jurasse a constituição
que ele outorgara ao Reino.
Destarte,
por esse acaso, a bem-fadada Maria da Glória se tornou rainha. Foi D.
Maria II. Mas até que a brasileirinha sentasse no trono, até que
fosse enfim rainha de verdade - que lutas, que aventuras!
* * *
O
infante D. Miguel, durante a existência inteira, ambicionou uma coisa
só: reinar. Viveu o irmão segundo de D. Pedro com os olhos
cravados no trono. Foi uma fascinação! A mãe, aquela
detestável D. Carlota Joaquina, que teve para com este príncipe
ternuras comprometedoras, não sonhou outra coisa senão meter-lhe
na cabeça a coroa de Portugal. D. Carlota Joaquina tramou, conjurou,
intrigou, gastou todas as suas habilíssimas astúcias de soberana
neste fim único: enredar a favor do filho. Quando morreu D. João
VI, estava D. Miguel
Este
ato revestiu-se da mais alta solenidade. Assistiram a ele o próprio Imperador
da Áustria, o Primeiro Ministro, que era Metternich, o Arquiduque
herdeiro, todos os grandes dignitários. Serviram de padrinhos o
Embaixador de Portugal e o Embaixador do Brasil. Além de fatos
tão públicos, Barbacena, então em Paris, escrevia ao Rio
estas coisas peremptórias:
"Senhor.
Aqui cheguei no dia 19 de dezembro, poucas horas depois do senhor Infante. Por
ele, fui recebido com o mais distinto acolhimento. Nos outros dias, até
o dia 26, continuarei a gozar da mesma honra, ficando eu cada vez mais
satisfeito, e admirado de quanto vi, e ouvi dizer, ou fazer este
Príncipe. Abençoada hora em que foi a Viena! O seu credo
político se reduz a cumprir as ordens de Vossa Majestade, e
a carregar a pesada cruz que Vossa Majestade lhe impôs, isto é,
governar Portugal em situações tão difíceis".
E
o próprio Infante, claro, sem rodeios, declarava ao rei da Inglaterra:
"Qualquer
desobediência da minha parte não seria meramente um crime: seria
uma arrematada loucura. E isto porque não só me comprometeria perante
as potências da Europa, mas igualmente perante meu irmão,
expondo-me a perder o que decerto vou ter antes de seis meses".
Não
podia haver, dentro dos limites humanos, provas mais absolutas, mais
categóricas de submissão e de harmonia. O caso político de
Portugal ficara assim elegantemente solucionado. D. Pedro acreditou no
irmão. Quem, em condições idênticas, não
acreditaria?
Foi
então que D. Pedro, no seu engano dalma tomou esta
deliberação grave: ordenou a D. Miguel que deixasse Viena e fosse
governar Portugal, como seu lugar-tenente. O monarca assim o anunciou ao
Infante:
"Meu
querido mano. Tenho o gosto de participar-lhe, em muita
consideração à sua conduta regular e transcedente
lealdade, que Fui servido nomeá-lo meu lugar-tenente, no Reino de
Portugal, a fim de governá-lo em meu nome e de acordo com a
constituição que dei àquele reino. Espero que o mano tome
esta minha resolução como a prova maior que podia dar de amor e
confiança.
Este
seu mano que muito o estima.
Pedro".
Ao
mesmo tempo - oh boa-fé! - escreveu aos soberanos da Europa a sua
resolução, pedindo para o "mano" toda a amizade e
apoio. Foi assim, com essa perigosíssima nomeação, que D.
Pedro, confiante e liso, pôs o reino de seus maiores, a coroa da filha
primogênita, nas mãos do príncipe mais falso do seu tempo.
* * *
D.
Miguel recebeu o decreto famoso. E partiu sem tardança. Foi uma viagem
triunfal! Francisco I circundou-o de honras altíssimas. Luís
XVIII teve para com ele carinhos vencedores. Jorge IV agasalhou-o com pompas régias,
excepcionais. Assim nó-lo conta o Marquês de Barbacena:
"Sua
Majestade Britânica, querendo mostrar o alto apreço, amizade e
consideração que tem para com o Imperador, meu Senhor e Amo, tem
resolvido fazer para seu irmão obséquios extraordinários, de
que não há muitos exemplos. Assim, mandou aprontar o
palácio em que residia o Duque de York, para nele hospedar o Senhor
Infante. Um camarista irá recebê-lo a Dover. O iate real, rebocado
por um vapor, atravessará o canal, para tocar em Calais ou Boulogne,
segundo o porto
* * *
D.
Miguel, com esse fortíssimo prestígio, senhor do poder, desceu em
Lisboa, depois de régia estadia em Inglaterra, a 22 de fevereiro de 1828.
Do cais de Belém, onde desembarcara, correu ansioso a beijar a
mão de D. Carlota Joaquina. Demorou-se longo tempo nos aposentos da
mãe. A rainha, quando o Infante saiu, disse com uma alegria
satânica, alto, para que todos a ouvissem:
-
Não me enganei! O Miguel é o mesmo que era...
Nessa
noite, sob as luminárias, os partidários de D. Carlota, atroavam
as Ruas de Lisboa com berros incríveis:
-
Viva D. Miguel I! Morra D. Pedro IV!
Dentro
em breve, com assombro de todas as potências, desenhou-se nitidamente a
atitude velha de D. Miguel: o Infante apregoava-se desassombrado o único
rei legitimo de Portugal! Tudo o que fizera D. Pedro, dizia o traidor, era
virtualmente nulo. Nulo porque o Imperador do Brasil não tinha direito
algum à sucessão do trono. E isto pelas razões seguintes:
1.o)
"D. Pedro se tornara o soberano de um país estrangeiro. Esta
circunstância, constituindo-o estrangeiro, excluiu-o do trono de
Portugal, de conformidade com o decreto das cortes de Lamego;
2.o)
A residência de D. Pedro fora do reino era contrária às
ordenanças das cortes de Thomar de 1641;
3.o)
Tendo Portugal e o Brasil se separado em Estados distintos desde 15 de novembro
de 1825, e tendo D. Pedro escolhido a coroa do último, se desqualificara
para reinar sobre Portugal, pelos termos das sobreditas cartas patentes de
1642;
4.o)
O juramento prestado por D. Miguel era inválido, por ter sido o mesmo
forçado, e contraído em país estrangeiro (2)".
D.
Miguel, fundado em tais princípios, convocou "os três
Estados". Eram os únicos, de acordo com as velhas usanças,
que poderiam dizer a palavra decisiva.
Os
três Estados reuniram-se. A decisão - está claro! -
não podia ser outra: proclamaram o Infante rei de Portugal.
D.
Miguel sem vacilar, assumiu o título de Miguel I. E por essa forma, com
essa triste comédia, consumou-se o perjúrio tremendo. O Infante
usurpou assim, descaradamente, o trono da sobrinha e noiva.
D.
Pedro no Rio, nunca imaginou que no Reino se estivessem desenrolando
acontecimentos tão fabulosos. Na sua boa-fé, certíssimo de
que apaziguara tudo, mandou aprestar uma fragata para conduzir D. Maria II a
Viena. Determinara o Imperador que fosse a menina para a Corte do avô, o
velho Francisco I, aprimorar a educação e esperar a idade legal
para o casamento com D. Miguel. A missão de acompanhar a rainha à
Europa era das mais subidas. Honra grande e séria. Quem haveria de ser o
escolhido para embaixada de tanto lustre? Não é difícil
adivinhar: o Barbacena, o homem único, o diplomata da paixão de D.
Pedro.
Caldeira
Brant embarcou na "Red-Pole". A bordo, recebeu, com minúcias,
as instruções da viagem.
"Largará
V. Excia. deste porto em direitura a Gênova, tocando em Gibraltar para
receber o prático do Mediterrâneo.
Em
Gênova, terá unicamente a demora para que Sua Majestade
Fidelíssima D. Maria da Glória descanse dos incômodos do
mar e prepare-se o transporte por terra.
S.
M. F. tomará, na sua viagem, o título de "Duquesa de
Guimarães"; e passará; por Parma, a fim de visitar sua tia,
a Arquiduquesa Maria Luísa.
Chegando
a Viena, fará V. S. entrega do sagrado depósito, de que vai
encarregado, a seu augusto avô; e então ficarão na
companhia da rainha, a Condessa de Atagipe, assim como D. Manana Carlota
Brusco, e Joaquina Teresa de Jesus".
Ao
mesmo tempo, por esse mesmo barco, levava o ilustre ministro fortíssimas
credenciais junto ao Imperador da Áustria. D. Pedro escrevera ao sogro
esta envaidecedora carta:
"Ultimando
tudo quanto eu tinha prometido, envio minha filha, rainha de Portugal, para a
Europa, a fim de aprender na companhia de Vossa Majestade Imperial, Real e
Apostólica, o que lhe convém para um dia vir a ser a imagem de
seu avô, fazendo felizes os povos a quem governar. O sentimento que,
contudo, me causa o separar-me de uma filha tão querida, não me
permite dizer agora mais coisa alguma.
O
Marquês de Barbacena, encarregado de entregar a Vossa Majestade minha
filha, dirá a Vossa Majestade tudo o que quiser saber, não
só relativo a mim e a toda a minha família como a este
império; e rogo a Vossa Majestade lhe dê inteiro
crédito a tudo que da minha parte ele disser. - Pedro".
Barbacena
partiu. E principiaram, desde logo, as peripécias da viagem romanesca.
II
Em
Gilbraltar, a fim de receber o prático do Mediterrâneo, fundeou a
nau Imperatriz. Barbacena, instantes depois, recebia a bordo um correio
urgentíssimo. Trazia despachos do Marquês de Rezende e do Visconde
de Itabaiana, embaixadores brasileiros na Europa. Foi só então
que Caldeira Brant, estuporado, soube da miserável
usurpação de D. Miguel. Os sucessos de Portugal aterrorizaram o
diplomata. Que fazer? Itabaiana e Rezende, com argumentos prementes, suplicavam
a Barbacena que não mais levasse a rainhazinha para Viena, onde Metternich
se apoderaria dela para os seus planos políticos. Aconselhavam, ao
contrário que Barbacena levasse D. Maria da Glória para a ilha da
Madeira ou ilha dos Açores, as quais se haviam pronunciado contra o
usurpador. O despacho dizia assim:
"A
usurpação do trono de Portugal está consumada. Mas
recebemos aqui, em contraposição, a notícia de que a ilha
da Madeira e a dos Açores se têm declarado fiéis ao seu
legitimo soberano. Julgamos, apesar disso, perdida a causa da legitimidade, a não
ser que o nosso Amo revogue o decreto de 3 de março, não enviando
jamais sua filha para Viena. A manutenção daquele decreto
terá como resultado ficar el-Rei privado da tutela da sua filha que
é a única arma que lhe resta para disputar a coroa ao usurpador.
A ida para Viena tem como resultado ficar a Princesa em cativeiro, como ficou o
filho de Bonaparte, até que seja maior, para, então, por um ato
formal, renunciar os seus direitos no usurpador... Tal é o plano atroz e
pérfido que têm os Gabinetes da Áustria e França.
Eis porque vimos pedir, no augusto nome do nosso Imperador, que V. Excia.
não leve jamais a rainha para Viena; mas que vá com ela para a
Madeira, e ali se conserve até receber novas ordens de Sua Majestade. E
quando a rainha não possa ficar na Madeira, leve-a Vossa
Excelência para o Rio de Janeiro. Da resolução de V. Excia.
depende a sorte da rainha; levando-a para a Madeira, poderá ela ainda
reaver a coroa que lhe foi usurpada, levando-a para Viena, pô-la-á
em humilhante cativeiro, contribuindo V. Excia. para a vitória da
usurpação. Não hesite pois V. Excia., etc..."
A
situação era realmente embaraçosa. Barbacena teve de
resolver, nesse momento, o trecho mais melindroso de sua vida de diplomata.
Levar a menina para Viena, colocá-la na corte do avô, era
pôr nas mãos de Metternich uma alavanca perigosíssima. O
maquiavélico Primeiro Ministro, com a rainha entre as garras,
tornar-se-ia o árbitro absoluto dos negócios de Portugal e do
Brasil. D. Miguel dependeria dele para solucionar o caso da noiva; D. Pedro
dependeria dele para solucionar o caso da filha. E Metternich (bem o sabia
Barbacena) não era homem de se confiar... Levar a rainha para os
Açores, ou para a Madeira, ilhas desguarnecidas, era expô-la aos
azares dum bombardeio e duma prisão. Como sair dai? O momento tornou-se
gravíssimo. Caldeira Brant, nessa hora, teve consigo o destino duma
rainha. Teve consigo o destino de Portugal inteiro. Tudo dependia do seu tino.
E Barbacena, convém apregoá-lo aqui, alto e bom som, Barbacena
resolveu a situação com um brilho único. Não levou
D. Maria da Glória para Viena; não a levou também para as
ilhas: levou-a diretamente para a Inglaterra. Levou-a para a aliada de D.
Pedro, para a terra amiga, a pátria de todas as liberdades. Tomou a
resolução estranha; e, sem vacilar, enfiou a proa da sua fragata
rumo de Falmouth.
Não
se enganara Barbacena.
* * *
A
Inglaterra, mal soube dos acontecimentos, ordenou logo que a rainhazinha
usurpada fosse recebida com pompas excepcionais. Teve a brasileira as
considerações de rainha legítima. O almirantado
inglês expediu circulares para todos os portos de Calais. Assim:
"Senhor!
Tendo chegado a notícia da próxima vinda de Sua Majestade, Rainha
de Portugal, a bordo dum navio brasileiro, a um dos portos do canal, tenho
ordem de Sua Alteza Real, o chefe do Almirantado, para vos determinar que, em
conformidade com a vontade de el-Rei, seja recebida a mesma com todas as honras
devidas a uma testa coroada. Sou, meu senhor, obediente criado. J W.
Croker".
Além
dessas medidas, assim terminantes, soube logo Barbacena que Jorge IV, para
distinguir, frisantemente a D. Maria da Glória, mandara buscá-la
a Falmouth nas suas próprias carruagens, enviando para saudá-la
Lorde Clinton; seu camarista particular, e "Sir" William Henry
Freemantle, tesoureiro da casa real.
Diante
de tão altas honrarias - honrarias preciosas no momento do desastre - D.
Maria da Glória escreveu imediatamente ao Rei uma carta gentil:
"Monsieur
mon frère et cousin. Au moment de mettre les pieds dans les états
de votre magesté, mon premier devoir est de m'adresser á elle. Je
le fais avec toute la confiance que m'inspirent á son égard les
sentiments que j'ai hérités de mon auguste père et de mes
ancétres. Les regrets que j'eprouve de la séparation de ce
père chéri, et la vive douleur que me causent les malheurs dans
les quels j'al appris que se trouve plongée la nation portugaise, qui
doit être l'object de tout mon amour, seront adoucis par l'accueil
bienveillant de votre magesté aussitôt que j'aurai le bonheur, que
j'ambitionne, de me trouver en sa presence. J'ai l'honneur d'être, de
yotre magesté, la bonne soeur et cousine. - Marie da Gloria".
Barbacena,
pelo mesmo correio, enviou uma carta pomposa ao Duque de Wellington,
então primeiro ministro:
"Monsieur
le duc. - L'empereur, mon auguste maitre, a daigné me charger de la plus
honorable de toutes les commissions: celle d'accompagner son auguste fille, la
reine du Portugal, dans sons voyage en Europe...,etc."
Jorge
IV, com grande gentileza apressou-se em responder fidalgamente à
pequenina destronada. Assim:
"My
dear Sister and Cousin. (3) It is with infinite gratification, I learn by the
letter wich your Majesty addressed to me on the 24th ultimo, your safe arrival
in these my Dominious; and I take the earliest opportunity of conveying to your
magesty my warmest congratulations ou the happy occasion. I have commanded Lord
Clinton, one of the lords of My Bedchamber, and Sir William Henry Freemantle,
Treasurer of My Household, to remain near your majesty's Person, and I trust
that nothing will be left undone to make your majesty's residence in England
agreeable to your majesty. As soon as the state of my health will permit it
will afford methe agreatest pleasure to receive your majesty at my palace where
your majesty may be assured of meeting with the most cordial reception. And I
shall be happy to avail Myself of the opportunity of renewing to your majesty
ia Person, the assurances of the sincere Regard and Attachment with which I am,
My dear sister and cousin, your majesty affectionate Brother - George R."
Wellington,
por seu turno, com uma deferência marcante para com Barbacena,
escreveu-lhe amavelmente:
"Monsieur
le marquis - I have had the honour of receiving Y. E. letter óf the 24th
lnstant; and I beg leave to coagratulate Y. E. upon the safe arrival in England
of Queen of Portugal, D. Maria da Glória". (4).
Seis
dias descansou a rainha brasileira dos cambaleios da viagem. Depois, metendo-se
nas carruagens do rei inglês, seguida dos seus camareiros e camareiras,
partiu a menina coroada a caminho de Londres. Aí, com pompa e brilho,
hospedou-se regiamente no "Grillon's Hotel". Barbacena, de Londres,
refeitas as forças, pormenorizou a D. Pedro, numa copiosa carta, os
acontecimentos
"A
24 de setembro, fundeei em Falmouth. Desde então, comecei a ter provas
lisonjeiras, dia a dia mais crescentes, do acerto da minha
resolução. Parece-me estar salva a coroa que D. Miguel havia
usurpado. E se todos os males e perfídias cometidos pela Áustria,
desde que Vossa Majestade deu uma constituição aos portugueses,
não têm remédio, evitei, ao menos, a última e
decisiva com que Metternich contava tirar-se da dificuldade atual: sacrificar
uma neta do seu Soberano, como já outrora sacrificara uma filha.
"Aqui,
na Inglaterra, nenhum ministério resiste à opinião
pública. E esta é em favor da rainha desde que D. Miguel se fez
usurpador e déspota. A opinião pública subiu a tal ponto
com a chegada e desembarque de D. Maria da Glória que, realmente, parece
quase delírio.
"El-Rei,
por sua parte, também simpatizou-se com a causa dela, tendo-lhe
prodigalizado os maiores obséquios e distinções. Segue-se
dai que o Ministério ou há de sustentar os direitos da rainha, e
por este modo congraçar-se com a Nação, ou cair na
primeira reunião do Conselho.
"O
Duque de Wellington e Aberdeen vieram no dia sete cumprimentar a rainha. Disse
Wellington que o rei começava a experimentar melhoras na sua
saúde; e que esperava, antes de oito dias, ter a honra de receber a
visita de D. Maria da Glória. Toda a família real, por seu turno,
tem mandado os seus cumprimentos. E todos só esperam (segundo a etiqueta
da Corte) que a rainha se aviste com el-Rei para virem todos pessoalmente
visitá-la.
"A
rua onde moramos está sempre cheia. E D. Maria da Glória é
obrigada a aparecer freqüentemente à janela para receber vivas e
aclamações. As visitas e cumprimentos de todas as personalidades
não têm fim. Eu acho-me quase morto de fadiga.
"Wellington
informou-me, também, da recepção que estava preparada para
a rainha em "Grillon's Hotel", onde também fora hospedado
el-Rei da França, o que é costume nesta corte por falta de
palácios. Isto é verdade.
"Agradeci
ao duque os obséquios feitos a D. Maria da Glória. Fiz-lhe notar
que a residência da Sua Majestade em Londres perturbava o plano de seus
estudos e educação, tão recomendados pelo Imperador, meu
Amo; e que, ainda mais, aquele numeroso concurso que sempre a acompanhava
tirava-lhe toda a liberdade de poder fazer algum exercício; pelo que,
permitindo Sua Majestade Britânica, eu tomaria uma casa de campo nas
vizinhanças de Windsor. O duque aprovou muito a resolução.
E eu, nesse caso, pretendo mudar-me nesses quatro dias, tanto para ficar mais
perto do Rei, e assim poderem as Princesas freqüentar a companhia de D.
Maria da Glória em plena liberdade (muito principalmente a herdeira da
coroa, que é de sua mesma idade) como também, é natural,
para evitar a enorme despesa que o Senhor D. Pedro está fazendo.
Só a mesa de D. Maria da Glória custa por dia £ 96".
Assim
prestigiada por todo o mundo inglês D. Maria da Glória ficou
à espera de ver-se recebida por Jorge IV, logo que a saúde
daquele rei o permitisse.
Enquanto
isso, na Áustria, a não chegada da rainha foi um desapontamento.
Francisco I mandou imediatamente a Londres o conde de Lebzeltern, áulico
da sua confiança, a fim de arrebanhar a pequena para Viena. Lebzeltern
trouxe várias cartas à rainhazinha. Uma delas, muito macia e
carinhosa, escrita com a própria letra de Francisco I:
"Madame
ma soeur e trés chere petite fille. Ayant été
informé que la dlrection de votre voyage a été
changé, j'ai ordonné ou comte de Lebzeltern que j'avais
envoyé avec mes équipages à Gênnes pour vous y
recevoir, de se rendre à Londres. Il vous remettra cette lettre, avec
celle que je vous avais adressé a Gênnes et iI vous repetera
"le desir que j'ai de vous voir bientot".
Je
fais des voeux pour votre senté et je vous recommande beaucoup de
menagements. N'oubliez pas que vous vous trouvez dans un bien autre climat que
celui que vous a vu naitre, et qu'il vous faudra aussi des précautions,
jusqu'a ce que vous serez acoutumée á ce changement. Je saisis
cette occasion pour vous assurer de ma tendre amitié. Votre
affectionné grand-père, François".
Metternich,
pelo mesmo correio, mandou a Barbacena um imenso despacho, crivado de
argumentos sérios, convencendo a Caldeira Brant de enviar imediatamente,
por intermédio de Lebzeltern, D. Maria à corte do avô. Foi
difícil tarefa a de descartar-se o diplomata brasileiro dos bons
ofícios do conde austríaco. Barbacena, porém, com muita habilidade,
respondeu a Metternich um longo oficio protelatório. Não havia no
documento, tal a astúcia com que fora escrito, razão alguma para
que Metternich se melindrasse. Ao mesmo tempo, D. Maria da Glória
escrevia ao avô uma carta untuosa, muito alambicada, mas despida de toda
conseqüência:
"Monsieur
mon frere et grand-père. Toute jeune que je suis, ja sais apprecier
à sa juste valeur la marque de tendresse paternelle que votre
magesté impériale a bien volu me donner, en m'adressant deus
lettres dont une est toute écrite de sa propre main. J'ai balsé
eents fois ces lettres precieuses, et j'al la plus grande envie de baiser aussi
la mam vénérable qul les a signées, mais comme la
couronne, que le clel m'avait destinée vient de m'etre usurpée
par celui même que devait en étre le pius fidêle
depositaire; et que par suíte de cet inat tendu et malheureux
événement, j'ai du venir chez l'allié de la maison de
Bragança, notre bon frère et cousin, le rol de
"Veulilez
donc, mon très cher grand-père, vous anouir a l'entreprise de la
restauration de ma couronne, et ajouter par lá, á tous vos
titres, celui de defenser d'une jeune reine infortunée, qui appelle
á votre tendresse paternelle qui a le seul bonheur d'être de votre
majesté imperiale, la bonne soeur et petite fille, três
afectionnée, Maria da Gloria".
III
Numa
encantadora casa de campo, em Laleham, ficou-se, por meses, aquela graciosa
rainha brasileira. A recepção na Inglaterra,
recepção oficial, tão positiva e fragorosa, retumbara
longe. D. Miguel, em Lisboa, soube com assombro das deferências reais com
que fora agasalhada a pequena soberana. Parecia, não há
dúvida, que a Inglaterra encampara rasgadamente a causa da menina.
Mas
havia um homem, longe de Londres, que sorria daquelas recepções
atroantes. Havia um homem que, magoadíssimo por ter D. Maria da
Glória aportado na ilha, planeava um golpe de mestre
"O
Duque de Wellington não se pejou de dizer-me que, suposto o direito
estivesse da parte da rainha, os portugueses, contudo, não queriam outro
rei senão D. Miguel".
Assim,
com essas lutas pérfidas, deixava-se ficar D. Maria da Glória
"Os
que conhecem o caráter do rei, os que conhecem o seu capricho e
elegância sobre o ornato dos quartos, não hão de estranhar
esta demora; pois, fazendo o rei diariamente conduzir alguns ornatos, ou
peças dos outros palácios para este, cada ornato novo exige
transformação completa dos que estavam colocados. E isso complica
tudo...
Mas,
durante esta fastidiosa espera, tão de provar a paciência humana,
Barbacena não descuidava da educação da rainhazinha. A
vida, em Laleham, era uma vida de paço. D. Maria da Glória vivia
como rainha.
Eram
mantidas todas as etiquetas. Eis o ritual daquela existência de
soberanazinha destronada:
"Senhor.
Começarei por anunciar que D. Maria da Glória continua a gozar da
melhor saúde. Está mais alta, menos gorda, e, por
conseqüência, mais bela e elegante. Os dentes que lhe vinham
nascendo tortos e cruzados, vão ficando iguais e direitos, graças
à perícia do insígne Cartwright. Lembra-me ter participado
a V. M. que a rainha, deixando tirar as presas de cima com bastante coragem,
chorava alguns dias depois, e não consentira em tirar as presas de
baixo. Devo agora, em obséquio da verdade, participar a V. M. que com
igual coragem deixou tirar as presas de baixo, para que eu não desse a
V. M. uma notícia que pudesse desagradar-lhe. E ordenou-me depois que
mandasse os dentes a V. M., o que farei quando estiverem encastoados.
O
seu tempo é empregado da maneira seguinte:
Levanta-se
às oito horas e deita-se às nove. Almoça das oito e meia
às nove; janta das duas e meia às três e ceia às
oito. Do meio-dia até às duas horas passeia de carruagem ou a
pé. Mas sempre que o tempo o permite deste último modo.
Todo
o intervalo entre as horas marcadas é para lições.
São elas de francês, inglês, geografia, história e
aritmética, desenho, dança, piano e obras de agulha.
Para
o desenho e dança vem mestre de fora, duas vezes na semana. De tudo mais
se encarregou Madame De Soir, que tem muito merecimento e me foi abonada por
Freemantle. É mui conhecida da família real e tem um irmão
com a Duquesa de Kent.
Durante
a viagem de mar, comia S. M. com a dama, sua filha e a açafata, segundo
S. M. regulou.
De
Falmouth a Londres, sendo a mesa à custa de S. M. B. seguiu-se a
prática inglesa, comendo S. M. com os camaristas, damas, embaixadores e
ministros, e de mais com a açafata, guarda-roupa e médico.
Depois
que viemos para Laleham estabeleci a etiqueta do paço, isto é, S.
M. comendo só, e todos os mais na mesa de estado. Mas este plano
não pôde durar senão até a semana passada, em que
fui obrigado a mudá-lo pelas razões que vou expor".
Eis
que é nesse momento, exatamente, que chega a Londres Lorde Strangford,
ministro britânico no Rio de Janeiro. Strangford, exige uma
audiência imediata do rei. Barbacena aproveitou-se do ensejo, procurou o
tesoureiro particular de el-Rei, o já seu amigo William Freemantle e
conseguiu, enfim, habilidosamente o convite oficial para a tão decantada
recepção. O embaixador brasileiro pormenorizou a D. Pedro a
interessante entrevista com o tesoureiro:
"Mudou-se
el-Rei para o seu novo palácio a 11 do corrente, e passando-se quatro
dias sem aviso para a recepção da rainha fui visitar "Sir"
William Freemantie a fim de ter ocasião de falar naquele objeto.
A
conversação recaiu naturalmente sobre o que as gazetas diziam da
chegada de Strangford, o que me facilitou entrar na matéria, e explicar
o absurdo da pretensão daquele diplomata, querendo uma audiência
particular 24 horas depois de fundear.
-
Cá está a rainha, disse eu, há dois meses e sem meio de
ver a el-Rei; e nem por isso se escandaliza..
O
resultado foi vir ele hoje da parte d'el-Rei cumprimentar a S. M. e perguntar
se acaso seria do agrado da rainha honrar a el-Rei com a sua visita,
segunda-feira, às 2 horas.
Sua
Majestade agradeceu o cumprimento e prometeu fazer a sua visita segunda-feira.
Freemantle
foi em conseqüência fazer os convites ao Visconde de Itabaiana,
Marquês e Marquesa de Palmella, assim como particular à
família real para estar presente.
Como
a rainha costuma jantar às 2 1/2 horas, pretende el-Rei
dar-lhe de jantar... etc.".
Até
que, no dia marcado, realizou-se a recepção da rainha brasileira.
Já o camarista particular de Jorge IV referia, em segredo, "que Sua
Majestade se propunha a receber D. Maria da Glória de maneira que
fizesse época". Esse acontecimento, que deveria ter forte
repercussão nas cortes diplomáticas, relatou-o Barbacena numa
carta minuciosa ao Amo e amigo:
"Laleham,
23 de dezembro de 1828. - Senhor. - Verificou-se ontem a visita da rainha a sua
majestade britânica, e tudo quanto eu pudesse dizer a V. M. I., sobre os
obséquios, e a polidez do rei, ficaria muito aquém do que vimos e
admiramos.
Mal
podendo el-Rei sustentar-se nas pernas, suando em bica e cansando ao menor
excesso, quis absolutamente vir ao patamar da escada receber a rainha, e
conduzi-la de salão em salão.
No
"Courier" e no "Times", que remeto, incluso, vem escrito o
que houve de mais notável, porém, acrescentarei algumas
particularidades.
El-Rei
beijou a mão e a testa da rainha e disse-lhe que tinha estado impaciente
pela honra de a conhecer; que sua moléstia, da qual não estava
completamente restabelecido, tinha retardado aquele momento afortunado. E mil
outras coisas deste gênero. Acabou o seu discurso por pedir à
rainha que lhe apresentasse as pessoas que a acompanhavam.
Isto
feito, levou-a para o grande salão onde estavam o Duque e a Duquesa de
Clarence, o Duque de Wellington e vários outros fidalgos e fidalgas que
apresentou um por um à rainha.
Tomou
depois um sofá com a rainha e disse aos circunstantes:
A
rainha permite que as senhoras tomem assento.
Tudo
mais, inclusive o irmão e cunhado do rei, ficou em pé.
A
família real cercou a rainha. Cada um à porfia procurou
agradar-lhe. Mas ninguém tanto como o rei.
À
exceção de Wellington, Aberdeen e Gordon, havia em todos
extraordinário prazer e admiração. Eu atribuía,
contudo, uma parte disto a mera polidez. Mas quando na mesa o rei exclamou para
o Duque de Wellington "que a rainha era o mais fiel retrato de sua querida
Carlota" (5) quando toda a família real respondeu que haviam todos
feito a mesma observação, mas reprimido de o anunciar para
não penalizar a S. M., não duvidei mais da simpatia de todos pela
rainha.
El-Rei
mostrou à rainha que tinha ao peito as três ordens portuguesas;
mas que eram antigas e dadas por seu avô. Falou sempre em francês,
mas em certa altura da mesa disse:
"Eu
também sei falar algumas palavras portuguesas, por exemplo: a rainha é
muito bonita".
Acabou
fazendo a saúde da rainha como sua amiga e aliada.
Veio
até à escada e quando a rainha descia, acompanhada pelo Duque de
Gloucester, voltou-se para toda a corte e exclamou em voz alta:
-
Elle est 8uperbe, elle est charmante.
A
rainha pareceu algum tanto tímida a princípio mas ganhou coragem
e desempenhou o seu papel perfeitamente.
Agradecendo
a saúde a el-Rei, D. Maria da Glória disse-lhe que, desde que pisara
em Inglaterra, fazia todos os dias a saúde de S.M. e por isso a repetia
também naquele dia.
Estando
então toda a companhia de pé, com os olhos fixos na rainha, e ela
separada de mim, porque estava entre o rei e o Duque de Clarence, aquela
resposta admirou a toda gente. Eu entrei no número dos admiradores;
porém, tinha preparado a rainha para aquela resposta.
Na
despedida, a rainha deu dois abraços ao rei e disse-lhe:
- Je vous suis infiniment obligé, oui, oui, infiniment
obligé.
Estas
palavras, repetidas com graça e a propósito, produziram
exclamações de todos.
A
polidez e a atenção do rei não se concentraram com a
rainha: chegaram a mim, dando-me lugar à esquerda do seu irmão e
à direita de sua cunhada, isto é, o melhor depois daquele que foi
dado à rainha.
Quando
Freemantle veio cumprimentar a rainha, deu-me a relação das
pessoas que eram convidadas por el-Rei, a qual remeto inclusa.
Sabendo-se
depois que o Marquês de Rezende também se achava em Londres, foi
imediatamente convidado.
Enquanto
a rainha fez um pequeno passeio pela galeria de pinturas com as duquesas,
deu-me el-Rei uma pequena audiência para receber a carta de V. M. I. e
falar a cada uma das pessoas que haviam tido a honra de acompanhar a sua
majestade fidelíssima.
O
Duque e a Duquesa de Gloucester já pediram o dia 26 para visitar a
rainha e eu darei conta do que for ocorrendo".
* * *
Mas
não ficou apenas nisso. Jorge IV quis oferecer um baile à
rainhazinha. Wellington se opôs... Eis o que se passou depois da
recepção:
"Senhor
- O Duque e Duquesa de Gloucester vieram cumprimentar a Sua Majestade
Fidelíssima no dia 26 às duas horas, e como se demorassem
até às quatro, Sua Majestade os convidou para jantar, e tudo se
passou na melhor ordem possível.
O
Duque e Duquesa de Clarence vieram a 29, às duas horas, e também
jantaram.
A
Duquesa de Kent veio a 30, ao meio-dia, e por isso não jantou.
Estas
visitas foram precedidas da competente etiqueta, pedindo todos pessoalmente, ou
por escrito, dia e hora a Sua Majestade que lhes deixou mui polidamente a
escolha livre.
A
rainha irá agradecer aqueles comprimentos nos dias 3, 5 e 7 e
jantará com as princesas, as quais tiveram a delicadeza de convidar
todas as pessoas que estavam na casa da rainha, sem esquecer Rezende, Itabaiana
e Palmella.
Ouço
que o Rei quis dar um baile à rainha neste mês; mas que Wellington
se opusera. Isto posso afirmar com certeza".
Mas
o Duque de Clarence, irmão do Rei, incumbiu-se de oferecer a D. Maria da
Glória uma festa infantil. Foi uma festa soberba.
Compareceram
a ela mais de quinhentas pessoas da mais selecionada aristocracia
britânica. Barbacena narrou-a com detalhes:
"Maria
da Glória brilhou ontem no magnífico baile de meninas, que lhe
deu sua alteza real o Duque de Clarence. Eram mais de 500 pessoas das quais 153
meninas.
A
rainha dançou a primeira quadrilha com o filho do príncipe de
Lieven; a segunda com o filho do príncipe de Polignac; a terceira com o
filho do Marquês de Palmella. Dançou por último uma
contradança inglesa com o sobrinho do Marquês de Londonderry.
A
cada uma das contradanças vieram os pais agradecer a honra que lhes
fizera dançando com os filhos.
O
mestre da rainha foi quem dirigiu o baile.
Houve
ceia às 10 horas. Uma mesa para a rainha e corpo diplomático; outra
para o resto da companhia.
A
Duquesa de Clarence não deixou a rainha um só momento; e o duque,
antes de fazer a sua saúde, disse:
"Eu
proponho a saúde de S. Majestade Fidelíssima, rainha de Portugal.
Mas antes disso permiti, Senhora, que eu tenha a honra de beijar a vossa
mão".
Levantou-se,
beijou a mão da rainha, e fez a saúde a que todos corresponderam.
A
rainha propôs depois a saúde do duque e da duquesa.
Às
11 horas, retirou-se e continuou o baile para os outros.
A
rainha está mui linda; foi elegantissimamente vestida e dançou
muito bem".
Apesar
de tantas, de tão categóricas honrarias, assim do Rei como da
família real, Wellington, com a sua dúbia diplomacia, fez ver a
Barbacena que o rei prestigiava apenas "moralmente" a filha de D.
Pedro; mas que, dadas as circunstâncias de Portugal, dado o caso de D.
Miguel já se haver apoderado do trono, a Inglaterra não
forneceria vasos, nem soldados para repor a brasileirinha destronada. Barbacena
não se desapontou com a revelação peremptória.
Sabia bem o amigo de D. Pedro que Wellington tramara na sombra, surdamente, em
prol do usurpador. Aquilo eram influências secretas de Metternich.
Ora,
foi nesse momento exatamente que D. Amélia contratou o seu casamento com
D. Pedro. Tornava-se necessário levar a noiva para o Brasil. Bem viu
Barbacena que a estada de D. Maria da Glória na Inglaterra, além
de dispendiosíssima, era duma inutilidade clamante. Que faz
então? Isto: embarca a noiva e embarca a rainhazinha na mesma fragata, rumo
do Rio de Janeiro. Veio assim D. Maria da Glória, aquela doce
rainhazinha de nove anos, pôr-se debaixo do amparo de seu pai, o seu
único amigo. Viu a menina, logo no início da vida pública,
o tio a perjurar miseravelmente; o noivo a atraiçoá-la com a mais
cínica perfídia, os gabinetes europeus a conspirarem sem
dó contra ela. Restava-lhe apenas D. Pedro. E D. Pedro, o pai
amorosíssimo, nunca mais pôde tragar o fel dessa infâmia.
Vingar-se de D. Miguel foi, desde então, a sua idéia obcidente. E
essa idéia, não há negar, tornou-se uma das coisas mais
fortes para a abdicação de 7 de abril.
IV
D.
Maria da Glória desembarcou no Rio de Janeiro. Aqui, junto do pai, veio
assistir a rainhazinha à mais fragorosa rajada política que
já desabara sobre o Brasil. Foi o 7 de abril. Meia dúzia de baionetas,
atiçadas pela fúria dos liberais, escorraçaram do
Império aquele mesmo que o fundara. D. Pedro, em cuja cabeça
luziram, num fugaz momento, duas cobiçadas coroas, perdeu-as a ambas nos
entrechoques da política. A primeira, a de Portugal, abdicou na filha,
D. Maria da Glória; a outra, a do Brasil, que ele criara, teve que
abdicar no filhinho de cinco anos. E na data trágica, sem um
único amigo, abandonado como um galé, D. Pedro embarcou na nau
"Warspite", a caminho do seu exílio. Partiu, enfim, do Brasil,
para nunca mais, o homem que durante nove anos plasmara entre as mãos o
Império nascente.
Na
sua queda, porém, havia um pensamento que o soerguia: D. Maria da
Glória! Desde que o mano Miguel, com aquela arrepiante felonia,
ludibriara-o tão descaradamente, desde que vira o usurpador, com
tão repugnante despejo, romper os esponsais com a filha,
despojá-la da coroa, aclamar-se rei absoluto de Portugal, D. Pedro
não teve mais um apagado minuto de felicidade. Todo ele era fel. Todo
ele era vingança. Acutilava-o, dia e noite, um pensamento só:
desforrar-se do irmão. Sacudia-lhe os nervos, aqueles nervos de eterno
arrebatado, um desejo bravio de esmagar o rei pérfido, pisá-lo,
moê-lo debaixo dos pés como se mói uma víbora. Por
isso, talvez, no desastre irreparável, na perda daquele trono amado,
trono que talhara com a sua espada, e com a galhardia dos seus vinte e poucos
anos, na hora fúnebre, a mais lutuosa da sua vida, talvez ainda lhe
sorrisse, como última esperança e como último consolo, a
idéia de que iria enfim, por esses mares afora, despejar do trono da
filha o irmão infame.
E
D. Pedro partiu. Cavaleiro andante, D. Quixote real, aquele fogoso imperador de
novelas foi repor na fronte da menina o diadema que o noivo lhe arrebatara. Tomou
para si, muito singelamente, o título de Duque de Bragança; e
assim sem coroa nem império, D. Pedro partiu magnificamente, rumo da
nova cruzada.
* * *
Londres.
Recepções. Audiências com o Rei. Festas. Em meio às
honrarias, no entanto, a desesperadora frieza de Wellington. O governo
britânico continuava inabalável: apoiava apenas moralmente a
causa da rainha. Excusou-se de fornecer soldados. Excusou-se de fornecer um
só vaso de guerra. Excusou-se de fornecer dinheiro.
D.
Pedro à vista disso, partiu para Paris. Luís Filipe agasalhou-o
com mimos e deferências. Mas, o "Rei-cidadão", tal como
Wellington, não ofereceu ao pai visionário um único
auxílio de guerra.
D.
Pedro sentiu claro a sua desajuda. Viu que tinha de contar consigo,
exclusivamente consigo, para aquela aventura perigosíssima.
Mas
a causa da rainhazinha empolgara doidamente os constitucionais portugueses. D.
Miguel, no pináculo do poder, encampara vinganças tenebrosas. Os
constitucionais emigraram aos bandos de Portugal. Emigraram para toda parte.
Para as ilhas, para o Brasil, para a Espanha, para a França, para a
Inglaterra. Na Inglaterra, especialmente, havia turbas de foragidos
políticos. Ficaram famosos os galpões de Londres e de Falmouth,
onde se alojara aquela multidão de perseguidos. Tudo fugira à
sanha de D. Miguel. E tudo, no exílio, andava à cata duma
bandeira, a cuja sombra pudesse defender a legitimidade da Rainha e da Carta.
D. Pedro, ao chegar, foi o homem providencial. Os portugueses assediaram-no
avidamente. Todos congregaram-se em torno do Duque de Bragança. Eram
entusiasmos e dedicações incríveis. Todos queriam morrer
pela rainhazinha usurpada. Que fazer?
Aterrorizava
D. Pedro uma idéia seríssima: a questão financeira. Como
haveria de meter-se numa guerra sem dinheiro? Como combater, assim liricamente,
um soberano que tinha cem mil baionetas para ampará-lo? Um soberano que
tinha os cofres da Nação ao seu dispor? Era
arriscadíssimo! Mas D. Pedro, acuado por aqueles homens sedentos de
lutas, tomou a deliberação suprema: arrojou-se na empresa.
Conseguiu um emprestimozinho em Londres, com a casa Samuel Philipps & Cia.
Fez o seu testamento. E um dia, em Paris, com os olhos enxutos, a alma leve,
beijou a mão da filha, sua Rainha e Senhora: e lá se foi, lidador
visionário, rumo da Ilha Terceira, encabeçar a guerra contra o
usurpador.
D.
Pedro aportou na ilha fiel. A chegada do Duque de Bragança foi uma
descarga elétrica. Despertou coragens loucas. Incendiou alegrias
inenarráveis. Uma loucura! De toda parte, como por milagre, surgiam
emigrados. Era um formigar de gente. Não havia fragata, não havia
chalupa, não havia barquito por mais leve que, ao abicar na ilha,
não trouxesse um revolucionário. D. Pedro, desajudado dos povos,
sem dinheiro, banido do trono, em plena desgraça, fez esta coisa
única, fabulosa: reuniu em torno de si um exército de mais de
sete mil homens! Sete mil homens que vieram prontos, absolutamente prontos, a
morrer combatendo. E que homens eram esses? Tudo que Portugal teve então
de mais representativo na inteligência. Rapazes que clamavam por uma
constituição. Bandos de sonhadores galhardos. D. Maria da
Glória, para esses nobres, ardentissimos idealistas, não era
apenas uma rainhazinha usurpada: era a encarnação graciosa da
liberdade e do constitucionalismo!
E
foi assim, na Terceira, durante aqueles dias de aprestos e febre, que viu D.
Pedro chegar um moço de vinte e poucos anos. Tinha o ar grave. Falava
pouco. Vinha enrolado numa capa sombria. Esse moço, assim misterioso,
veio disposto a dar a vida pela Carta. Alistou-se singelamente, como soldado.
Quem era? Quem era o rapaz estranho? Naquele instante não era
ninguém. Mais tarde, na história das letras, teve um nome
formidável: Alexandre Herculano.
Depois,
vindo de Paris, metido no seu uniforme azul-ferrete, peitilho branco, saltou
alegremente na rocha da Liberdade outro mancebo jovialíssimo. Esse
estava em plena voga. Um triunfador. Era o poeta adorado das mulheres. Homem de
grande fama galante. Quem era o moço glorioso? Aquele que fulgurou como
um sol: Almeida Garrett.
E
lá no continente, vexado e humilhado, perseguido como os celerados, mas
pregando alto a causa da Rainha, defendendo com uma coragem incrível a
constituição outorgada por D. Pedro, havia também um homem
gigante. Era velho. Era cego. Mas na fronte desse fantasma enramara-se a mais
soberba das coroas de louros. Quem era o homem velho e cego? Era Castilho.
D.
Pedro, na Terceira, mostrou-se duma atividade assombrosa. A ilha, num momento,
tornou-se o cérebro do constitucionalismo. Foi dali, daquele grão
de areia, que se irradiou o movimento contra D. Miguel. O arquipélago
inteiro dos Açores aderiu, instantaneamente, à causa
simpática. E viu-se então, naqueles dias de esperança e
sonho, a figura varonil de D. Pedro dirigir os trabalhos com entusiasmo de
fanático. O Duque de Bragança falava em pessoa aos soldados.
Arregimentava-os. Comandava exercícios. Fazia polir as armas.
Lançava proclamações. Corria de ilha a ilha. Incentivava.
Acutilava. Incendiava. Era uma chama viva! No meio das suas solicitudes,
entre tantos fragores, ainda teve tempo para oferecer bailes à sociedade
da Terceira. Ainda teve tempo - oh, magnífico D. Pedro! - de realizar
uma aventura galantíssima, que marca fundo o seu caráter de
romântico. Essa aventura, contou-nos Alberto Pimentel n"'A Corte de
D. Pedro IV", um dos livros mais sólidos e mais picturais que
já se escreveram sobre D. Pedro. Ei-la:
"O
próprio D. Pedro, conquanto educado numa corte que nunca pudera ter sido
escola de cavaleiros e poetas, tinha, nos Açores, gentilezas de
"galant'uomo", delicadezas de Rei Artur. Em Angra, servira de
paço real o antigo colégio dos jesuítas. O Imperador dava
partidas de jogo. Ele gostava principalmente do bilhar. De vez em quando, havia
recepção para as damas. Iluminava-se o salão nobre. D.
Pedro mostrava-se amável, lhano o com as terceirenses. Era sempre o
primeiro a romper o baile. Algumas noites, em que não recebia, ou depois
de ter recebido, saía pelas ruas, disfarçado, com o uniforme de
simples oficial, fardete de baeta azul, calça de brim. De longe o
seguiam, para guardá-lo, dois dos seus ajudantes de campo. Entrava nos
botequins. Comprava tabaco. Tomava qualquer bebida. Demorava-se escutando as
conversações, queria ouvir o que se dizia dele e da sua empresa.
Sondar a opinião pública...
* * *
"Da
Terceira, foi D. Pedro um dia ao Faial, visitar o seu "arsenal de
marinha", como ele dizia, a fim de inteirar-se do fornecimento e
equipamento da sua improvisada esquadra. Hospedou-se, na cidade Horta, no belo
solar dos Terra Bruns. O fidalgo quis sair com todas as pessoas da casa.
Deixava assim livre o palacete para maior regalo de tão ilustre
hóspede. D. Pedro, porém, obstou a esse desígnio. Convidou
o amável hospedeiro a ficar, fazendo-lhe sentir que, longe da
família, lhe seria agradável ter a companhia de outra
família, posto que estranha, dedicada.
O
morgado Terra Brun obedeceu.
Vivendo
na intimidade daquela gente, juntando-se todos à mesma mesa, o Imperador
viu logo que o morgado estimava especialmente a filha mais velha. O
aniversário natalício da moça, a vinte e dois de maio,
festejar-se-ia em breve com um baile suntuoso. D. Pedro mostrara pena de
não poder assistir ao baile. Mas os trabalhos da expedição
chamavam-no de novo à Ilha Terceira. O dono da casa mostrou ainda maior
pena e maior pesar por essa forçada ausência do Imperador. Mas D.
Pedro, depois de refletir uns momentos, disse-lhe:
-
Pois deixe estar; hei de vir de propósito.
Chegou
a noite do baile. Lembravam-se todos, com vaga esperança, da promessa do
Imperador. Infelizmente, o Imperador faltara...
Mas
eis que, pelo meio da noite, enquanto se dançava uma quadrilha, entra
pelos jardins iluminados, sobe aos salões resplandescentes,
alguém misteriosamente embuçado numa ampla capa, que lhe encobre
o rosto. Entra. Encosta-se a uma coluna. Contempla o aspecto da sala, a alegria
do baile. Quem será? Presumem todos que seja um parente, um amigo,
alguém que veio amavelmente fazer aquela surpresa. Mas o desconhecido
continua imóvel. Observa tudo e todos, sem arrancar o disfarce. Chega,
porém, um momento em que a curiosidade se impacienta. É preciso
que aquele misterioso adventício se dê a conhecer. Então,
em plena sala, diante de todos, o vulto deixa cair inesperadamente o disfarce:
e ali, com pasmo de toda gente, aparece D. Pedro, de casaca, gravata branca,
grã-cruz de Cristo a tiracolo!
-
Vê meu amigo, disse D. Pedro ao dono da casa, com um sorriso: assim
cumpre o Duque de Bragança a palavra do Imperador.
Realmente!
Para a cumprir, D. Pedro, com uma gentileza verdadeiramente cavalheiresca,
havia feito à noite, no seu iate, da Terceira ao Faial, uma viagem de
dezenove léguas!"
* * *
Assim,
com esses gestos de herói de cavalaria, moço e belo, encarnando a
grande aspiração portuguesa do momento, que era a Carta Constitucional,
D. Pedro se tornou um general popularíssimo, um dos condutores de homens
mais adorados que já viu o mundo. Aqueles sete mil voluntários
fremiam de entusiasmo. Fascina-se pelo chefe. E mal municiados, mal vestidos,
sem dinheiro, seguiam-no de olhos vendados, seguiam-no lunaticamente, nessa
aventura quixotesca de repor no trono uma menina a quem o noivo esbulhara a
coroa. E aquele exercitozinho, um belo dia, lançou aos ventos, entre
uivos de júbilo, a bandeira que a linda Maria da Glória lhe
mandara. Era uma bandeira bordada gentilmente pelas mãos da
própria rainhazinha. E aquele bando vidente enfiou-se, com uma alegria
louca, em meia dúzia de navios: lá se foi tudo aquilo, com D.
Pedro à frente, ao som do hino, desembarcar de improviso na cidade do
Porto...
V
No
dia 7 de julho de 1832, ao pôr~do-sol, tremularam em frente ao Porto as
flâmulas dos navios constitucionais. A notícia arrebentou como uma
bomba. Era uma boca só:
-
Aí vem D. Pedro! Ai vem D. Pedro!
E
foi um pânico. Durante toda a noite, na velha cidade, ouviu-se o fragor
desesperado dos fugitivos. Todo o mundo partiu, num atropelo, desabaladamente.
O primeiro que fugiu foi o Bispo. Depois, os Desembargadores da
Relação. Depois, a arraia-miúda. Depois, fulminados de
terror, os próprios soldados de D. Miguel. D.Pedro, à vista
disso, pôde desembarcar sossegadamente. O Porto tinha o ar desfeito,
murcho. E o desfilar das tropas constitucionais foi lúgubre,
entristecedor. Debalde, na Rua de Cedofeita, dos balcões vistosamente
recobertos de colchas da Índia, tombavam flores que as senhoras
constitucionais arremessavam com delírio. Debalde, enfiada na carabina
dos soldados, floria uma grande, uma risonha horténsia azul. A marcha,
pelo Porto a dentro, tinha um aspecto de luto. Os soldados desfilavam sujos,
mal vestidos, mal montados, mal dormidos. Diz uma testemunha ocular, repor
Alberto Pimentel:
"Sete
mil e duzentas baionetas eram contadas nas fileiras. Nenhum cavalo traziam para
o uso dos oficiais do Estado Maior. D. Pedro, mesmo, vinha montando num
garrano, dádiva do dia. Sua artilharia não passava de três
peças ligeiras puxadas por homens".
Havia
uma promiscuidade carnavalesca de uniformes. Uma expedição
dolorosa de exército organizado às pressas. Todos ressumavam quebreira.
"O próprio D. Pedro, na sua vil montada quixotesca, vinha
fatigadíssimo. Tinha marchado a pé toda a noite, guiando uma das
colunas do exército, a esquerda".
Arranchou-se
enfim no Porto a tropa idealista. E começou então, na vida de D.
Pedro a página épica. O sonho que o ferreteava, aquela
fortíssima ambição de vingar a filha, fez do
Bragança um dos mais fulgurantes heróis da História
Portuguesa. Ainda não se viu maior chama, nem mais férvido
entusiasmo, nem paixão mais louca. Nem houve ainda maior alegria nas
canseiras, nem maior intrepidez nos fracassos. D. Pedro foi grande, foi
grandíssimo, nessa hora incerta do Porto. A sua vida resumiu-se em
arregimentar, fortificar a cidade, trabalhar em pessoa com os soldados, vigiar
dia e noite, multiplicar-se, estar em toda parte, resolver, não dormir.
Tudo isso, todo esse prodígio de energias, circundou aquele
príncipe magnífico dum límpido clarão de
glória. Diz o interessantíssimo historiador, que vimos seguindo
neste lance:
"O
Imperador assombrava. Infatigável, madrugador, ativíssimo. Ia se
tornando, cada dia, mais popular. E desenvolvia uma operosidade prodigiosa.
Mostrava-se diligentíssimo, assistindo, dirigindo, colaborando nas obras
da fortificação da cidade. Aparecia em toda parte. Percorria toda
a extensão das linhas. Ele próprio manejava, muitas vezes, a
ferramenta do trabalho".
Toda
essa energia, esse desmedido esbanjar de forças, fazia-o D. Pedro
desataviadamente, sem complicações. Era duma simplicidade de
encantar. Lá diz o cronista: "D. Pedro fez o cerco do Porto com um
casacão, que às vezes despia, ficando em mangas de camisa para
trabalhar melhor".
E
foi assim, despejado de protocolos, metido no seu famoso casacão, a
barba crescida, que o Duque de Bragança esperou as tropas do
irmão usurpador.
* * *
Os
miguelistas eram comandados pelo General Santa Marta. Os constitucionais pelo
General Solignac, francês. Os primeiros encontros foram
desastrosíssimos para D. Pedro. Os miguelistas ganharam o combate de
Penafiel. Ganharam o combate de Porto Ferreira. Ganharam o combate da Serra do
Pilar. Tão graves desastres, tão repetidos, entenebreceram aquele
exercitozinho de utopistas. E rompeu nele o desânimo. Sentiram todos,
desde D. Pedro ao último furriel, que a empresa era demasiado
temerária. Não havia soldado, nem armas capazes de enfrentar o
poderio do rei. Foi nesta situação, neste momento de
descrença, que teve D. Pedro uma idéia salvadora: mandou buscar
Saldanha, um bravíssimo soldado, militar de gênio. Saldanha tinha
feito a guerra da Península; a campanha de Monteevidéu: vencera
Artigas; fora governador da Província do Rio Grande e recusara-se ficar
na América ao serviço de D. Pedro. Em 1820, sendo governador das
armas do Porto, é ele quem força a regência a jurar e a
proclamar a Carta. E isto com grande surpresa para a aristocracia do
País, pois que nenhum esperava que um fidalgo saísse em defesa
das concessões democráticas. Não podia D. Pedro ter
escolhido, com maior tino, um general. Saldanha seduzia pelo talento e pelas
maneiras. Era soldado guapíssimo. Era um homem de raros encantos
pessoais. O retrato que dele nos fez o pitoresco historiador, que venho
seguindo, é duma justeza de mestre:
"Saldanha
era, então, um homem de quarenta o três anos. Alto, encorpado,
gentil, com umas feições masculamente formosas. Sabia falar aos
soldados e às damas. Tão bem estava no campo de batalha como nas
salas de baile. E todos os seus dotes físicos e intelectuais, todo o seu
prestígio militar, tinha a sobredourá-los o relance do
nascimento: era, por sua mãe, um neto do grande Pombal. Entrara no mundo
pela porta da superioridade. Habituara-se a ser um homem superior em toda
parte. Aos vinte e três anos, comandava já uma brigada.
Acostumara-se a mandar e a ser obedecido. Daqui, e do seu sangue quente, muito
peninsular, os defeitos das suas qualidades".
Foi
este homem na verdade, quem fez triunfar a causa da rainhazinha
brasileira, Foi esse homem, com a sua varonilidade, com ou seus golpes de
capitão heróico, quem implantou em Portugal a carta
constitucional. D. Pedro foi o sonho, Saldanha foi a ação.
Desde
que assumiu o comando das tropas, transfigurou-se, como por sortilégio,
a sorte das armas constitucionais. O seu primeiro encontro com as tropas miguelistas
deu-se entre o Pasteleiro e o Pinhal: Saldanha desbaratou-as num pronto. Foi a
primeira vitória dos rebeldes.
Logo
após, num movimento temeroso, os miguelistas atacaram toda a linha
esquerda do Porto. Saldanha rechaçou-os soberbamente. Rechaçou-os
com tanto brilho que D. Pedro, entusiasmadíssimo, ali mesmo, no
próprio campo de batalha, promove Saldanha a tenente-general.
Os
constitucionais tiveram assim o seu segundo triunfo. E desde então,
graças a Saldanha, desencadearam-se vitórias sobre vitórias.
Aquele homem tornara-se realmente providencial. Tudo, com ele, renasceu.
Reverdeceram todas as alegrias. As esperanças todas refloriram. Foi uma
rajada de sangue novo!
Os
constitucionais, com esses júbilos fortes dentro do
coração, esperaram o combate decisivo. Foi no dia 25 de julho. O
próprio D. Miguel, em pessoa, viera ao Minho dirigir a campanha.
Aprestou-se tudo. Houve grande lufa-lufa. Ia enfim travar-se um combate de
morte. E o combate travou-se. Que coisa tremenda! É assim que no-lo
transmitiu o cronista:
"O
ataque foi realmente terrível, desesperado. "infernal",
chama-lhe um escritor. As investidas sucedem-se desde o romper da manhã.
Os miguelistas têm vantagens por momentos; mas são repelidos,
esmagados. Na linha direita, pelo Bonfim, conseguem penetrar na cidade. A
infantaria cede; retira precipitadamente. Mas Saldanha chega a tempo. Vem da
linha esquerda. Aparece por uma inspiração feliz. Não
tendo outros recursos de que lançar mão põe-se à
frente do seu estado maior e, seguido por vinte lanceiros carrega, de espada na
mão, doidamente, cegamente, sobre o inimigo. Desconcerta-o. Assusta-o.
Varre-o. Triunfa, enfim!
"Os
dois irmãos, D. Pedro e D. Miguel, assistiam ambos a essa
formidável batalha. D. Pedro, no "forte da Glória", D.
Miguel no "forte de S. Gens". Diz-se que D. Miguel, vendo a derrota
do seu exército, arremessara ao chão, com desespero, os seus
óculos de campanha. E o imperador, entusiasmado com Saldanha,
condecora-o ali com a grã-cruz da Torre e Espada".
D.
Pedro triunfara. E esse triunfo, que foi dos mais altos, teve também a
correspondê-lo um outro altíssimo feito de guerra:
O
Duque da Terceira fora mandado ao Algarve, numa expedição. E
conseguira êxitos estrondosos. As suas armas levavam tudo de
roldão. De tal forma, com tanta estrela, que as guarnições
de Lisboa, aterrorizadas, abandonaram espavoridamente a cidade. O Duque da
Terceira, à frente do seu exército, entrou com estrépito
em Lisboa: era o supremo triunfo! Estava ganha a causa da Rainha... D. Pedro
delirou. Os constitucionais deliraram. Não há palavra que pinte a
doidice do exército.
E
o Duque de Bragança, ao saber da notícia fragorosa, deixa
Saldanha no Porto. Embarca para Lisboa: entra vencedoramente na Capital. Senhor
da situação, D. Pedro instala-se no Palácio das
Necessidades. Forma o ministério. E, sem mais demora, mandou buscar a
Rainha em Paris.
* * *
A
22 de setembro de 1833 aportou, enfim no Tejo, ovacionada, apoteosada,
ídolo do povo, a mimosa rainhazinha constitucional. D. Maria da
Glória veio, acompanhada da sua madrasta, a ex-imperatriz D.
Amélia. D. Pedro, no cais, ofegante e emocionado, recebeu-a nos
braços. Recebeu nos braços, chorando, aquela por quem arriscara a
vida, os teres, a honra. Ao verem-se, ao aconchegarem-se num aperto
afetuosíssimo, o hino rompeu com fúria, estrepitosamente. E da
multidão imensa, que atulhava o cais, romperam vivas frenéticos.
Romperam vivas loucos em honra de D. Maria da Glória. A menina, com a
sua vozinha límpida, muito doce, gritou em meio daquele oceano de
berros:
-
Viva a Carta constitucional!
E
foi, no cais, um delírio. Um delírio inenarrável? Uma
apoteose!
Estava
ganha a revolução...
* * *
Mais
uns combates e o próprio D. Miguel fugia para Santarém. Mais uns
combates ainda e D. Miguel fugia para o Alentejo. Mais umas últimas
escaramuças, e D. Miguel era definitivamente escorraçado de
Portugal. Pôde, enfim, D. Pedro, culminando na glória, fazer
sentar no trono a filha. Vingou-se assim de todos os ultrajes. Teve a altíssima
felicidade de resgatar, pelo seu heroísmo quixotesco, a mais dolorosa
das injustiças que o irmão ingrato lhe havia feito. E com essa
aventura de louco, a mais bela e a mais nobre da sua vida, D. Pedro realizou
estas duas coisas formidáveis: dar a Portugal uma rainha e dar a
Portugal uma constituição.
Nada
mais justo, portanto, do que essa estátua de bronze que hoje se ergue
olimpicamente,
Graças
a D. Pedro, graças a esse visionário magnífico, D. Maria
da Glória ganhou uma coroa. Foi D. Maria II de Portugal. Foi a primeira
e única rainha brasileira.
Eis
como se passou, no Rio, o 7 de Abril:
Dentro,
no Salão Encarnado, o velho relógio de mogno bateu doze longas,
lentas badaladas. Meia-noite...
No
Paço, àquela hora morta, vai um quadro doloroso. Há pelo
ambiente tristezas enormes. D. Pedro, os braços às costas,
sisudo, passeia soturnamente pelo salão. O Imperador mostra um ar
inquieto. Erra por todo ele qualquer coisa de lúgubre. A Imperatriz D.
Amélia, sentada, numa cadeira de espaldar, o rosto fincado na
mão, tem os olhos vermelhos de chorar. Lá esta o Ministro da
França. Lá está o Ministro da Inglaterra. Lá
estão os Secretários de Estado. Ninguém ousa uma palavra.
Silêncio imenso. Apenas, nos candelabros de prata, crepitam grandes luzes
avermelhadas. Aquele crepitar põe tonalidades dramáticas na cena.
De repente, erguendo o reposteiro, o Intendente de Policia, Lopes Gama, penetra
no salão:
-
Majestade! O Major Frias acaba de chegar. Traz uma comunicação do
General Lima e Silva.
-
Que entre!
O
Major Frias entra. D. Pedro atende-o com ânsia.
-
O Campo de Sant'Ana está fervendo, Majestade! O motim que estourou
é dos mais graves. Vem aí uma deputação de Juizes
de Paz, em nome do povo, entender-se com Vossa Majestade. O General Lima e
Silva pede instruções.
E
D. Pedro, áspero:
-
Receberei os Juizes de Paz. Diga ao Lima e Silva que conserve a tropa de
prontidão. Pode ir...
O
Major Frias perfilou-se, rodou nos calcanhares, partiu desabalado. No
Salão, sob a luz vermelha dos candelabros, retombou o mesmo
silêncio. D. Pedro, as mãos às costas, continuou as suas
passadas soturnas.
Nisto,
lá fora, ouve-se um rodar de sege. Vozes. Há um rumor de gente
subindo as escadarias. O Marquês de Paranaguá murmura para o
Baependi:
-
São os Juizes de Paz.
Eram
os Juizes, de fato. Lopes Gama introduziu-os no Salão Encarnado. D.
Pedro, com grande raiva concentrada, ouviu a embaixada dos populares. Os homens
diziam isto:
-
O povo amotinou-se por causa do novo Ministério. Os homens, que V.
Majestade escolheu,. não correspondem à confiança
pública. Ninguém os quer. Eis a causa da arruaça. E o
motim avoluma-se de instante a instante. Tudo aquilo exige a mudança dos
ministros. E exige de tal forma, que, se Vossa Majestade não ceder,
poderão resultar dai conseqüências gravíssimas.
D.
Pedro sorriu um sorriso amargo. Um sorriso de desdém e cólera.
-
Os senhores voltem ao Campo de Sant'Ana e digam ao povo que não cedo. A
Constituição outorga-me o direito de escolher livremente os meus
ministros. Esses, que eu escolhi, são os da minha confiança.
Não vejo razão para demiti-los. Os senhores digam ao povo que eu
não cedo!
Levantou-se,
tomou da Constituição, leu em voz alta o artigo que lhe conferia
poderes de escolher à vontade os secretários de Estado.
-
Vejam os senhores que o povo quer invadir as minhas atribuições.
Ora, isso eu não admito. Não cedo... Podem retirar-se!
Os
Juizes ergueram-se. Fizeram uma reverência protocolar. Iam sair. Mas D.
Pedro conteve-os um instante:
-
Os senhores, no entanto, procurem sossegar o povo. Eu estou pronto a fazer tudo
"para" o povo; nada, porém "pelo" povo...
E
depois duma pequena pausa:
-
Quantas pessoas há no Campo?
Um
dos Juizes:
-
Quatro mil pessoas, mais ou menos...
O
Imperador fez um muxoxo irônico. E com desprezo:
-
Qual... Nem dois mil!
E
despediu os Juizes com um gesto.
* * *
D.
Pedro impopularizara-se terrivelmente. O homem, que a 7 de Setembro fora um
deus, tinha agora o povo, aquele mesmo povo que o apoteosara, insurgido com
fúria contra ele.
Era
funda a divergência que se abrira entre o Imperador e a opinião
pública. Na Câmara, durante as últimas sessões, viu
D. Pedro nitidamente as rajadas de oposição que se desencadearam.
Os deputados falavam com desassombro. Evaristo da Veiga e o Padre
Custódio Dias diziam as coisas claro, às escâncaras. D.
Pedro encolerizou-se. Não pôde esconder o despeito que o azedava.
Na "fala do trono", o ato oficial mais respeitável da
monarquia, a irritação do soberano veio à tona,
desmascarada. Foi assim:
O
recinto da assembléia atulhara-se de povo. Todos os diplomatas. Todos os
altos dignitários. O Bispo. Fidalgas, camareiras, grandes damas. D. Pedro
apareceu com as vistosas etiquetas do protocolo. Trazia a coroa, o cetro, o
manto imperial com o papo de tucano. No silêncio que fez, um
silêncio rígido e solene, o Imperador levantou-se. E com assombro
de toda gente, rápido e cortante, pronunciou esta célebre
"fala do trono":
"Augustos
e digníssimos senhores representantes da Nação:
Está encerrada a sessão".
E
saiu do recinto. Aquela secura chocou a todos. Foi acinte e desaforo. Os
deputados sentiram na alma o gume daquela frase. E desde então, cada vez
mais intransponível, aumentara a distância que separava o
Imperador da opinião pública. A impopularidade de D. Pedro tocou
ao limite extremo. E a causa principal desse exagero veio, por certo, daquela
velha rusga, ainda não sopitada, entre brasileiros e portugueses. D.
Pedro, depois que o irmão Miguel usurpou a coroa da sua filha Maria da
Glória, não cuidava de outra coisa senão dos
negócios do Reino. Os portugueses, perseguidos políticos,
emigravam da terra aos bandos. Numerosíssimos desembarcaram no Brasil.
D. Pedro recebeu-os com o maior agasalho. Protegeu-os. Vivia circundado por
eles. O partido português, que já era poderoso, engrossou-se
espantosamente com os recém-chegados. Prestigiou-se. Encheu-se das boas
graças do Imperador. Chegou mesmo a atiçar seriamente esta
temeridade: unir de novo Portugal e Brasil, debaixo do mesmo cetro de D. Pedro
I. Isto era fundamente inconstitucional. Isto golpeou de morte o melindre dos
nacionais. Toda gente ergueu-se então contra D. Pedro. Não houve
mais brasileiro que visse com bons olhos a causa do Imperador. Um desgosto
geral. Foi nestas aperturas que D. Pedro pensou atenuar um pouco a sua
impopularidade. E sua Majestade partiu para Minas numa viagem que fez
época.
Viu
o soberano, nesse peregrinar pelos rincões daquelas serras, as
desabusadas antipatias que criara. Os mineiros receberam-no com uma frieza
altamente significativa. Não houve charangas, nem foguetes, nem arcos.
Uma indiferença afrontosa em toda parte. Numa cidade, ao entrar o augusto
itinerante, chegaram os sinos dobrar a finados.
D.
Pedro assistiu
Sua
Majestade voltou para a Corte desapontadíssimo.
No
entanto, com inabilidade espantosa, apareceu em público, logo
após o seu retorno, circundado ostensivamente por uma corte de
portugueses. Isso irritou sobremodo os ânimos. Planejou-se, então,
uma frisante demonstração de desagrado. Ia-se comemorar o
aniversário da outorga da Constituição. Os liberais
prepararam um Te-Deum suntuoso. Houve, para tal fim, grande
subscrição popular. O Rio inteiro movimentou-se. O Te-Deum
tornou-se o acontecimento máximo. Os Chefes do movimento, muito
propositadamente, não convidaram o Imperador para assistir a ele.
Não convidaram um único ministro. Não convidaram uma
só pessoa do mundo oficial. D. Pedro sentiu bem o desacato. Mas imaginou
logo, velho temperamento romântico, reconquistar as simpatias da
opinião com um daqueles seus gestos teatrais, gestos que inflamavam a
imaginação da massa. E que é que fez? Isto:
Foi
no momento exato em que o Te-Deum ia principiar. A Igreja transbordava. O povo
acotovelava-se dentro da nave. E eis que D. Pedro, inesperadamente seguido pela
Imperatriz, ladeado por todos os ministros, surge dramaticamente
Grande
pasmo! Toda gente abriu a boca! Era incrível. Mas uma voz, quebrando a
surpresa, reboou forte:
-
Viva a Constituição!
D.
Pedro murchou. Pensava o Imperador que a sua presença arrancaria vivas
delirantes. Que a sua chegada imprevista faria desencadear um tufão de
aplausos. Mas qual! Prorrompeu, de todo o lado, este grito único:
-
Viva a Constituição!
D.
Pedro respondeu apenas:
-
Eu sempre fui constitucional.
Mas
outra voz, destemerosa e vibrante, reboou pela Igreja:
-
Viva D. Pedro II!
D.
Pedro gelou. Aquele viva era mais que desprestígio: era quase insulto
à sua pessoa. E um turbilhão de brados irrompeu
ensurdecedoramente:
-
Viva D. Pedro II!
O
Imperador, confuso, mal pôde balbuciar:
-
Ainda é muito criança...
Virou
as costas e saiu. Falhara o golpe dramático... Não restava
dúvida alguma: D. Pedro impopularizara-se definitivamente.
É
justamente, nesse instante, na efervescência dos descontentamentos, que
teve o monarca a idéia desastrada de despedir o ministério.
Substituiu-o, no 6 de abril, por homens escolhidos entre a "aristocracia
titular". Eram eles: Paranaguá, na Marinha; Baependi, na Fazenda;
Inhambupe, no Império; Aracati, nos Estrangeiros; Lages, na Guerra;
Alcântara, na Justiça.
Este
gabinete foi a gota dágua. Com ele, transbordou a ira popular:
ninguém aceitou os "fidalgos do ministério"! Todas as
classes e todos os partidos, deputados e jornalistas, militares e padres,
letrados e burgueses, liberais e conservadores, tudo se rebelou contra a escolha
de D. Pedro.
Eis
porque, naquele dia, fervilhava o motim no Campo de Sant'Ana.
* * *
Quando
os Juizes de Paz tornaram com a resposta do Imperador, já a
multidão tinha tomado atitudes desbragadas e ameaçadoras. E com
razão. Não se tratava mais, naquele instante, dum reles motim de
arraia-miúda. Não! O movimento engrossara temerosamente: o
exército, o próprio exército, irmanara-se com o povo.
Vários batalhões haviam marchado para o Campo de Sant'Ana.
Unira-se já aos insurgentes o primeiro corpo de artilharia. E
também o segundo. E também a companhia dos granadeiros. Um
perigo! Pela praça, sacudindo-a, estrondavam gritos desabalados:
-.
Abaixo o Ministério! Abaixo o Ministério!
Toda
a ralé do Saco da Gamboa bramia solta. Desembocavam a todo o instante
bandos de capoeiras. Havia magotes deles, armados de grandes trabucos, que
formavam grupos temerosos, a que o povo apelidara de centúrias. Havia a
centúria do "Girão", um mulato atarracado e vesgo.
Havia a centúria do "República", um pardo
facínora, habilíssimo na navalha. Havia a centúria do
"Lafuente", um espanhol da Catalunha, mal encarado, tremendo matador
de gente. E a choldra, entreverada com os soldados, cônscia do apoio da
tropa, uivava sem cessar:
-
Morra D. Pedro! Abaixo o Ministério!
O
General Lima e Silva compreendeu a gravidade daquilo. A
co-participação da força nos desatinos dos patriotas dava
ao motim uma autoridade impressionante. Que fazer? Lima e Silva despachou
novamente o Major Frias ao Paço.
D.
Pedro, dentro do Salão Encarnado, continuava naquela mesma
situação dolorosa. Andava em tudo a mesma tristeza. O mesmo
silêncio acabrunhador. Os ministros tinham o aspecto desolante. A
Imperatriz, de quando em quando, levava o lenço aos olhos.
Ninguém pronunciava palavra. De repente, com estrondo, o Intendente de
Policia entrou esbaforido:
-
A guarda do Paço partiu para o Campo de Sant'Ana!
-
Que diz? A guarda do Paço?
-
Sim, Majestade. Partiu para o Campo! O "Batalhão do Imperador"
também. Foram todos se unir aos amotinados...
D.
Pedro estremeceu. Aquela notícia doeu-lhe como uma punhalada. Todos os
circunstantes ouviram-na, estupefatos. Que situação lancinante!
Nisto,
no silêncio que retombou, aparece bruscamente o Major Frias. O Imperador
corre a recebê-lo. Sua Majestade agora está agitadíssimo:
-
Que há, Major?
O
Major Frias desanda num escachôo:
-
O Campo de Sant'Ana está negro de povo. Fervem berreiros loucos. Os
patriotas açulam o povo. Todos exigem a queda do Ministério. Para
remate disso é preciso que V. Majestade saiba - o primeiro
batalhão de artilharia já se uniu aos revoltosos...
-
O primeiro batalhão?
-
O primeiro e o segundo. Mais ainda: os granadeiros vieram em massa apoiar o
motim. E agora, ao vir para aqui, topei em caminho com o batalhão do
Imperador marchando para o Campo... O General Lima e Silva manda comunicar a
Vossa Majestade que a situação se tornou amendrontadora. O
general diz que, para apaziguar a fervedura, Vossa Majestade precisa demitir o
ministério...
D.
Pedro ouviu. Aquilo lancetou-o. E Sua Majestade, com um gesto áspero:
-
Demitir o ministério? De forma alguma! Isto seria contra a Constituição;
isto seria contra a minha honra. Antes abdicar... Antes a morte!
Palavras
candentes, na verdade; palavras magníficas para um Imperador que tivesse
milhares de baionetas a ampará-lo. Mas ali, àquela hora, naquele
momento negro, aquelas palavras bravias não resolviam nada. E era
preciso resolver. O Major Frias pediu uma resposta. Como decidir? O Imperador
pôs-se a passear. Ia-lhe na alma uma tormenta. Estava
abatidíssimo. De súbito, estacando, chamou o Intendente de Polícia.
Lopes Gania acudiu pressuroso.
-
Vá à cidade, Sr. Lopes Gama; vá à cidade a toda
pressa, procure-me o Senador Vergueiro. Procure-o por toda parte. Traga-me o
Senador aqui imediatamente.
Lopes
Gama partiu às correrias. E o Imperador, virando-se para o Major Frias:
-
Espere aí. Quando o Vergueiro chegar, darei a resposta definitiva...
E
caiu de novo, naquele salão lúgubre, um silêncio de morte.
Apertava a todos a mesma angústia. Os ministros mostravam-se sucumbidos.
A Imperatriz chorava. D. Pedro, as mãos às costas, o cenho franzido,
continuava a passear tragicamente. Transcorreram-se assim duas horas. Duas
longas horas, infinitas horas. Duas horas dolorosíssimas de viver. Ao
fim delas, já todos impacientíssimos, entra o Intendente de
Policia. Os palacianos acolheram-no ansiadamente. E o Imperador:
-
Onde está o Vergueiro?
-
Não foi possível encontrá-lo, Majestade! Entrei por toda
parte, entrei em todos os clubes; corri tudo, Majestade, tudo: não
há quem saiba do Senador Vergueiro!
D.
Pedro compreendeu. Vergueiro seria o único homem, naquela hora, capaz de
organizar um ministério popular. Mas o Senador, pelo que acabara de
ouvir, parece que se escondera cautelosamente.
D.
Pedro teve então, naquele lance, o momento supremo da sua vida.
Pôs-se, de novo, a andar agitado. Fazia gestos. Dizia palavras soltas.
Às vezes, com o olhar febrento, olhava estranhamente para a Imperatriz.
De repente, muito agitado, chegou-se até o varadim do salão.
Lançou um olhar pelo parque afora... Tudo deserto! Nem um soldado! D.
Pedro teve um assomo de raiva. Recolheu-se. Atravessou o salão
nervosamente. O ministro da França e o ministro da Inglaterra
seguiram-no. Encerram-se os três na câmara contígua. Foram
dez minutos de espera, de palpitação. Que estaria resolvendo o
Imperador? Mas eis que a Porta se abre. E D. Pedro surge. Sua Majestade tem os
cabelos desordenados, uns olhos que saltam. Sua Majestade traz na mão
uma larga, folha de papel. D. Amélia, ao vê-lo, ergue-se
assustada:
-
Que é isto?
D.
Pedro, estendendo-lhe o papel:
-
Leia!
A
Imperatriz lê:
"Usando
do direito que a Constituição me concede, declaro que hei mui
voluntariamente abdicado na pessoa do meu muito amado e prezado filho o Sr. D.
Pedro de Alcântara. Quinta da Boa Vista, em 7 de abril de 1831, 1O.o da
Independência e do Império".
A
abdicação! D. Amélia mal acredita no que lê. O
coração bate-lhe desordenado. Aquilo é gravíssimo!
E a Imperatriz tomba sobre a cadeira, arrasada. As lágrimas
arrebentam-lhe dos olhos aos borbotões. D. Pedro toma-lhe o papel e
passa às mãos do Major Frias. Todos, perplexos, olhos
escancarados, ouvem do Imperador esta coisa enorme:
-
Major, eis aqui a minha abdicação. Pode levá-la ao povo.
Desejo que sejam felizes! Retiro-me para a Europa e deixo o país que
tanto amei e amo...
E
D. Pedro, com um gesto brusco, despede o Major Frias. Há um momento de
estatelamento. Ninguém sabe o que fazer. Mas nisto, recobrando-se,
Paranaguá brada para Lopes Gama:
-
Senhor Intendente! Corra ao Major Frias, traga-o para aqui, vamos protelar ao
menos até amanhã essa abdicação...
Lopes
Gama precipita-se à cata do mensageiro. Alcança-o no
pátio, montando a cavalo. Mas o Imperador, assomando ao varandim, grita
com a mais categórica autoridade:
-
Deixe-o ir, Senhor Lopes Gama! Deixe-o ir!
O
Major Frias, diante da ordem, parte a todo galope. Dentro em pouco, no Campo de
Sant'Ana, os amotinados recebem, estuporados, a notícia fulminante.
Pediam os insurgentes uma simples mudança de ministério:
tomba-lhes de improviso a abdicação do Imperador. Ficou tudo
bestificado!
II
Enquanto
o Major Frias, esporeando o cavalo, trotava num galope solto a caminho do campo
de Sant' Ana, D. Pedro fez partir um mensageiro urgente ao Almirante Baker. O
Imperador mandava-lhe pedir agasalho a bordo da nau inglesa
"Warspite", ancorada no porto. O homem saiu desabalado.
D.
Pedro, ao depois, apertou nervosamente a mão aos ministros e aos
diplomatas. Não disse uma única palavra. Recolheu-se precipitado
aos seus aposentos.
Então,
dentro do Paço, foi uma correria. Aprestos vertiginosos. As retretas
abriam as malas, afobadas. Os moços da câmara empacotavam a
baixela. A camareira-mor enchia duas vastas caixas de xarão com as
jóias da Imperatriz.
D.
Amélia, por seu turno, chorava sempre. E abancada à sua
secretária, com os olhos vermelhos, sufocando os soluços,
escrevia uma carta agitada. Enquanto isso, no seu quarto, D. Pedro abria
maços de documentos. Lia-os. Rasgava uns; colecionava outros. Esse
trabalho durou até pela manhã. Eram mais de cinco horas quando o
mensageiro voltou. D. Pedro recebeu-o:
-
Que disse o inglês?
-
Está tudo prestes Majestade! A nau "Warspite" tem ordens para
receber a família imperial.
-
Nesse caso, tornou D. Pedro, resoluto, vamos partir já. Vamos aproveitar
a hora para não alarmar a cidade. Mande preparar os coches...
O
homem partiu a cumprir as ordens. D. Pedro ficou só. Foi nesse instante
que o Imperador, muito chocado, o coração aos saltos, penetrou
devagarinho no quarto do príncipe herdeiro. Que cena tocante! O menino
dormia na sua cama, dourada, sob o dossel de damasco rosa. Todo ele era
inocência e graça. Muito gordanchudo, muito corado, o pequenino
Imperador do Brasil repousava entre fofezas, todo aninhado, doce como um
passarinho.
Junto
à cama, austera e grave, a Condessa de Belmonte, D. Mariana Carlota
Verna de Magalhães, velava o dormitar do pequerrucho. A preceptora de D.
Pedro II estava fundamente acabrunhada. Os acontecimentos conturbaram-na. E ao
ver entrar o Imperador, ali, àquela hora, a camareira ergueu-se,
surpresa. D. Pedro, pé ante pé, aproximou-se da cama. Olhou o
filho. Viu-o resfolegar tão descansado! Contemplou, com o
coração golpeado, aquela criaturinha galante, aquele anjo de
cinco anos, fino e trigueiro, em cuja fronte cintilava, desde há pouco,
a coroa do Brasil...
D.
Pedro, fora sempre, em todos os transes, um pai modelarmente bom,
terníssimo. Sentiu, naquele momento, o coração
confranger-se-lhe no peito. Naquela hora mais do que nunca, sentiu o pai
amoroso a crueza da despedida. Aquele adeus rasgava-lhe a alma como um punhal.
D. Pedro contemplou longamente o menino, longamente... Não teve coragem
de acordá-lo! Curvou-se de manso, muito ao de leve: e pôs-lhe na
carinha vermelha um beijo de fogo. As lágrimas jorram-lhe dos olhos,
grossas e queimantes. Um acesso de choro, um explodir de soluços,
sacudiu nervosamente o monarca. D. Pedro não pôde mais: saiu
às tontas, cambaleante, do quarto do principezinho...
No
mesmo instante, furtiva, em lágrimas, D. Amélia também
veio despedir-se da criança. Entrou. Beijou-a na face. Fitou-a com
ânsia. Depois, muito macia e tímida, depositou sobre o travesseiro
uma carta. Era a sua despedida. Nela, em ternuras longas, a madrasta dizia um
adeus cruciante ao frágil monarcazinho: "Adeus, órfão
imperador, vítima da tua grandeza antes que a saibas conhecer! Adeus,
anjo de inocência e de formosura! Adeus! Toma este beijo, e este, e mais
este... e este último! Adeus para sempre! Adeus!"
Dentro
em pouco, no lusco-fusco da manhã, descia as escadarias de São
Cristóvão o Senhor D. Pedro de Alcântara. Seguia-lhe os
passos a Senhora D. Amélia. Vinham sem corte. Não quis D. Pedro
que os criados o acompanhasse. Timbrou em sair solitário do Paço.
E na manhã bruxoleante, fúnebres e trêmulos, os dois vultos
subiram ao coche. Ouviu-se um áspero ranger de rodas. Os cavalos
arrancaram...
E
foi assim que os nossos primeiros Imperadores, abandonados e destronados,
partiram do Brasil, rumo do seu exílio.
* * *
Naquele
instante carrancudo, no instante da máxima desdita, ao ir-se para o
desterro, um pensamento empolgava D. Pedro: qual seria o homem capaz de dirigir
os destinos do seu filho? Qual seria, no Brasil, o homem capaz de ser
tutor do Imperador pequenino? De ser o pai daquela criança de cinco
anos?
D.
Pedro passou e repassou, no cérebro esbraseado, os nomes dos seus
amigos. Analisou-os. Balanceou-lhes as qualidades morais. E D. Pedro, naquele
desfile, não encontrou, entre tantos antigos servidores, um só
que lhe parecesse à altura de tão magnífica responsabilidade.
Mas eis que, dentro da sua consciência, surge repentinamente a figura dum
homem. É a figura dum velho, figura olímpica e majestosa... Este,
sim, este era digno de ser o tutor da criança. Este, sim, era digno de formar
o coração do Imperador. Quem era? Aquele mesmo que um dia o
Imperador fechara no cárcere imundo da fortaleza de Santa Cruz. Aquele a
quem o Imperador, um dia, enxotara impiedosamente da Pátria: era
José Bonifácio!
D.
Pedro não hesitou. Escreveu ao seu velho inimigo uma carta imorredoura,
uma carta que honra a quem a traçou e a quem a recebeu. Dizia assim:
"A
José Bonifácio de Andrada e Silva. Amicus certus in re incerta
cernitur. É chegada a ocasião de me dar uma prova de amizade,
tomando conta da educação do meu muito amado e prezado filho, seu
Imperador. Eu delego em tão patriótico cidadão a tutoria
do meu querido filho e espero que, educando-o naqueles sentimentos de honra e
de patriotismo com que devem ser educados todos os Soberanos para serem dignos de
reinar, ele venha um dia a fazer a felicidade do Brasil, de que me retiro
saudoso. Eu espero que me faça este obséquio, acreditando que, a
não mo fazer, eu viverei sempre atormentado. Seu amigo constante,
Pedro".
Com
a carta, ia o decreto de nomeação. Entre outras coisas, assim se
expressava o decreto famoso:
"Hei
por bem, usando do direito que a Constituição me concede no
Capitulo 5.o artigo 130: Nomear como por este Meu Imperial Decreto nomeio,
Tutor de meus amados e prezados Filhos, ao muito Probo, Honrado e
Patriótico Cidadão José Bonifácio de Andrada e
Silva, meu verdadeiro amigo".
No
instante doloroso, na hora áspera da desgraça, viu D. Pedro que o
seu verdadeiro, o seu único amigo, o "Cidadão Probo, Honrado
e Patriótico", estava ali no adversário de ontem. Estava no
inimigo que ele desterrara sem dó. O grande, o digníssimo
Andrada, lá no seu pobre retiro, ao receber a carta honrosa, havia de
sentir, bem dentro do coração, um estremeção de
legitimo orgulho: aquilo era a paga mais fulgurante à sua nobre
existência de honradez. Aquilo era a suprema vitória. Era o louro
da sua velhice.
* * *
Alguns
dias passou o Imperador a bordo da Warspite. Daí dirigiu uma
vasta proclamação aos brasileiros, explicando-se. Daí
escreveu vários ofícios ao Marquês de Caravelas,
regularizando os seus negócios financeiros com o Império.
Daí mandou uma enternecedora carta de despedida aos seus amigos. D.
Pedro separava-se deles com pungentes mágoas:
"Eu
me retiro para a Europa, saudoso da Pátria, dos filhos e de todos os
meus verdadeiros amigos. Deixar objetos tão caros é sumamente
sensível, ainda ao coração o mais duro. Mas
deixá-los para sustentar a honra, não pode haver maior
glória. Adeus para sempre! Bordo da nau inglesa "Warspite", 12
de abril de 1831. - D. Pedro de Alcântara de Bragança e
Bourbon".
Naqueles
dias, antes de partir, teve ainda D. Pedro, a bordo, a mais bela e a mais
dilacerante das alegrias: recebeu uma carta do filho. D. Pedro II fora duma
precocidade notável. Aos cinco anos já começara a
escrever. Por isso, com gentileza comovedora, o imperadorzinho garatujara
algumas linhas de despedida ao pai que partia. Não há o que conte
a dor de D. Pedro. Aquelas letras, desajeitadas e grossas, anavalharam-lhe o
coração.
E
respondeu assim ao menino:
"Meu
querido filho e meu Imperador. Muito lhe agradeço a carta que me
escreveu. Mal a pude ler. As lágrimas eram tantas, que me impediam o
ver. Agora, que me acho, apesar de tudo, um pouco mais descansado, faço
esta para lhe agradecer a sua e certificar-lhe que, enquanto vida tiver, as
saudades jamais se extinguirão em meu dilacerado coração.
Deixar filho, pátria e amigos, não pode haver maior
sacrifício; mas levar a honra ilibada, não pode haver maior glória!
Lembre-se sempre de seu pai. Ame a sua e minha pátria. Siga os conselhos
que lhe derem aqueles que cuidarem da sua educação e conte que o
mundo o há de admirar, e que eu me hei de encher de ufania por ter um
filho digno da pátria. Eu me retiro para a Europa; assim é necessário
para que o Brasil sossegue, e para que, permitindo Deus, possa para o futuro
chegar àquele grau de prosperidade de que é capaz. Adeus meu
amado filho! Receba a bênção de seu pai, que se retira
saudoso e sem mais esperança de o ver. - D. Pedro de Alcântara,
Bordo da Nau Warspite, 12 de abril de 1831".
Vários
dias ainda demoraram-se os ex-Imperadores a bordo da Warspite. Dai, por
conveniência da viagem, transferiram-se para a corveta Volage. A
Senhora Dona Maria da Glória acompanhou o pai. A rainhazinha de
Portugal, embarcou na nau francesa
O
embarque dos imperadores, assim como a transladação da Warspite
para a Volage, assim como a estadia no porto, foram sempre
rigorosamente garantidas pelo governo da regência. Não houve um
só desacato. Não houve embaraço algum às pessoas
imperiais. O governo agiu com a maior dignidade. Tanto e de tal forma, que os
comandantes das forças navais da França e da Inglaterra dirigiam
conjuntamente ao Ministro dos Estrangeiros, uma carta que honra. Ei-la:
"Monsieur. Les oommandants des forces navales, soussignés,
aprés avoir acoompli le grand acte d'hospitalité, anquel les
circonstances les appelaient, croient de leur devoir de vous exprimer leur
reconnaissance pour les facilités qu'ils trouvés prés ont
du nouveau gouvernement brésilien, et pour la modéraiton pleine
de noblesse, que ce gouvernamente n'a cessé de montrer, durant
l'operation et l'embarquement de Leurs Magestés. Ils vous prient en outre,
Monsieur, de vou loir bien agréer l'assurance de leur baute
considération. - J. Grivel, W. Baker, Rade de Rio de Janeiro, le 14
avril 1831
A
catorze de abril, enfim, as naus levantaram ferro. À frente, singrava a Volage.
Seguia-a a
Atrás,
por uma galantaria do governo, uma nau brasileira. Era a Amélia.
Ia comboiando os Imperadores até saírem a barra.
D.
Pedro encosta-se à amurada da corveta. E contemplava, com olhos
enevoados, a terra que se ia perdendo na distância. Lá estava,
lá ao longe, apagando-se, o Império que ele criara na América...
Foi então que duas lágrimas, bem grossas e bem sentidas,
despencaram dolorosamente dos olhos do soberano. Tinha razão o
moço destronado. Nada mais justo do que esse sentido despencar de
lágrimas: aquele olhar, turvo de pranto, era o último olhar que
Sua Majestade lançava ao Brasil
O FIM
24
de setembro de 1834. Palácio de Queluz. Sala "D. Quixote".
Num
largo leito de carvalho, sob o dossel de damasco franjado, agoniza um homem
escaveirado, a barba crescida... É D. Pedro I.
Junto
dele, sufocando os soluços, uma elegantíssima mulher tem os olhos
vermelhos de chorar. É D. Amélia. Num canto, o rosto fincado na
mão, o lenço nos olhos, uma rapariga loira, muito leve, muito
fina, chora convulsamente. É D. Maria II, Rainha de Portugal.
No
velho Paço, dentro daquele ambiente lúgubre sob o crepitar
mortiço dos candelabros de prata, morre o fundador do Império do
Brasil. Morre, no mesmo quarto onde nasceu, aquele que desagrilhou a Terra de
Santa Cruz.
Que
é que matou D. Pedro I? Tanta coisa...
* * *
O
moço Bragança repusera a filha no trono de Portugal. Foi a grande
epopéia de sua vida. Foi a sua página belamente heróica.
Vitória magnífica, vitória que custara jorros de sangue,
esse triunfo, no entanto, empalidecera logo: os portugueses tiveram para com D.
Pedro IV a mais áspera das ingratidões. Senhor do trono, tendo
já esmagado os seus inimigos, o primeiro ato de D. Pedro assinalou-se
por uma nobreza marcante. Sua Majestade, com largueza magnânima, mandou
lavrar dois decretos que o nobilitam: concedeu anistia ampla a todos os
vencidos; suspendeu o odioso seqüestro, que então se praticava, dos
bens particulares dos inimigos. Esta generosidade do soberano, que diz
tão alto do seu espírito, irritou os liberais fanáticos.
Os partidários de D. Pedro magoaram-se com tão largo
perdão. Queriam todos a pulverização dos miguelistas,
vinganças atrozes, desforras de saciar. O ato do imperador acirrou
despeitos fundos. E os constitucionais (quase nem se acredita!) levantaram-se
em massa contra o seu grande herói.
Foi
no Teatro de S. Carlos. D. Pedro, apesar de doente, timbrara em assistir ao
espetáculo de gala. Torrenciosa multidão de exasperados atulhava
o Rocio. A carruagem real, tirada a quatro, varou por aquela onda formigante.
Nisto, em meio da turba, irrompeu uma assuada tremenda... Era a vaia! Uma vaia
estrondejante, arrasadora. Sob os gritos, debaixo de assobios, as
vidraças do coche espatifaram-se de súbito: a multidão
apedrejava o seu ídolo! D. Pedro sentiu nos cochins da carruagem, aquela
saraivada de pedras e de lama que a populaça arremetia com
estrépito. O Duque de Bragança indignou-se! Mas não era
homem para recuar. D. Pedro nunca recuou na vida. E gritou para o cocheiro:
-
Toque!
O
cocheiro tocou. Os cavalos romperam fogosamente pela massa. D. Pedro saltou no
teatro. Entrou impavidamente. Mas quando, no camarim real, Sua Majestade,
pálido e ofegante, apareceu diante daquela assistência bravia,
irrompeu de todas as bocas, novamente, assustadoramente, uma vaia mais cruel,
mais fragorosa. D. Pedro, os olhos chispantes, não pôde se conter.
E gago de cólera:
-
Canalhas!
A
multidão, ouvindo o apodo, prorrompeu
-
Fora! Fora!
Sobre
o camarim real, por acinte, chovem patacos, moedinhas de prata, vinténs,
todo o achincalhamento. D. Pedro, de pé, extremamente pálido,
treme... E eis que, num momento, o Imperador sente qualquer coisa de estranho,
qualquer coisa de quente subir-lhe a garganta. Leva rapidamente o lenço à
boca. E o povo, que o pateia, vê, com assombro, um jacto vermelho
borbotar na boca do Imperador... É uma hemoptise. Grande pasmo! Novo
jorro espumeja-lhe no lenço. A vaia pára. Mas D. Pedro, com
supremo esforço, o gesto brusco, grita para o maestro:
-
Música!
O
maestro obedece. Rompe a música. E D. Pedro assiste, até ao fim,
à representação no Teatro São Carlos.
* * *
D.
Pedro aparentava uma saúde de ferro. Mas era só a
aparência. Conta Alberto Pimentel:
"Durante
o cerco do Porto, todos os antigos sofrimentos agravaram. Repetiram-se com
maior freqüência as recrudescências epáticas. D. Pedro
tivera algumas vezes febre, prostração, dor no hipocôndrio
direito. Também, estremeções ao acordar. O edema nos
pés era um mau sintoma, em que os médicos repararam. Nos
últimos dias do Porto, D. Pedro, como vimos, andava mais adoentado; mas
a alegria de vir para Lisboa fê-lo reanimar, esquecer-se de si mesmo. Em
novembro de t833, o imperador, resfriando-se ao passar de Lisboa para Almada,
foi acometido duma bronquite com febre. Mais convalescido, teve de ir ao
Cartaxo. Constipou-se novamente. Na expectoração, apareceram
alguns laivos de sangue".
Essa
natureza doentia, portanto, foi enormemente brechada pelas
agitaçôes do Brasil e pelas imensas energias gastas no cerco do
Porto. Tem razão o distinto historiador em ponderar: "Tantos
trabalhos e canseiras, tantas dúvidas e incertezas, as amarguras
curtidas no Brasil, especialmente durante os tormentosos dias de abril de 1831,
os sobressaltos da peregrinação pelas cortes de Londres e Paris,
a discórdia entre os emigrandos, a violenta linguagem de alguns deles, a
penosa organização do exército e, mais que tudo, o rude e
longo cerco do Porto gastaram a vida, facilmente impressionável, de D.
Pedro IV"
Não
há que duvidar. Eis a dura verdade: a vitória da filha arrancou-lhe
a vida. O triunfo matou-o. Durante aqueles minguados meses em que governou
Portugal, na qualidade de regente da rainhazinha, os dias de D. Pedro
esvaiam-se gota a gota. E foi um peregrinar de palácio a palácio,
um buscar de ares sadios, um correr por sítios pacatos e repousantes.
Até que um dia, revigorado por inédita, imprevista rajada de
entusiasmo, D. Pedro quis ver o Porto. Quis ver, ao lado da filha, sua rainha,
a cidade fiel que fora o cenário da sua glória. E embarcou, numa
viagem de gala, a relembrar os sítios dos seus altos feitos.
O
Porto delirou em receber a pequena rainha constitucional. Toda a cidade
embandeirou-se. Flores juncando as ruas. Colchas da Índia tombando das
varandas. Todas as casas enfeitadas de bandeirolas. Arcos de triunfo. E por
toda parte:
-
Viva D. Maria II!
-
Viva D. Pedro IV!
Diz
o historiador: "D. Maria II era nessa hora o enlevo dos olhos dos
constitucionais do Porto, que pela primeira vez a viam. A família real
entrou a cavalo. A rainha trajava de amazonas: vestido de pano azul com a gola
e o peitilho bordados a ouro; chapéu alto, à inglesa, de
pelúcia preta e pendendo dele um véu de gaze de seda verde;
colarinhos virados, gravatinha azul clara. D. Mana da Glória, sem ser
bela, era uma graciosa figurinha de princesa de raça. Muito elegante, a
cabeça altiva, tez branca e fina, uma maciez de cetim. Ao aspecto
senhoril, realmente superior à sua idade, aliava a vivacidade
própria dos seus anos".
Durante
dez dias, a família real viveu
* * *
Daí
em diante, a saúde do Duque de Bragança descambou
vertiginosamente. Teve que deixar Lisboa e correr à busca das Caldas da
Rainha. Quase não suportou a viagem, tão débil estava. Mas
foi tudo em vão! Caldas da Rainha não lhe tonificaram o sangue.
Voltou para Lisboa. Em Lisboa quedou-se no Palácio de Queluz.
Começa
o fim. É Alberto Pimentel quem o pinta:
"Em
Queluz, tudo faz supor que o termo da existência do imperador não
pode vir longe. D. Pedro passa as noites muito inquieto; a dispnéia
aumenta. Ao romper da manhã, o doente dorme alguns momentos, poucos.
Durante o dia, limita-se a receber na sua câmara, com visível
fadiga, os ministros, a infanta D. Isabel Maria, e alguma outra pessoa mais
íntima".
D.
Pedro compreendeu que ia morrer. E preparou-se então para a hora
suprema. Mandou chamar o notário e ditou as disposições de
última vontade. Mandou chamar o Bispo, confessou-se e comungou. E enfim,
num arranco de vida, tracejou de seu próprio punho uma carta ao
parlamento, afastando-se dos negócios públicos. Assim:
"Senhores
Deputados da Nação Portuguesa! Sempre franco e fiel aos meus
juramentos, e obedecendo à minha voz de consciência, vou
participar-vos que, tendo ontem cumprido os deveres de filho da Igreja
Católica e de pai de família, julgo também do meu dever
participar-vos que o mesmo estado de moléstia, que ontem me ditou
aquelas resoluções, me inibe de tomar conhecimento dos
negócios públicos, em cujas circunstâncias vos peço
queirais prover de remédio. Eu faço os mais ardentes votos ao
Céu pela felicidade pública. Palácio de Queluz, em 18 de
setembro de 1834. D. Pedro, Regente".
O
parlamento resolveu facilmente o caso: declarou D. Maria da Glória
maior, a fim de reconhecê-la como rainha de Portugal. D. Maria II, nessa
hora, assumiu de fato a realeza. Tinha quinze anos. A brasileirinha, nesse
mesmo dia, presidiu ao Conselho. A energia com que se portou, a áspera
firmeza de suas resoluções, revelaram logo a mulher de fibra que
havia naquela estranha boneca loura.
No
entanto, dentro da sala D. Quixote, o imperador agonizava. Foi uma cena
desolante. D. Pedro chamou a imperatriz D. Amélia. Abraçou-a
longamente... E ali, com pormenorizadas minúcias, recomendou-lhe os seus
amigos. Não se esqueceu dum só. Recomendou-lhe, mais, um a um,
todos os seus filhos. Nem omitiu a Duquesa de Goiás, nem Rodrigo Delfim
Pereira, nem Pedro de Alcântara Brasileiro... E chorava. D. Amélia
também chorava. Todos choravam.
Depois,
quis ver a rainha. D. Maria da Glória velo, pequenina e trêmula.
D. Pedro beijou-a mil vezes. Apertou-a muito ao peito. Não disse uma
única palavra. Enfim, muito chocado e muito doce, chamou o Duque da
Terceira, seu velho general. Despediu-se dele comovidamente.
O
velho Duque não podia se reprimir: as lágrimas jorravam-lhe dos
olhos aos borbotões. D. Pedro murmurou:
-
Vou morrer; mas, para morrer contente, meu caro Duque, eu quero ver um soldado
do Porto. Um daqueles bravos do cerco...
O
Coronel Pimentel saiu às pressas à cata de um soldado do Porto.
Encontrou a Manuel Pereira. Era o 82 da segunda companhia. Trouxe-o até
ao Paço. D. Pedro, no leito, recebeu-o com ternura. Tomou-lhe as
mãos. Apertou-as. Abraçou-o. O 82 tremia...
D.
Pedro, ofegante, disse-lhe apenas:
-
Transmite este abraço aos teus camaradas... É a minha
última lembrança!
Conta
o historiador: "O 82, curvado e trêmulo, chorava como qualquer
criança. Parecia chumbado ao chão, sem poder mover-se. Foi
preciso tirá-lo dali, levando-o pela mão, como se fora um cego.
Por muito tempo, Manuel Pereira ficou padecendo ataques nervosos, devidos
à comoção desse dia".
* * *
Começou,
então a agonia. Durante três dias, naquela fúnebre sala D.
Quixote, foi um morrer doloroso, devagarinho...
Mas
os negócios públicos não estacionaram. D. Maria da
Glória, numa sessão fulgurante do parlamento, foi reconhecida solenemente
como rainha. Jurou a Constituição. Recebeu a coroa e o cetro. Ao
voltar da sua apoteose, ainda toda refulgente da glória, a rainhazinha
encontrou o pai a morrer. Estava nos últimos lampejos. Então,
naquele momento supremo, a pequenina D. Maria II assinou rapidamente o seu
primeiro decreto: era um decreto conferindo a D. Pedro a grã-cruz da
Torre e Espada.
A
Torre e Espada, ordem velhíssima, D. Pedro a reformara no Porto para
"premiar o valor, a lealdade e o mérito dos soldados".
A
menina coroada entrou no quarto do pai. Estava nos estertores aquele que
bravamente a colocara no trono. Estava morrendo o mais duro soldado do cerco do
Porto! A linda criaturinha circundou-lhe galantemente o pescoço: e no
peito do moribundo, com uma delicadeza enternecedora, pregou a grã-cruz
da Torre e Espada O pai, semicerrando os olhos, sorriu palidamente à
filha que o galardoava...
E
morreu. Morreu condecorado pela rainha a quem dera a coroa...
Assim
passou aquele que foi o criador do Império Brasileiro. Assim passou
aquele galhardo, aquele simpático rapaz que foi D: Pedro I do Brasil e
Pedro IV de Portugal.
O
moço herói, de vida tão cheia, tinha apenas, ao morrer, um
pouco mais de trinta e cinco anos.
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística