LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
A Serpente de Bronze, de Humberto de Campos
Edição de base:
A
Arnaldo Quintella e
Jayme Poggi
SIMILIA
SIMILIBUS CURANTUR
Tornaram
logo os israelitas a murmurar, pelo que mandou o Senhor contra eles serpentes
venenosas, cuja mordedura queimava como fogo. E morrendo muitos com dores
atrocíssimas, veio o povo ter com Moisés, e disse: "Pecamos
contra o Senhor e contra ti; roga-lhe que nos livre destas serpentes".
Anuiu Moisés ao pedido, e o senhor lhe deu a seguinte ordem: -
"Faze uma serpente de bronze, e arvora-a no alto de um poste; e todo o
que, sendo mordido, olhar para ela, será salvo". Obedeceu Moisés,
e todos aqueles que tinham sido feridos, e olharam para a serpente de bronze,
ficaram curados."
D.
Antônio de Macedo Costa, Resumo da História Bíblica p. 39,
pag. 71.
ÍNDICE
I - O FILÓSOFO
II - A ROSA AZUL
III - A BILHA
IV - O TROCO
V - A EPILÉTICA
VI - OS SUBMARINOS
VII - NINHO DO
CURIÓ
VIII - ”VITÓRIA-RÉGIA”
IX - A MULATA
X - AS PERDIZES
XI - A OBRA PRIMA
XII - MAMÂE
XIII - A
INTENÇÃO
XIV - OS JASMINS
XV - EDUCAÇÃO
ANTIGA
XVI - AS CRUZES
XVII - O PERFUME
XVIII - EXPERIÊNCIA
XIX - ILUSÃO
XX - FERRABRÁS
XXI - INDEFESA
XXII - A SANTA CASA
XXIII - O GATO E O
PASSARINHO
XXIV - A NOIVA DO
DONATO
XXV - O
DATILÓGRAFO
XXVI - O MILAGRE
XXVII - A SURPRESA
XXVIII - AS FOLHAS
XXIX - AS JACOBITAS
XXX - A CHÁCARA
XXXI - MANIAS
XXXII - FEMINICE
XXXIII - CHAVES E
FECHADURAS
XXXIV - O MONSTRO
XXXV - A "FESTA
DOS OVOS"
XXXVI - APARÊNCIAS
XXXVII - A COBERTA
XXXVIII - A
DERRADEIRA "MORADA"
XXXIX - A
PUNIÇÃO
XL - O NABABO
XLI - A
CONFISSÃO
XLII - POLÍTICA
XLIII - O AMIGO
XLIV - A
LIÇÃO
XLV - OS GÊMEOS
XLVI - AS
CAMISAS
XLVII - O
SONÂMBULO
XLVIII - O
AMBICIOSO
XLIX - O SOVINA
LII - O PORCO
LIII - REVELAÇÃO
LIV - RESPOSTA
DIFÍCIL
LV - O TROPEIRO
LVI - PARÁBOLAS
LVII - A
ADÚLTERA
LVIII - OBEDIÊNCIA
LIX - AS
LOÇÕES MIRACULOSAS
LX - A VINGANÇA
LXI - ALTRUÍSMO
LXII - MODAS...
LXIII - OS
SUSPENSÓRIOS
LXIV - A BARONESA
LXV - A FOME NO
AMAZONAS
LXVI - OS
"REDDIS"
LXVII - FORTUNATO
LXVIII - O LIMO
LXIX - A VIRGEM
LXX - MELHORAMENTOS...
LXXI - A
CAÇADA
LXXII - A MANICURA
LXXIII - MOCIDADE...
LXXIV - A
PÉROLA
LXXV - OS
MÉDICOS
LXXVI - O
"BRAVO DOS BRAVOS"
LXXVII - O
PÉ E O SAPATO
LXXVIII - O
PATRÃO
LXXIX - AS "GAFFEUSES"
LXXX - OS HORRORES DA
GUERRA
LXXXI - PAVORES DE
ENFERMO
LXXXII - O ELEFANTE
LXXXIII - O RIO
PURÚS
LXXXIV - REPRESÁLIA
LXXXV - O
PRÊMIO
LXXXVI - A CIDADE
INDISCRETA
LXXXVII - O
LADRÃO
LXXXVIII - O
PRESTÍGIO DO "ROUGE"
LXXXIX - A FESTA DA
INTELIGÊNCIA
XC - CONSEQÜÊNCIAS
DO PROTOCOLO
XCI - OS
COLCHETES
XCII - O VESTIDO
XCIII - CONVENIENTES
DO CIÚME
XCIV - MIOPIA
XCV - O SAPATEIRO
XCVI - ENTRE OS
PAPUAS
XCVII - AS
"MENINAS"
XCVIII - ELAS...
XCIX - BARBA DE BODE
C - O TRIUNFADOR
CI - A
CORNUCÓPIA
CII - O MILAGRE DE S.
BENEDITO
CIII - O
LEILÃO
CIV - LÂMPADAS E
VENTILADORES
CV - MILITARISMO
CVI - APÓLOGO SERTANEJO
CVII - AS GARRAFAS
CVIII - PELE CURTA
CIX - MALITIA SEXUS
CX - MME. LONDON BANK
CXI - EFEITOS DO
TANINO
CXII - ZURTZ
CXIII - A CHUVA
LUMINOSA
CXIV - PEDRAS
PRECIOSAS
CXV - O BRAVO
CXVI - SÃO
FILOMENO
CXVII - O JAVALI DE
CALYDON
CXVIII - AUTOS E
"TAXIS"
CXIX - "GIGOLÔ"
CXX - CEFALALGIA
I
O FILÓSOFO
1° de janeiro
Educado no Colégio
Caraça, o coronel Venâncio Figueira, fazendeiro em Uberaba, havia se
contaminado, pouco a pouco, de filosofia e de latim, de modo a preocupar-se,
mais do que o necessário, com os graves problemas da vida. Manuseador
quotidiano de certos autores profanos, ele se punha, às vezes, a pensar,
no alpendre da sua casa de fazenda:
- Sim, senhor! Esses filósofos
têm razão! Este mundo é tão desigual, tão
cheio de injustiças, de irregularidades clamorosas, que qualquer mortal,
encarregado de fazê-lo, o teria feito melhor!
E acentuava, melancólico:
- Este mundo está muito mal feito!...
À noite, porém, reunida a
família na sala de jantar, o velho fazendeiro arreganhava os
óculos no nariz, tomava a "Bíblia", chegava para mais
perto o lampião de querosene, e punha-se a ler, pausado, o "Livro
de Jó". E começava, de novo, a meditar, diante destas
palavras do capitulo 38:
"4. Onde estavas tu, quando eu
fundava a terra? Faze-mo saber, se tens inteligência.
"25 - Quem abriu para a
inundação um leito, e um caminho para os relâmpagos e
trovões?
"41 - Quem prepara aos corvos o
seu alimento, quando os seus filhotes implumes gritam a Deus, e andam vagueando
por não terem de comer?"
Certo dia, dominado pelas idéias
reacionárias bebidas em autores modernos, passeava o coronel pelo
pátio da fazenda, quando, ao ver as andorinhas que voejavam por cima do
gado, voltou novamente a raciocinar:
- É isso mesmo, não
há duvida! O mundo é muito mal arranjado. Aqui está, por
exemplo; este boi. Porque, tendo ele chifres, patas, orelhas, e sendo
tão forte, há de viver sempre na terra, a arrastar-se pelo solo,
quando aquela andorinha, que não tem nada disso, se locomove,
rápida, ligeira, dominando os ares?
Nesse momento, porém, uma
andorinha que lhe passava por cima, deixou escapar alguma cousa que lhe fazia
sobrecarga, e que foi cair, certeira, na cabeça descoberta do coronel.
Este levou a mão instintivamente à calva, e, olhando os dedos
brancos daquela indignidade, caiu de joelhos, clamando, arrependido:
- Perdoai-me, Senhor, perdoai-me! O
mundo está muito bem organizado! O que nele há, o que nele vive,
o que nele existe, foi feito com perfeição, com acerto, com
sabedoria!
E levantando-se, limpando a mão:
- Imagine-se que fosse um boi....
A ROSA AZUL
4 de janeiro
O comendador Luiz de Faria acabava de
fechar os olhos à velha marquesa de São Justino,
adoçando-lhe o momento da morte com a noticia alvissareira e mentirosa
da completa regeneração do seu neto, o estudante Guilherme de
Araújo, quando o encontrei à porta da casa funerária, à
espera do seu automóvel. Abalado, ainda, pela emoção daquele
instante, em que tivera de lançar mão de uma falsidade para
perfumar o último sopro de uma vida de virtudes e sofrimentos, o antigo
par do reino português aceitou um lugar no meu "taxi", e
confessou-me, em viagem:
- A mentira, meu amigo, é,
às vezes, uma necessidade. Aquela de que me socorri há meia hora,
para suavizar a morte de uma santa, de uma senhora cuja maior esperança
consistia no futuro de um neto que se desgarrara do lar, era tão
necessária como a do prior da Cartuxa para alegrar a agonia daquele
célebre monge do Bussaco.
Eu olhei, interrogativamente, o meu
companheiro de viagem, e ele, percebendo a ignorância, indagou, com
admiração:
- Não conhece, então, a
lenda da rosa azul?
À minha afirmativa, que lhe pareceu
estranha, o comendador apoiou as mãos robustas no castão de ouro
da bengala, e contou:
- No Mosteiro da Cartuxa, no Bussaco,
em Portugal, vivia, em séculos que já se foram, um piedoso e
santo monge, cuja vida se consumia, inteira, entre a oração e as
rosas. Jardineiro da alma e das flores, passava ele as manhãs de
joelhos, no silencio da nave, aos pés de um Cristo crucificado, e as
tardes, no pequeno jardim da ordem, curvado diante das roseiras, que ele
próprio plantava e regava.
O comendador interrompeu um momento a
narrativa, recostou-se na almofada, e continuou:
A sua paciência de jardineiro era
absorvida, entretanto, por uma idéia, que era um sonho: encontrar a rosa
azul das legendas do Oriente, de que tivera noticia, uma noite, ao ler os poemas
latinos dos velhos monges medievais. Para isso, casava ele as sementes, os
brotos, fundia os enxertos, combinando as terras, com que as cobria, e as
águas, com que as regava, esperando, ansioso, o aparecimento, no topo da
haste, do sonhado botão azul! Ao fim de setenta anos de
experiências e sonhos, em que se lhe misturavam na
imaginação as chagas vermelhas de Cristo e as manchas celestes da
sua rosa encantada, surgiu, afinal, no coroamento de um galho de roseira, um
botão azul, como o céu. Centenário e curvado, o velhinho
não resistiu à emoção; adoeceu, e, conduzido
à cela, ajoelhou-se diante do Crucificado, pedindo-lhe, entre
soluços pungentes, que, como prêmio à santidade da sua
vida, não lhe cerrasse os olhos sem que eles vissem, contentes, o
desabrochar da sua rosa azul.
Uma nova pausa, e o meu companheiro
tornou:
- Em volta do santo velhinho, no catre
do mosteiro, todos choravam, compungidos. E foi, então, que, divulgada
de boca em boca, foi a noticia ter a um convento das proximidades, onde jazia,
orando e sonhando, uma linda infanta de Portugal. Moça e formosa, e,
além de formosa e moça, - fidalga e portuguesa, compreendeu a
pequenina freira, no jardim do seu sonho, o valor daquela ilusão, e
correu à sua cela, consumindo toda uma noite a fazer, com os seus dedos
de neve, uma viçosa flor de seda azul, que perfumou, ela própria,
com essência de gerânio. E no dia seguinte, pela manhã,
morria no seu catre, sorrindo entre lágrimas de alegria, por ter nas mãos
tremulas, por um milagre do céu, a sua rosa azul!
O "taxi" parava no meio-fio
da calçada, o comendador acrescentou, estendendo-me a mão
agradecida:
- Feliz, meu amigo, aquele que morre,
como esse monge e a marquesa, apertando nas mãos a rosa, mesmo
mentirosa, de uma roseira de que cuidou toda a vida.
A BILHA
9 de janeiro
Sentado em um banco de madeira tosca,
colocado por ele próprio diante da sua chácara do "Bom
Retiro", a dois quilômetros de São Fidelis, olha o coronel
Saturnino as grandes águas do Paraíba, que rola, sereno e
inchado, no rumo de São João da Barra. A cinco metros do honrado
fazendeiro, no leito do rio, emergem duas cabeças queridas: a do filho,
o Alfredinho, um pirralho louro, forte, vivaz, de quatro anos, feitos em setembro,
e a da sua segunda esposa, D. Florinda, cujos cabelos castanhos, soltos e
molhados, lhe orlam, como um capuz de freira, o formoso rosto moreno. O
fazendeiro olha, sorrindo, os dois banhistas que lhe enchem o
coração, e dá ordens:
- Não vá para longe,
Alfredo. Fique aí mesmo.
E para a esposa:
- Mergulhe, Lindinha. Está com
medo?
A moça dá um mergulho
ligeiro, e aparece mais distante, com os lindos olhos fechados, para que lhe
escorra melhor sobre o colo forte, como pérolas dissolvidas, a
água que lhe encharca os cabelos.
Diverte-se o coronel, assim, com os
dois anjos que lhe constituem a família, quando, tomando uma bilha velha
e inservível que se achava próxima, se põe de pé, e
a atira, longe, um exercício dos músculos vigorosos, na corrente
do rio. Apanhada pela correnteza, a vasilha de barro começa a descer,
rápida, rodopiando, arrebatada pelas águas. De repente,
porém, com a boca para cima, começa a encher-se, afundando-se
pouco a pouco, até que desaparece, sem deixar vestígio, no
tumulto um redemoinho fervente.
Alfredinho olha, atento, a viagem da
vasilha, e, vendo-a desaparecer na voragem, franze o cenho infantil,
perguntando, intrigado, ao velho:
- Papai, por que é que a bilha
foi para o fundo?
- Porque entrou água;
está claro! - explicou o coronel.
- Ela não estava com a boca para
cima?
- Estava, sim.
- E como entrou água?
- Porque estava furada, - tornou o
velho.
O pequeno meditou um instante, franziu
a testazinha inteligente, e, olhando Dona Florinda, que se encaminhava com o
rosto fora dágua, para o meio do rio, gritou, alto, alarmado, com a
vozinha fina:
- Mamãe, venha mais p'ra
beira!...
O TROCO
12 de janeiro
O Joaquim P'reira acabava de chegar da
"terra" com o seu chapelão de abas largas e seu sólido
jaquetão de veludo, quando "sô" Manoel Guimarães,
proprietário da Padaria "Flor de Braga", o convidou para
caixeiro.
- O essencial - avisou, entretanto,
"sô" Manoel, - é que sejas honesto. O outro rapaz que eu
cá tinha, pu-lo eu ontem na rua por m'haver deitado fora dois mil
réis que dele não eram. Toma tu juízo, que, cá,
comigo, prosp'rarás.
O Joaquim prometeu não bulir,
jamais, em dinheiro da casa, e, dois dias depois, era admitido, com todos os
sacramentos da rosca e da farinha de trigo, como caixeiro da "Flor de
Braga". E estava já há uma semana no emprego, quando
"sô" Manoel o chamou:
- "Sô" P'reira?
- Cá 'stou! - acudiu o Joaquim.
- Vá à casa do Almeida,
no principio da rua, e receba esta conta de vinte mil réis.
E recomendou, prudente:
- Cuidado com o dinheiro!
O Joaquim pegou na conta, foi à
casa indicada, recebeu uma cédula de vinte mil réis, e vinha,
reto, no rumo da padaria, quando se encontrou com um conterrâneo, o
Zé Moreira, a quem não tinha visto desde a chegada. Trocados os
primeiros abraços, o Moreira convidou:
- Vamos solenizar o encontro! Arre,
lá! Vamos cá à cervejaria!
Aceito o convite, foram os dois,
beberam duas garrafas, trocaram notícias e saudades, e ia o Joaquim
despedir-se, quando o Zé reclamou:
- E quem paga isso?
- Tu; ora essa!
- Mas eu cá não tenho um
vintém; e se não pagares tu, iremos os dois bater à
cadeia, o que é pior!
Amedrontado e arrependido, o Joaquim
arrancou do bolso a cédula de vinte, pagou os mil e seiscentos da
cerveja, recebeu dezoito mil e quatrocentos de troco, e ia pensando no meio de
justificar-se perante "sô" Manoel, quando teve uma
idéia, que pôs
- Que é isso lá? -
trovejou "sô" Manoel, acorrendo.
Com os olhos em lágrimas, o
P'reira contou o desastre:
- Foi uma desgraça,
patrão! Imagine o senhôre, que eu vinha cá com o dinheiro
na mão, uma cédula de vinte mil réis, e o cachorro
avançou-me neles, e engoliu-os!
"Sô" Manoel franziu a
testa, calculou o prejuízo, e, de um salto, estava diante do
"Leão", empunhando uma garrafa de óleo de
rícino. Auxiliado pelo Joaquim, abriu a boca ao animal, e, depois de
purgá-lo, recomendou ao rapaz:
- Agora, fica-te cá, junto do
bicho, à espera do dinheiro. Logo que ele o deite, segura-o. Meia hora
depois estava "sô" Manoel de volta, a saber noticias do
purgante:
- Já deitou o dinheiro? indagou
do empregado.
O Joaquim, que esperava, ansioso, por
esse momento, abriu a mão, e mostrou, desafogado:
- Todo, todo, não senhôre;
até agora só deitou 18$400!
E entregou o troco da cerveja.
A EPILÉTICA
16 de janeiro
- Estás, então, separado
de tua esposa?
- É verdade; internei-a em uma
casa de saúde.
E como se tratasse de uma palestra
afetuosa, entre amigos que lia muito se não viam, o mais moço dos
dois, o Sr. Nataniel de Miranda, caixeiro viajante de uma conceituada casa da
praça, justificou a sua conduta:
- A situação em que dia
me colocou era intolerável. Eu seria um perverso, um miserável,
um desumano, se conservasse na minha companhia uma senhora sabidamente enferma,
perseguida por moléstia tão delicada.
- Era, então, doente?
- Doentíssima! - confirmou o
esposo inconsolável.
E como se visse nos olhos do amigo uma
interrogação luminosa, um desejo de conhecer, fase por fase, os
detalhes daquela tragédia de coração, tomou-o
pelo braço e, fazendo-o sentar-se em uma das mesas do botequim,
principiou, calmo, a descrever-lhe o caso, deixando esfriar, entre voltas de
fumaça, as duas xícaras de café.
- Há muito tempo eu andava
desconfiado da moléstia da Luisinha. Afastado sempre de casa por
exigência mesmo do meu gênero de vida, ora em excursão pelo
interior de Minas, ora por S. Paulo, era com estranheza, com mágoa
íntima, que eu observava, de mês para mês, a mudança
nos modos de minha mulher. A transformação do seu caráter,
das suas maneiras, do modo, enfim, por que definhava, a olhos vistos, fazia-me
triste, aflito, preocupado, na suspeita de que alguma coisa de grave, de
anormal, se estava passando na sua saúde. Em uma dessas viagens, com a
alma carregada de preocupações, confessei a um parente meu,
fazendeiro em Uberaba, a desconfiança, que eu tinha, de que ela sofria
de ataques, na minha ausência. Ele escutou-me, pensou um momento, e,
chamando-me para o interior da casa, perguntou-me porque eu não tirava a
limpo essa dúvida, empregando, no caso, a experiência da tigela de
leite.
- Da tigela de leite? - interrompeu o
amigo.
- Da tigela de leite, sim.
E continuando:
- Esse fazendeiro explicou-me,
então como era a prova. Pega-se uma tigela de leite, e põe-se
debaixo da cama, em um lugar que corresponda ao meio do colchão. Em
seguida, toma-se de uma colher, ou de uma vara de uns dois palmos, e amarra-se
no estrado de arame, de ponta para baixo, exatamente sobre a tigela, de modo
que, com o peso natural de uma pessoa, não chegue até o leite,
mas de maneira que, com um movimento mais forte, como nos ataques de epilepsia,
a colher, ou coisa semelhante, molhe a ponta no liquido da tigela, registrando
o fenômeno.
- E fizeste a experiência?
- Espera aí. Chegado ao Rio,
procurei um momento em que a Luisinha se achava ausente, e fiz o que me haviam
aconselhado. com a diferença, apenas, da colher, que, por ser a cama um
pouco alta, foi substituída na ocasião, por um batedor de doce,
que encontrei na dispensa da casa. Feito isso, declarei que ia a São
Paulo, e parti. Dois dias depois, voltei.
- E então? - indagou o amigo,
ansioso, com a curiosidade nos olhos.
- O batedor tinha batido tanto, tanto,
que a tigela...
- Que é que tem? - interrompeu o
outro.
E o desgraçado, enxugando os
olhos:
- Estava cheia... de manteiga!...
OS SUBMARINOS
18 de janeiro
À margem do Tietê, em lugar
em que o rio se tornava mais claro e menos profundo, tomavam banho, uma tarde,
sete ou oito crianças, de quatro a nove anos, entre as quais uma
encantadora menina, a Lili, irmã do Armindinho, que era, no grupo, o
mais insuportável e barulhento. Com a inocência peculiar à
idade, apresentavam-se todos despidinhos, nadando, mergulhando, pulando, como
um bando de golfinhos irrequietos.
O barulho que faziam, era, como
facilmente se imagina, ensurdecedor. Entregues a si mesmos, rolavam-se na
areia, atiravam-se terra, empurravam-se, nadando, ora de papo para cima, ora de
papo para baixo, com as mãos em movimento dentro dágua, no
"nado de cachorro", batendo com os pés, na
imitação dos navios de roda, ou de barriga para o sol, agitando
os braços ritmadamente, como escaleres em marcha pelo impulso regular de
dois remos.
Estavam os pequeninos tritões no
mais aceso do entusiasmo, quando o Armindinho propôs, gritando:
- Vamos brincar de submarino?
- Vamos! - concordaram os outros, aos
pulos, com o busto fora dágua. - Vamos!
Unindo o gesto à palavra, o
Armindinho atirou-se à frente dos companheiros, nadando, ágil, de
peito para o ar, meio submerso, dando marcha ao corpo com o movimento das
mãos debaixo dágua. Imitando o inovador, os outros pirralhos
fizeram o mesmo, de papo para cima,, pernas estiradas, silenciosos, como uma
verdadeira flotilha de submersíveis.
Momentos depois, de volta à
margem, iam repetir a proeza, quando a Lili pediu, nuazinha, batendo as
mãos:
- Eu também vou, mano, eu
também vou! Sim?
O Armindinho encarou-a, com a
superioridade de um oficial alemão, e protestou:
- Não; você não
pode!
E virando-se para um dos
companheirinhos, explicou, com a maior inocência do mundo:
- Ela não tem periscópio;
não é?
NINHO DO CURIÓ
20 de janeiro
Rosto em brasa, olhos vivos, cabelos
alvoroçados, atravessava o Luizinho a praça do povoado,
denunciando no desalinho das roupas, no fogo das faces, no susto das maneiras,
a sua última travessura, quando, ao passar pela frente da igreja, foi
detido suavemente, brandamente, pela bondade do padre Guilherme.
- Venha cá, ó Luizinho!
O garoto tremeu, desconcertado, e o
vigário, homem de uns quarenta anos, insistiu:
- Venha cá!
Luizinho chegou-se, respeitoso, de
olhos no chão e chapéu entre os dedos, e o sacerdote indagou:
- Então, por onde andou
você, hoje?
- Eu?
- Sim, você.
O pequeno corou, envergonhado, e o
padre, excelente pastor, pegou-lhe da mão, puxando-o para dentro da
igreja.
- Venha cá; venha se confessar.
Um minuto depois estava o Luizinho, com
os olhos muito espantados, ajoelhado no confessionário, a contar ao
padre Guilherme o seu grande pecado do dia.
- Eu estive hoje na mata do outro lado
do rio, tirando uns ninhos de curió... confessava o garoto.
- Ninho de curió? - estranhou o
confessor, franzindo a testa. - Você não sabe, então, que
é pecado tirar os ninhos das avezitas, roubando os pobres passarinhos ao
conchego de seus pais?
Luizinho mantinha-se cabisbaixo,
vermelho de arrependimento e de vergonha, e não respondeu. O
vigário insistiu, porém:
- E onde foi que você achou esses
ninhos de curió?
- Na ingazeira, junto do morro.
- E havia muitos?
- Havia, sim, senhor.
- Pois, não tire mais,
não. É pecado, e pecado mortal!
Na manhã seguinte, após uma
noite de apreensões aflitivas, ia o garoto procurar urnas vacas na outra
margem do rio, quando viu, ao longe, o vulto de padre Guilherme, que se
aproximava, cauteloso, da ingazeira de que lhe falara na véspera.
Luizinho escondeu-se, de um salto, em uma das moitas das proximidades, e
observou tudo. Padre Guilherme chegou, com o breviário nas mãos e
nariz no ar, examinou, sondou, olhou para um lado, olhou para outro, e, como
não visse ninguém, descansou o livro na raiz da árvore,
endireitou os óculos e subiu. Momentos depois, assinalados pelo piar dos
passaritos implumes e pelo vôo das aves aninhadas, o servo de Deus descia
da ingazeira, sustentando nas mãos os bolsos da batina, repletos de
curiós.
Luizinho viu tudo isso, da sua moita, e
não disse nada. Padre Guilherme apanhou o seu breviário e foi-se
embora para a aldeia. Ele tomou, também, o seu varapau, e lá se
pelo mundo ganhar a vida, até que, anos depois, homem feito, voltou, de
novo, à terra do seu nascimento.
Forte, moço, querido das
moças, ia, uma tarde, o Luiz pela praça da matriz, quando o
detiveram pelo braço:
- Olá, Luiz, como vai?
- Oh! o Sr. padre Guilherme! - sorriu o
rapagão, feliz.
E travou-se a palestra
- Então, veio à terra
para casar, não?
- É verdade, sim, senhor.
O padre deu-lhe parabéns, mas,
não satisfeito, insistiu:
- E a noiva?... Afinal, quem é a
noiva?
Luiz encarou, firme, o reverendo, e
trovejou:
- A noiva? Eu sou tolo, então,
para lhe dizer quem é?
E, dando-lhe as costas, indignado:
- Pensa, então, que isto
é ninho de curió?...
E afastou-se, resmungando.
"VITÓRIA-RÉGIA"
22 de janeiro
A canoa, puxada a quatro remos, descia
o pequeno afluente do Amazonas, desviando-se, ligeira, das grandes manchas de
plantas aquáticas que a correnteza preguiçosamente arrastava,
quando o velho índio Tibúrcio, sustando a remada, começou
a contar-me a mais formosa lenda daquelas ribeiras.
- Antigamente, meu senhor, este rio era
limpo de toda sorte de aguapé, e de corrente tão clara que se
podia ver, de dia, as traíras, os piaus e os mandís, rabeando, no
fundo, no grande leito da areia dourada. Nesse tempo, morava na cabeceira do
rio, onde as águas são mais puras, um velho índio, o
famoso Tauí, cuja filha, Jaciara, assim chamada por ser a senhora da
lua, era, com os seus olhos mais negros do que o acapú, a mais formosa
moça das redondezas.
O caboclo enfiou, de novo, o
úmido remo no grande leito do rio, fê-lo roncar, soturno, nas
profundezas dágua silenciosa, e levantando-o, gotejante, continuou a
narrativa:
- Um dia, voltando da caça,
adivinhou Tauí, de longe, a presença de um estranho na
palhoça que lhe servia de casa. Arrastando-se, como uma cobra, sobre as
folhas do chão, estava o pobre pai a poucos passos da porta de esteira,
quando de lá pulou um homem, que desapareceu, de um salto, no seio da
mataria.
Duas remadas ressoaram, de novo,
profundas, no leito do rio, impelindo a canoa, e Tibúrcio reatou a
história:
- Furioso com a traição
da filha, o índio, feroz, atirou-se contra ela, esganou-a, e abriu-lhe,
de lado a lado, com a ponta da flecha, a caixa do peito moreno. Feito isso,
enfiou no seu corpo as grandes unhas de tamanduá, e arrancou-lhe,
sangrento, o coração ainda palpitante, que atirou, da porta da
palhoça, à clara correnteza do rio.
Impeliu, mais uma vez, a canoa ligeira,
fazendo roncar no seio da água o seu pesado remo de massaranduba, e
rematou:
- Desde esse tempo, meu senhor,
começaram a aparecer no rio estas verdes plantas errantes, cuja flor,
alva como a lua, dorme no fundo das águas, e rebenta, à noite,
com grande estampido, espalhando por tudo, em redor, a doçura do seu
perfume.
E apontando-me uma
"vitória-régia" que descia, alva e enorme, nos
braços cariciosos das águas, acrescentou, compungido:
- Olhe, lá vai uma. É o
coração de Jaciara...
E impeliu a canoa, com força.
A MULATA
26 de janeiro
Aumentados com a descoberta do Brasil
os limites civilizáveis do mundo, compreendeu Jeová, do seu trono
de nuvens, a necessidade de multiplicar o homem, para povoar, em nome da sua
gloria, as novas regiões desbravadas. De que espécie devia ele
encher, porém, a terra maravilhosa, que se mostrava tão
promissora? A raça branca, que ele tanto amava e protegia, dominava,
já, na Europa tumultuosa. A Ásia, berço da humanidade e
dos grandes mistérios eternos, fervilhava de homens amarelos, que a
enchiam toda, e que se haviam derramado, aventureiros, pelas ilhas
circunvizinhas. À própria raça negra, que tanto se
lamentava da sua condição e do seu destino, coubera a África
inteira, de que se tornara senhora. Fazia-se mister, pois, criar um tipo novo,
urna raça nova e bendita, que se apropriasse com autoridade e com
orgulho, da nova terra exumada das ondas.
Resolvido isso, tomou o Senhor do seu
camartelo, do seu buril, da sua verruma, do material, em suma, com que
trabalhava na fabricação meticulosa dos seres vivos, e,
misturando um pouco da pasta com que fizera o negro, com outra, absolutamente
igual na dosagem, de que fabricara o branco, formou com as duas, uma pasta
morena e macia, em que se pôs a modelar, cuidadoso, uma figura de mulher.
Concluída a obra, o
estatuário quedou fascinado. Última flor do jardim humano em que
pusera toda a sua experiência de escultor inexcedível, a nova
Afrodita resumia, com os seus olhos negros, os seus cabelos crespos, as suas
linhas voluptuosas e a sua pele acentuadamente castanha, todos os encantos e
todas as graças da criação. Deslumbrado, encantado,
embevecido, Jeová mirou-a, remirou-a, examinou-a, banhou-a com a luz dos
seus olhos, e, de repente, com um sorriso, teve uma idéia. Foi ao
laboratório, tomou nas mãos uma folha de cebola, um dente de
alho, amassou-os, triturou-os, diluiu-os e, voltando à estatua,
friccionou-lhe pausadamente os ombros, as espáduas e a parte superior e
interna dos braços. Em seguida, ordenou-lhe, recuando:
- "Surge et ambula!"
A estatua moveu-se, preguiçosa,
e com um andar lúbrico, remexido, sensual, desceu do solo em que fora
polida.
Jeová sorriu, de novo, e, com
orgulho paternal, apontou-lhe para debaixo do braço, dizendo-lhe, como dissera
a Constantino, na legenda sagrada:
- "In hoc signo vinces!"
A mulata abriu os lábios num
sorriso dengoso, e, como o Criador lhe indicasse, com um gesto, o caminho da
terra, através das estrelas, rumou, enamorada de si própria, em
direção ao Brasil. Vinte e quatro horas depois, porém,
batia, de novo, à porta da oficina celeste.
- Você por aqui, ainda? -
estranhou Jeová, espantado.
A mulata baixou os olhos, procurando
justificar-se:
- Foi impossível chegar ao meu
destino, meu Senhor; e eu, então, regressei, ali, das nuvens.
- Por que? - trovejou o Criador,
indignado.
E ela, corando, envergonhada:
- As almas dos portugueses não
me deixaram passar...
AS PERDIZES
30 de janeiro
Chegado do interior de Minas, onde
nasceu, vive, e não sabe se morrerá, o capitão
Venâncio Pimentel, coletor
Nada, porém, lhe causou tanta
admiração, como a quantidade de mulheres desacompanhadas que
encontrava na rua, principalmente nas proximidades do ponto dos bondes da
Jardim Botânico, depois das nove horas da noite. Adivinhando-lhe a
procedência, e farejando-lhe o dinheiro, essas criaturas infelizes acercavam-se
do forasteiro, olhando-o de esguelha, sorrindo-lhe com brejeirice, num desafio
maneiroso e calculado. Ele fixava então, a leviana, que tomava o bonde,
e acompanhava-a até a Lapa, até o Catete, ou até a
Glória, de onde voltava ao ponto de partida, para experimentar, de novo,
quatro, cinco, seis, oito vezes, as mesmas sensações da
conquista.
Uma destas noites, ia eu tomar o carro,
às onze horas, em companhia do Sr. deputado Antônio Carlos, quando
este descobriu, no ponto de costume, o capitão Venâncio, a quem me
apresentou, contando-me, ao mesmo tempo, a fraqueza do seu velho
correligionário e concidadão.
- Que gosto acha o senhor nessa
extravagancia, Sr. Pimentel? - perguntei eu, escandalizado, ao mineiro,
acentuando as palavras com a tonalidade proposital da minha censura.
- Gosto? - atalhou o sertanejo. -
Gosto, eu não acho nenhum. Eu acho é engraçado.
- Engraçado? - estranhei.
- Sim, senhor. Eu faço isso para
me lembrar de Minas, das minhas caçadas no Poço Fundo. Cada
mulherzinha dessas é mesmo que perdiz.
- Perdiz? - interveio o Dr.
Antônio Carlos, admirado.
- Sim, senhor. Vossa Senhoria nunca
andou caçando perdiz?
E explicou, ajudando a palavra com a
mímica:
- A gente vai, às vezes, pelo
mato, pisando aqui, pisando ali, cauteloso. com a espingarda calada, quando
ouve, de repente, um barulho no chão, entre as folhas. Olha, e vê:
é a perdiz que está no folhedo, imóvel, quieta, olhando
p'ra gente. Sentindo-se descoberta, solta um vôo baixo, rasteiro, junto
do solo. A gente não atira: vai andando, vai seguindo, vai acompanhando
a bicha, até que ela, afinal, chega no ninho.
- E quando a perdiz chega no ninho, que
é que faz? - indaguei, curioso.
E o capitão, rindo:
- Que é que faz? Deita-se!
E saltou para o estribo de um bonde, espantando
uma revoada...
A OBRA PRIMA
2 de fevereiro
O almirante Ribas acabava de referir
às senhoras, à mesa de jantar, a origem da mulata nacional, tal
como eu a contei, aqui, há poucos dias, quando o desembargador
Pessegueiro, recompondo as guias do bigode grisalho e cuidado, atalhou, com
orgulho:
- Há engano nessa
tradição, Sr. almirante: há engano. A mulata não
teve origem no céu, como se diz; a sua origem, para gloria nossa,
é toda terrena.
E recostando-se na
cadeira, apoiando-se na mesa com ambas as mãos, começou, pausado,
a sua narrativa:
- O preto, o branco e o amarelo, que
habitam a África, a Europa, a Ásia e a Oceania, foram, realmente,
modelados por Jeová, que os reconheceu, de fato, como seus filhos.
Atirando-os, aos milhares, ao mundo, ele os conhecia todos, regulando-lhes a
vida e a morte. E tanto assim, que, quando aparecia, no céu, de volta da
terra, um branco, um preto ou um indivíduo de raça
asiática, ele tomava, paternal, pela mão, reconduzindo-o ao
convívio dos bem-aventurados.
Feita uma pequena pausa, o
desembargador continuou:
- Certo dia, porém, bateram
à porta de ouro do céu. Solícito, como sempre, S. Pedro
correu a abri-la, e recuou, deslumbrado: era a primeira mulata que, requebrada,
cheirosa, encantadora, incomparável, penetrava, triunfante, no
Paraíso!
As senhoras sorriram, admirando o
entusiasmo do velho magistrado, e ele, sorrindo com elas, retomou o fio
à narrativa:
- A presença daquela criatura
estranha, rica de encantos, de graças, de seduções,
agitou, de pronto, a morada celeste. Anjos e serafins rodeavam-na, fascinados,
tontos, embriagados de beleza. Estrelas que viviam isoladas no azul,
achegavam-se, cochichando, formando constelações. E uma grande
música religiosa ressoou pelas alturas, celebrando, num enlevo, o
maravilhoso acontecimento.
Nesse ponto, com os braços e os
lábios abertos, o desembargador quedou-se, como num êxtase.
Passado um minuto, continuou:
- Avisado da novidade, Jeová
quis, ele próprio, ver o prodígio; e, descendo do seu trono de
pedrarias, encaminhou-se, com o cortejo de arcanjos, no rumo da porta, de se
achava a mulata, rodeada de santos e querubins. Chegando aí, ao
vê-la, ele próprio recuou, tapando os olhos com as mãos;
diante dele, a cabeça pendida para um lado, os lábios
entreabertos num sorriso, e os olhos entrefechados num delíquio, a
recém-chegada esperava-o, doce, linda, maravilhosa! Passado o primeiro
momento de pasmo, o Supremo Arquiteto levantou o rosto venerável, e, com
a barba soberba derramada pelo peito largo, bradou, deslumbrado:
"- Eu fiz a raça preta, que
povoou a Líbia ardente, suportando, impassível, o fogo dos
desertos. A raça amarela, cujas mulheres, pequeninas e tímidas,
enchem a Ásia, é obra minha. A mulher branca, delicada, mimosa,
de olhos azuis e cabelos de ouro, saiu das minhas oficinas. Que artífice
terá, porém, imaginado e realizado esta jóia, esta
obra-prima da natureza, esta flor incomparável da
criação?"
Nesse momento, os bem-aventurados
abriram alas, deixando ver uma figura curiosa: barba feita, bigode retorcido,
correntão de ouro atravessado sobre o colete, que lhe dava maior vulto
à obesidade, apareceu, sorridente, o Manél da Venda, exclamando,
com orgulho:
- Eu, Senhor!
Ante essa confissão,
Jeová não resistiu: encaminhou-se para o Manél, que o
olhava desafiadoramente, e, sem se conter, bradou, com os olhos úmidos:
"- Mestre!..."
E apertou-lhe a mão, comovido.
MAMÂE
5 de fevereiro
Chepélinho de palha de grandes
abas e de grandes fitas atirado para a nuca e preso ao queixo, em baixo, por um
elástico de seda que lhe flagiciava as carnezinhas tenras; calcinha pelo
joelho, cinto de mulher e bengalinha à mão, vai o Antoniquinho,
com os seus três anos de idade, pela rua Gonçalves Dias,
arrebatado pela pressa elegante da sua mamãe.
Seguro pela mão esquerda, com a
bengalinha na direita, debalde procura o pequenito deter-se diante das
vitrinas, para ver os manequins, os macacos de veludo, os ursos de
pelúcia, os cavalinhos de pau, as coisas galantes ou vistosas que lhe
encantam os olhos. A boquita quase do tamanho do pipo de borracha de que
prescindira no ano anterior, não se cansa de papaguear. As suas
perguntas, que são as mais ingênuas e atrapalhantes, ficam,
porém, sem resposta. D. Odette vai, apressada, sem saber mesmo o motivo,
e não pode prestar atenção, ao mesmo tempo, à
gentileza dos conhecidos, que a saúdam atenciosos, e à
insaciável curiosidade do Antonico.
De repente, com a atenção
despertada por um rico vestido de passeio, a moça estaca, sem abandonar
a mão do pequeno, diante de um mostruário de modista.
Desinteressado das modas, Antonico prefere olhar uma vitrina da casa de flores
e aves, que fica ao lado, e em que se vê, perto de um casal de grandes
galinhas pretas, alguns ovos de raça. Sem outra coisa a perguntar no
momento, o pirralho ergue os olhos muito negros e muito vivos, indagando, em
voz cantada e doce, como a de um anjo:
- Mamãe, galinha preta
põe ovo branco?
D. Odete não lhe responde;
toma-lhe da mãozinha tenra, miúda como um jasmim, e parte, de
novo, apressada. Adiante, porém, com a rapidez da marcha, Antonico
atrapalha-se com a sua bengala de dois palmos de cumprimento, enfia-a entre as
perninhas nuas, tropeça, rodopia, e vai ao chão, esfregando os
joelhinhos no asfalto. Vem-lhe uma vontade de chorar, mais do susto do que da
queda. O beicito treme, abotoando num cravo. D. Odete prevê,
porém, o berreiro, suspende-o do solo pela mão, e infunde-lhe
coragem, ânimo, dignidade, sacudindo-lhe com o lenço o joelhinho
escoriado:
- Não chore, meu filho,
não chore!
E sem dar pelo que dizia:
- Seja "homem", como sua
mãe!
A
INTENÇÃO
8 de fevereiro
A pequenina igreja de Santa
Engrácia estava quase despovoada de fieis, que se iam retirando, um a
um, molhando os dedos na água benta, quando o Onofre penetrou no templo,
desconfiado, chapéu na mão, camisa para fora da calça,
à maneira da terra, procurando falar a padre Lourenço, que se
achava, no momento, arrumando a paramenta eclesiástica na pequena
cômoda da sacristia. Ao ver o caboclo, afamado em toda a vila pela sua
desenvoltura, o sacristão, o Zézinho, correu ao seu encontro,
levando na mão, pingando cera, o apagador de velas com que abafava,
naquele instante, as últimas luzes do altar-mor.
- Que é que você quer,
Onofre? - indagou o sacrista. - Quer falar com "seu" vigário?
- Chame ele! - respondeu o caboclo,
soturno.
Cinco minutos depois, após as
explicações preliminares, estava o desordeiro ajoelhado diante do
confessionário, torcendo o chapéu nos dedos, com o cabelo a cair,
em cachos revoltos, sobre a testa e sobre os olhos.
- Qual é o pecado de que se
acusa, meu filho? - indagou o sacerdote, bondoso, procurando conduzir com jeito
aquela ovelha bravia.
O caboclo baixou a cabeça, e
confessou:
- Eu não matei, nem roubei
ninguém, não, "seu vigaro". Meu pecado é um
pecadinho de nada. É uma porcariazinha de pecado que nem presta p'ra
dizê.
- Conte, filho; conte sempre! - animou
o padre.
Onofre tomou fôlego, e principiou
a narrar:
- O'ie, "seu" vigaro,
foi assim. Eu tinha brigado com o Chico Julião, da Lagoa Funda, e jurei
tomá um desforço, dando as tripa. dele p'r'os urubu cumê.
Ontem, de tardinha, me armei, e fui fazê o serviço. Ele tava na
porta da casa com a muié e os fio dando cumê p'r'os bicho
meúdo. Eu me apiei e avancei p'ra ele disposto a matá; mas fiquei
tão penalizado, "seu" vigaro, com a vista da famia, daquela
fiarada que ia ficá sem pai, que, em vez de matá o infiliz,
só meti a pontinha da faca no couro dele, um pedacinho de nada. O cabra
deu um pulo p'ra riba, e lá ficou vivo, só com um
arranhãozinho na costela, feito p'ra amedronta. "Seu" vigaro
acha que isso é pecado?
Padre Lourenço tomou uma pitada,
assoou-se, com estrondo, no lenço de Alcobaça, que lhe tirava
todas as dúvidas, e obtemperou, convicto:
- É pecado, sim, meu filho;
é pecado. tão grande como o de morte!
- Mas eu não matei,
"seu" vigaro! protestou o caboclo.
- Não importa. Houve o
pensamento, a idéia de matar. É o que vale, meu filho, é a
intenção!
Onofre baixou a cabeça, humilde,
e o padre continuou:
- Eu vou dar-lhe uma penitenciazinha.
você não torne a cair noutra.
Assoou-se, de novo, e explicou:
- Você vai rezar quarenta e oito
padre-nossos, setenta ave-marias, e setenta salve-rainhas. Antes de sair,
porém você vai pôr, ali, no cofre das almas. uma prata de dez
tostões.
E levantando-se:
- Vá! O caboclo ergueu-se,
pôs o chapéu debaixo do braço, exumou do bolso da
calça uma prata de dez tostões que lá dormia,
encaminhou-se para o cofre, que ficava perto da porta, e, jeitoso,
começou a fricionar, com a moeda, a entrada da caixa, sem deixar,
entretanto, que ela escapulisse para dentro. Feito isso, ia meter de novo a
prata na algibeira, quando padre Lourenço, que o observava, gritou-lhe,
de longe:
- Psiu! Que é isso? Vai levando
o dinheiro?
O caboclo voltou-se, da porta, e
protestou, com um risinho canalha:
- Uê! A
"tenção" não vale?
E ganhou a rua.
OS JASMINS
11 de fevereiro
- Que linda flor, almirante; e que
perfume!
Foi assim que a linda viúva
Dagmar Antunes recebeu, num arrulho gracioso, a florzinha alva, a mimosa
estrelinha de neve, que o almirante Ribas destacara, gentil, da botoeira do seu
"smoking" impecável.
- Dona Dagmar não conhece,
porventura, a história desta flor? - perguntou, risonho, o velho
marinheiro, tomando lugar ao lado da moça, no mesmo canapé.
E como a encantadora senhora lhe
respondesse com o enigma de um sorriso, o almirante começou, falando-lhe
quase ao ouvido:
- Para a primeira mulher, como a
senhora sabe, a expulsão do Paraíso teve a importância de
uma verdadeira calamidade. A maldição de Jeová tombava,
principalmente, sobre ela, sobre o seu destino, sobre a sua felicidade na
terra. Era ela que ia sofrer, dali em diante, as dores da
multiplicação da espécie. Era sobre ela que iam recair as
penas, os trabalhos, os cuidados da vida doméstica. Era sobre ela, em
suma, que iam pesar as preocupações do vestuário, da
mudança quotidiana da folha de parreira. E, por isso, era com o
coração aos pedaços que ela ia deixar, para sempre, aquele
abençoado domínio do Senhor.
Nesse ponto, fez pausa, olhou os dentes
miudinhos da moça, que continuava a sorrir, e acrescentou, bordando a
fabula:
- Expulsos do Éden, Adão
e Eva baixaram a cabeça, e partiram, tristes, humildes, abatidos, para a
horrível solidão do degredo. Assim, porém, que
ultrapassaram os limites do grande jardim das delicias, nossa primeira
mãe não pôde mais. Os lindos olhos umedeceram-se-lhe, como
violetas tocadas de orvalho. E à medida que ela ia andando, iam as
lágrimas caindo uma a uma, dos seus grandes olhos, assinalando, na
areia, como pérolas do mesmo colar, as curvas do seu caminho. No dia
seguinte, porém, ao amanhecer, o rosto da primeira mulher iluminou-se de
uma divina felicidade: marcando os seus passos no Deserto, a areia aparecia
semeada de florinhas em forma de estrela, alvas como a inocência e
cheirosas como o pecado!
Virou-se mais para a moça, e
explicou:
- Foi assim, das lágrimas da
mulher, que nasceram os jasmins!
E olhando-lhe nos olhos, com a voz
trêmula:
- E foi nas pétalas dos jasmins,
D. Dagmar, que Deus talhou os seus dentes!
EDUCAÇÃO
ANTIGA
14 de fevereiro
As pessoas que desceram à cidade
sexta-feira pela manhã, ouviram falar, com certeza, em uma vaia de que
teria sido vítima,
A mim, me custa a crer que isso tenha acontecido,
por uma circunstância muito natural por não ser possível,
mais, na cidade, uma "toilette" capaz de motivar surpresa. As que se
exibem na Avenida impunemente, todos os dias, são de tal ordem, que,
para causar escândalo, pasmo, admiração, seria preciso,
não, apenas, tirar o vestido de cima da pele, mas tirar a pele de cima
do corpo.
Comentava eu esse incidente, ontem,
à noite, em uma roda de damas e cavalheiros, quando uma das senhoras
menos jovens, Dona Ernestina Vale, procurou uma explicação para
esse descalabro:
- O motivo dessa falta de pudor de
certas moças de hoje, - começou, perspicaz - deve ser
atribuído, sr. conselheiro, aos próprios pais, ou, antes,
às mães.
E expôs o seu pensamento:
- O senhor vê, hoje, como as
mães vestem as crianças. Não há dia em que
não encontremos na rua meninas de quatro, seis, oito e, até dez
anos, com vestidinhos muito acima dos joelhos, com os bracinhos nus, o
colozinho à mostra, numa exibição completa das suas
carnesinhas tenras. Aos doze anos, já mocinhas, a "toilette"
dessas criaturinhas apresenta pequena diferença. E como não
tiveram, em criança, a noção do pudor físico,
entram assim na mocidade, sem tentar esconder as partes do corpo que nunca lhes
disseram que deviam ser escondidas.
- A senhora acha, então, que
elas fazem isso sem maldade? - obtemperou o Dr. Austregésilo, tomando
nota na carteira.
- Perfeitamente, doutor! Elas fazem
isso com a maior inocência do mundo. Os índios não se
apresentam inteiramente nus aos olhos dos civilizados? E não o fazem
ingenuamente, inocentemente, por terem sido criados assim? Criemos as meninas
com decoro, vestindo-as com discrição, e teremos moças
discretas, pudicas, decorosas, ciosas do seu corpo e dos seus encantos.
E, dizendo-me isso, acrescentou,
severa, calçando as luvas, deixando-me ver, pelo vestido decotado e sem
mangas, dois sinaizinhos negros, quase imperceptíveis, que se lhe
aninhavam um pouco abaixo das axilas:
- Assim é que eu fui criada!
XVI
AS CRUZES
17 de fevereiro
As senhores grazinavam, como periquitos
em roçado, em torno da mesa do chá, quando Mme. Gama Simpson se
curvou, rindo com alarido, sobre a toalha de linho bordada de cegonhas
vermelhas, numa escandalosa explosão de alegria. Segurando em uma das
mãos a taça de porcelana e na outra, fechadinha como um
botão de rosa, uma torradinha cor de ouro, a linda criatura ria
despreocupadamente, agitando-se na cadeira, quando, com o movimento do corpo,
lhe saltou do colo de neve e rosa, pela janela de seda do decote, a sua custosa
cruz de brilhante, fugindo-lhe para o ombro, com o risco de perder-se.
- Cuidado com a cruz, madame! - avisou,
atencioso, do outro lado da mesa, o conselheiro Atanásio, que observava,
sem perder um movimento do solo, as ondulações do Calvário
e os arredores da Jerusalém.
D. Lisete olhou o decote, apanhou a
cruz fugitiva, e, aconchegando-a à carne rosada, queixou-se, risonha:
- Também, que idéia esta,
de inventar cruzes para o colo da gente!
- Vossa Excelência não
sabe, então, o que elas significam, na opinião de Tabarin?
As senhoras mostraram-se curiosas de
conhecer a origem daquele costume, e o antigo palaciano começou, medindo
as palavras:
- Na Idade Média, quando eram
deficientes os meios de comunicação de cidade para cidade, de
aldeia para aldeia, de um castelo para outro castelo, os monges, que dominavam
nos países barbarizados da Europa tomaram a si a incumbência de
marcar os caminhos, cujas direções eram assinaladas por meio de
cruzes. Ao deparar, na mata ou na montanha, um destes símbolos da
cristandade, o viajante já sabia que não errara o seu roteiro, e
que a estrada era, mesmo, por ali...
- Mas... - interrompeu, impaciente,
Mme. Souza Batista.
- Espere... - implorou o conselheiro.
E continuou:
- Mais tarde, com o advento das modas femininas,
e com o aproveitamento, por parte das mulheres, de todas as conquistas do
homem, entenderam elas de utilizar o mesmo símbolo, com a mesma
significação.
- A cruz no colo das mulheres quer
dizer, então, alguma coisa? - interrompeu, franzindo a testa, Mme.
Werther.
- Evidentemente, minha senhora! -
tornou o conselheiro.
E explicou:
- Elas estão dizendo, como nas
montanhas antigas, que... o caminho é por ali!
Quando o conselheiro terminou a sua
narrativa, Mme. Simpson procurou a sua cruz de brilhantes, e tomou um susto.
Com os seus modos estabanados, a cruz havia, de novo, abandonado o decote, e
fugido para trás...
O PERFUME
(Sobre uma frase de
Dumas Filho)
20 de fevereiro
Saída do colégio em
dezembro último, Angelita recebeu da sua mamãe a promessa de um
vestido de passeio, um verdadeiro vestido de moça, escolhido por ela
mesma, assim que regressassem da fazenda,
Feita a encomenda a uma das modistas do
bairro, foi esta, dias depois, levar o vestido à última prova.
Contente, feliz, pulando pela casa, era com uma jovialidade descomedida que
Angelita recebia a costureira. E não foi sem um certo calor na face, e
sem um certo tremor nos dedinbos afilados, que desabotoou a sua blusinha leve,
patenteando os encantos do seu colo virgem, do seu corpo desabrochante, aos
olhos daquela senhora estranha, habituada a ver, certamente, por aí, por
exigência do seu próprio ofício, centenas de corpos
pecadores.
- Tire o corpinho também,
mademoiselle, - ordenou a modista.
A menina enrubesceu mais:
- O corpinho, também?
Minutos depois, trajando o seu lindo
vestido novo, Angelita abria de par em par a porta da sua alcova, onde estivera
encerrada, sozinha, com a costureira. Estava deslumbrante. Era um maravilhoso
figurino de verão, bordado a seda, com um rosário de pequeninas
flores à cintura, que lhe punha em destaque, no colo e nos
braços, a imaculada frescura da pele. Curvando-se, risonha, numa grande
mesura, foi a mocinha perguntando, logo, a D. Adelaide:
- Então, estou linda?
A ilustre senhora, que a esperava na
sala de jantar, junto à mesa, abriu os braços, para receber a
filha.
- Que tal? - tornou a moça.
D. Adelaide beijou-a nos cabelos
castanhos e, com um sorriso de bondade, em que lhe ia toda a sua alma, externou
o seu pensamento:
- Está muito bom, muito lindo,
mas falta uma coisa.
A menina arregalou os grandes olhos
escuros, imobilizando no rosto um sorriso de espanto.
- É aqui! - explicou a senhora,
pondo-lhe a mão aberta sobre o colo de neve.
E abraçando a menina:
- As mulheres, minha filha, são
uma essência delicada, de que o vestido é um vidro desarrolhado,
por onde se evola, insensivelmente, o pudor da mulher...
E lançou, maternalmente, sobre o
colo da filha, a macia misericórdia do seu claro lenço de seda.
EXPERIÊNCIA
23 de fevereiro
Companheiros de mocidade, o comendador
Otacílio Fagundes e o desembargador Portela haviam se separado, de
repente, em uma das numerosas encruzilhadas da vida. Dedicados, um ao
comércio, e outro a magistratura, havia cada um deles seguido o seu
caminho, apertando a mão ao companheiro. E nunca mais tiveram noticia um
do outro
E, no entanto, haviam os dois
prosperado. Dirigindo-se para Santos, onde um tio, velho comerciante de
café, lhe oferecia um lugar no escritório, progredira Fagundes
rapidamente, até que se tornara, por morte do tio, o único
proprietário da casa. Tomando o rumo da Corte, com a sua carta de
bacharel, o amigo não havia sido menos feliz. Hábil, maneiroso,
aproveitando as situações sem quebra de dignidade, não lhe
foi difícil um cargo de juiz em pequena província do norte, onde
regressara, afinal, ao sul, como desembargador aposentado.
Quarenta anos haviam decorrido, quase,
sobre a separação dos dois infatigáveis campineiros,
quando, um destes dias, indo receber um cheque no Banco do Brasil, o comendador
Fagundes ouviu gritar, na pagadoria, ao portador de uma ordem de pagamento: -
Francisco Ribeiro Portela!
Atendendo ao chamado, aproximou-se
empertigado ainda, um ancião de sessenta anos, vestido com
distinção, demonstrando nos modos, no porte, nas maneiras,
saúde e prosperidade.
Ao anúncio daquele nome, o
comendador Fagundes, que assinava o cheque em mesa próxima, voltou-se,
rápido, com o peso das suas banhas e dos seus setenta anos, e encarou o
outro. E encaminhando-se para ele, indagou:
- É o Francisco Portela, de
Campinas?
- Sim, senhor.
- Eu sou o Otacílio Fagundes.
Um abraço enorme, que mais
parecia um primeiro assalto de luta romana, selou esse encontro de duas
saudades.
- Fagundes!
- Portela!
Três minutos depois estavam os
dois velhotes a um canto, de pé, enxugando os olhos, trocando noticias
da vida e da fortuna. O capitalista contou, primeiro, como ficara com de a casa
do tio; como lhe corriam admiravelmente os negócios; como lhe havia
sido, em suma, favorável, no mundo, a roda do Destino. E o magistrado
contou-lhe, depois, como subira, como prosperara, como enriquecera, como havia
chegado, enfim, ao mais alto posto da sua carreira, no Estado. De repente,
porém, o comerciante indagou:
- E constituíste família?
- Eu? Não. Continuei solteiro. E
tu?
- Eu casei-me.
- Casaste?
- É verdade.
- Há muito tempo?
- Não. Há dois anos. Casei
com uma menina de vinte anos, minha afilhada, e já tenho um filhinho.
- Um filho? - indagou o desembargador,
recuando.
E ao ouvido do comendador, indignado:
- E de quem tu desconfias?
ILUSÃO
25 de fevereiro
Abraçado a um poste de
iluminação elétrica, tonto de cerveja e de fome, o velho
boêmio levantou os olhos para as estrelas longínquas, naquela
madrugada fria, sentindo a terra, em torno, estremecer e rodar. Com medo de
cair, o notívago apertou mais o poste de encontro ao peito, fechou os olhos
e começou a sonhar.
A principio era um monte de moedas de
ouro, postas umas sobre as outras, que lhe dava quase pelos joelhos. De
repente, o monte começou a subir, a crescer, a avolumar-se, atingindo a
sua altura e galgando o espaço, rápido, como um caule dourado de
crescimento vertiginoso. O boêmio acompanhava o desenvolvimento daquela
árvore curiosa, quando, no escândalo daquela ascensão, lhe
viu desaparecer a ponta nas nuvens, estabelecendo uma corda de ouro, fina e imensa,
ligando a terra ao céu. Olhava-a ele admirado, quando ouviu uma voz, que
lhe dizia:
- Sobe, Alfredo!
O notívago segurou-se à
corda de ouro, feita de moedas acumuladas, e principiava a subi-la, quando
esta, de repente, estalou, partindo-se, fazendo-o vir aos trambolhões pela
altura, estatelar-se, com força, no chão.
Abrindo os olhos, o boêmio
sentiu-se assentado no calçamento da rua, ao lado do poste. Espantado,
passeou a vista em redor, e, detendo-a em certo ponto, viu, no asfalto,
caída da algibeira de algum transeunte, uma pequena moeda de cem
réis. Estendendo a mão, apanhou-a, revirou-a nos dedos,
examinou-a, e, ao fim de tudo isso, pensou, num sorriso de consolo:
- Felizmente, sempre ficou, no
chão, a ponta da corda!
E metendo o níquel no bolso,
continuou, aos trancos, o seu caminho.
FERRABRÁS
28 de fevereiro
O coronel Otaviano de Meireles,
comandante de um batalhão da Guarda Nacional aquartelado em
Niterói, era conhecido em toda a cidade pela sua valentia, e, em
especial, pela sua intransigência em questões de honra. Casado com
uma das senhoras mais formosas do bairro, era tal o pavor infundido pelo seu
nome, que ninguém se atrevia, sequer, a levantar os olhos para a sua
cara metade. Aquele que tal fizesse, era, na opinião de toda a gente, um
homem liquidado.
Foi por esse tempo, e quando mais se
acentuava, em toda a praia de Icaraí, a fama da coragem do coronel, que
passou a residir na vizinha capital o jovem advogado Dr. Otacílio
Fernandes, que não era coronel, nem major, nem capitão, nem
tenente, mas fora, sempre, um dos mais famosos namoradores de Niterói.
Proprietário do prédio em que o coronel residia, não foi
necessário grande esforço da parte do moço para travar
amizade com o inquilino; e esta foi tão rápida, e tão
sincera, que, uma semana depois, era o Dr. Otacílio convidado para um
almoço, no primeiro domingo, na residência do brioso militar.
Chegado o dia, lá estava, na
praia de Icaraí, o jovem capitalista. Risonho, amável,
dissimulando com um sorriso gentil a austeridade da sua fisionomia marcial, correu
o dono da casa ao portão, para receber o convidado e fazê-lo subir
até à sala, onde madame já o esperava, obsequiosa e linda,
com o rosto a emergir, como uma grande rosa, das espumas de neve do seu
elegantíssimo "peignoir" de linho e renda.
- O Dr. Otacílio Fernandes -
apresentou o coronel.
E ao recém-chegado:
- Minha esposa...
Minutos depois, sentados à mesa
redonda, em que havia apenas três talheres, a palestra corria jovial,
feliz, entre petiscos saborosos e sorrisos significativos, quando o telefone
tilintou. Era o procurador do coronel que reclamava a sua presença,
urgente, na estação das barcas, para ultimação de
um negócio inadiável.
- Diabo! - exclamou o bravo militar.
Tenho de ir, não há remédio!
E virando-se para o capitalista, enquanto
desamarrava o guardanapo:
- Esteja à vontade, doutor.
É questão de meia hora. Fique por aí; eu não
demoro!
E para a esposa:
- Orminda, faze as honras da casa; eu
venho já!
Mal o coronel tomou o bonde, duas
taças se chocavam no ar, por cima da mesa, festejando ruidosamente
aquele encontro, há tanto desejado. E de tal forma foi a
saudação, que, ao reentrar em casa, o coronel foi encontrar os
dois no seu gabinete, num colóquio de excessiva intimidade. Apanhado em
flagrante, o advogado pôs-se de pé, lívido. Apoiado na
porta, que empurrara, o coronel encarou-o trovejando:
- Sim, senhor, Sr. Dr. Fernandes!
Pálido, trêmulo, o
advogado lembrou-se da fama do coronel, e sentiu que chegara a última
hora da sua vida.
- Sim, senhor! - tornou o militar.
E abrandando a voz:
- Você não tem medo de uma
congestão?
INDEFESA
3 de março
O Dr. Edgard esperava há meia
hora na sala de visita a formosa dona daquela casa, e evocava, saudoso, o tempo
em que a conhecera.
Fora há seis anos, em uma festa
náutica,
- Ora, empreste-me! sim?
Ele voltou-se, e viu que o seu binóculo
estava ao serviço de dois olhos tão verdes como as águas,
e, preso deles, não conseguiu mais, nesse dia, acompanhar um
número sequer daquela campanha esportiva, travada nas ondas.
Dentro de seis meses estavam noivos. E
um dia, por um arrufo, por um breve ciúme sem causa, acabou-se o
noivado, partindo ele para a Alemanha, a aperfeiçoar os estudos, ficando
ela, jovem e linda, no Rio, onde se casara, afinal, com um advogado, quatro
meses antes do seu regresso.
Ele sabia do casamento quando a
encontrou, uma tarde, na Avenida:
- Então, de volta, doutor? -
exclamou a maravilhosa criatura, estendendo-lhe a mão pequenina, numa
grande alegria.
- É verdade. E venho
encontrá-la mais formosa, mais risonha, e, com certeza, mais feliz!
- Sabe que me casei? - tornou a
moça, despedindo-se - Apareça em nossa casa. Teremos imenso
prazer em recebe-lo.
E apertando-lhe a mão, com um
olhar, que era um relâmpago:
- Vá! Sim?
Recapitulava o jovem médico
esses episódios, origens daquela visita, quando ressoaram passos na
escada, e surgiu à porta da sala, deslumbrante de graça e de
mocidade, a figura que mais o encantara na vida.
- Oh!... - exclamou, deslumbrado,
pondo-se de pé.
Sentaram-se os dois, pálidos,
entreolhando-se
- Estás deslumbrante, Ecilda!
Estás tentadora... maravilhosa... irresistível!
E, de súbito, cerrando os
dentes:
- Se tu não gritasses... eu me
precipitaria sobre ti, cobrindo-te de beijos!
A moça, trêmula, os
lábios entreabertos, olhou-o nos olhos, e, levando à garganta a
mãozinha branca, sussurrou, apenas, a meia-voz, tranqüilizando-o:
- Estou... rouca!
E fechou os olhos...
A SANTA CASA
(Paródia a uma
sátira de Emílio de Menezes)
5 de março
As nuvens começavam a tomar uma
cor arroxeada, anunciando o fim do crepúsculo e o inicio de uma noite
soturna, quando alguém bateu, medroso, à luminosa porta do
Céu.
- Quem bate? - gritou, de dentro,
São Pedro, arrastando as suas alpercatas de couro e tilintando,
trêmulo, a sua enorme penca de chaves.
- Sou eu! - respondeu de fora o
recém-chegado.
Aberta a portinhola do
parlatório, informou o retardatário haver sido despachado da vida
naquele dia, com destino à mansão dos justos, onde devia, portanto,
ser admitido.
- Aqui? - observou o apostolo,
espantado. - Aqui. não. Todas as pessoas que tinham de entrar hoje,
já entraram. Não falta mais nenhuma.
E bondoso:
-- Não será engano seu,
meu filho? Você não terá sido despachado para o
Purgatório?
O peregrino admitiu a hipótese
de uma confusão, e, saltando de nuvem em nuvem, como quem salta de
rochedo em rochedo, foi ter à porta de fogo do Purgatório, onde
bateu.
- Quem vem lá? - trovejou um
anjo, escancarando, com um gancho, a rubra fornalha das penitências.
O desventurado deu o seu nome, e,
momentos depois, reabria-se o forno.
- Há engano na
direção, camarada! - informou o guardião, soprando,
severo, a sua vermelha espada de chama. - O seu lugar não será no
Inferno? Aqui, é que não é. Não consta nada sobre a
sua pessoa!
E, fechando a fornalha, deixou-o na
amplidão, tristonho, solitário, abandonado, tendo aberto, apenas,
à sua frente, o caminho escuro do Inferno. Resolvido a cumprir o seu
destino, tomou o infeliz esse rumo, até ir ter, corajoso, à porta
da caverna formidável.
- Quem é? - rugiu, de dentro,
uma voz que parecia um trovão.
Tremendo de pavor, o mísero deu
o seu nome, e esperava, já, o instante de ser precipitado nas enormes
caldeiras ferventes, quando o portão monstruoso se abriu, dando passagem
aos chavelhos de ferro de Belzebu.
- Quem o mandou para cá? -
indagou o bruto, acendendo os olhos.
- A mim? - gemeu o desventurado. -
Ninguém. Fui ao Céu, disseram-me que não era lá.
Fui ao Purgatório, e informaram-me a mesma coisa. Logo, é aqui,
por força.
O Diabo meditou um instante, consultou
umas chapas de ferro incandescente que estavam próximas, e protestou,
firme:
- Aqui, também, não
é!
- Não?
- Não; absolutamente! - tornou o
Capeta. - O seu lugar deve ser mesmo no Céu. O Pedro está muito
velho, já, e, com certeza, não viu bem. Volte lá! Volte
lá!
Um momento depois, estava o
desgraçado, de novo, à porta do Paraíso.
- Outra vez? - observou São
Pedro, paciente.
- Outra vez, sim, - confirmou, grosso,
a vítima. - O meu lugar não é no Purgatório,
não é no Inferno; deve ser, forçosamente, aqui. Veja bem!
O apóstolo enforquilhou os
óculos no nariz, abriu o livro em que estavam registrados os nomes das
almas, folheou, folheou, folheou, e, de repente, voltando-se, indagou:
- Diga-me uma coisa: onde foi que
você morreu?
- Eu? Na Santa Casa do Rio de janeiro!
- respondeu a vítima.
E o chaveiro, escancarando a porta:
- É aqui mesmo, entre!
E mostrando o livro:
- A culpa não foi minha, filho!
Você devia vir para cá, daqui a vinte anos!
E aborrecido:
- Esta Santa Casa tem me estragado a
escrita!...
O GATO E O PASSARINHO
8 de março
A encantadora Palmirinha Camargo havia
concluído o seu curso de datilografia na Escola Remington, quando, uma
tarde, participou, contente, a Dona Brasília:
- Sabe, mamãe, arranjei um
emprego excelente. O ordenado é de trezentos mil réis!
A bondosa senhora deixou a costura,
endireitou os óculos, e, chamando a filha para perto de si, ordenou:
- Senta aí. E onde é esse
emprego?
A moça, risonha e inocente,
explicou:
- É no escritório do Dr.
Alexandre.
- E quem é esse Dr. Alexandre?
É aquele que esteve, outro dia, no baile da Violeta?
Palmirinha confirmou, ingênua, e
Dona Brasília, tomando-lhe as, mãos, retorquiu, sensata:
- Queres que te fale com franqueza,
minha filha? Esse emprego não te convém.
A menina fixou com os seus grandes
olhos claros e puros a doçura do rosto materno, e a boa senhora
continuou:
- Tu és uma jovem inexperiente,
um anjo que não conhece os espinhos do mundo. O Dr. Alexandre é
um moço esperto, um homem habituado a lidar com as fraquezas alheias. Se
se tratasse de um escritório grande, de uma casa em que trabalhassem
outras moças ou outros advogados, eu não teria receio; mas,
assim, com ele e tu, sozinhos, no escritório, o meu
coração não poderia ficar descansado.
- Oh, mamãe! - estranhou a
moça, corando. - A senhora não tem confiança em mim?
Dona Brasília compreendeu a
ofensa que fizera àquele pedaço do seu coração, e,
para não insistir, atalhou:
- Tenho, minha filha, tenho toda a
confiança em ti.
E concordou, beijando-a nos olhos:
- Está bem, vai. Amanhã,
podes ir para o teu novo emprego.
A moça pulou, contente, beijando
sofregamente a testa, a cabeça, a face, a boca e os olhos maternos, e,
à noite, ia recolher-se, quando D. Brasília chamou:
- Palmira?
- Senhora! - acudiu a, mocinha.
Bondosa e grave, a digna senhora pediu:
- Traze daí a gaiola do teu
canário.
A moça foi à copa, e
voltou com a gaiola, onde um canarito dormia, sossegado, muito encolhido, muito
amarelo.
D. Brasília abriu a portinhola
daquele carcerezinho de ouro, e, indo à cozinha, voltou com o gato na
mão.
- Para que é isso, mamãe?
- indagou a moça, espantada.
Para meter na gaiola, com o
canário.
- Oh, mamãe! - gemeu a mocinha,
horrorizada.
- Que mal faz? - indagou D.
Brasília, sorrindo significativamente para a filha. Tu não tens
confiança no teu canário?
Palmirinha compreendeu o alcance da
lição, e atirou-se nos braços maternos, prometendo, entre
soluços:
- Eu não irei, minha
mãezinha; deixe estar, eu não irei!
E não foi. No dia seguinte,
contrariando as esperanças do gato, o canário amanheceu feliz e
simples, cantando na sua gaiola...
A NOIVA DO DONATO
11 de março
- Foi um caso espantoso, único,
inacreditável, Sr, conselheiro, esse de que fui testemunha, e que eu lhe
conto, embora o senhor já o tenha lido no "D. Quixote".
E puxando o relógio, para ver se
ainda havia tempo, o ilustre advogado santista começou, em estilo
rápido, vivaz, nervoso, pictural, a referir-me a horrível
história, sob o alpendre da Central, à hora, quase, do noturno de
luxo:
- "Era no sitio do "Pau
d'Alho",
Uma olhadela ao relógio, e
continuou, telegráfico:
"Violeiro: o Chico Messias.
Dança-se "baile" no terreiro. Chico Messias tira da toeira uma
coriza lacrimosa, de valsa sem motivo."
E acrescentou, num parênteses:
"O caiçara diverte-se sem
sorrir. Diverte-se por obrigação. Sua alegria é uma
hipótese triste, socavada de ancilóstomos."
E reatou, descritivo, unindo o gesto
à palavra, dando voltas no meio do alpendre:
- "Damas e cavalheiros vão
e vem, e tornam a ir, e tornam a vir, e dão-se as mãos, e
balanceiam, e remoinham, e desnalgam-se, numa choréa que tem passos de
lanceiros, atitudes de Pedowa e desengonços tupinambás."
Outra interrupção, para
um surto histórico:
"D. Pedro Fernandes Sardinha,
quando foi do seu caso com os Aimorés, devia ter assistido a paulovices
muito semelhantes."
E tornando, com uma soberba vivacidade
de descrição:
"Ela, a noiva, dentro do
vestidinho clássico, de manzuk branco, o filó pendente da
mão. Tem olhos baixos e constrangidos de protagonista. Ele, traz a
fatiota de elasticotine, que tem reflexos envernizados e o suplemento da
gravata escura, de tricô frouxo, escorrida pelo "adão".
E descreve a festa:
- "Ambos assistem sem apetite o
apetite dos convidados. Há um mastigo odioso de bocados grandes, e o
cair do bocado, goela abaixo, com um rumor de rã assustada em
pântano adormecido. Comem! E comem!
Nova consulta ao relógio, e a
descrição despenhou-se, para ganhar tempo:
"Hora da sobremesa. O
Inocêncio, professor publico, vai falar! Recuo de cadeiras; engolir de
últimos bocados; bigodes engordurados que se chupam. -
Atenção, senhores! O Inocêncio vai falar."
Como se estivesse na festa, eu
próprio me empertigo, e o ilustre viajante repete, assombroso:
"Vai falar o Inocêncio. E
começa tan, tan, tan, e meus senhores, e o himeneu, e a
família, e o tugúrio, e mais isto, e mais aquilo e... e.... e o
Inocêncio perde o fio, e embrulha, enrola, engole, mastiga,
encaroça, embatuca. Estende-se um vágado coletivo, pesado como um
paralelepípedo. O Inocêncio, que empunha o copo, guina a boreste
gorgolões de cerveja."
Noutro parênteses, o meu amigo
sentencia, outra vez:
- "Há
situações que obstruem a vida como caroços de jabuticaba!"
E engatando, de novo, com os olhos no
trem, desabou, história abaixo:
- "Coitado do Inocêncio!
Felizmente, o Dito Pintassilgo, que lhe estava ao lado, encontrou uma
saída. Levanta-se, sorri, braceja, e, alto e sonoramente:
- "Viva a noiva!
"O viva desonerou aquele
constrangimento, como um laxativo. Um alívio geral.
- "Viva!...
"E o Dito prosseguiu, vitorioso:
- "Viva os óio da noiva!
- "Vivôooo!
- "Viva os dente biturado da
noiva!
- "Viva!
- "Viva o pescoço da noiva!
- "Viva!
- "Viva os peito da noiva!
- "Viiiiva!
Tomando fôlego, o narrador
continuou, elétrico:
- "Os vivas desciam, conselheiro,
assustadoramente, noiva abaixo. O noivo, o Donato, piscou, por três
vezes, os olhos, apreensivo. De repente, remexe-se, mergulha a mão pela
cinta, toma da garrucha trochada, coloca-a à sua frente, na mesa, e, com
aquele sorriso seu, desdentado, e a vozinha gutural, oitava acima:
- "Oie, seus convidado: não
é por nada: mas eu queria apreveni, que os "viva" que
passá do imbigo da noiva pra baixo... eu sapeco!"
Último apito. Um pulo do meu
amigo, um barulho de ferragens, um resfolegar fatigado de máquinas. E o
trem desapareceu.
O DATILÓGRAFO
15 de março
Trajando o mesmo figurino, a mesma
seda, as mesmas cores, as duas irmãs, tão distintas na sua
mocidade, na sua graça e no seu espirito, entraram, na sessão das
2,15, no Cinema Avenida. Estavam as duas sentadas uma ao lado da outra,
na mesma fila, quando na primeira parte da "fita" penetrou no
salão um vulto masculino, que, tateando na meia escuridão
desnorteadora de quem vem da claridade, se foi sentar junto à mais jovem
das duas formosas espectadoras. No primeiro intervalo, desabrochadas no teto
estucado as constelações de fogo das lâmpadas, a moça
olhou, de soslaio, o seu vizinho, que a examinava, por sua vez, com dissimulada
indiferença. Era um rapaz moço ainda, de rosto escanhoado e face
morena, que vestia com apuro, patenteando na correção das
maneiras, na superioridade do olhar, na displicência dos gestos, uma
certa distinção.
Apagadas, de novo, as luzes,
começavam as duas a olhar a continuação do
"film", quando a vizinha do rapaz sentiu, de leve, no seu cotovelo,
um contato estranho. Olhou, sem voltar a cabeça, e viu: era o rapaz que
avançava pelo seu braço, levemente, suavemente, o pelotão
dos cinco dedos, com um jeito de quem toca piano, ou de quem sonda
cautelosamente o terreno. Percebendo a indiferença da vítima, os
dedos iam avançando, marchando, caminhando, roçando ligeiramente
com as pontas a epiderme sedosa da moça, e já estavam perto do
ombro, a caminho do colo, quando a mais velha desconfiou de alguma coisa, e
indagou da irmã:
- Quem é esse moço que
esta aí a teu lado?
E ela, de modo a ser ouvida pelo
vizinho:
- Não sei; mas parece que
é... datilógrafo!
Quando a sala clareou e a
"Remington" consertou o decote, o moço havia desaparecido.
O MILAGRE
17 de março
Um escritor francês, cujo nome
complicado me fugiu, como um pássaro, da gaiola da memória,
escreveu seiscentas páginas de prosa cerrada sobre a psicologia do
milagre. Acha ele que os milagres são possibilíssimos,
esquecendo-se, entretanto, de citar um episódio famoso, que circula,
entre nós, com diversas modalidades, nos anais da anedota nacional.
D. Eufrosina estava doente do
fígado, e submetia-se, uma tarde, sem o assentimento do marido, ao exame
que o Dr. Abdenago Fortuna lhe exigira, quando bateram repentinamente no
portão da casa.
- Minha Nossa Senhora! é meu
marido! E eu não queria que ele soubesse que eu me submeti a exame
médico! Como há de ser, meu Deus?!...
E repetia:
- Como há de ser, minha Nossa
Senhora?!!...
As mulheres possuem, felizmente, uma
qualidade providencial que falta aos homens: removem com facilidade os
obstáculos mais graves, mesmo os que nos parecem, à primeira
vista, irremovíveis. E foi essa virtude que socorreu, nessa tarde, D.
Eufrosina, a qual, criando ânimo, pediu, aflita, ao jovem
esculápio:
- Fuja, doutor! Pelo amor de Deus,
fuja! Esconda-se ali, depressa!
E apontou o alto do guarda-vestidos,
para onde o médico subiu, trêmulo, afim de evitar um
escândalo e uma tragédia.
Dois minutos depois o chefe da casa
batia à porta da alcova, onde a mulher o metralhou, logo, com uma
saraivada de beijos.
- Meu amor! -- exclamava a moça,
abraçando-o.
- Meu amor! - plagiava o marido,
correspondendo.
Sentados no leito, passaram os dois a
conversar, íntimos, sinceros, carinhosos. E discutiam matéria
econômica, isto é, as dificuldades financeiras do casal, quando,
em certo momento, o marido aludiu a uma letra de vinte contos, que devia pagar
naquele mês.
- Coitado! - soluçou a mulher. -
Deixa estar, que tudo será arranjado!
E, levantando os olhos para o teto, com
a fé no coração:
- Aquele que está lá em
cima, lá no alto, há de nos ajudar! Tem confiança!
E assim aconteceu. Para pagamento da
letra, o Dr. Abdenago, aquele "que estava lá em cima", entrou
com dez!
A SURPRESA
19 de março
Educada no tumulto das rodas elegantes.
cujas festas mundanas freqüentava desde criança, Mlle. Altair havia
se tornado, aos dezessete anos, uma das moças mais em evidência na
sociedade do Rio de janeiro. O pai, médico ilustre, mais devotado
à família da ciência do que, talvez, à ciência
da família, descurava, em absoluto, as pequenas coisas do lar. E era de
tal forma, nesse ponto, a sua despreocupação, o seu descaso
ingênuo, mas prejudicial ao próprio conceito, que Mlle. Altair se
tornou notável, em breve, na cidade, pelo exagero escandaloso dos seus
vestidos.
As suas "toilettes" eram,
realmente, clamorosas, e em inteiro desacordo com a inocência da sua
idade. Trajando sempre as fazendas mais leves, a sua preocupação,
sugerida por figurinos inadequados, consistia em deixar à mostra a
perna, até o joelho, e o colo, até o estômago. Quanto ao
resto do corpo, não havia quem não o adivinhasse na
transparência indiscreta do crepe da China ou da seda lavável, que
lhe modelavam sensualmente, num abraço voluptuoso, os seios
túrgidos, a cintura flexível, as ancas ondulantes, patenteando,
como num desafio à bestialidade humana, o conjunto harmonioso das
formas.
Um dia, foram os círculos
elegantes surpreendidos com uma notícia sensacional: o Dr. Edmundo
Figueira, um dos espíritos mais equilibrados e vigorosos da nova
geração de juristas brasileiros, havia pedido
Realizado o casamento, em que a noiva
se apresentou mais nua do que nunca, e despedidos os convidados, penetraram os
noivos, felizes, na alcova nupcial. Envolta, de leve, na seda finíssima,
ou, antes, na névoa imperceptível do vestido, a
recém-casada fazia lembrar as estátuas de mármore, veladas
convencionalmente para o momento da inauguração. Anfitrite, com
os pés mergulhados na espuma e vestida, apenas, pela bruma fugitiva do
Arquipélago, não seria, talvez, mais nua, e mais bela!
Entreolhavam-se, os dois, na alcova
silenciosa, ninho de ouro e seda armado para um casal de pombos amorosos,
quando o noivo se adiantou, e, sorrindo, anunciou a moça, tomando-lhe,
carinhoso as mãos geladas e brancas:
- Sabes, meu amor, que eu te preparei
uma novidade?
- Tu? Que é? - indagou a noiva,
casando, de repente, a curiosidade à aflição.
O noivo suspendeu os travesseiros da
cama, e, tirando dali uma camisa de noite, trabalhada em seda branca, e opaca,
afogada até o pescoço e descendo até o tornozelo. pediu:
- É para que me faças uma
surpresa, dando-me uma sensação inédita nesta noite de
casamento.
E entregando-lhe a camisa:
- Eu nunca te vi... vestida!...
AS FOLHAS
21 de março
Lançados para longe da
pátria pelos movimentos revolucionários que estalaram depois da
guerra, o conde Ricardo e o príncipe Romualdo conversavam, displicentes,
naquele começo de verão oriental, à sombra do grande
platano do parque do hotel, trocando idéias e fazendo comentários
discretos sobre a situação política dos países em
que haviam reinado. Estirados nas suas cadeiras de viagem, mostravam, ambos, um
profundo desinteresse pelas coisas vulgares do mundo. E era por isso que, de vez
em quando, mergulhavam em silêncio profundo, quedando a acompanhar com os
olhos, melancólicos e soturnos, as oscilações da
fumaça clara que atiravam, preguiçosos, para o ar.
O dia estava morno, quieto, parado,
anunciando para a noite uma nova tempestade do Deserto. E era nisso que
pensavam os dois fidalgos ilustres, despojos elegantes de dois tronos
desmoronados, quando o príncipe começou a seguir com os olhos,
uma a uma, as folhas amarelas que se desprendiam da árvore, e que se vinham
espalhar no chão, estendendo pelo solo um crespo tapete de
topázio. De repente, lançando para o espaço uma nuvem de
fumaça cheirosa, o príncipe observou, alisando a barba negra e
cerrada:
- Como os homens se assemelham
às árvores!...
O conde Ricardo fechou o livro que principiara
a ler, e, erguendo para a fronde os seus olhos muito azuis e muito doces,
esperou a explicação do companheiro.
E o príncipe continuou:
- Enquanto a árvore está
verde, e tem seiva, nenhuma folha o abandona, senão arrancada à
força. Venha, porém, o verão, e, com ele, a falta de
seiva, a decadência da planta, e nenhuma quer ficar mais presa ao ramo!
Compreendendo o símbolo, o conde
acentuou, sacudindo, triste, a cabeça leonina:
- São como os amigos...
E o príncipe confirmou:
- São como os amigos...
No silencio do dia, as folhas, uma a
uma, continuavam a cair...
AS JACOBITAS
25 de março
Chegada há pouco do Oriente,
onde visitara, em companhia do esposo, alguns países exóticos, D
Margaridinha descrevia aos seus vizinhos de mesa, no banquete oferecido ao
casal pela Exma. viúva Santos Soutelo, algumas curiosidades que mais lhe
haviam ferido a atenção.
- A coisa mais interessante que eu
assisti, - dizia, sorridente, enxugando com o guardanapo de linho os seus
polpudos lábios cor de cereja, - foi um costume dos jacobitas, seita
religiosa cujo mosteiro visitamos no Malabar.
As damas vizinhas descansaram o talher
para ouvir melhor, e D. Margaridinha, irrequieta e risonha, contou:
- Quando um jacobita se casa, o seu
primeiro cuidado consiste em ir ao templo no mosteiro, e pedir ao seu Deus que
lhe dê uma descendência numerosa e sadia, para maior esplendor da
religião. Feito isso, toma diversos pedaços de papel, escreve em
cada um deles um nome de homem ou de mulher, mete-os em um canudo de bambu que
os sacerdotes lhe oferecem, e, colocado a certa distancia do ídolo,
sopra o canudo, com toda força. Impelidos assim, os papeluchos partem
rodopiando e quantos caiam sobre o altar, tantos serão os filhos que o
casal deve ter!
- Esplêndido! - exclamaram as
senhoras, rindo. - Esplêndido!
À observação,
porém, de uma que lhe ficava mais próximo, a linda viajante
objetou, jovial:
- Eu? Experimentei, sim!
E sem olhar para o marido, que a
fixava, severo, continuou:
- Alfredo tem, como não é
segredo, um desejo enorme de ter um filhinho. E é natural, coitado!
Enquanto estamos no vigor da idade, os filhos não nos fazem falta,
porque viajamos, passeamos, nos divertimos. Mas, depois, na velhice, é
que se sente a tristeza, o abandono, a solidão... Pensando nisso,
nós fomos, um dia, no Malabar, ao templo dos jacobitas.
- A senhora?
- Então? Era o último
recurso, filha! Chegando lá, Alfredo escreveu uma porção
de nomes, bem uns cinqüenta, em outros tantos pedaços de papel,
meteu-os no bambu e soprou com toda a força.
- E quantos caíram no altar? -
indagaram as senhoras, interessadas.
E madame:
- Nenhum, meninas, nenhum!
E explicou:
- Ele, na sua ansiedade, havia posto
papel demais no bambu, e...
- E...
- Entupiu o canudo!...
E soltou uma das suas gargalhadas
sonoras, altas, musicais, enquanto o marido, vermelho, se engasgava, a um
canto, com a sobremesa, à semelhança dos canudos do Malabar...
A CHÁCARA
29 de março
Nestes tempos, em que, embora com
dinheiro no cofre, no Banco ou no bolso, não se encontra, no Rio, uma
casa, mesmo de segunda ordem, para alugar ou adquirir, é de meter inveja
a felicidade do comendador Severiano Braga de Souza, com a sua chácara
monumental, situada, como numa floresta, em pleno coração do bairro
de Botafogo.
A propriedade do comendador Severiano
constitui, realmente, um dos orgulhos do Rio de janeiro. O prédio, que
pertenceu ao saudoso visconde de Coroatá, e, mais tarde, à
baronesa de Itapirú, é, depois das reformas a que foi submetido,
um verdadeiro palácio. O que, porém, valoriza, ainda mais, tudo
aquilo, é o terreno beneficiado pela mão dos seus antigos
proprietários, e conservado com um zelo religioso pelo
opulentíssimo capitalista que atualmente o possui.
Informado da existência dessa preciosidade,
eu próprio me fiz, um destes dias, convidado, e atirei-me a visitar o
comendador. E foi, para mim, um deslumbramento aquele conjunto de maravilhas,
em que se casam, numa suave harmonia que embala os sentidos, a
inteligência da Arte e a graça inocente da Natureza.
- Quer, então, ver esta sua
casa?... - observou, satisfeito, o antigo presidente do Banco Popular Carioca.
E, tomando-me pelo braço,
levou-me a percorrer, um a um, os pontos encantadores da chácara.
- Isto aqui, - observou-me, apontando-me
um enorme viveiro em que pipilavam toda a sorte de passarinhos nacionais ou
exóticos, - isto aqui é o meu encanto, de todas as manhãs.
Temos aqui o melro, o corrupião, o rouxinol, o periquito, a cambachirra,
o curió, enfim, duzentas ou trezentas aves diferentes.
E, como se eu não soubesse,
explicou-me, com ênfase:
- É o aviário!
Mais alguns passos, e, ao fundo de uma
gruta iluminada, onde peixinhos de mil espécies rabeavam, como
jóias vivas, em pequenos depósitos de água límpida,
esclareceu-me, com a mesma erudição:
- É o aquário!
Examinados os recantos da caverna
encantada, que me transportava, como num sonho, ao fundo maravilhoso do oceano,
passamos adiante. Era uma espécie de clareira, de várzea
chã, onde se estendia; cheirando e florindo, um tapete macio,
úmido, multicor, de ervas aromáticas.
- É o herbário! -
ensinou-me o comendador.
Nesse momento, porém, chamaram a
minha atenção umas latadas enormes, artisticamente dispostas,
formando caminhos ensombrados. Endireitei os óculos para examinar
melhor, e vi: tratava-se de uma admirável plantação de
parreiras abertas em frutos, em que os cachos, amarelos, uns, roxos outros,
pendiam, sumarentos, brilhantes e numerosos, como bolhas de ouro ou de vinho
suspensas miraculosamente das folhas.
- Magnífico! - exclamei,
deslumbrado.
O comendador inflou a barriga, sorriu,
desvanecido, e, estendendo o dedo no rumo do parreiral, explicou, com orgulho:
- É o "uvário"!
XXXI
MANIAS
1° de abril
Em um trabalho recente na "Edinburgh
Review", o crítico inglês John Browing denuncia, a
título de curiosidade, um certo número de manias de escritores
nacionais, procurando, ao que parece, demonstrar a feição
patológica de todos eles. Por esse trabalho de pesquisa, foi que eu vim
a saber, com espanto, que Walter Scott dormia com o chapéu na
cabeça, que Wordsworth almoçava arrepiando o pêlo de um
gato, que Goldsmith só trabalhava assobiando, que James Macpherson
gostava de estrangular passarinhos, e que Poppe, não obstante as
aparências de saúde perfeita não conciliava o sono
senão quando o criado fazia barulho no quarto contíguo, batendo
desesperadamente numa bacia.
Para o crítico de Edimburgo,
essas originalidades constituem anomalias, aberrações,
moléstias mentais interessantíssimas, patenteadas, segundo diz na
obra literária que as suas vítimas produziram. Eu me permito,
entretanto, o direito de contestar semelhante tese, baseando-me no exemplo de
um homem perfeitamente sadio, como é, no caso, o coronel Evaristo de
Souza Portela.
O coronel Evaristo Portela, grande
fazendeiro em Minas, era um dos homens mais virtuosos produzidos, até
hoje, pelo município de Uberaba. Chefe de família
exemplaríssimo, não havia passado, jamais, uma noite fora de casa.
Viagem que ele fizesse, ou realizava-a em companhia da sua digna esposa, a
veneranda D. Geralda, mãe dos seus únicos quatorze filhos, ou
fazia-a tão curta que estava de volta, à noite, para dormir na
fazenda.
A posse do Sr. Raul Soares no cargo do
ministro da Marinha determinou, entretanto, uma profunda
modificação na vida do conceituado fazendeiro. Compadre do
ilustre político e correligionário que lhe levara à pia
dois filhos, o coronel não podia, absolutamente, faltar à grave
cerimônia do cais dos Mineiros; como cumprir, porém, esse dever de
amizade, de cortesia, e de solidariedade política, se D. Geralda, sua
companheira inseparável de dezesseis anos de sono no mesmo leito,
não se podia abalar para uma viagem tão tentadora, mas, ao mesmo
tempo, tão rica de incômodos e inconvenientes?
- O que não tem remédio,
remediado está! - exclamou, afinal, uma tarde, o coronel, depois de
profundas cogitações.
E mandando arrumar duas malas de
mão, tomou o trem, no dia seguinte, com destino ao Rio de janeiro.
A primeira noite de capital foi para o
honrado fazendeiro um suplício, um martírio, um tormento.
Habituado à vida rigorosamente domestica, não lhe foi
possível, em absoluto, conciliar o sono. E de tal modo lhe nasceu a
saudade da casa dos filhos, e, principalmente, da esposa, que o criado do Grande
Hotel, onde ele se hospedara, ainda o encontrou com os olhos da véspera
quando lhe foi, de manhã, levar o café.
O dia, passou-o o coronel mais ou menos
distraído, fazendo compras, visitando amigos, palestrando com os
conhecidos. À noite, porém, voltou, com a saudade, a tortura da
insônia. Debalde fechava os olhos, apertando as pálpebras:
à simples lembrança de que se achava tão longe, tão
distante de casa, fugia-lhe o sono, deixando-o a remexer-se, aflito, no leito
largo, a amassar nervosamente os lençóis.
À meia noite, após duas
horas de martírio na cama, o coronel não pôde mais:
ergueu-se do leito, em pijama, pondo-se a andar, nervoso, de um lado para outro
do quarto. E estava já, há meia hora, nesse exercício,
quando teve, de repente, uma idéia: tocou a campainha, chamou o criado,
e pediu:
- O senhor não tem, por
aí, uma escova, dessas para cabelo?
- Tem, sim, senhor.
- Traga-a.
O criado trouxe a escova, o coronel
agarrou-a pelo meio, do lado do pêlo, com a mão aberta, e,
apagando a luz, atirou-se no leito.
E dormiu, sereno, até de
manhã...
FEMINICE
(Sobre uma frase de
Emile Faguet)
4 de abril
D. Elisabeth Saldanha era apontada no
Rio de janeiro como a senhora de vida mais acentuadamente elegante entre
quantas, até hoje, possuiu a cidade. Honesta por educação
e por temperamento, ninguém lhe apontou, jamais, um deslize, uma falha,
uma simples leviandade de conduta. Em uma terra em que a maledicência
enche as bochechas a cada canto da rua, ela fizera o milagre de conservar
sempre limpo, sem a menor mancha do hálito da calunia, o espelho de
cristal da sua reputação
Os seus hábitos mundanos
não eram, entretanto, propícios à
conservação desse conceito. Adorando o marido e sendo idolatrada por
ele, havia uma vaidade que ela colocava acima de tudo na terra; e esta eram o
teatro, os chás, os jantares, as conferências literárias,
os concertos, e, sobretudo, a visita às amigas, num desperdício
de tempo, de frases e de vestidos que lhe parecia verdadeiramente encantador.
Certo dia, porém, ao sair do
Municipal, D. Elisabeth descuidou-se um pouco do "manteau" bordado de
dragões de ouro e cegonhas de seda, e apanhou uma pneumonia. A
ciência médica da cidade foi, toda ela, mobilizada em uma noite. E
tal é o prestigio da medicina diante da morte, que, dois dias depois, o
Dr. Alfredo Saldanha penetrava o portão do cemitério de
São João Batista, segurando, sem tirar o lenço dos olhos,
uma das alças do caixão funerário da sua querida
Elisabeth.
Enquanto se dava isso aqui na terra,
uma alma, imponderável como o ar e mais alva, talvez, que um floco de
neve, batia, suave, à porta do Paraíso.
- Seu nome? - perguntou S. Pedro,
abrindo a portinhola, encantado com tanta candura.
- Elisabeth Saldanha, meu santo.
O apostolo fitou-a com simpatia, e
continuou no interrogatório:
- E que fizeste na tua vida, minha
filha? A recém-chegada franziu a testa morena e perfeita, como se
consultasse a si mesma.
- Não ouviste, filha? Que
é que fizeste na tua vida?
Elisabeth ia, pela primeira vez, se
atrapalhando, mas, recobrando a serenidade, indagou:
- Eu?
E, com um sorriso, que lhe abotoava a
boca num beijo:
- Eu fiz... muitas visitas!
São Pedro sorriu, bondoso, e a
grande chave rangeu, faiscando estrelas, na enorme fechadura dourada.
CHAVES E FECHADURAS
7 de abril
- Os senhores, conselheiro, os
senhores, homens, - dizia-me, abanando-se pausadamente com o seu grande leque
de plumas vermelhas, a linda viscondessa de Lima Freire, - os senhores
serão, sempre, injustos com as mulheres, por que nem todos
poderão compreendê-las.
- As mulheres são, então,
o maior mistério do universo? - indaguei, com ironia.
A viscondessa sorriu da minha
ingenuidade, e, sem dissimular a sua piedade pela minha ignorância,
acentuou, bondosa:
- O conselheiro não me entendeu,
ou não me quer entender. A mulher é um mistério, mas um
mistério, apenas, para o homem que lhe não agrada. O
símbolo da fechadura tão freqüentemente citado pelos
psicólogos, constitui uma verdade indiscutível.
- O símbolo da fechadura?
- Sim; não o conhece?
E como lesse a curiosidade no meu
olhar, contou-me, pausadamente, cerrando a meio os seus macios olhos de
míope:
- Cada mulher é uma fechadura
que só tem uma chave...
- Só? - interrompi.
- Espere aí! - pediu, impondo-me
silêncio com o leque.
E continuou
- Cada mulher é uma fechadura,
que só tem uma chave, a qual está nas mãos do homem que a
tem de amar e que tem de ser amado por ela. Outros passarão sob os seus
olhos, tentando abrir-lhe o coração. Abusando da sua
inexperiência, um ou outro poderá, talvez, penetrar no
sacrário da sua alma, usando de chave falsa. Um homem, apenas, tem a
chave verdadeira, e é somente quando a mulher se encontra com ele que se
dá, realmente, a felicidade no matrimônio. Compreendeu?
Eu ia confirmar com um
monossílabo, mas a ilustre senhora não me deu tempo.
- Cada mulher - continuou - devia
esperar, de olhos fechados, como a princesa adormecida no bosque, o portador da
chave da sua fechadura. É da impaciência de algumas que nascem,
geralmente, os escândalos, os divórcios, a
dissolução ruidosa das famílias legalmente
constituídas. Supondo-se esquecidas pelo seu porteiro, elas cedem
à primeira chave falsa, ou à primeira gazua, e casam-se. Mais
tarde, aparece o portador da chave. E Já se vai, com esse encontro, a
felicidade de um lar!
- Isso era antigamente! - observou,
intervindo, o capitão Peixoto Cunha, que nos observava de perto. - Hoje
não há mais portas com uma chave só.
E acentuou, rindo:
- As portas, hoje, são de
trinco!
Nesse momento, chegava, pausadamente, o
visconde, enrolando em torno do dedo grosseiro uma fina corrente de prata, em
cuja extremidade chocalhava, numa argola, uma penca de chaves.
Estas eram seis, e abriam, todas, com a
mesma facilidade, as duas gavetas da secretária...
O MONSTRO
10 de abril
Não é de hoje que eu me
bato, na imprensa, e, pessoalmente, perante os empresários
cinematográficos, em favor da exibição, nos cinemas, de
"films" verdadeiramente instrutivos. Os romances de amor, as
"fitas" que acabam em casamentos e beijos, devem ser
substituídas, de vez em quando, por verídicos pedaços da
natureza, que nos dêem, na sua grandeza e na sua inocência, uma
sensação da vida real.
Os "films" desse gênero
devem ser, entretanto, claros, fáceis, explícitos, não
só na imagem, na reprodução viva da paisagem e das coisas
que a animam, como nos letreiros explicativos, que devem estar ao alcance de
todas as inteligências. Um episódio ocorrido há poucos dias
em casa de uma ilustre família brasileira, após a
exibição, no Pathé, da "fita" "Santa
Cruz", da Comissão Rondon, mostra, de modo irrecusável, a
força dessa necessidade.
Mandada vir de Hamburgo para governante
de uma casa de família notável, Dona Edda, rubicunda viúva
alemã, empregava a sua paciência teutônica, dia e noite, em
aprender o maior número de vocábulos portugueses. Soletrando os
nomes, e procurando identificá-los pelo conhecimento das coisas que eles
representavam, não perdia a pachorrenta senhora um pedaço de jornal
ou um dístico de cinema, que não soletrasse e traduzisse,
ajustando a palavra à figura. E foi com esse intuito que, anunciado,
há duas semanas, o "film" do general Rondon, correu ela ao
cinema, conduzindo à mão, para as consultas
indispensáveis, o seu pequenino dicionário ilustrado.
Com os óculos na ponta do nariz,
acompanhava a neta de Lohengin a excursão pitoresca dos abnegados
sertanistas, quando tomou um susto, ao aparecer, na tela, o primeiro
jacaré dos lagos de Mato Grosso. Curiosa, esperou o intervalo, abriu o
dicionário, consultou, viu que se tratava de anfíbios vorazes,
que nasciam pequeninos e tomavam grandes proporções, anotou o
caso, decorou o nome, e continuou a ver o "film" até o fim.
À noite, agasalhados os
pequenitos da família, estava D. Edda, sozinha, na sala de jantar,
quando, ao voltar-se, empalideceu: diante dela, na janela que dava para o
Jardim, estava, a espiá-la, batendo a cabecita inquieta, uma pequena
lagartixa de muro, uma dessas osgas minúsculas e inocentes, que se
alimentam de moscas e habitam, no Brasil, às duas, e às
três, os troncos das árvores e as fendas das paredes.
Ao deparar o réptil, que a
fitava benignamente, a alemã deu um pulo, folheou, rápido, o
dicionário, identificou o animalzito pelo aspecto, e correu, aflita,
para o salão.
- Que é, D. Edda? Que foi? -
acudiu, a jovem dona da casa.
- Uma "bicho", zenhorra!
E, apontando, com os olhos esbugalhados
a lagartixa, que a fitava da janela, sacudindo a cabecita inofensiva:
- Um "crreança" de
"jacarré"!...
A "FESTA DOS
OVOS"
14 de abril
O último número do
"Pathé-Journal", que está sendo exibido em um dos
nossos cinemas, registra, entre outros acontecimentos curiosos, a chamada
"Festa dos Ovos", levada a efeito recentemente
Entre os divertimentos populares dessa
pequena cidade da Pensilvânia, está esse, que é, realmente,
pitoresco. Em um parque das redondezas, são escondidos cuidadosamente,
nos ramos das árvores, nas raízes, na cavidade das pedras, nos
montes de folhas e nos tufos de relva, milhares de ovos, que devem ser
descobertos pela criançada das escolas. Conduzida, este ano, ao parque,
e dado o sinal, a pequenada composta de sete mil colegiais, dispersou-se pela
enorme planície arborizada, à procura dos vinte e cinco mil ovos
escondidos. E era de ver a algazarra, o tumulto, a alegria bulhenta, com que
aquele exército de crianças se lançava em todos os rumos,
na ânsia de fazer a maior colheita possível!
O comendador Inocêncio Coutinho
havia estado, anteontem, com a sua jovem esposa, D. Odaléa, no conhecido
cinema da Avenida, e gozado, em gargalhadas enormes, o interessante
episódio de Wilkes Barre, quando resolveu, ontem, reproduzi-lo em
família, para afugentar, bonacheirão, o tédio da sua
encantadora companheira. Com esse intuito, saiu ele do Banco de que é
diretor e, dirigindo-se a uma quitanda das proximidades, adquiriu, aí,
três ovos, que escondeu, cuidadosamente acondicionados, no forro do
chapéu. Chegado à casa, foi gritando, logo, do vestíbulo:
- Sinhazinha? Ó Sinhazinha?
Sinhazinha? Vem cá!
A esposa acorreu, displicente, e o
comendador convidou, feliz, num riso largo, ingênuo, bonachão:
- Vamos fazer a "festa dos
ovos"? Olha: eu comprei uns ovos, e os escondi, comigo. Se os encontrares,
como as crianças do cinema, ganharás um colar novo, de
pérolas, para as festas do Rei. Está feito?
Incentivada pela idéia do
prêmio, a linda senhora atirou-se, sorrindo, à procura dos objetos
que o esposo ocultara. Lépida, risonha, barulhenta como uma colegial,
meteu as mãozinhas de neve nos fundos bolsos do marido, remexeu-lhe a
bainha da calça, examinou-lhe a manga do casaco, passou, em suma, no
comendador, uma revista completa.
E não os achou, a infeliz!...
APARÊNCIAS
17 de abril
Em toda a rua São Gabriel, naquele
movimentado bairro operário, o assunto mais em evidencia era, há
muitos dias, aquele: a saída furtiva, a horas altas da noite, daquela
rapariga tão linda, desde que lhe morrera o marido.
- É uma falta de vergonha, D.
Inácia, o que está fazendo aquela desalmada - informava, de
janela para janela, a vizinha da direita. - Ainda ontem, à noite, eu
fiquei de alcatéia aqui por dentro da rótula, e vi tudo: a
atrevida esperou que se fechassem todas as casas, abriu a porta, espiou para um
lado e para outro, e, como não visse ninguém, pôs um xale,
e saiu. Imagine o que ela não foi fazer por ali...
- Dizem que vai para um clube
dançar o maxixe com o Manoel português, - adiantava D.
Inácia.
- A Vitalina, outro dia, quando voltava
do baile do Alfredo, alta madrugada, encontrou-se com ela, que saía de
casa. A desnaturada ficou tão envergonhada que cobriu o rosto, para
não ser conhecida.
- Que mulher cínica! - terminava
uma.
- Que falta de vergonha! - confirmava a
outra.
Divulgada a notícia do
escândalo, toda a rua ficava, horas e horas, à espreita,
aguardando, pelas frestas das janelas, a saída clandestina da
viúva. E quando esta desaparecia, ao longe, na esquina, as
rótulas se escancaravam, as cabeças emergiam, e começavam
as observações!
- Viu?
- Vi!
- Sim, senhora! Quem diria?!...
- Que escândalo!
- Que horror!...
Certa noite, porém, instigados
pelas mulheres, resolveram alguns operários acompanhar de longe a
notívaga, fiscalizando-lhe os passos, para desagravo do morto. Pé
ante pé, espiando de canto em canto, escondendo-se pelos portais,
andaram os homens de rua em rua, até que foram ter a um campo deserto,
em frente a um mercado. E ali viram, enxugando os olhos rasos de pranto: a
"pervertida" saía todas as noites, embuçada na treva,
para disputar aos porcos, no monturo, uma fruta podre, para a fome do filho!...
A COBERTA
21 de abril
Não há quem não
conheça, em todo o Brasil, a fecundidade da mulher cearense. Terra
privilegiada e infeliz, em que a natureza, ao mesmo tempo, se destroi e se
refaz, o Ceará constitui um caso curiosíssimo pelo modo por que
aumenta, no meio das maiores calamidades, a sua população.
À semelhança dos dragões fantásticos dos belos
contos medievais, cujo sangue, ao cair na terra, se transformava em
legiões de guerreiros, cada cearense que tomba de fome ou de sede,
rebenta, no ano seguinte, multiplicado por dez. E daí serem
freqüentes, em todo o Estado, os casais com vinte, trinta, e até
quarenta filhos, que se espalham depois pelo mundo, honrando pelo talento, e
dignificando pelo trabalho, o glorioso nome do Ceará.
As famílias de prole modesta que
vivem no Sul, compreendem dificilmente como pode uma pobre mãe lidar com
uma tribo tão numerosa. E, no entanto, nada mais fácil para o
cearense. Eu conheci, por exemplo uma senhora daquela procedência, que
descobrira um processo originalíssimo de fiscalizar o seu exercito de
descendentes. Mãe de dezessete filhos, de um a quatorze anos, D. Josefa
aproximava-se, à tarde, da mesa de cozinha, e partia, ali, uma ou duas
rapaduras. Chamava os filhos e, deixando-os a comer, ia colocar-se ao lado do
único pote dágua que havia na casa. Acossada pela sede, originada
pela absorção do açúcar, a meninada corria, logo, a
beber, enquanto D. Josefa os ia contando:
- Um. .. dois. . . três. . .
quatro... cinco.. seis...
E assim por diante, até
dezessete. Se havia apenas dezesseis, a bem-aventurada gambá-humana
saía a procurar, como o pastor da parábola, a ovelha desgarrada.
D. Ifigênia de Medeiros, outra
senhora que a seca de 1918 desterrou do seu Estado natal, possuía,
entretanto, um processo mais simples. Casada em 1898, aos treze anos, com um
fazendeiro de Itapipoca, teve desse consórcio abençoado, que
durou seis anos, nove filhos, sendo quatro meninos e cinco meninas.
Contraídas novas núpcias, no mesmo ano da viuvez (1904), com um
tabelião de Sobral, forneceu D. Ifigênia ao Ceará, em mais
cinco anos de matrimônio e caldos de galinha, sete meninas. Viúva
pela segunda vez, casou em 1909 com um agricultor da serra de Uruburetama, a
quem deu cinco meninos e cinco meninas, em nove anos. Perdido este terceiro
esposo em 1918, recusou a fecundíssima senhora seis ou oito pretendentes
que lhe apareceram, preferindo embarcar para o Rio de janeiro, onde se encontra
desde aquele ano.
Apresentado a essa virtuosa nortista,
que vive, hoje, em relativa abundância, perguntei-lhe, curioso, se ela
não se confundia com tanta criança em casa.
- Eu? - atalhou, sorrindo. -
Absolutamente!
E explicou-me o seu processo de evitar
confusões:
- Eu adotei, para comodidade, o
seguinte sistema: os filhos de cada marido usam roupa de uma cor. Os do
primeiro, por exemplo, em número de nove, usam roupa de cor cinzenta.
E chamou para dentro:
- Lili? Iaiá? Amélia?
Nenê? Totó? Bibi? Alfredo? Almerinda?
Aparecida a primeira parte da tribo, D.
Ifigênia continuou:
- Os filhos do meu segundo marido
vestem-se de azul.
E chamou:
- Teté? Lulu? Judith? Ester?
Virgilina? Margarida? Sebastiana?
A segunda turma apareceu.
- Os do meu terceiro marido trajam
amarelo.
E gritou:
- Jequiriçá?
Pindoboçú? Coema? Jaci? Lindóia? Ubirajara? Peri? Iracema?
Jacaúna? Guaraciaba?
O terceiro turno surgiu.
Evacuada a sala, D. Ifigênia
sorriu; acrescentando:
- E ainda tem!
- Ainda tem? - exclamei, espantado.
- Tem, sim!
E entrando para o quarto
contíguo, trouxe, nos braços, um pequenito de três meses.
Esse, nascido no Rio de janeiro, vinha
embrulhadinho numa coberta de retalhos, em que se misturavam o branco, o azul,
o preto, o amarelo, o roxo, o rosa, o pardo, o verde, o encarnado...
A DERRADEIRA
"MORADA"
24 de abril
O administrador do cemitério de
S. Geraldo, Alfredo Costa Ximenes, residia, há anos, à rua Real
Grandeza, quando, em março último, forçado a mudar de
casa, foi alugar um prédio de segunda ordem, de que era
proprietário o comendador Augusto Gonçalves Teixeira, que lhe foi
dizendo, logo, sem circunlóquios:
- O aluguel da casa é quinhentos
e vinte mil réis, fora a pena d'água e a taxa sanitária.
Além disso para que eu lhe dê a chave, o senhor terá de
pagar-me seis contos de réis, de "luvas".
Debalde o honrado funcionário da
Morte chorou, suplicou, implorou; o comendador mostrou-se inabalável na
sua exigência, e ele teve de arranjar, mesmo, as "luvas", para
se não ver, de uma hora para outra, lançado à rua com a
família.
Dois meses depois desse
episódio, estava o administrador, uma tarde, no seu posto, na secretaria
da necrópole, quando parou ao portão, buzinando e rolando, um
cortejo funerário. Levada às suas mãos a papeleta fúnebre,
o funcionário viu pelo nome, que o morto era, nada mais, nada menos, do
que o seu senhorio, o comendador Gonçalves Teixeira e teve, de repente,
a idéia de uma represália: chegou ao portão, onde o
esquife já repousava, agaloado, na carreta do cemitério, e,
recebendo da família a chave do caixão, mandou rodar o
ataúde no rumo da sepultura.
Terminadas, ali, entre lágrimas
e vertigens, as angustiosas despedidas da praxe, um filho do defunto mandou
chamar o administrador, a quem havia dado a chave do esquife, para que fosse identificar
o morto, e fechar o caixão.
- Pronto! - apresentou-se Ximenes,
apertado na sua sobrecasaca preta. - Que desejam?
- A chave, - explicou um parente do
defunto.
- Suspendam a tampa do esquife, -
ordenou o administrador.
Um amigo abriu o caixão funerário,
onde jazia, inteiriçado, vestido de preto o corpo do desventurado
capitalista.
Ximenes passou, meticuloso, a vista
sobre o cadáver, e, vendo-lhe as mãos nuas, cruzadas sobre o
peito bojudo, reclamou, severo:
- E as "luvas"? Querem,
então, que ele desça à derradeira "morada" sem
as "luvas"?
E não entregou a chave!
A
PUNIÇÃO
Il est des femmes
qu'on ne devrait jamais épouser soi-même. On devait les laisser
épouser par ses amis - Alfred Capus.
26 de abril
Molemente estirado no leito revolto,
com a farta cabeleira de ouro em desalinho sobre o travesseiro em que se achava
impresso ainda, o sinal de outra cabeça, a linda Julieta Erst acompanha
com os olhos os movimentos do Dr. Cardoso Simas, que abotoa a botina,
tranqüilamente, com o pé sobre uma cadeira. Olhando-o, assim, de
costas, ela examina, desvanecida, a máscula formosura do amante jovem,
cuja harmonia de espáduas se patenteia através da camisa de seda
creme sob a cruz "grenat" do suspensório quando, de repente, a
sua saudade lhe dita uma queixa:
- Vê, só, Eduardo, o que
foi o resultado daquele arrufo em nossa vida! Se tu não tens brigado
comigo, naquela tarde, nós nos teríamos casado, e, em vez deste
amor cortado de sustos, de incertezas, de pecados, viveríamos, agora, um
junto do outro, sem temores nem pesares!
O rapaz continua, de costas, abotoando
as botinas e a moça insiste, aconchegando o lençol, com os olhos
nele:
- Seria uma vida ideal; não
achas?
- Talvez... - aventura o moço.
- Talvez por quê?
E ele, explicando-se, displicente:
- Por que? Porque, se eu me tivesse
casado contigo, estaria, agora, no escritório, enquanto que o Erst se
acharia, talvez, aqui, na minha ausência, amarrando os sapatos!
E, sem olhar para trás,
continua, em silêncio, abotoando a botina...
O NABABO
28 de abril
De regresso de uma excursão
pelos subterrâneos da alma humana, um escritor louvava, certa vez, entre
as virtudes que lá descobrira, o pecado da Vaidade. Esse defeito, na sua
opinião, era o mais vantajoso de quantos possui o Homem. Foi pela
vaidade de possuir um nome ressoante que Colombo descobriu a América. E
é a Vaidade, ainda, que dá de comer aos humildes, utilizando nas
oficinas milhões de operários, que tecem a seda, fabricam os
leques, esculpem as jóias. Tudo, na terra, é Vaidade, e só
Vaidade, afirma o Eclesiastes. E Pascal adianta: a Vaidade está de tal
maneira inveterada em nosso coração, que os próprios
filósofos não lhe fogem ao império: aqueles que escrevem
contra a glória, querem a glória de haver bem escrito; e aqueles
que lêem, querem a glória de ter lido.
Há, entretanto, um gênero
de Vaidade que não tem, sequer, essa atenuante: é a do
pavão que se espaneja sem cauda, a que repousa na mentira, na falsidade,
no ridículo, a que procura, em suma, viver dos juros sem um risco
evidente do capital, e da qual é sacerdote, no Rio de janeiro, o
conhecido "gentleman" Dr. Alfredo Pereira da Cunha.
Modesto de posses, vivendo de um
emprego que lhe dá dificilmente para as despesas imprescindíveis,
esse meu jovem amigo tem uma fraqueza: pertencer ao número dos
cavalheiros irrepreensivelmente elegantes, equiparando os seus coletes aos do
Dr. Villaboim, as suas gravatas às do Dr. Darcy, os seus colarinhos aos
do Dr. Galeno Martins, as suas botinas às do Dr. Arnaldo Guinle, os seus
ternos aos do desembargador Ataulfo, as suas camisas às do Dr. Humberto
Gotuzzo, e, até o seu monóculo de vidro ordinário, ao
monóculo de cristal puro do eminente Dr. Leão Velloso. E tudo
isso com a circunstância de atribuir-se tudo - coletes, gravatas,
colarinhos, botinas, ternos, camisas, monóculos, - em quantidades
verdadeiramente atordoantes. Dessa forma da sua vaidade, há uma
demonstração curiosa, em que eu funcionei, há dias, como
testemunha involuntária.
Sentados um diante do outro,
tomávamos nós, no Alvear, o nosso chá das cinco horas.
quando me chamaram a atenção, na elegância americana do meu
amigo, uns arabescos em linha branca, traçados no cós da sua calça
de flanela, no intervalo dos botões destinados ao suspensório.
Curioso, apliquei melhor os óculos, e vi: era o número 846, em
algarismos feitos a agulha, como esses que encontramos na roupa ao recebe-la da
tinturaria.
- Que é isso, doutor? -
indaguei.
O jovem advogado baixou os grandes
olhos negros sobre o seu busto sem colete, em que a camisa de zefir se desfiava
em alguns pontos com uma elegância de varanda de rede, e explicou, com um
sorriso superior:
- É o número da
calça.
- Você tem oitocentas e quarenta
e seis calças? - estranhei, arregalando os olhos e parando a
xícara a meio caminho da boca.
O Dr. Alfredo olhou-me com
irreprimível piedade, e, lamentando intimamente a modéstia dos
meus recursos, respondeu-me, apenas, num doce insulto à minha pobreza:
- Das de flanela...
E continuou, solene, a tomar o meu
chá.
A CONFISSÃO
Em que se prova que
certas perguntas inocentes, claramente feitas, valem, às vezes, por uma
informação perigosa.
2 de maio
O padre Sebastião havia tido
notícia, por intermédio do sineiro, que a sua paróquia, colocada
sob a invocação de Nossa Senhora do Retiro, se achava minada,
solapada, anarquizada, pela corrupção dos costumes. Segundo o
depoimento dessa testemunha, o bairro estava semeado de casas duvidosas, onde
algumas senhoras levianas se juntavam durante certas horas do dia rindo,
dançando, palestrando com rapazes e velhos divertidos, que ali ficavam,
até à noite, consumindo o seu tempo e gastando o seu dinheiro.
Escandalizado com a denúncia, o virtuoso sacerdote chamou, uma tarde, o
sacristão e recomendou-lhe:
- Francisquinho, nós precisamos
agir, na freguesia, contra o demônio da corrupção. A seara
de Deus, que se mostrava tão prospera, principia a ser devorada pelas
lagartas do Demônio. E nós precisamos trabalhar, meu filho!
O sacristão arrebitou o nariz
para melhor farejar o escândalo, e o reverendo explicou o seu plano:
- É preciso que você, que
conhece toda a gente, indague, por aí, quais são as casas
suspeitas, em toda a paróquia. Veja o número dos prédios e
venha avisar-me, para que ou tome as providências.
Francisquinho pegou no chapéu,
sacudiu-o no cocoruto, e partiu, rebolando-se, pelas ruas do bairro, a indagar,
de café em café, de botequim em botequim, de antro em antro, onde
estavam situados aqueles focos de corrupção. E à tarde,
informava, com a sua vozinha em falsete, a S. Revma. o vigário:
- Meu padrinho, descobri tudo; as casas
são três: uma na rua dos Enforcados n. 29, outra na rua
França Coelho n. 417, e outra na travessa de Santa Apolônia n. 46.
E é só.
Padre Sebastião tomou nota em
uma das folhas do breviário, decorou, depois, um por um, o nome das ruas
e o número das casas, e, no dia seguinte, foi, como de costume,
confessar e absolver os fiéis.
Estava ele no confessionário, ouvindo,
peneirados no crivo de ferro, os pecados do seu rebanho, quando percebeu na
última dama que se ajoelhara à sua frente, uma das senhoras cuja
virtude não lhe merecia grande confiança. Cauteloso, o sacerdote,
em certo momento, indagou:
- E você, filha, nunca abandonou
o seu lar, para ir à rua dos Enforcados n. 27?
- Não, senhor! - gemeu a
moça.
- E à rua França Coelho
n. 417?
- Também, não, senhor! -
insistiu a dama.
- E à travessa Santa
Apolônia n. 46? - tornou o pároco.
- Não, senhor!
Padre Sebastião absolveu a linda
ovelha impoluta, e, como não tivesse mais ninguém a confessar,
deixou-se ficar no confessionário a olhar para a porta da igreja, por
onde ia sair a última confessada. De repente, abriu a boca, espantado:
no portal do templo, a formosa paroquiana tomava nota a lápis, em uma
carteirinha, que exumara, ali, de uma custosa bolsinha de ouro. Desconfiado, o
sacerdote encaminhou-se para a porta, arrastando em silêncio as suas
moles sandálias de lã, e, chegando perto da moça indagou,
interessado, com a sua santa voz de além-túmulo:
- De que é que toma nota, minha
filha?
A dama, sem se aperceber da pergunta,
respondeu, apenas, como se falasse a si mesma:
- Essas eu não conhecia,
não!
E, guardando a carteirinha na bolsa de
ouro, retirou-se, descendo os degraus.
POLÍTICA
6 de maio
Sentado diante do seu
"bureau-ministre" coberto de telegramas e cartas, que lhe chegam, a
todo momento, de toda parte do país, o grande chefe nacional dá
audiência aos amigos. A situação do partido é, em
toda a República, a mais lisonjeira, e é com a alegria no rosto e
o orgulho no coração que ele recebe, um a um, como portadores de
boas-novas, o enxame dos políticos correligionários.
As eleições para
renovação da Câmara e recomposição do Senado
haviam atemorizado um pouco o terrível politiqueiro indígena,
pondo em perigo a sua poderosa máquina eleitoral. De tal modo havia ele,
porém, se conduzido, sacrificando amigos e contemporizando com certos
adversários, que emergia, agora, vitorioso, forte, insolente, como um
homem que não transigiu um palmo e a todos esmagou pelo caminho.
Feliz e forte, ouve ele, embalando-se
na cadeira de mola, as informações que lhe são carregadas
pelo formigueiro que lhe mantém o prestigio formidável, quando
entra no escritório, com familiaridade, um amigo particular. É um
antigo senador afastado das lides partidárias, um velho companheiro que
preferiu gozar em sossego os proventos da sua advocacia administrativa, um
homem tornado independente e conhecedor do mundo, e que goza, por isso, de
considerações especiais.
- Tu, por aqui? - exclama o chefe
poderoso, arrancando o charuto caro e enorme da grande boca servida de dentes
rígidos, sólidos, brutais, de antigo estraçalhador de
carnes humanas.
O outro senta-se, abrindo um parênteses
de intimidade na seriação de baixezas, de
humilhações, de frases covardes, ouvidas pelo velho
político naquele dia de audiências; e, a certa altura, entra no
assunto que motivara a visita.
- O que me traz aqui - explica -
é a situação do Belarmino; ele precisa entrar para a
Câmara, e é indispensável que você o auxilie.
O grande chefe, habituado às
incidências, aos sofismas, às expressões dúbias,
balança a cadeira, lança para o teto uma nuvem de fumaça
do seu charuto de sessenta mil réis a dúzia, e observa:
- Creio que não há nada
contra ele...
E após um ligeiro
silêncio:
- A votação não
foi boa?
- Foi. Quinhentos e oitenta votos sobre
o seu competidor.
- As mesas não funcionaram com
regularidade?
- Perfeitamente.
- Houve protesto dos fiscais?
- Não.
- Eles não assinaram os
boletins?
- Assinaram.
O chefe põe os olhos nos olhos
do antigo companheiro, como a perguntar onde estava, então, a
razão do seu temor, do seu susto, do receio de que o seu protegido seja
sacrificado, e este esclarece:
- Há, porém, uma coisa.
O outro inquire com os olhos.
- Ele é casado com uma mulher
feia como um bicho!
A essa informação a
fisionomia do velho chefe, que se mostrara, até então,
satisfeita, risonha, jovial, muda de expressão. Três rugas fortes,
pronunciadas, profundas, cortam-lhe a testa perpendicularmente, unindo a
cabeleira às sobrancelhas de cerda. E, após um instante,
compreensivo:
- Homem, isso, agora, foi o diabo!
E, aborrecido, como quem tem a certeza de
que perdeu um deputado:
- Enfim, vamos ver...
O AMIGO
8 de maio
O engenheiro Adriano Walsh havia
chegado de viagem, e convidara para almoçar em seu palacete, no dia
seguinte, o seu opulento amigo Dr. Polidoro Tavares, advogado jovem e competentíssimo
que era tratado na família com as maiores considerações.
O almoço, nesse dia, correu
delicioso. Alta, esguia, elegantíssima com os fartos cabelos de ouro
arranjados com encantadora simplicidade, Mme Walsh mostrara-se, como sempre,
deslumbrante de formosura e de espírito. Atordoada pela alegria do
marido, os seus olhos, cinzentos e lindos, lembravam duas pérolas
grandes e misteriosas, luzindo, magníficas, entre os canteiros de
violetas das olheiras. Vestida de linho espumante, o seu vulto emergindo, na
mesa, do tumulto dos cristais e da baixela de ouro, era como uma grande rosa
branca, em torno da qual fervilhassem, disputando-lhe o pólen,
miríades de insetos faiscantes.
Após o almoço, quando o
sol já sonhava, cansado, com o leito longínquo das colinas, os
dois amigos tomaram o automóvel, e desceram, juntos, para a cidade. Na
Avenida, saltaram, e caminhavam, palestrando, por uma das ruas transversais,
quando diante de uma fabrica de móveis, o engenheiro estacou,
preocupado:
- Diacho! - proclamou. - Minha mulher
pediu-me para mandar concertar um móvel em casa, e eu não me
lembro. Agora, qual é a peça da mobília!
- Não é o divã da
alcova, que está rangendo muito? - atalhou o advogado,
insensível.
- É isso! é isso mesmo!
é o divã da alcova! - lembrou-se o Dr. Walsh batendo na testa.
E entrou na marcenaria.
A LIÇÃO
12 de maio
- Toma cuidado contigo, Enedina!
recomendava a bondosa D. Matilde, repreendendo a filha. - Essa mania de bailes,
de festas, e passeios e esses vestidos muito curtos e muito decotados, podem
prejudicar-te. É preciso um pouco mais de decoro, de zelo, de
discrição. Isso, assim, não vai bem!
- Ora, mamãe! - respondia a
linda moça, num muxoxo. - Mamãe não quer, então,
que eu me case?
- Quero, sim; mas não é
assim, indo a toda parte, e mostrando as pernas até os joelhos, e o colo
até o estômago, que encontrarás um bom casamento.
A resposta era, porém, a mesma,
com o mesmo estouvamento gracioso:
- Ora, mamãe!...
Sábado último, desejando
oferecer à filha uma jóia custosa para as futuras festas ao Rei,
veio D. Matilde à cidade, e parou, com ela, diante das vitrines da casa
Adamo, na Avenida:
- Aquele não te agrada? -
indagou, mostrando à moça um dos mais lindos colares da
exposição.
- Não; não quero aquele.
- E aquele?
- Também não quero.
E convidando D. Matilde:
- Vamos ver lá dentro?
Entraram.
- Colares, de pérolas, ou de
brilhantes, - pediu a conhecida senhora.
O dono da casa abriu o cofre forte,
pondo-lhes sob os olhos um chuveiro de pedrarias.
- Quero este! - pediu a moça,
batendo as mãozinhas, contente.
No automóvel, de caminho para
casa, D. Matilde indagou da filha:
- Achaste, mesmo, esse colar muito
bonito?
- Achei-o, sim.
- Mas havia outros mais bonitos, na
vitrina.
- Havia.
- Por que não escolheste um
deles?
E a moça:
- Mesmo. Porque estavam tão
expostos, tão à mostra... Toda gente já os viu! Este,
não; e, com certeza, há de despertar mais interesse, mais
curiosidade! Não é?
A estas palavras, D. Matilde sorriu,
carinhosa, e, tomando nas suas mãos enluvadas, as mãozinhas de
neve da sua Enedina, observou-lhe, maternal:
- Minha filha, sirva-te isto, pela
última vez, de lição. Os homens são pelas mulheres
o que as mulheres são pelas jóias: preferem as que se acham
guardadas, recolhidas, às que vivem permanentemente no
mostruário, expostas a todas as vistas! Aproveita, tu própria,
minha filha, a tua experiência!
E beijando-lhe a testa, bondosa:
- Sê discreta e modesta para
seres desejada. Ouviste?
OS GÊMEOS
16 de maio
O piloto Alfredo Fagundes de Moura
estava casado há pouco mais de seis meses quando, por
determinação da companhia de navegação em que era
empregado, teve de embarcar subitamente no "Capanema", antigo
cargueiro alemão, para uma demorada viagem ao Mediterrâneo. A
travessia, com os submarinos teutônicos a costurarem, como agulhas
monstruosas e invisíveis, o manto verde do oceano, era, naquele tempo,
arriscadíssima: o que, porém, mais afligia o jovem marujo,
não eram os perigos, os riscos, a visão sinistra da morte nas
águas, mas a saudade da sua encantadora Palmirinha, tão simples,
tão doce, tão amada, e, o que era pior, tão sozinha no
mundo, onde não tinha como amparo senão a coluna de ouro do seu
amor.
A ordem de partida fora, porém,
terminante: e, uma tarde, lá se foi o "Capanema", barra a
fora, apartando, como um pastor de ovelhas irrequietas, o infinito rebanho das
ondas. Dias depois estavam na Madeira. E os portos foram-se sucedendo: Lisboa,
Gibraltar, Cadix, Marselha, Gênova... além de outros, pequenos,
monótonos, secundários, a que eram forçados a arribar por
imposição arbitraria das flotilhas inglesas de vigilância.
E nisso gastou ele dezoito meses de trabalho e de saudade, ao fim dos quais
ancorou, de novo, com a alma nos olhos, nas proximidades da ilha fiscal.
A alegria do casal não podia ser
maior. Beijos, abraços, lágrimas de contentamento, foram os
confeitos de coração na doce festa daquele encontro.
- Estás linda, meu amor!
- E tu, forte, corado, bonito!
E novos beijos estalaram.
Um mês depois, porém,
começou a entrar na cabeça do Fagundes, batido pelo martelo de um
pensamento mau, o prego de uma dúvida horrível: é que a
sua Palmirinha havia dado ao mundo, oito dias depois da sua chegada, dois
pequenitos miudinhos, mas perfeitíssimos, que a ciência conseguira
salvar.
Aos olhos do piloto, habituado a ver
longe, aquilo parecia incompreensível. Se ele estivera em viagem ano e
meio e chegara apenas há quinze dias, como admitir o nascimento daqueles
pirralhitos, tão bem conformados, e que tinham vindo de tempo? O melhor,
em tal emergência, era consultar um médico, um entendido, e foi o
que ele fez, indo bater à porta do Dr. Abelardo Meira, que morava no
mesmo quarteirão.
- O meu caso senhor doutor, é
este.
E contou o fato, palavra por palavra,
sem omitir a menor particularidade. Ao fim de tudo, o médico fitou-o,
indagando:
- Quantos meses o senhor passou fora?
- Dezoito, senhor doutor.
- E quantos filhos sua senhora teve,
agora?
- Dois, gêmeos.
O especialista endireitou o
"pincenez", pigarreou, tossiu, remexeu-se na cadeira, e inquiriu,
sentindo-se vitorioso:
- Diga-me cá: com quantos meses
nasce uma criança?
- Nove.
- Então, está aí!
- exclamou o médico.
E batendo-lhe na perna:
- Está claro, homem de Deus!
Duas crianças, dezoito meses, isto é, nove para cada uma. De que
é que se admira?
O Fagundes sorriu, desafogado. E
levando a mão à cabeça, arrancou, satisfeito, num gesto
brusco, o doloroso prego daquela duvida...
XLVI
AS CAMISAS
18 de maio
Há muitos dias que o Dr. Abelardo
insistia com a mulher, a encantadora D. Silvia, para que usasse umas camisas de
seda cor de rosa, que, na sua opinião, lhe deviam assentar
admiravelmente sobre a pele clara, macia, setinosa. Apaixonada pelo
marido, que sabia disputado pela mais íntima das suas amigas, a loura
Luizita Corrêa, D. Silvia escancarou, nesse dia, o grande móvel do
quarto de vestir, em que guardava as suas roupas de interior, e, tirando as
dezenas de camisas que ali estavam arrumadas com ordem, ia mostrando-as, uma a
uma, ao esposo:
- É assim?
- Não.
- É dessas, de seda, enfiadas de
fita?
- Não.
- É assim, apenas com uma fita
sobre o ombro?
- Também não!
E como a esposa lhe não
mostrasse nenhuma camisa como a que ele desejava acariciar sobre o seu corpo soberbo,
convidou-a ele próprio, beijando-a nos olhos.
- Amanhã, na cidade, veremos
onde tem. Quero comprar-te uma dúzia. Ouviste, meu amor?
D. Silvia agradeceu, com um sorriso e
um beijo, a gentileza amorosa do esposo e, no dia seguinte, à tarde,
entravam, os dois, contentes, em uma casa de modas da rua do Ouvidor, onde,
tomando a dianteira, o marido pediu:
- Camisas de dia, de seda, para
senhora; n. 3.
- Que cor? - indagou, solicita, a
moça que o atendeu.
- Cor de rosa.
A empregada subiu ao primeiro andar,
trouxe algumas caixas de camisas de seda, mas nenhuma correspondia ao desejo
elegante do freguês, que era, de fato, exigente.
- Não são destas? -
consultou.
- Não, senhora. São mais
finas, mais transparentes, com uma renda de seda até quase à cintura.
- Ah! Já sei! - exclamou a
mocinha, sorrindo.
E, levantando os olhos para o andar
superior chamou por uma companheira.
- Julieta!
Apareceu, em cima, no balaustre, a
cabeça oxigenada de outra caixeira da casa.
- Manda-me dali, por favor - pediu - a
caixa de camisas n. 8.645.
E, particularizando, alto:
- Olha! daquelas que D. Luizita
Corrêa comprou aqui... Sabes?
Quando as camisas desceram das nuvens,
D. Silvia tinha subido.
O SONÂMBULO
20 de maio
A noite estava escura, fria, gelada,
com a chuva a despencar, lá fora, os cafezais amadurecidos, quando o
caboclo bateu, com a mão tiritante, à porta do casebre.
- Quem é? - indagou, de dentro,
uma. voz masculina, demonstrando na tonalidade o aborrecimento por aquele
incomodo fora de horas.
- Sou eu! - respondeu, de fora, o
viandante, o Praxedes Ferreira, antigo tocador de gado
Aberto um palmo da porta, o
recém-chegado explicou-se. Ia de caminho para o Poço Fundo, e, surpreendido
pelo chuveirão daquela tarde, pedia permissão para pernoitar no
rancho, uma vez que não havia por ali, naquelas quatro léguas
mais próximas, um lugar em que se acoitasse.
- Só se for no telheiro da
cozinha; mas esse chove, como no meio do tempo. Serve? - observou, de má
vontade, o colono Eleutério, dono do lugar e da casa.
- Serve! - concordou o Praxedes.
O colono fechou de novo a portinhola da
frente, e ia atirar-se na esteira espichada no único compartimento do
casebre, quando a mulher, que já alí estava encolhida, indagou,
curiosa:
- Quem é, Lotério?
- Sei lá! É um camarada
que vai de viaje. Mandei ele p'r'o telheiro. Tá lá.
- Coitadinho! - gemeu a rapariga. - Com
essa chuva!...
E após um momento:
- Por que você não manda o
"coitado" aqui p'ra dentro? A esteira é grande, cabe os
três. Você fica no meio.
O Eleutério imaginou o que
estaria sofrendo, lá fora, o desgraçado, levantou-se, abriu a
porta que dava para o velho telheiro alfinetado de chuva, e chamou:
- Ó amigo?
- Hôi? - acudiu o outro.
- Entre p'ra cá. Se deite aqui
na esteira, com a gente.
O caboclo entrou, embrulhado num velho
capote que tirara do saco, e atirou-se no lugar que lhe foi indicado, separado
da rapariga pelo corpo forte, atlético, vigoroso, do dono da casa. Estirou-se,
embrulhou-se, e estava para dormir, quando, de repente, como quem se esqueceu
de alguma coisa, bate no braço do Eleutério, avisando:
- É verdade, eu me esqueci de
lhe dizer; eu tenho um sono muito doído, com uns sonho de home doente;
dou pulo, salto, rolo no chão, faço o diabo. Por isso, não
se incomode não, se eu, sonhando, passá por cima do sinhô.
- Você é assim? - indagou
o colono, descobrindo o rosto.
- É verdade! - confirmou o
outro.
- Então, é tal qual como
eu. Tem vez que eu sonho que estou agarrado com um cabra doido, da minha
qualidade, e quando acordo, tou no meio da casa, em pé, de faca na
mão. É um perigo!
O caboclo ouviu a ameaça,
pensou, meditou, ruminou, e, após um instante, propôs:
- Vamo, então, fazê uma
coisa?
- Que é?
- Vamo drumi sem sonhá?
E embrulhando-se no capote, rolou,
macio, para a extremidade da esteira.
O AMBICIOSO
23 de maio
A Mesopotânia estava, já,
povoada de animais de toda a ordem, quando Jeová resolveu, uma tarde,
aperfeiçoar a sua obra dos sete dias.
- Tudo isso - pensava o Criador -
está muito bem. Urge, entretanto, favorecer estes viventes,
facultando-lhes um ornamento natural com que se embeveçam, e que seja,
no mundo, o objeto dos seus cuidados.
E chamando, com a sua voz poderosa, o
anjo Gabriel, mandou que ele preparasse, nas margens do Eufrates, alguns
quilômetros de cauda, de diversas grossuras e de diversos feitios, para
ser distribuída, na manhã seguinte, pelos seres
recém-criados, - à semelhança do que fazem, hoje, com os
cordões honoríficos, alguns governantes sem dinheiro.
No dia seguinte, pela manhã, a
várzea do Éden ressoava de guinchos, de uivos, de gritos, de
berros, de bramidos, de um alarido, enfim, que fazia tremer a terra. Eram os
gatos, os leões, os cães, os tigres, os coelhos, a animalidade
inteira, em suma, que acorria de toda a parte, na ânsia de receber o seu
prêmio.
Sentado sobre um pequeno outeiro
resplandecente, com os rolos de cauda amontoados ao lado, o Criador ia
chamando, um a um, os animais aglomerados na campina.
- Leão! - gritou.
O quadrúpede formidável
aproximou-se, arrastando, humilde, pelo solo fresco, a juba monstruosa, e
recebeu dois metros de cauda, da mais grossa, que prendeu, imediatamente,
à extremidade do espinhaço.
- Macaco! - chamou.
O animal deu um pulo, chegando-se.
- Dê-lhe metro e meio da cauda n.
2! - ordenou Jeová ao anjo Gabriel.
E assim foi distribuindo,
eqüitativo, pelos outros bichos, dando meio metro aos cachorros, um metro
aos tigres, vinte centímetros aos gatos, um metro aos bois, e, desse
modo, consecutivamente.
Em certo momento, porém, chamou
o Homem, entregou-lhe a sua parte, que era, mais ou menos, um metro.
- Tome! - exclamou.
- Só isso? - estranhou o
ambicioso, com desdém.
Jeová encarou-o, irritado, mas,
pensando em vingança ainda mais terrível, ordenou:
- Então, espere aí.
O homem ficou de lado, aguardando a
nova chamada, e a distribuição continuou, sendo contemplados,
então, na proporção das necessidades, o coelho, o
gambá, o carneiro, o bode, o veado, o lobo, toda a bicharada,
finalmente, que havia no Paraíso.
Aflito, retorcendo as mãos, o
homem olhava o desenrolar dos rolos de corda viva, notando que ia ficar sem a
sua, quando, de súbito, implorou:
- E a minha, Senhor?
Dos quilômetros de cauda
fabricados restavam, apenas, duas pontas pequeninas, de dois ou três
centímetros, que o mísero pediu, arrependido:
- Dá-me, ao menos, uma destas
sobras, meu pai!
- Destas? Não. Esta aqui
é do tatú.
- E aquela, Senhor?
- Aquela? É da cotia!
Vendo-se assim preterido, como pena da
sua ambição, o homem deu meia volta, e afastou-se, contrariado.
E daquilo que foi, em verdade, uma
punição, fez ele, depois, na terra, o motivo do seu orgulho...
O SOVINA
27 de maio
Funcionário modesto, ganhando
apenas setecentos mil réis por mês, o operoso oficial de Fazenda
Emiliano Praxedes não podia, ou não queria, dar à mulher,
jamais, um vestido de passeio, mesmo de baixo preço. Casado há um
ano, a esposa ignorava em absoluto as suas despesas, a cifra dos seus
orçamentos, sabendo, entretanto, que os dispêndios eram grandes,
fortes, elevados, porque ele nunca entrava em casa com dinheiro.
Cansada de esperar pela generosidade
espontânea do esposo, D. Lídia chegou-se, um dia, para ele, e,
agradando-o, amimando-o, acariciando-o, pediu, passando-lhe a mão pelos
cabelos:
- Praxedes, quando é que tu me
dás um vestido novo? Tu nunca me deste nada...
Apanhado de surpresa, o
funcionário prometeu:
- Breve. Isso depende apenas de ti.
Dá-me um filhinho, um anjo para o nosso lar, que eu te darei um vestido!
Está combinado?
- Está combinado! - concordou a
moça, batendo palmas de contente.
No fim de nove meses, dado o beijo no
seu primeiro pimpolho, que piscava no leito os olhinhos desconfiados, partia Emiliano
Praxedes para a rua, de onde voltava horas depois com um embrulho, que entregou
à esposa.
- Pronto ! exclamou. - O prometido
é devido!
D. Lídia abriu, risonha, o
pacote, e empalideceu, mais do que estava: era um vestido de chita azul,
grosseira, ordinaríssima, que não havia custado, talvez, mais de
seiscentos réis o metro!
Desapontada embora com a sovinice do
marido, a pobre senhora não se revoltou, não protestou,
não disse nada. Calcou o seu ressentimento no fundo da alma, escondeu a
sua mágoa no coração, e, sem que o esposo lhe tivesse
feito outra promessa, deu-lhe, ao fim de mais um ano, um outro filho. Terminado
o período de resguardo, tomou um bonde para a cidade, e, à tarde,
ao entrar em casa, vinha arrebatadora: vestido de seda, chapéu de plumas,
sapato de cetim, pele de raposa, colar de pérolas, enfim, um
deslumbramento!
- Que é isso, Lídia? Que
escândalo é esse? - exclamou, boquiaberto, pondo-se de pé,
o Praxedes, que já se achava em casa, à mesa de jantar.
E madame, desafiadora:
- Você pensa, então, que
todos são miseráveis como você?
E entrou na alcova, tirando as luvas.
CERIMÔNIAS
NUPCIAIS
31 de maio
Em um congresso de jurisconsultos,
reunido, há alguns anos, em Berna, o delegado da Suécia, se bem me
lembro, sugeriu a uniformização do Direito Civil, dando-se
às leis peculiares aos costumes de certos povos uma feição
de instituto internacional. Essa medida constituiria um passo para a
fraternidade humana, acabando-se, de vez, com as complicações
decorrentes da desigualdade dos códigos. A cerimônia do casamento,
principalmente, se tornaria mais simples e respeitável, como observava,
e muito justamente, um destes dias, o Sr. comendador Paulino Sampaio, em uma
palestra erudita com algumas senhoras inteligentes.
- É, realmente, absurda -
observava o honrado capitalista, essa desigualdade de critério.
Não seria mais razoável que o casamento, aqui, fosse igual ao
casamento na China ou na Arábia? Para que, pois, essas diferenças
fundamentais, nesse processo de reunir o destino das criaturas que se querem?
E, para demonstrar o que é a
desordem nessa matéria, lembrou, documentando o seu pensamento:
- Na África, por exemplo,
são adotados os processos mais esquisitos, e, até, mais
repugnantes. Em certas regiões daquele continente, a cerimônia
consiste, mesmo, no seguinte: a noiva enche de água uma vasilha, e
leva-a ao noivo, para que lave as mãos. Feito isso, a noiva toma a cuia
entre os dedos e bebe o resto da água servida. Feito isso, estão
casados.
As senhoras entreolharam-se,
espantadas, e o comendador continuou:
- Em outras regiões, a coisa
é ainda pior: em vez de dar as mãos a lavar, o noivo dá os
pés, tomando a noiva, depois, solenemente, os restos da água.
É horrível! Não é?
As senhoras entreolharam-se de novo,
escandalizadas, e o velho capitalista insistiu:
- Esses costumes dão ensejo
até, às vezes, a crimes inomináveis. Ainda em 1918,
após uma lavagem dos pés do noivo, uma rapariga bebeu a
água, na forma da tradição. E, momentos depois, caiu fulminada!
- Onde foi isso, comendador? - indagou
Mme. Costa Pinho, penalizada.
O capitalista sorriu, e explicou,
gentil:
- Na África Portuguesa, minha
senhora!
A PEDRA DOS NAMORADOS
3 de junho
Fugindo ao clima intolerável da cidade,
os dois amigos inseparáveis resolveram passar, este anuo, o verão
- Magnifico! - aplaudiu a primeira,
batendo as mãozinhas finas, brancas, de dedos afilados.
- Esplendido! - confirmou a segunda,
com as mesmas demonstrações de contentamento.
Mudados para a ilha encantadora,
saíram os dois casais, uma tarde, a passeio, juntando conchas pela
praia, até que foram ter ao local em que se levanta, entre a terra e o
mar, um penedo de três ou quatro metros de altura, em cujo cimo se
amontoava uma infinidade de pedras pequeninas, equilibrando-se com dificuldade.
- Olha, ali! Que é aquilo? -
exclamou D. Eleonora, radiante com aquela vida de liberdade, apontando, com a
sombrinha fechada, no rumo da pedra.
- Ah! É a "pedra dos
namorados"! - explicou o Dr. Archimedes. - Essa pedra tem uma
história curiosa.
E contou:
- É corrente aqui, na ilha, que
este rochedo anuncia os casamentos. Os namorados que passam por aqui,
atiram-lhe ao cimo uma pedra pequena, uma concha, ou coisa semelhante. Se ficar
lá em cima, a pessoa terá de casar-se; se não, se a pedra
rejeitar o objeto atirado, fazendo-o rolar para o chão, é sinal
de que a pessoa não se casará.
- Que graça! - rouxinoleou,
rindo, Dona Adalgiza.
E, voltando-se para os companheiros:
- Vamos experimentar?
- Mas... nós já estamos
casados! - obtemperou a amiga.
- Não faz mal. Vamos!
Apanhados quatro seixos, aproximaram-se
do penedo, e atiraram, cada um por sua vez. O primeiro ficou. O segundo,
igualmente. O terceiro, da mesma forma. O quarto, também.
- Todos ficaram! - exclamou, com a sua
jovialidade infantil, a linda D. Eleonora.
E acentuou, espichando-se, nas pontas
dos pés:
- Olhem: a minha pedrinha ficou junto
da do Dr. Archimedes, e a da Aldagiza bem juntinho da do Pedreira!
O tenente olhou, sério, o
bacharel. O bacharel fitou, grave, o tenente. Sorriram, os dois.
E continuaram, os quatro, o seu
passeio, apanhando, felizes, na areia úmida, as pequeninas conchas da
praia...
O PORCO
(Lenda
muçulmana)
5 de junho
A terra estava ainda mole do
Dilúvio, mas começavam a rebentar, já, aqui e ali, as
sementes das plantas resistentes. E como já houvesse, no solo libertado
das águas alimento bastante para a bicharia salva da inundação,
resolveu Noé, naquela manhã de grande sol e de grandes ventos,
abrir as portas da arca, encalhada na areia.
- Primeiro os veados. - ordenou o
Patriarca.
Jafet correu à proa da
embarcação, espantou um casal de gamos que devorava uns restos de
palha espalhados nas tábuas, e os dois animais pararam em disparada,
estalando os cascos luzentes no soalho escuro do tombadilho.
- Agora, os leões.
Cham instigou, cauteloso, um
leão e uma leoa que piscavam os olhos fulvos a claridade intensa do sol,
e as duas feras saltaram no areal ainda úmido, gravando com
força, na terra empapada, as quatro patas de unhas fortes.
E assim foram saindo, dois a dois, os
camelos, os cavalos, as zebras, as girafas, os bugios, os tigres, os ursos, os
castores, Os cães, as águias, os milhafres, as cotovias, tudo, em
suma, que devia constituir, mais tarde, o ornamento da terra ou do ar.
Deserta a Arca, notou Noé, ao
passar-lhe revista, que, no lugar em que estivera o elefante, ficara,
empestando o ambiente, um monte de imundice, de lama pútrida, que
repugnava.
- Sem? Cham? Jafet? - gritou o velho,
chamando os filhos.
Os rapazes acudiram, tapando o nariz.
- Tirem daqui esta indignidade, -
ordenou.
Os futuros construtores de Babel
entreolharam-se, horripilados com aquela incumbência nauseante. E iam
principiar, obedientes, o trabalho penoso, quando o pai, compreendendo-lhes o
escrúpulo, mandou que se abstivessem. Tinha-lhe acudido uma
idéia: estendeu os braços no rumo do monte de esterco, e ordenou:
- Move-te!
A montanha de imundice estremeceu por
si mesma, ergueu-se acima do soalho alguns centímetros, suspensa por
quatro pés invisíveis.
O Patriarca estendeu os braços
e, novamente, determinou:
- Retira-te!
O monte de lama podre partiu correndo,
buscando misturar-se com a lama que ficara das águas.
Tinha nascido o porco.
REVELAÇÃO
"A
recordação de um primeiro beijo de homem, mesmo quando recebido
contragosto, transforma-se no espírito da mulher virgem em desejo tenaz,
absorvente, imperioso de o repetir, de renovar a sensação daquele
delicioso pecado. - COLETTE WILLY"
8 de junho
Com os olhos vermelhos de chorar, e com
tremores de susto por todo o corpo delicado, a loura Mariazinha penetrou no
gabinete do pai, em cujos braços se atirou, desatando
- Eu vinha, - soluçava,
entrecortando as palavras, - eu vinha da aula de música, sozinha, com a
pasta debaixo do braço, quando, ali, na rua Paissandú, perto da
praia, um sujeito se aproximou de mim, pelas costas, e, pondo o braço no
meu pescoço. curvou-me para trás, e...
- E... - interrompeu o pai, com a
agonia no coração.
E a moça, terminando, com
dificuldade:
- Deu-me um beijo na boca, e correu, no
rumo da praia!
O caso havia sido, realmente, assim,
mas o comendador insistiu na explicação:
- E tu não o conheces?
- Não, senhor. É um rapaz
alto, de roupa clara, chapéu de palha, que eu não sei quem
é. Se, porém, o encontrar, eu o reconhecerei. Intimamente
aborrecido com aquela aventura da filha, o comendador deliberou punir o
atrevido, prometendo à menina, entre carícias afetuosas:
- Deixa estar, sossega. Esse patife
há de ser castigado. De agora em diante eu passarei a acompanhar-te, e,
onde o encontrares, eu quero que m'o apontes.
E, entre dentes:
- Patife!
Passada a primeira
emoção, em que o seu pudor de criatura ingênua, de
botão desabrochando para a vida, se patenteara com toda a
violência da pureza sem simulações, começou o
instinto feminino a tomar o seu lugar no espírito da moça, entre
cogitações que a alarmavam. Aquele beijo, roubado por um
desconhecido, revoltara-a, indignara-a, enchera-a de ódio, na
ocasião. À medida, porém, que o tempo se passava, parecia-lhe
que aquela carícia brutal aflorava, de novo, na sua boca, numa fome
angustiosa de repetição. Debalde, passando a mãozinha
pelos lábios, ela procurava escorraçar, afastar, dissipar aquela
lembrança. Esta voltava, entretanto, persistente, continua, teimosa, e
de modo tal que ela própria já buscava conservá-la no
pensamento, como se conserva uma flor encantada, cuja árvore se viu
morrer no caminho.
No dia seguinte, após uma noite
de angústias deliciosas, em que se casavam, substituindo-se, o pudor e o
desejo, foi com desprazer, e com um susto mal definido, que a mocinha ouviu,
recompondo com coquetaria os finos cabelos de ouro sob o lindo chapéu de
palha de Itália, o convite paterno:
- Mariazinha, estás pronta?
- Já vou, papai! - respondeu a
moça, de dentro, dando os últimos retoques na
"toilette", diante do toucador.
Durante uma semana o comendador
acompanhou a filha, acima e abaixo, da cidade até o palacete, e do
palacete à cidade, sem que ela descobrisse o seu insolente
desrespeitador. E se o velho capitalista sofria com essas caminhadas, com essas
idas e vindas fatigantes, mais padecia, ainda, a menina, cujos olhos se foram
cercando de um halo escuro, denunciador evidente das penosas noites de
insônia.
Uma tarde, enfim, ao sair com o pai, a
um passeio na praia Mariazinha tomou um susto, que a fez parar, branca, de
cera, no gramado por onde ia: diante dela, em um grupo de rapazes, estava, de
pé, o estroina, que lhe acordara a alma adormecida na inocência,
furtando-lhe na árvore virgem dos lábios o fruto venenoso daquele
ósculo! Voltando a si, a moça, como num delírio,
não se conteve:
- É aquele, papai! gritou,
batendo as mãos geladas pela emoção.
E, atirando-se ao pescoço do
rapaz, cobriu-o doidamente, furiosamente, desesperadamente, de beijos...
RESPOSTA
DIFÍCIL
10 de junho
Rosto em fogo, cabelos em desalinho,
Dr. Atanásio, que acaba de entrar da rua, passeia nervosamente de um
lado para outro no seu gabinete de trabalho, agitando nas mãos crispadas
uma carta que acabara de receber no escritório, e que fora, para ele,
uma punhalada no coração. À sua frente, no canapé
de couro escuro, tauxiado de prata polida, a jovem D. Eleonora esconde a face
lavada de lágrimas nas duas conchas das mãos cor de neve,
soluçando de vergonha e de susto no horror daquela
situação.
- E dizer-se que eu confiava em ti, tua
honra, no teu amor, e que estava
Madame procura, como um náufrago
na tormenta, uma frase com que inicie a desculpa impossível, mas o
marido atalha, agitado, com os olhos em chama, forçando-a a esconder, de
novo, a cabeça entre as mãos:
- Que vergonha, meu Deus! que vergonha,
agora, para mim!... Nunca mais, na minha vida, poderei levantar o rosto diante
desta sociedade, que conhece, que sabe, que testemunhou, impassível, o
teu crime, a lama que atiraste sobre o meu nome!...
Enfiando os dedos na cabeleira
grisalha, passadas largas, o notável advogado mede, cada vez mais
nervoso, a extensão do gabinete, cujos tapetes lhe abafam os passos,
quando, de repente, pára, e reclama, cerrando os punhos:
- Confessa-me. afinal: quando foi que
aquele miserável, abusando da tua fraqueza, e aproveitando a minha
ausência, penetrou nesta casa?
Adivinhando nessa pergunta um caminho
para a reconciliação, D. Eleonora levanta o lindo rosto ensopado
de lágrimas, e, fixando os grandes olhos úmidos nos olhos ardentes
do marido, indaga, apenas, pronta para uma explicação:
- Qual?
O TROPEIRO
14 de junho
O casamento do Sr. Antônio
Moreira, comerciante e fazendeiro
- João, você vai,
amanhã, à capital. Daqui lá são quarenta
léguas, das grandes. Você ponha a cangalha na burra preta;
escanche, em cima, o jogo de malas. e, chegando à cidade, receba, na
casa da modista para quem vai esta carta, o vestido da noiva.
E olhando o tropeiro,
significativamente:
Mas, olhe: você deve estar aqui
no sábado, à tarde. Se não, já sabe!
O caboclo correu ao cercado, pôs
a cangalha na burra, atirou-lhe por cima o jogo das malas de couro, e partiu.
Chegando a Fortaleza, recebeu a encomenda, e, para estar
O prazo que o Sr. Moreira lhe havia
dado para a viagem era, francamente, curto. O caminho não era bom, a
burra era velha, e, sexta-feira, à tardinha, faltando ainda dezoito
léguas, estava completamente estropiada. Debalde o caboclo, sacudindo o
cabresto, lhe metia o relho, rogando-lhe pragas: a alimária reunia as
forças, tentava um choto manhoso, e voltava ao mesmo passo triste,
lento, fatigado.
De repente, surgiu à margem da
estrada uma palhoça de lavrador. João bateu:
- Ôi, de casa!
- Ôi, de fóra!
E apareceu à porta de esteira um
sertanejo cobreado, dando as "boas-tardes".
O tropeiro, que era mais ou menos
conhecido por ali, perguntou, interessado, se não havia um cavalo, um
burro, um jumento, que lhe pudessem alugar. O dono da casa foi franco: animais,
não tinha; informado, porém, do compromisso do viajante,
lembrou-lhe, experiente, um remédio:
- Homem, você quer um conselho? E
ensinou:
- Olhe, ali, atrás da casa, tem
uma pimenteira. Está encarnada de pimenta. Você. apanha uma
porção delas, machuca num caco, faz uma bolota de pano, e... e...
passa!
O João aceitou a receita:
machucou as pimentas, enrolou alguns molambos à ponta de um pau,
ensopou-os no molho, e passou.
Passou e despediu-se.
Daí a pouco, a burra
começou a aumentar a marcha. Momentos depois, principiou a trotar; e,
finalmente, largou, de malas às costas, numa carreira brutal, furiosa,
desabalada, caminho em fora.
Seguro à ponta do cabresto, o
caboclo, a principio, acompanhou o quadrúpede. Quando, porém,
este abalou na correria desbragada pela estrada silenciosa, não houve
mais recurso: estava, ele também, cansado, fatigado, estropiado. Mas,
recordando-se que tinha prometido estar com o animal
No dia seguinte, pela manhã,
oito horas antes da que lhe fora marcada, atravessavam os dois, o tropeiro e a
burra, em disparada, as últimas ruas de São Bernardo das Russas.
PARÁBOLAS
16 de junho
Em matéria de parábolas,
eu conhecia, apenas, as que o Nazareno arquitetou para edificação
dos seus discípulos: a do bom samaritano, a do filho pródigo, a
do semeador, e três ou quatro outras, igualmente profundas e morais.
Agora, acabo de conhecer mais umas duzentas, contidas em um volume encantador,
publicado há dois dias pelo Sr. Dr. Afrânio Peixoto.
As "Parábolas" do
brilhante romancista da "Maria Bonita" e da "Esfinge"
são, como todas as parábolas bem urdidas e meditadas, um
excelente repositório de "ensinamentos, de exemplo", de lições
adaptáveis à vida dos homens. E entre elas nenhuma é,
talvez, tão humana, tão sábia, nem tão oportuna,
como a do melro e do tico-tico. "Descobri num arbusto, quase à
beira do caminho, no meu jardim - escreve o autor, - um ninho de tico-tico.
Vi-o voar, quando me aproximava, e pude notar três ovinhos depostos na
fofa cama bem feita. Pareceu-me que um dos ovos era diferente na forma e na
cor, dos outros dois, mas não insisti na minha malícia. Seria
lá com o tico-tico. Não perturbei mais o mistério dessa
maternidade com a minha indiscrição. Muitos dias depois,
distraído, vou pelas mesmas bandas e ouço inquieto pipilar.
Pé, ante pé, chego à espreita: o tico-tico depois de
saltitar de galho em galho, acerca-se do ninho, trazendo no bico a
nutrição para a ninhada que o chamava sôfrega. Olho paro o
ninho e vejo um passarinho só, grande, bem maior que o outro, vestido de
penugem negra, de amplo bico aberto, à espera de alimento... O filho do
tico-tico era um melro!"
Entusiasmado com essa página de
Afrânio Peixoto, eu acabava de lê-la para a admiração
do desembargador Bernardo Meireles quando o velho político do
Império me interrompeu, indagando:
- Como se chama essa história?
- Parábola, desembargador.
- Parábola? - trovejou o
ancião, fazendo ressoar no soalho o seu bengalão de massaranduba,
e agitando, num tremor subitâneo, as barbas veneráveis. - Que
parábola, o quê!?...
E acentuou, indignado:
- Uma grande patifaria, é que
é!
E chamando os oito netinhos, filhos da
mesma filha, começou a distribuir biscoitos por esse pequeno viveiro
humano, em que havia, cantando, pipilando chilreando, melros, canários,
tico-ticos, cambachirras, curiós...
A ADÚLTERA
(João, VIII,
1-12)
20 de junho
Regressava Jesus, naquela tarde, do monte
das Oliveiras, quando, em meio do caminho, com o sol a esconder-se, ao longe,
no leito de fogo das montanhas, foi rodeado por um pequeno grupo de fariseus,
que traziam de rastros, pálida e desgrenhada, uma pobre mulher que se
debatia entre eles. Supondo confundir o Rabino com a sua consulta inesperada,
um escriba, de nome Barachias, adiantou-se dois passos, e pediu, com fingida
humildade:
- Mestre, esta mulher foi surpreendida
a trair o esposo, a quem jurara fidelidade. A lei de Moisés determina
que ela seja apedrejada, e morta pela multidão. Que devemos fazer?
Jesus, que lhe ouvira o
coração antes de lhe escutar a palavra, baixou-se na areia da
estrada, e pôs-se, com o dedo, a escrever.
- Mestre - tornou o fariseu, - esta
mulher foi apanhada em flagrante, traindo o seu esposo. Devemos matá-la
à pedrada, como estabelece a lei de Moisés?
Jesus, em silêncio, continuava a
escrever sobre a areia, quando, de repente, erguendo-se, respondeu:
- Só o justo pode punir o
pecador. Aquele, pois, que, dentre vós nunca pecou, atire a primeira
pedra!
A estas palavras, Barachias
desapareceu, e, com ele, um a um, aqueles que o acompanhavam, ficando no
caminho, apenas, Jesus e a pecadora. Agradecida e assustada, ia a mísera
atirar-se de joelhos para beijar as sandálias do Mestre, quando o Rabino
a deteve pelos braços, dizendo-lhe, severo:
- Nada me deves, mulher. Em verdade te
digo, que as leis de meu Pai são mais implacáveis do que as leis
de Moisés. Poupei-te a vida porque a própria morte não
puniria a tua falta!
E, repelindo-a com a mão,
suavemente:
- Anda; vai! A vergonha do teu crime,
na tua velhice, será, na terra, o teu castigo!
E, baixando os olhos, continuou,
sozinho, a caminho de Jerusalém...
OBEDIÊNCIA
23 de junho
Mal saída do colégio,
para onde entrara ainda criança, isto é, desde que o pai, o
comendador Anacleto, enviuvara, foi a encantadora Maria Lúcia residir no
palacete recentemente alugado pelo velho capitalista em uma das ruas menos
movimentadas de Botafogo. Deslumbrada com a liberdade conquistada à
força de estudo, de uma aplicação que lhe granjeara o
primeiro lugar na sua turma, apenas uma coisa a desgostou: foi a
recomendação que lhe fez o pai, severo e prudente:
- Olha, minha filha; esta casa é
tua; governa-a como se fosses a dona. Uma coisa, apenas, eu te peço:
vive isolada, sem relações de amizade, e nunca, em
hipótese alguma, incomodes os vizinhos.
E beijando-lhe a testa clara. coroada
por uns lindos cabelos castanhos:
- Muito juizinho; ouviu?
Duas semanas não se tinham passado
sobre a libertação de Maria Lúcia, quando uma quadrilha de
ladrões, vendo, uma tarde, sair as criadas, que a jovem patroa indultara
naquele dia, resolveu assaltar, pulando o muro dos fundos, o palacete do
comendador. Descalços, em mangas de camisa, chapéu em cima dos
olhos, os miseráveis penetraram na casa e, desrespeitando a fraqueza da
moça, praticaram toda a sorte de depredações, esvaziando
as gavetas, arrombando os cofres de jóias, carregando, enfim, com todas
as coisas de valor que havia na residência do honrado capitalista.
À noite, ao abrir a porta, de
regresso ao lar, o comendador teve um pressentimento triste, ao ver a casa
às escuras. Abertas, porém, as lâmpadas, recuou,
horrorizado, para, em seguida, precipitar-se, de compartimento em compartimento,
chamando, aflito, pela menina:
- Maria Lúcia? Maria
Lúcia? Onde estás, minha filha?
No último quarto da casa,
esperava-o uma surpresa maior: sentada no leito, desgrenhada pálida, com
as vestes em desalinho, Maria Lúcia chorava, com a cabeça nas
mãos.
- Minha filha da minh'alma! - gemeu o
velho, atirando-se para ela. - Que foi isso?
- Os ladrões!... - explicou a
moça, num gemido.
E enxugando os olhos;
- Levaram tudo: as roupas, as
jóias, a louça, tudo, enfim. Depois...
- Depois?... - rugiu o velho, com os
olhos esbugalhados.
- Desgraçaram-me!... - concluiu
a moça, prorrompendo em soluços.
- Desgraçaram-te?... - gritou o
velho, de dentes e punhos cerrados, com um rugido soturno, cavo, de fera
atingida no coração.
E após um instante de silencio
desesperado:
- E como foi? Amarraram-te?
- Não, senhor.
- Subjugaram-te?
- Não, senhor.
- Taparam-te a boca?
- Não, senhor.
- E por que não gritaste? -
berrou o ancião, parando, de súbito, no meio do quarto.
E a moça, levantando para ele, num
soluço, os lindos olhos machucados de lágrimas:
- Papai não disse que eu
não incomodasse os vizinhos?
AS
LOÇÕES MIRACULOSAS
28 de junho
A coisa mais fácil de inventar,
é. neste mundo, o tônico para cabelo. Não há barbeiro
por mais modesto e preguiçoso, que não possua a sua formula
prestigiosa, destinada a fazer rebentar uma cabeleira encaracolada na calva
mais rebelde e, se possível, numa bola de bilhar. Quanto à
utilidade real dessas loções, desses tônicos, dessas
tinturas miraculosas, prova-a o número, sempre crescente, de carecas,
existente no Rio de janeiro.
O mais curioso é, no entanto, o
entusiasmo, a fé, a convicção, com que os
"fígaros" fazem a propaganda do seu preparado.
Concluída a barba do freguês, o bárbaro, empunhando ainda a
navalha, propõe à vítima:
- Vamos, agora, a uma
fricção do nosso tônico?
Agredido assim, o freguês encara
o agressor, medindo-o de alto a baixo, com raiva; ao dar, porém, com os
olhos na lamina faiscante, aberta a dois palmos do seu pescoço,
capitula, forçosamente, concordando, desarmado:
- Ponha!
Autorizado a cometer o crime nefando, o
barbeiro passa, então, a fazer o elogio do seu remédio.
- É um prodígio, senhor
doutor! - assegura. - Se ele caísse numa pedra, no chão, a pedra
criaria cabelo!...
O mais curioso propagandista desse
gênero foi, entretanto, o de que deu noticia, há muitos anos, na
imprensa do norte, um saudoso jornalista paraense. Apanhado, certa vez, de
surpresa, em uma cadeira de barbearia, esse mártir foi intimado, de
súbito, pelo homem da navalha:
- Então, uma
loçãozinha para nascer o cabelo; não?
O desventurado ia recusar
terminantemente a proposta, mas o barbeiro atalhou, abrindo a navalha:
- É um verdadeiro milagre, o meu
preparado. Basta cair na calva, para o cabelo começar, logo, a nascer.
É assombroso! É prodigioso! É formidável!
E enquanto esfregava na cabeça
do freguês a água do pote perfumada, contou:
- O senhor quer ver o que é a
minha loção? Uma vez, estando eu a fabricar este preparado, peguei
um jarro, que estava cheio dele, e coloquei-o em uma prateleira, pregada
à parede. Debaixo da prateleira, que é alta, ficava o meu
baú, um baú grande, de couro curtido, todo pregueado, daqueles
antigos, sólidos, enormes, que se faziam
- Molhado. não? - interrompeu o
jornalista.
E o fígaro, sério:
- Não, senhor; coberto de
cabelo!
E esfregou-lhe a careca, com
força.
A VINGANÇA
30 de junho
O caboclo Saturnino, agricultor em
Jacarepaguá, era, por natureza um homem morigerado. Criando os seus
porcos, as suas cabras, os seus perus, as suas galinhas, fazia o
possível para que a bicharada não saltasse a cerca, indo devastar
as plantações dos vizinhos. Se ele se indignava até
à inconveniência quando um bode alheio lhe penetrava o roçado,
era natural que os outros se revoltassem, também, quando vítimas
de idênticas depredações.
Não obstante os cuidados de todo
o dia, tapando, endireitando, recompondo os menores buracos do cercado, foi o
Saturnino surpreendido, uma tarde, pela falta de uma das galinhas mais gordas
do terreiro. Experiente como era, saiu o caboclo pelo fundo do quintal, e, ao
olhar para a cozinha do seu compadre Teodoro Maniva, descobriu, lá, a
sua galinha, que estava sendo depenada pela dona da casa. Saturnino rodeou o
cercado, bateu à porta da frente, e queixou-se do que lhe haviam feito.
Positivamente, aquilo não era sério, nem digno de um homem de
bem... Teodoro sorriu, e desculpou-se:
- Ora, compadre, para que brigar? Vamos
entrar num acordo. A galinha já está na panela; venha jantar,
hoje, comigo...
Inimigo de questões, Saturnino
aceitou o convite, esperou a hora, jantou, despediu-se, e dirigiu-se para casa,
de cabeça baixa, imaginando o meio de tomar desforra do seu compadre
Teodoro.
Esta, não foi difícil. A
Brígida, mulher do Teodoro, era uma cabocla forte, rochonchuda,
atarracada, cujos olhos faiscavam toda a vez que divisavam, na vila ou nas
estradas, o vulto do Saturnino. O caboclo recordou-se disso e, com o
propósito da represália, resolveu explorar essa fraqueza da
comadre. E tanto fez, tanto virou, tanto mexeu, que, um dia, ao voltar do
roçado, o Teodoro não encontrou mais a mulher. Desconfiado, rumou
para a casa do Saturnino, e bateu.
- Quem é? - perguntaram de
dentro.
- Sou eu! - trovejou o Teodoro.
Saturnino apareceu na soleira do
casebre e o outro indagou, feroz:
- A Brígida não
está aqui?
O caboclo sorriu, batendo-lhe no ombro:
- Está aí, compadre; ela
está aí dentro.
E tomando-o pelo braço,
puxando-o para a cabana:
- Entre, compadre; fique para dormir
com a gente...
LXI
ALTRUÍSMO
("Diário"
de uma senhora recentemente chegada da Europa)
2 de junho
"Domingo, 6. Regresso, enfim,
à pátria querida, e aos braços do meu marido. Após
dois anos de ausência, embarquei, ontem, às 5 horas da tarde, em
Lisboa, aonde cheguei anteontem, de Paris. O navio vai repleto de passageiros,
principalmente de emigrantes, embarcados em Vigo e no Porto. O mar apresenta-se
bem, e a viagem está sendo feita sem novidade.
Segunda-feira, 7. - Tudo continua bem a
bordo. Os passageiros de 1ª classe, na sua maior parte argentinos, bebem e
jogam, no "bar". No tombadilho, alguns ingleses, que se dirigem ao
Rio e a Buenos-Aires, fumando displicentemente. Algumas francesas que conduzem
vestidos feitos para a sociedade carioca; e três ou quatro
famílias brasileiras, que se conservam nos seus camarotes.
Terça-feira, 8. - A viagem
continua excelente. Em palestra com o imediato, este me informou que vão
a bordo, para o Rio, Santos, Montevidéu e Buenos-Aires, 1.275
passageiros. Uma verdadeira cidade flutuante, em que não há cinco
pessoas que reciprocamente se conheçam!
Quarta-feira, 9. - O mar permanece
calmo, e o céu prenuncia bom tempo. À mesa do almoço,
notei que o comandante olhava insistentemente para mim, distinguindo-me entre
as outras senhoras. Achei esquisita a insistência, e fiz-me de
desentendida. À noite, não desci para o jantar.
Quinta-feira, 10. - O comandante
continuou, hoje, à mesa, a olhar-me com desusado atrevimento, a ponto de
esquecer-se do talher e do whisky. É um inglesão alto, robusto,
de quarenta e poucos anos presumíveis, bigode louro, tez corada e fina,
olhos azuis como o oceano. Um verdadeiro tipo de marujo britânico.
Entretanto, a sua insistência irrita-me. Por quem me tomará ele?
Sexta-feira, 11. - Após o
jantar, o comandante Wiliam desceu da casa de comando ao tombadilho, procurando
conversar comigo,
Sábado, 12. - Esta
situação começa a incomodar-me. O comandante passou o dia
quase todo a perseguir-me, insistindo em declarar-me a sua paixão
desordenada. Tenho a impressão de que o homem enlouqueceu. E eu,
sozinha, sem um amigo, sem um conhecido que me defenda! Como é perigoso
para uma senhora viajar só!...
Domingo, 13. - O comandante
enlouqueceu, positivamente. Hoje, à tarde, aproveitando um momento em
que ficamos sós no salão de música, apertou-me os pulsos
com violência, dizendo-me que não lhe é possível
resistir mais. Diz ele que, se eu me não entregar à sua
paixão louca, ele meterá o navio a pique em pleno oceano, fazendo
perecer todos que nele viajam, Dai-me forças, meu Deus! Dai-me coragem!
Segunda-feira, 14. - Que dia
horrível, este! Como um louco, o cabelo e o bigode revoltos, os olhos
inchados pela insônia e pelo desejo, o comandante declarou-me,
trêmulo sob palavra de honra, que, se eu não for à
meia-noite de hoje, ao seu camarote, meia hora depois ele fará explodir
o navio, em uma catástrofe de que se não salvará
ninguém. Que situação a minha! Tende piedade de mim, minha
Nossa Senhora da Penha! Iluminai-me, minha Virgem Maria!
Terça-feira, 15. - Salvei da
morte 1.275 passageiros! Não haverá outros navios correndo perigo
no mar?"
MODAS...
5 de julho
A imprensa carioca tem mostrado, nestes
últimos tempos, um desusado interesse pelo Japão. "A
Noite" mantém em Tóquio um correspondente epistolar, o Sr.
Carlos Abreu, e não há quem não tenha lido, e quem
não admire, no Rio, as crônicas deliciosas que o nosso
cônsul em Kobe, o Sr. Osório Dutra, está mandando para
"O Imparcial". Despertada assim a fome de pitoresco do publico,
não há, hoje, quem não deseje conhecer a terra do Mikado,
com as suas "geishas", os seus crisântemos, as suas cegonhas azuis
e as suas cerejeiras cor de rosa, enfim, o Japão verídico ou de
legenda, com os seus pequenos leques de seda e os seus grandes templos de
porcelana.
Entre os curiosos desse gênero
está, como era natural, o antigo engenheiro da Central do Brasil, Dr.
Guilherme Viana, cuja velhice decorre, hoje, no meio da melhor prosperidade
econômica, ao lado da esposa, a virtuosa Dona Saturnina, da filha
viúva, D. Odete Meireles, e da sua encantadora sobrinha Maria
Otávia, botão de rosa de dezoito pétalas, que é,
pode-se dizer, uma segunda filha do casal. Interessado, dessa forma, pelo
Império do Sol Nascente, o velho engenheiro perguntou-me, outro dia, se
eu possuía nas minhas estantes alguma obra sobre o Japão. Eu lhe
falei em cinco ou seis, entre as quais as dos nossos patrícios Drs.
Oliveira Lima, Luiz Guimarães e padre Feitosa, e o meu amigo escolheu:
- Mande-me o livro do padre; deve ser
mais fiel, mais de acordo com a verdade. E mande-me outro qualquer, de autor
estrangeiro.
No dia seguinte remetia-lhe eu a
"Viagem ao Japão", de monsenhor Feitosa, e uma obra de Mabel
Bacon, americana, traduzida, há anos, para o francês, com o titulo
de "Jeunes filles et femmes au Japon". E ontem fui visitar o meu
velho amigo, a quem encontrei com os dois volumes em cima da mesa, rodeado das
três senhoras que lhe compõem a totalidade da família.
- Excelente livro, o do padre; -
observou-me, de sopetão, o meu velho camarada. - Achei apenas um pouco
exagerado, naquela parte em que ele diz ter visto os soldados de um
destacamento tirarem a farda, e descansarem, nus, à vista de toda gente,
ao lado das baionetas.
- E o outro livro, o da americana? -
indaguei.
- Também tem exageros, excessos
abomináveis, como, por exemplo, esse em que a autora conta que, no
interior do país, as camponesas trabalham ao sol, cultivando a terra, tendo
sobre o corpo unicamente um chapéu de abas largas, e, à cintura,
um leque, amarrado por um cordão.
- Como é essa vestimenta? -
indagou
D. Odete, intervindo.
- Um chapéu de palha, e um leque
à cintura, - repetiu o pai.
- E nada mais! - acentuou.
A essa informação, D.
Saturnina juntou as gordas mãos sobre o estômago, espantada:
- Meu Deus! Parece até
"toilette" do Municipal!
Mas não terminou. Escandalizada
com aquela heresia, a viúva interrompeu-a, protestando, logo, não
em nome da decência, mas em nome do bom gosto:
- Oh, mamãe, assim,
também, não!
E acrescentou, com horror:
- Onde a senhora já viu a gente
ir ao Municipal de chapéu?!...
OS SUSPENSÓRIOS
8 de julho
Um advogado ilustre, pessoa da minha
estima, contava-me, há dias, um caso curioso que o impressionara
profundamente. Procurado por uma senhora, que desejava divorciar-se, fizera ele
a petição competente, com todo o segredo, e foi levá-la ao
juiz. E regozijava-se com a surpresa que ia causar ao péssimo esposo da
sua cliente, quando abriu a boca estupefato: no cartório havia,
já, uma petição do marido, que apelava para o mesmo
recurso judiciário apoiado nas mesmas razões em que se apoiava a
mulher. E, como conversa puxa conversa, contou-me o ilustre causídico
uma história interessante, que ele havia lido, poucos dias antes, em
certa revista estrangeira.
Homem de gênio desigual, o Sr.
Fabiano preparava-se para sair, quando, de repente, começou a perder a
paciência. Faltava-lhe o suspensório, que devia estar preso
à calça vestida na véspera, e era com
indignação que ele berrava, com as mãos segurando o
cós:
- Não o viste, Maria?
A criada respondia-lhe negativamente e
ele trovejava para a mulher:
- Não o viste, Marcela?
De repente, coordenando as
idéias, ajustando o "puzzle" das lembranças recentes,
calou-se, acalmando completamente a tempestade. E ia fazer o possível
para que ninguém falasse mais em tal coisa, quando a mulher chegou
à porta do quarto, avisando:
- Fabiano, aí tem uma pessoa que
quer falar contigo, com urgência.
- Quem é?
- O Sr. Octaviano, da farmácia.
Um minuto depois, mostrando nas
olheiras escuras as infinitas torturas de uma noite de insônia, entrava
no quarto, usando da intimidade que ligava as duas famílias, o Sr.
Octaviano, farmacêutico de renome. Estava soturno, grave, circunspecto,
e, sentindo-se a sós com o amigo, explicou, misterioso, o motivo daquela
visita matinal:
- Você sabe - começou, -
que eu tinha absoluta confiança em minha mulher. Em minha casa
não entrava, jamais, outro homem. Entretanto, ao penetrar, ontem, no
nosso quarto de dormir, encontrei isto debaixo da cama. Veja!
E, dizendo isso, arrancou do bolso do
sobretudo, que não tirara, um par de suspensórios azul, com
fivelas de prata, que exibiu, confiante, aos olhos espantados do amigo.
A essas vozes, porém, a porta
escancara-se e, de um pulo, aparece no meio do quarto uma figura de mulher. Era
D. Marcela que, tendo visto e ouvido tudo pela fechadura, bradava, branca de
cólera:
- Mas, que é isso, afinal? Esse
suspensório é o teu, que estas procurando há meia hora!
E cerrando os punhos, no rumo do
esposo:
- Indigno! Canalha! Miserável!
Não fico nesta casa mais, nem um minuto! Cachorro!...
E prorrompendo em soluços:
- Bandido! Infame! Desgraçado!..
Atarantado com o que acabava de ouvir,
o Sr. Octaviano recuara até à parede, boquiaberto. Pálido,
tonto, desorientado, o Sr. Fabiano fizera outro tanto, em sentido
contrário. E ia a comédia por essa altura, com a moça a
arrancar furiosamente os cabelos no meio do quarto, quando apareceu à
porta a criada, trazendo alguma coisa nas mãos.
- Patrão, achei os seus
suspensórios.
A patroa parou de chorar, estacando, de
olhos escancarados, pálida, de cera. E a criada continuou:
- Estavam na secretária da
senhora, ao lado do canapé.
Recobrando animo, o Sr. Fabiano
encaminhou-se, rápido, para a rapariga, e vendo que os
suspensórios eram cinzentos, e não azuis, como os seus, trovejou,
furibundo:
- De quem são estes
suspensórios, senhora?
Mas não obteve resposta. D.
Marcela. apavorada havia saído pela porta dos fundos.
A BARONESA
12 de julho
Um médico ilustre, de
incontestável influencia no seio da família carioca, está
utilizando, ultimamente, o seu prestigio pessoal para que as senhoras eliminem,
de uma vez, o habito de pintar os cabelos. Acha ele que uma cabeça alva,
ou, pelo menos. polvilhada de prata, é um sinal de insubstituível
respeitabilidade, que se não pode, de modo nenhum, esconder ou
disfarçar. E tamanho tem sido o resultado dessa campanha
metódica, persistente, silenciosa, contra a vaidade feminina, que sobem
a dezenas, já, as senhoras que se reconciliaram com o destino,
conformando-se com as conseqüências inevitáveis da idade.
Esse costume de mudar a cor dos cabelos
não é, entretanto, um vício dos nossos tempos. As
atenienses conheceram-no, conheceram-no as mulheres de Veneza, criadoras do
"louro veneziano". e não houve corte européia posterior
à Renascença em que não se procurasse um processo de
ocultar à curiosidade do mundo, sempre impiedoso, a neve que nos avisa,
alvejando-nos a cabeça, que é chegado, enfim, o triste inverno da
vida... Há trinta anos, ainda, era isso em voga no Rio de janeiro. E era
sobre isso mesmo que eu meditava, uma destas tardes, ao despedir-me da minha
veneranda amiga a Sra. baronesa de Caçapava, cujos oitenta e seis anos
constituem, em nossos dias, uma das relíquias mais preciosas da mais
alta sociedade do Império.
Estendida na sua
"chaise-longue", com os pés, pequeninos e engelhados como duas
flores murchas, abrigados sob uma delicada toalha de seda, a boníssima
titular sorria, carinhosa, com a sua boca muito pequena, escondida em um dos
vales do rosto recortado de rugas, quando eu lhe falei nos inícios do
nosso conhecimento.
- O senhor andava pelos trinta anos;
não era, conselheiro?
Eu fiz as contas, mentalmente,
embaraçando-me nos algarismos.
- Não estou certo, Sra.
baronesa; não estou certo - respondi. - Recordo-me, porém, que,
certa vez, ao vê-la, fiquei impressionadíssimo com a sua figura. A
Sra. baronesa, nesse tempo, lembro-me bem, tinha o rosto ainda moço, mas
apresentava na cabeça, já, acentuando a sua beleza, numerosos
fios de prata.
- Foi em 1871, - confirmou a velha
fidalga, sorrindo benevolamente com a sua boquita de criança, encolhida
e funda, privada de todos os dentes. - Foi em 1871; eu tinha, então,
trinta e sete anos.
- De outra vez que a vi, - tornei, - o
que mais me impressionou foi, ainda, a beleza do seu cabelo. A sua cabeleira,
sempre farta, abundante, maravilhosa, era, ainda, inteiramente negra.
A baronesa olhou-me novamente, com um
sorriso de saudade, que era um doce perdão para nós ambos, e
acentuou, bondosa:
- Foi em 1880; eu tinha quarenta e
seis...
E, olhando-me significativamente,
pediu-me, com a vergonha brilhando, como uma brasa, na cinza fria dos olhos:
- Cubra-me os pés, conselheiro;
sim?
A FOME NO AMAZONAS
15 de julho
São alarmantes, aflitivas,
desesperadoras, as notícias provenientes da Amazônia, relatando o
que têm sido, ali, os horrores da fome. Reduzidas à miséria
extrema, centenas de famílias vivem, naquelas regiões
inóspitas, sem remédios, sem roupa, sem
alimentação, num retrocesso forçado à vida
selvagem. As casas, que outrora permaneciam abertas à margem das
estradas e dos rios, fecharam-se de todo, para que o viajante não veja,
de passagem, a nudez das pessoas que nelas habitam. Milhares de senhoras, de
moças. de meninas, refugiaram-se nos aposentos, por não terem um
andrajo, um molambo, um trapo, sequer, para velarem as partes vergonhosas do
corpo. E, se a carência de vestidos é tamanha, que se
poderá dizer, então, da falta de alimentos? O episódio
narrado pelo Sr. deputado Pereira Teixeira. que dele teve notícia por um
amigo recentemente chegado do Acre, é desses que dissolvem em
lágrimas as fibras mais duras do coração.
Seringueiro destemido, o Antônio
Cajapió havia resistido, quanto possível, na sua barraca de Santa
Ifigênia, à fúria da calamidade. Avisado de que os vapores
de Manaus não iriam mais àquelas paragens, levando mantimentos,
enquanto a borracha não subisse de preço, meteu-se ele no seu
casebre, a consumir o que lhe restava: carne seca, feijão, farinha,
bolachas, e, quando acabou tudo, sentou-se na canoa, e pôs-se de viagem.
descendo o rio.
Ao fim de dois dias, descobriu,
à beira da grande estrada fluvial, um barracão, que se achava
completamente fechado. Intrigado, encostou a embarcação,
amarrou-a a uma árvore da ribanceira e, como não tivesse mais um
punhado de farinha para a fome do dia, resolveu disputá-lo, mesmo pela
violência, aos moradores daquela tapera. Com esse intuito encaminhou-se
para a porta, e bateu:
- Ó de casa!
Ninguém respondeu.
- Ó de casa! - insistiu.
Como o silencio continuasse, o caboclo
procurou uma fresta da porta, e olhou: dentro, estiradas na paxiúba do
soalho, estavam, completamente despidas, a dona da casa, mulher ainda jovem, e
duas irmãs desta, que lhe faziam companhia. Espiando pela fresta, viu
ele que a família se encontrava em conciliábulo, procurando,
talvez, um meio de atender ao viajante, quando não havia mais, na casa,
quem tivesse um vestido ou um pedaço de pano para a nudez. De repente,
como se tivessem deliberado alguma coisa, ele viu, do seu ponto de
observação, que a dona da casa se afastava do grupo e,
tímida, assustada, vergonhosa, chegava à mesa, tomava um prato
vazio, que ali se achava, e, colocando-o no lugar em que devia estar a folha de
parreira, encaminhar-se para a porta. Um minuto mais, a porta abria-se, e o
caboclo recuava, espantado, ante o tipo escultural que lhe caía sob os olhos
e cujo corpo só era vedado à sua curiosidade no ponto em que
estava coberto pelo prato.
- Que deseja? - indagou a cabocla, de
olhos baixos, desconfiada.
O viajante examinou, por um instante, a
mulher, pensou dois minutos, e, sem se conter, trovejou:
- Almoçar!...
À tarde, quando a canoa partiu,
as três mulheres juntavam com uma vassoura os cacos da louça.
espalhados no chão...
OS "REDDIS"
18 de julho
A alma humana é uma caverna
tão ponteada de esconderijos e retorcida de zig-zags que ainda não
houve na terra um homem, por mais atilado e meticuloso, que chegasse a conhecer
a metade, sequer, do seu próprio coração. Quando a gente
supõe haver encontrado uma vida simples, singela, sem
complicações nem subterfúgios, eis que se abre diante de
nós um abismo, um vulcão, uma boca subterrânea, capaz de
engolir o peregrino que lhe busca desvendar o mistério. Mesmo no que diz
respeito à educação, isto é, às qualidades
adquiridas pelo indivíduo, essas surpresas não são raras
nem, geralmente, pequenas. E era disso mesmo que eu me convencia, mais uma vez,
há poucos dias, ao voltar da última recepção do
coronel Anfrísio Guimarães, pai do Dr. Claudemiro
Guimarães cujo nome é, pode-se dizer, um dos orgulhos da nova
geração de advogados brasileiros.
Homem de sólidos capitais, o
coronel, assim que o filho casou, teve, não se sabe por que, uma
desinteligência com a esposa, a velha e virtuosa D. Cherubina, passando a
residir no palacete do novo casal, cujas despesas, de nove contos por
mês, são enfrentadas galhardamente pela sua fortuna. Mme.
Claudemiro, a nora, tem pelos cinqüenta anos do sogro uma
adoração filial. O filho, o Dr. Claudemiro, respeita-o duplamente
como pai, e, principalmente, porque o velho lhe desculpa sempre, como os bons
pais, perante a esposa, as suas longas vigílias jurídicas fora do
lar. E como a vida lhes corra, a uns e a outros, como um ribeiro japonês
entre margens de crisântemos eu me dou, de vez em quando, ao prazer de
visitá-los, concorrendo para a enchente das suas salas nas costumeiras
recepções dos domingos.
Um desses dias, fui. E
conversávamos em uma roda sobre costumes orientais, quando, de repente,
a propósito de casamentos, eu me lembrei dos "reddis", povo da
Índia meridiona1, cuja história havia lido na véspera, e
contei, com certo desvanecimento:
- Os "reddis", nesse
particular, são originalíssimos. Entre eles, a mulher de quinze
ou vinte anos pode esposar um menino de seis, o qual será criado por
ela. Enquanto, porém, a criança não cresce, ela fica, por
seu turno, entregue a um parente do marido, geralmente ao pai deste, seu sogro,
o qual poderá substituir o filho em todas as eventualidades. E este
esposo interino preenche de tal forma as suas funções de tutor,
que o marido, quando cresce encontra, já, a casa repleta de
crianças, que, sendo seus filhos, são. também, seus
irmãos.
Como se fizesse em torno de mim um
silencio geral, eu o aproveitei, continuando:
- Esses maridos não ficam,
porém, prejudicados; sendo as suas mulheres mais velhas do que eles, e
os "seus" filhos quase da sua idade, eles terão, mais tarde, a
compensação, fazendo com os filhos o que o pai fizera com eles. E
assim vivem muito bem.
Enquanto eu contava essa
história, notei que alguém se afastava do grupo. E quando acabei,
fiquei estarrecido com uma surpresa: junto de mim, com a minha bengala e a
minha cartola na mão, estava o coronel Guimarães, que me
perguntava, pálido, com ligeiros tremores no "cavaignac":
- O conselheiro pediu o seu
chapéu?
FORTUNATO
22 de julho
Em luta permanente com a adversidade,
Fortunato segurou, uma noite, entre as mãos, a cabeça da mulher,
e confessou o seu propósito:
- A fome, como tu vês, bate-nos
à porta. Sem pão e sem amigos, a vida, neste povoado,
é-me, de todo, impossível. É preciso, pois, que eu me
prive do teu carinho, e parta, sozinho, pelo mundo, em busca de terra menos
ingrata. Tudo que possuímos dar-te-á, com certeza, para uns vinte
ou trinta meses. Com o teu trabalho honesto, poderás dilatar a utilidade
desses recursos, fazendo-os durar cinco anos. Se, dentro desse prazo, eu
não tornar aos teus braços e ao teu amor, considera-te
viúva, porque, de certo, eu morri.
Na manhã seguinte, após
um esforço inaudito para libertar-se das cadeias de cristal e
mármore que eram as lágrimas e os braços da esposa jovem,
Fortunato punha às costas, preso ao seu cajado de caminhante, uma trouxa
com a roupa indispensável, e desaparecia, limpando os olhos
úmidos na manga da camisa grosseira, na curva da estrada por onde
passara, há um ano, trazendo a noiva pela mão.
Errando de terra em terra, de fazenda
em fazenda, eram-lhe companheiros, por toda a parte, o infortúnio
impiedoso, a má sorte inclemente, os contratempos inevitáveis.
Debalde se esforçava, infatigável, para juntar um pecúlio,
amontoando algumas moedas com que levasse ao lar um pouco de felicidade e
fartura. As suas tentativas mais tímidas, mais simples, mais modestas,
eram, sempre, como uma árvore infeliz, cujas folhas fossem dispersadas,
ainda tenras, por um sopro de tempestade.
Ao fim de quatro anos, porém,
como por um milagre, tudo mudou. As moedas multiplicaram-se em seu bolso,
acumulando-se, amontoando-se, como se a fortuna, arrependida de tanta avareza,
se tivesse predisposto a compensar a usura anterior com um gesto de espantosa
prodigalidade.
Meses depois, nas vésperas,
quase, do prazo concedido à mulher, Fortunato encheu de moedas o seu
grande surrão de couro, prendeu-o à cintura, e, velho, barbado,
desfigurado pelos sofrimentos inomináveis, tomou, a pé, o caminho
da terra natal. Ao cabo de quatro semanas, com os pés sangrando, viu,
enfim, da curva da estrada por onde se fora cinco anos antes, a sua aldeia e o
seu lar. Trôpego, magro, faminto, mas disposto. mesmo assim, a dar uma
sensação de alegria à companheira querida, encaminhou-se,
de manso, para a porta e bateu. Uma criança de quatro anos, linda e
forte, em quem se repetiam os traços inolvidáveis da esposa,
surgiu na sala pequenina, e chamou para dentro:
- Papai!
- Heim? - respondeu, do compartimento
contíguo, uma voz masculina.
- Aqui está um homem - informou,
alto, a pequenita.
Fortunato cambaleou numa
síncope,. encostando-se ao portal, para não cair. Antes, que o
dono da casa aparecesse, entregou o saco de ouro à criança,
retomou o seu bordão de peregrino, e partiu...
O LIMO
24 de julho
Mme. Costa Mafra particulariza-se na
sociedade carioca pela originalidade das suas perguntas, que lhe colocam o
marido, de vez em quando, nas piores situações. Roda em que ela
se encontre, dissolve-se invariavelmente com uma das suas consultas
inesperadas, a mais simples das quais poria em dificuldades, talvez, o mais
hábil dos sofistas. Como, porém, todo veneno possui um
antídoto, Dona Arabela tem, para neutralizar as suas perguntas
indiscretas, as respostas irretorquíveis do conselheiro Brazilino do
Amaral.
Desse duelo entre a inocência e a
esperteza, ou, melhor, entre a ingenuidade e a experiência, fui eu
próprio testemunha, há dias, no salão de chá do
Jockey-Club, quando, a propósito do Sr. deputado José
Bonifácio, que havíamos encontrado à porta, Mme. Costa
Mafra perguntou:
- Mas, é verdade, conselheiro:
por que é que os homens têm o rosto ponteado de barba, de pelos
irritantes e incomodatícios, quando as mulheres possuem, em geral, o
delas macio, liso, limpo, sem um fio de cabelo?
O conselheiro olhou o Dr. Mafra, que o
fitava suplicante, passou a mão pelas barbas veneráveis, e
começou a explicar, com os olhos na toalha:
- Como a senhora sabe, o homem foi
feito de barro, e a mulher foi tirada da sua costela.
- Isto eu sei.
- Pois, bem. Feito em primeiro lugar,
com alguns punhados de barro umedecido, o homem foi posto a secar ao sol, como
todas as obras de cerâmica. A senhora sabe, porém, que, todo barro
molhado, quando não apanha sol convenientemente, cria limo; e foi o que
aconteceu ao homem, cujo rosto, na ocasião de ser o corpo submetido ao
fogo solar, ficou sombreado por um ramo de árvore, na oficina do
Paraíso.
- E a mulher?
- A mulher, não. Tirada da
costela do homem, e posta com o rosto para o sol, ficou naturalmente, com o
cabelo apenas na cabeça, posta à sombra, mas, em
compensação, sem o limo na face.
D. Arabela descansou o queixo de
bonequinha alemã no polegar e no indicador da mão esquerda, e, ao
dar com os olhos no próprio braço de mármore posto a
descoberto até a "avenida da ligação", insistiu:
- E em toda a parte aonde o sol
não chegou, criou limo?
O conselheiro ia responder, mas, ao
abrir a boca, fechou-a, de novo. É que, defronte dele, com a
xícara suspensa e os olhos fuzilantes, o Dr. Mafra intimava, com
significativos tremores na voz:
- Conselheiro, tome o seu chá...
A VIRGEM
27 de julho
Após aquela noite de festa, em
que dançara desesperadamente com todos os rapazes que lhe pediam essa honra,
amanheceu mademoiselle Beatriz com febre alta, e uma tosse forte, com grandes
dores no peito. Chamados os Drs. Miguel Couto, Austregésilo e
Aluísio de Castro, foi debalde que eles recorreram, em conjunto,
às possibilidades da ciência: ao segundo dia a encantadora
brasileirinha falecia, fazendo desfilar pela rua D. Mariana o mais suntuoso
enterro de virgem que já se viu no bairro de Botafogo.
Quebrados, assim, os grilhões
que a prendiam a este mundo de "fox-trots" e "maxixes", foi
mle. Beatriz tão alva como a de Dante, bater, sorrindo, à
luminosa porta do céu. E foi um alvoroço, como dificilmente se
imagina. Tratando-se de um acontecimento raro, e que se torna cada vez menos
freqüente, a recepção das virgens se reveste, no céu,
de uma sumptuosidade excepcional. Para ver, e saudar, de perto, a
heroína, juntam-se no vestíbulo dos empíreo, agitando
palmas de rosas, todos os bem-aventurados. E mal a recém-chegada
põe o pé no batente florido, rompe por todo o Paraíso o
coro dos anjos, cujas vozes se misturam, doces, meigas, comoventes, às
das onze mil companheiras de Santa Úrsula.
Era essa a recepção que
aguardava mle. Beatriz, quando ia ficando tudo inutilizado por um incidente
imprevisto. Anunciada pelos serafins, de longe, do carro de ouro das nuvens, a aproximação
da venturosa, ordenou S. Pedro que Santa Cecília e Santa Matilde o
ajudassem no reconhecimento da nova eleita de Deus, estabelecendo a sua
identidade. Para isso era preciso, entretanto, despojá-la da sua
grinalda, dos seus enfeites, das suas complexas roupas terrenas, deixando
patente, com a pureza do seu corpo, a inocência do seu
coração.
Assim, porém, que principiou
este serviço delicado, as santas recuaram, escandalizadas. E,
entreolhando-se, chamaram São Pedro.
- A moça não é
esta, meu santo!
O chaveiro correu, aflito, e fixando os
olhos puros no corpo virginíssimo de Beatriz, indagou, espantado:
- De que foi que você morreu,
minha filha?
- De pneumonia, meu santo!
O apostolo encarou-a, incrédulo,
e insistiu:
- Você não está
enganada, não?
- Não, senhor.
- Você não morreu em algum
desastre de estrada de ferro, de alguma queda de aeroplano, de algum encontro
de automóveis?
- Não, senhor! - teimou a
moça, firme, sacudindo a cabeça.
- Que significam, então, - tornou
o santo, - essas equimoses no seu colo, no seu estômago, no seu ventre,
nas suas pernas como quem foi arrastada de bruços pelo
calçamento?
Beatriz baixou os olhos negros pelo seu
claro corpo maravilhoso, e, sorrindo:
- Ahn! Não é nada,
não!
E explicou, com graça:
- É que eu morri, dois dias
depois de um grande baile, em que dancei o tango com os rapazes mais elegantes
do Rio de janeiro!
E, desatando a rir, entrou, entre os
anjos, no céu...
MELHORAMENTOS...
31 de julho
A grande preocupação
nacional do momento, conforme é notório, é a visita de sua
majestade o rei da Bélgica. Da Gávea à Tijuca, do Cais
Faroux às águas paludosas do rio Pavuna, reinam uma febre, uma
atividade, uma fúria de empreendimentos verdadeiramente assombrosa.
Nunca se viu, no Rio, atacados de uma só vez, tão grande
número de melhoramentos. A cidade modifica-se, rejuvenesce,
transforma-se, das pedras das ruas à crista dos monumentos.
Aí estão, demonstrando a
influencia benéfica dessa visita real, as notícias da imprensa,
registrando essas alterações. Calça-se uma rua dos
subúrbios? Para que? Para o rei Alberto ver... Modifica-se o
palácio Guanabara? Reforma-se o jardim da praça Maná?
Aumenta-se o edifício da Prefeitura? Com que intuito? Para o rei Alberto
ver... Até a pintura das carroças de lixo, ordenada pela Limpeza
Publica, já foi atribuída à próxima visita de sua
majestade.
Isso, no que está patente,
visível, positivo. Os melhoramentos privados, secretos, de iniciativa da
população, estes ainda são mais numerosos, mais
sérios, mais significativos do nosso entusiasmo. Dezenas de vestidos de
baile, "para o rei Alberto ver", já foram encomendados aos
grandes costureiros daqui, de Paris e de Londres. Há, mesmo, até,
nas rodas elegantes, quem se esteja entregando, pessoalmente, na cidade, com o
mesmo fim, a melhoramentos mais interessantes.
Um destes dias, entrava eu no Instituto
de Beleza, onde ia comprar um vidro de tintura para o cabelo, quando encontrei,
no salão de espera, a minha velha amiga D. Sofia Pedreira, que aguardava,
ali, pacientemente, a lindíssima viúva Odete Aires, que se
achava, no momento, no gabinete do cabeleireiro. Começávamos
nós a conversar sobre coisas sem importância, quando a
formosíssima senhora suspendeu o reposteiro, e apareceu à porta,
radiando e cheirando, como uma grande rosa que desabrochasse num vaso.
- O senhor por aqui, conselheiro? -
gritou a encantadora criatura, com alvoroço, e com todos os dentes,
estendendo-me, de longe a sua mão rosada e fina, onde as unhas
faiscavam, rubras, como corais.
- É verdade, - expliquei,
titubeando.
- Vim comprar uma caixa de pó
para dentes... E a senhora?
- Eu? - respondeu, rindo. - Eu... Olhe?
E, espiando para um lado e para outro,
a ver se não nos observavam, suspendeu até o ombro deslumbrante a
manga curta e larga do finíssimo vestido de seda, mostrando a parte
inferior e extrema do lindo braço de mármore, fina, alva, lisa,
como de uma criança.
- Veja! - ordenou-me.
E já no primeiro degrau da
escada, por trás do leque, piscando-me um olho, com brejeirice:
- Para o rei Alberto ver.
A CAÇADA
8 de agosto
A noticia de que S. M. o rei Alberto ia
realizar uma caçada em terras da família Prado,
Estudante, ainda, na Paulicéia,
fui eu convidado, um dia, pelo meu colega de turma, o atual conselheiro
Antônio Prado, para um recreio venatório em propriedade de sua
família, na serra do Cubatão, onde abundavam, ainda, naqueles
tempos, o veado, a paca, o porco do mato, e, em especial, as onças, os
famosos tigres americanos, que faziam enorme estrago na criação.
Organizada a comitiva, composta de
numerosos cavalheiros da melhor sociedade paulista daquela época,
partimos para São Bernardo, indo pousar, ao fim de dois dias de viagem,
na fazenda do Encantado, pertencente a Exma. D. Veridiana, no ponto mais alto
da serrania. No terceiro dia, enfim, partíamos todos para a mata,
montando vinte e oito cavalos e conduzindo quarenta e sete cães,
distribuídos pelos diversos membros do séquito.
Separados uns dos outros, ia eu
beirando um córrego marulhoso que rolava da penedia, quando ouvi, ao
longe, entre a reza religiosa da selva, o barulho da matilha, anunciando a caça.
Esporeei o cavalo, venci um bosque de ipês, atravessei uma clareira, e
cheguei ao local. Em uma furna da montanha, evitando, feroz, a pontaria dos
caçadores, estava uma onça, acuada, mostrando os dentes enormes,
agudos, afiados, para uma dezena de cães!
- Atire, doutor! - pedi, apeando-me, ao
Dr. Antônio Prado.
- É impossível! -
observou-me o futuro estadista.
A posição era, realmente,
péssima. Defendido por umas raízes entrelaçadas à
boca da furna, o felino não só impedia o avanço dos
cães, como impossibilitava, em absoluto a pontaria dos caçadores.
Vários tiros já haviam sido disparados pelos atiradores mais
adestrados, conseguindo eles, apenas, enfurecer o animal, que empregava toda a
sua agilidade na defesa.
De repente, ouviu-se um galope no rumo
da furna; e, um minuto mais, apeava-se ao nosso lado, risonha, jovem,
arrebatadora, a formosíssima Sra. Corrêa Aires, cuja beleza
constituía, então, com o seu moreno rosado, seus olhos azuis e os
seus finíssimos cabelos castanhos, o maior dos orgulhos de São
Paulo.
- Que é? - perguntou, mostrando,
num sorriso, os seus lindos dentes de neve, a furiosa amazona batendo com o
chicotinho de ouro na sua pequenina bota de montaria.
- Uma onça! - explicamos, todos,
a uma voz.
Nesse momento, a onça. que olhava,
fixa, para fora. deteve os olhos na moça, como deslumbrada. A linda
caçadora tirou do cinto de veludo uma pistola de caça, de cabo de
marfim, levou-a à altura dos olhos, e. fazendo pontaria no felino, que a
fitava, esquecido de si esmo, disparou. A fera deu um salto de dor,
estorcendo-se. A matilha investiu, latindo, penetrando a furna. Um instante
depois era a onça arrastada para fora, morta.
Sorridente. Fresca, maravilhosa, a
divina caçadora colocou o pezinho sobre o corpo da fera, buscando-lhe a
ferida. De repente, descobriu-a:
- Foi no coração! -
disse.
E. encarando Antônio Prado,
desafiadora:
- Morreu como certos homens...
Nós, em torno, baixamos os
olhos.
A MANICURA
7 de agosto
O merceeiro Agostinho Pereira Alvares,
proprietário de um dos estabelecimentos mais afreguesados do Engenho
Novo, não havia saído, jamais, do seu bairro, para fazer a barba
e cortar o cabelo. Sempre que, de dois em dois meses, lhe vinha a idéia
de praticar essas medidas higiênicas, mandava ele chamar o barbeiro
à sua casa de comércio, submetendo-se à tesoura e à
navalha do fígaro em um compartimento nos fundos da mercearia.
Um destes dias, porém, com a
noticia de que toda a cidade entrava em melhoramentos para receber o soberano
dos belgas, resolveu o futuro capitalista vir, também, à zona
urbana, para uns reparos estéticos na sua própria pessoa.
Tornava-se preciso que o rei o encontrasse de cabelo cortado e barba feita, e
era evidente que esse trabalho só podia ser efetuado por um verdadeiro
mestre da arte, como deviam ser, naturalmente, os do centro da cidade.
Tomada essa deliberação,
meteu-se o acreditado comerciante, sábado último, em um bonde, e
saltou na rua Floriano Peixoto, enfiando-se, pressuroso, pela primeira
barbearia que encontrou aberta.
- Cabelo e barba! - pediu, arrogante,
libertando-se, com um soco, do formidável colarinho que o asfixiava.
Enfiada, que foi, a toalha pelo
pescoço do freguês, começou o barbeiro, um mulato de nariz
de batata e cabeleira revolta, a tosquiar a vítima. Terminado o
serviço, que não primava, aliás, pelo asseio, o
fígaro convidou-o, gentil:
- O "comendador" não
quer "fazer" as unhas? Nós temos, aí, para os
fregueses, uma boa manicura...
Nesse momento apareceu à porta
dos fundos, escandalosamente decotada, e rescendente de si mesmo, uma cafusa de
dentes alvíssimos, que cumprimentou, sorrindo; o Agostinho. O merceeiro
correspondeu ao cumprimento, olhou as unhas formidáveis, que ele
costumava aparar com a faca de cortar sabão, e aquiesceu, condescendente:
- Vamos lá ver isso! Vamos
lá!
Uma hora depois, com os dedos ardendo,
e com as unhas cortadas até o sabugo, saía o honrado negociante a
porta da barbearia. regressando, de pronto, ao Engenho Novo.
No dia seguinte, à tarde, foi,
porém, a rua Floriano Peixoto alarmada por um vozerio infernal. Avisado
do caso, o guarda civil correu para o local, e viu: no salão da
barbearia, andando de um lado para outro, como um possesso, o Agostinho, do
Engenho Novo, trovejava, indignado:
- Patifes!... Canalhas!...
Ladrões!... Estavam os dois combinados para essa traição,
os miseráveis!
Penetrando na casa, o guarda interveio:
- Que é isso, camarada? Que foi
que aconteceu?
E o merceeiro, apoplético:
- Foi este homem; este barbeiro, que,
de combinação com aquela mulher, me fez uma patifaria, uma
canalhice, uma perversidade. Eu vim aqui para cortar o cabelo, e ele me
pôs na cabeça uns piolhos; e para que eu não os pudesse
tirar, chamou a mulher, e mandou-me cortar as unhas. Veja isto!
E com as grandes mãos
estendidas, mostrando os dedos enormes, de sabugo à mostra:
- Canalhas!... Patifes!...
Miseráveis!...
MOCIDADE...
9 de agosto
O teatro Fênix enchera-se,
naquela tarde de junho, para o espetáculo científico, anunciado
pelo Dr. Wilhelm Korner, antigo reitor da Universidade de Iena. As frisas, os
camarotes, as cadeiras, as galerias, regurgitavam de espectadores, quando,
após a apresentação do sábio pelo eminente
professor Austregésilo, começaram as provas práticas de
magnetismo animal.
- Senhores, - começou,
arrastando as sílabas, o ilustre homem de ciência, - a minha
primeira demonstração, para que me não tomem por um
aventureiro, um intrujão, um impostor, será coletiva. Entre vós,
há velhos e moços, pessoas que sentem em si os arrebatamentos da
juventude, a alegria, a saúde e o entusiasmo dos verdes anos, e
anciãos que pendem para o túmulo, e que mal se arrastam por si
mesmos. Para demonstrar-vos que essas energias são meros produtos da
sugestão, eu vou fazer com que todos sejam postos em uma
condição média, isto é, que os moços se
sintam mais velhos, e que os velhos se sintam, de súbito,
rejuvenescidos. A experiência durará dez minutos e
começará com o simples estender da minha mão, para
terminar com um sopro da minha boca, em momento oportuno.
E unindo o gesto à palavra,
estendeu a mão sobre a platéia, ordenando o milagre.
O resultado, de acordo com o que ele
havia prometido, não se fez esperar. Cavalheiros de idade
avançada, que para ali haviam ido nos braços vigorosos dos netos,
experimentavam as juntas, exercitavam os músculos, passavam as
mãos pelas rugas, estranhando o ânimo novo que lhes distendia os
nervos, reavivando-lhes o sangue, a memória, o coração.
Nenhum deles se mostrava, no entanto, mais alegre, mais feliz, do que um
ancião de cabeça inteiramente alva, que para ali havia ido a
arrastar-se, e que tomara lugar em uma das primeiras filas. Agitava-se ele,
porém, risonho, contentíssimo, na cadeira, quando soou a hora tremenda.
- Senhores, - trovejou o sábio,
- vai terminar o encantamento. Cada um vai ser o que era antes. Vou soprar.
Nesse momento, manifestou-se um
reboliço na platéia. Curiosos, olhando para o lado do palco, os
espectadores perguntavam o que teria acontecido, quando viram, de pé, na
primeira fila, um ancião, nervoso, pálido, agitado, empunhando um
revólver. Era o octogenário respeitável, que,
trêmulo, com a voz rouca, intimava o magnetizador, com o dedo no gatilho:
- Se soprar... mato-o!
E desabou na cadeira, chorando...
A PÉROLA
(APÓLOGO PERSA)
Em que se demonstra
que a fraqueza humilde é mais proveitosa do que a grandeza arrogante.
11 de agosto
Rugiam, lá em cima, os ventos
tempestuosos do inverno, quando a gota d'água, trêmula e pura, se
sentiu, de repente, sozinha no espaço, desgarrada, por um sopro mais
forte, da nuvem em que se formara. Medrosa, humilde, pequenina, voava a
mísera arrebatada pelas doidas ondas aéreas, quando viu, de
súbito, precipitando-se na mesma direção, mugindo,
rolando, redemoinhando, uma enorme tromba marinha, que abalava o céu com
a fúria da sua carreira. Ao perceber a límpida gota assustada, a
tromba monstruosa, - equóreo traço de união colocado entre
o mar e as nuvens, - parou, de repente, rodando, sobre si mesma, e indagou,
irônica:
- Aonde vais tu, miserável
poeira da chuva? Que fazes por estes caminhos perigosos do espaço,
arrastada, como entidade invisível, pelo mínimo sopro dos ventos?
Trêmula, encolhida, assaltada por
diferentes ondas de ventania, a gota límpida não pôde,
sequer, responder, e a tromba continuou, zombeteira:
- Já pensaste, acaso, no destino
que te espera? O vento que nos conduz a ambas, arrasta-nos, furioso, para o
oceano largo, que reboa, lá em baixo, clamando por nós. Ouves?
A gota d'água prestou
atenção, e percebeu. Para além da neblina que cobria a
terra, em baixo, reboavam, apavorantes, os grandes soluços do mar. Como
um bando de tigres enfurecidos, as ondas uivavam, despedaçando-se umas
de encontro às outras, ao mesmo tempo que a água, revolvida pelos
braços da tempestade, chorava, gemia, guaiava, num tumulto de vozes
desesperadas.
Percebendo o susto da gota humilde, a
tromba insistiu:
- Lá em baixo, estão o
meu túmulo e o teu. A mim, porém, me espera um destino que
é, por si mesmo, a minha glória. Tombando no oceano, eu
constituirei uma parte dele mesmo, tendo, como ele, as minhas ondas, os meus
vagalhões, as minhas espumas. Serão necessários dias
talvez uma semana, para que as minhas águas sejam absorvidas pelo mar. E
tu, que te aguarda? Mal tombes em um cabeço de vaga, em um simples floco
de espuma, desaparecerás, anônima, para sempre, sem que fique, na
terra ou no céu, a sombra do teu vulto ou da tua memória!
- Meu Deus!... gemeu a gota
d'água. apavorada, pálida, trêmula, no horror daquele
extermínio próximo.
Nesse instante, um trovão
continuo, forte, soturno, anunciou a vizinhança do oceano. Rajadas
formidáveis abraçaram a tromba d'água, arrebatando-a,
abalando-a, desconjuntando-a. Outras rajadas, precipitando-se em sentido
contrário, tomaram com o seu hálito a gota humilde, a
mísera poeira de chuva, e, horas depois, serenada a tempestade,
aparecia, de novo, ao sol, a face tranqüila do mar.
Dias passaram-se, porém. E uma
tarde, quando da tromba marinha já não existia, sequer, na
memória do oceano, um pescador do mar Índico encontrou na praia,
dentro de uma concha, uma gota petrificada e brilhante. Era a gota
d'água do céu, que Deus, ouvindo a prece da humildade, salvara
das águas...
OS MÉDICOS
15 de agosto
Há três ou quatro anos,
quando se cuidou, no Rio, da fundação da Casa do Médico,
destinada a recolher, na velhice, os numerosos náufragos da
profissão, Paulo Araújo e Belmiro Valverde definiram, em interessante
memorial, o que é, em verdade, a vida de um apóstolo da Medicina.
Não há, realmente, na
terra, profissão economicamente mais ingrata do que a de médico.
O indivíduo que entra na loja de um comerciante seu amigo, paga pelo
preço comum, ou com pequeno abatimento, a mercadoria de que faz
aquisição. O barbeiro não faz a barba gratuitamente a
ninguém. O advogado não defende causas sem
remuneração, nem o ferreiro conserta de graça a ferramenta
dos operários que lhe são íntimos. Ao médico,
entretanto, não se faz a mesma justiça. Pelo fato de ser o seu
trabalho relativamente leve, e consistir, apenas, em pôr algumas palavras
sobre uma folha de papel, acham os clientes que lhes não devem pagar por
tão pouco, esquecendo-se que essas palavras, isto é, essa
receita, constitui o fruto de vários anos de estudo, de esforço,
de experiência, em que foram consumidas diversas dezenas de contos.
Porque o médico não gasta aos olhos do cliente, senão um
pouco de tinta e uma tira em branco, é o seu trabalho depreciado,
especialmente pelos camaradas, pelos amigos, pelos íntimos, que
não fariam, jamais, o mesmo, se se tratasse de um engenheiro ou, em
esfera mais baixa, de um simples engraxate. E daí o número
relativamente grande de médicos que envelhecem na pobreza, e que entram,
afinal, no carro escuro da Morte, pela porta de ferro da miséria.
Tomando em consideração
esse abuso é que aparecem, de vez em quando, por toda a
parte, as reações justas, enérgicas, inteligentes.
É conhecida, por exemplo, a história daquela senhora que,
pretendendo arranjar uma receita de certo médico ilustre, indagou, ao
encontrá-lo:
- Doutor, que é que o senhor faz
quando tem tosse?
O médico percebeu o plano e
respondeu, grave:
- Tusso, minha senhora!
A reação mais pitoresca e
eficaz de que há noticia foi, porém, a de que tomou a iniciativa,
há dias, o notável mestre Sr. Dr. Miguel Couto. Certa senhora de
fortuna, habituada a tratar-se com o ilustre clínico brasileiro por meio
de receitas obtidas de surpresa, resolveu, da última vez, fazer o mesmo
cercando-o
- Ó doutor, como está?
- Bem, D. Veneranda; e a senhora, como
tem passado?
- Eu? - acudiu a matrona atingindo o
ponto a que pretendia chegar. - Eu não estou passando bem, não,
doutor.
E logo, em seguida:
- Tenho sentido uma dor aqui, no peito,
que responde aqui, no fígado, causando-me uma aflição
enorme, que me não deixa dormir. Que é que o doutor acha que
seja?
O Dr. Miguel Couto olhou para um lado e
para outro na Avenida fervilhante de gente, e ordenou:
- Vamos ver isso, D. Veneranda.
Dispa-se!
- Como? - estranhou a velha, recuando.
- Dispa-se, para fazer-lhe um exame,
tornou o médico.
A matrona arregalou os olhos,
escandalizada, e protestou:
- O senhor pensa que eu sou maluca?
E o Dr. Miguel, no mesmo tom:
- E a senhora não acha que eu
tenho o meu consultório no meio da rua?
A velha eclipsou-se.
LXXVI
O "BRAVO DOS
BRAVOS"
18 de agosto
Quando o tenente Felisberto regressou
do "front", precedia-o a mais invejável das famas.
Notícias dos jornais, telegramas do governo e cartas dos camaradas, haviam
espalhado, realmente, pelo Brasil, os ecos da sua bravura. Em Verdun, no forte
de Vaux, fora ele o herói por excelência, defendendo, uma a uma,
as pedras daquele reduto. Na Champagne, comandando um pelotão de
"poilus", operara prodígios, resistências assombrosas, a
ponto de ser preciso arrancá-lo, às vezes, do seu
entrincheiramento, rilhando os dentes, coberto de lama e de sangue. O seu
heroísmo tornou-se, em suma, tão acentuado, tão famoso,
tão evidente, que o seu nome se constituíra, em toda a extensão
do setor, uma espécie de grito de guerra. A Morte passava por ele,
medrosa, de asas fechadas, como se temesse cair ferida, ela própria,
atingida pela sua espada.
Ao chegar ao Rio, eram conhecidos,
já, de toda a cidade, os seus feitos, as suas investidas corajosas, o
ímpeto das suas cargas de baioneta, a que correspondia, sempre, uma nova
trincheira arrancada ao inimigo. E foi por isso mesmo que o seu desembarque
teve o caráter de uma verdadeira apoteose, que envolvia na mesma auréola
o glorioso exército nacional.
Festejado e querido, foi, aqui, o
tenente Felisberto rodeado pelos amigos e, principalmente, pelos colegas de
classe, que se disputavam, gentis, a sua companhia. E tanto o cercaram, tanto o
arrastaram pelos lugares festivos da cidade, que ele foi acabar, uma noite, no
Assírio, onde se realizava um ruidoso baile de Carnaval.
Desconfiado no meio daquele tumulto,
que lhe entontecia mais os sentidos do que o perturbavam, na França, as
tempestades de fogo e de fumo da formidável artilharia alemã, o
tenente observava aquelas danças, aquela orgia, aquela alegria
desordenada, quando um dos camaradas lhe pediu, insistente, à mesa da
ceia:
- Conta as tuas aventuras de guerra,
Felisberto! Que diabo! tudo que nós sabemos de ti, é por
intermedio dos outros. Ainda não nos contaste nada!
- Conta! - pediu outro, pondo-se de
pé.
- Conta! Conta! - reclamaram todos.
O tenente sorriu modesto, mas,
reclamado pelos colegas, começou a narrar singelamente os seus feitos.
- O que eu fiz - começou, - qualquer
de vocês o faria, estando no meu lugar. Fui eu, efetivamente, quem
defendeu o forte de Vaux, durante três dias, com pouco mais de duzentos
homens. O rompimento da linha de Hindemburgo foi, também, obra minha,
que obteve, como é sabido, os resultados mais felizes. Tomei, a arma
branca, dezessete trincheiras; subjuguei algumas dezenas de soldados, corpo a
corpo; conquistei, a sabre, oito canhões; destruí, em suma, todo
o poder ofensivo do inimigo, no setor a meu cargo.
Nesse momento, alarmando a sala, ouve-se,
a alguns metros de distancia, um tiro de revólver, e, em seguida, o
barulho da multidão elegante, a precipitar-se no rumo da
detonação. Ao segundo tiro, porém, o capitão, que
se calara com o primeiro, empalidece, e, sem dissimular o seu pavor,
põe-se a tremer, a ponto de se não poder sustentar nas pernas.
Espantados com aquela modificação, os amigos entreolham-se,
duvidando, já, da bravura do herói, quando um deles,
indignado, pergunta:
- Está com medo?
- Estou! - confessou o bravo dos
bravos.
E explicou:
- Imaginem que isto degenera em rolo,
em barulho, em conflito...
E concluindo, aterrorizado, batendo o
queixo:
- E minha mulher sabe... que eu vim
aqui!...
O PÉ E O SAPATO
20 de agosto
Uma das novidades elegantes que mais
têm merecido o meu aplauso, é a condenação das
danças, dos bailes retumbantes e demorados, nas festas de casamento. A
ligação de dois destinos constitui um ato tão solene, um
acontecimento tão grave na vida das criaturas, que se lhes deve dar, a
elas, todo o sossego, toda a calma, e o tempo necessário para que
sintam, sem obstáculos nem constrangimentos, todas as suaves
emoções desse dia.
E esse meu modo de pensar não
data de hoje. Vem de longe, de onze anos atrás, do casamento do Dr.
Otaviano Peixoto Ferreira, antigo juiz substituto
O casamento, que se efetuou a 11 de
Maio de 1090, na fazenda Água Funda, no município de
Cantagalo, foi o mais suntuoso, talvez, e o mais bulhento, que já se
realizou no Estado do Rio. Os convidados, vindos das fazendas e cidades
vizinhas, subiram a centenas. E as danças prolongaram-se por dias e
dias, que encheram, se bem me lembro, o vasto espaço de uma semana.
No dia seguinte ao do casamento,
porém, sucedeu o desastre que dá motivo à minha
prevenção contra os bailes em tais ocasiões: devido ao
excesso das danças, das polcas, valsas, mazurcas e quadrilhas, dançados
com o noivo, a moça amanheceu coxeando, doente do pé, de modo a
locomover-se com enorme dificuldade. Penalizado, perguntei-lhe o que era:
- Então, afilhada, que é
isso? Como foi? Quem lhe pisou o pé?
A pequena sorriu, pálida,
cobrindo com as violetas das olheiras, os formosos miosótis dos olhos, e
tranqüilizou-me, triste:
- Não é nada, padrinho;
não se aflija!
E explicou:
- É uma unha encravada...
Não obstante a festa haver
continuado, a noiva, nesse dia, não dançou, nem no segundo dia,
nem, mesmo, no terceiro. No quarto dia, porém, amanheceu inteiramente
boa, voltando a valsar, alegre e jovial, contentíssima como se nada
tivesse acontecido. Encontrando-a a deslizar, feliz, no calor de uma valsa,
detive-a pelo braço, e indaguei, carinhoso:
- Então, está melhor do
pé?
- Estou boa, já! respondeu-me,
risonha.
- A unha desencravou?
- Não! - retrucou-me, vermelha,
com o rosto em fogo.
E ao meu ouvido, rindo:
- O pé acostumou no sapato...
E, arrancando-se das minhas, mãos,
desapareceu, num rodopio, no tumulto dos outros pares.
O PATRÃO
24 de agosto
O Sr. Alberto Gomes Valente era
guarda-livros da firma Sobreira, Costa & C., ganhando quinhentos mil
réis, quando resolveu constituir família, unindo-se solenemente
à senhorita que mais o impressionara na vida. Tímido, com o pudor
nos olhos e na língua, procurou ele o chefe da casa, o Sr. Zacharias
Sobreira e pediu-lhe, usando de mil rodeios, que lhe aumentasse o ordenado.
- O ordenado? - estranhou o
capitalista, franzindo a testa. - Por que? Que é que justifica a sua
reclamação?
O guarda-livros gaguejou, aflito, e
explicou o seu caso. A organização do seu lar exigia despesas
novas, graves, pesadas, e era como um homem em véspera de casamento que
ele pedia, submisso, um aumento de cinqüenta ou cem mil réis por
mês. O Sr. Sobreira, foi, porém, inflexível:
- Impossível, meu amigo;
é impossível! O que eu posso fazer, é o seguinte: impedir
que o senhor se case. Serve?
O guarda-livros insistiu, no entanto,
na sua deliberação, e casou-se. E ia vivendo, bem ou mal,
há três meses, com os seus quinhentos mil réis, quando o
patrão o chamou, uma tarde, e comunicou-lhe:
- Sr. Abelardo, a firma, satisfeita com
os seus serviços, resolveu aumentar espontaneamente o seu ordenado. De
hoje em diante, o senhor passa a ganhar setecentos mil réis.
Quatro meses depois, outra chamada, com
outra comunicação:
- De agora em diante, Sr. Abelardo, o
seu ordenado fica aumentado. O senhor ficará ganhando, à partir
deste mês, um conto de réis.
Vivia, assim, o honrado auxiliar da
firma Sobreira, Costa & C., em um ambiente de conforto relativo, quando,
aproveitando a ausência do chefe da firma, lhe deu na cabeça, um
dia, correr até à casa, para matar as saudades da mulher. Ao
abrir o portão, notou que a esposa estava dormindo. E não se
enganara; pelo menos, foi com a roupa em desalinho e os cabelos desarranjados
que ela lhe correu a abrir a porta, oferecendo-lhe, como prêmio de
chegada, uma infinidade de beijos.
- Tu por aqui a estas horas? -
estranhou a moça, carinhosa. - Que foi isso?
O marido explicou. O Sr. Sobreira havia
saído para ir à Alfândega, e ele, tirando proveito da hora,
correra a beijar a sua querida mulherzinha. Era por isso.
Ao contar essas coisas, olhou,
rápido, para o grande relógio da sala de jantar, um
relógio de dois metros de altura, enorme, formidável, conventual,
e estremeceu, vendo-o atrasado.
- Que é isso? O relógio
parou?
E vendo que, de fato, a grande maquina de
medir o tempo estacionara meia hora antes, encaminhou-se para ela, disposto a
pô-la
- O Sr. Sobreira!.
E com as mãos tremulas, os olhos
fora das orbitas, estupefato por encontrar o patrão escondido na caixa
do relógio, rugiu, de dentes cerrados, entre o medo e a raiva:
- Que é que o senhor está
fazendo aí?
Encostado no fundo da caixa, o
patrão, igualmente pálido, gemeu, apenas:
- Passeando...
E puxou sobre si, fechando-se, a tampa
do relógio.
AS
"GAFFEUSES"
26 de agosto
Um dos encantos da alta sociedade
carioca são as senhoras que cultivam, nos salões e na intimidade,
os deliciosos cogumelos da "gafe". Educadas, finas, inteligentes,
essas figuras da "elite" constituem, geralmente, legítimos
ornamentos da família brasileira; há, porém, no Inferno
uma classe de demônios irreverentes que se divertem zombando das mulheres
lindas, e o resultado são esses deliciosos delíquios do
espírito, e o desgosto que se apossa, depois, das pobres vítimas
dessa maliciosa brincadeira diabólica.
À frente desse exército
de "gafeuses" marcha, com as "gafes" que tem cometido na
terra, a jovem senhora Cardoso Nunes, esposa do Dr. Abelardo Nunes, conhecido
corretor e capitalista. Formosa e gentil; D. Clotilde é incapaz de uma
perfídia, de uma insinuação malévola, de uma
perversidade punidora. As amigas estimam-na profundamente e só não
fazem o mesmo as inimigas, porque D. Clotilde, com franqueza, não as
tem. A sua simplicidade destroi todas as prevenções, e de modo
tal que os seus íntimos lhe perdoam as "gafes", mesmo quando
se trata de casos duvidosos, como o de anteontem.
A roda de convidados era enorme e
seleta, no grande terraço dando para o mar, predominando, nela, o
número de figuras femininas. Palestrava-se vivamente sobre o nervosismo
de certas senhoras, algumas das quais nutrem uma aversão às
baratas, às rãs, aos grilos e a outros pequenos seres
repugnantes.
- Eu tenho horror é ao caramujo!
- informava Me. Costa Meireles, com a papada a repousar, como a do Chaby, sobre
o peito volumoso. - Quando eu vejo um caramujo, fico toda arrepiada!
E, fechando as mãos muito
redondas, muito gordas, fez estremecer, toda, dos pés à cabeça,
a formidável montanha de toucinho.
- Pois, eu não, - atalhou Mlle.
Pinheiro César; - o que me horroriza é o percevejo. Quem me
quiser ouvir gritar, é por um percevejo no meu caminho!
Foi por essa altura que D. Romualda
Brito, a ilustre senhora tão conhecida pelas suas leviandades galantes,
interveio, informando:
- Pois, eu, não tenho medo de
nada disso. Nenhum desses bichinhos me faz, como a vocês, qualquer mal
aos nervos.
E contou:
- Imaginem que, outro dia, eu estava em
pé na sala de espera do cinema de Copacabana, quando senti, de repente,
uma coisa subindo pela minha perna!
- Meu Deus! - gemeu Mme. Cunha Andrade,
mostrando o braço arrepiado. - Olhem como eu estou!
E a outra continuou:
- Sem me mover, eu compreendi que era
um rato!
- Que horror! - gritaram as outras
senhoras.
- Quieta estava, quieta fiquei. O rato
subiu, primeiro, para meu sapato. Depois, passou à meia. E assim,
subiu-me, aos poucos, pela perna!
As senhoras, em silêncio,
mostravam-se horrorizadas com o acontecido. E foi no meio dessa
impressão, que D. Clotilde interveio, muito séria:
- O rato subiu, mesmo, pela perna da
senhora?
- Subiu, menina!
E D. Clotilde, logo, com a maior
ingenuidade do mundo:
- Mas desceu, depois; não
desceu?
OS HORRORES DA GUERRA
30 de agosto
O caso policial contado há dias
pelos jornais, é, ao que parece, mera reprodução de uma
infinidade de outros, ocorridos no Rio, e, em geral, no mundo inteiro. A
guerra, principalmente, com os seus horrores, com as suas violências, com
as suas brutalidades inomináveis, tem fornecido exemplares
curiosíssimos de certas vergonhas, que constituem, como se sabe, a
nódoa de lama da túnica das sociedades.
A prova mais amarga, e mais
típica, desse gênero de verdades dolorosas, é, entretanto,
a que Banvile apresenta em um quadro melancólico, desenhado com a
delicadeza inimitável do seu estilo. As cores da tela são
tão leves, tão doces, tão brandas, que eu me permito a mim
próprio, a audácia de retocá-la, na blasfêmia de uma
ligeira adaptação.
Em um salão triste e antigo,
ressumando saudades, meditam, com a alva cabeça pendida sobre o peito,
três velhinhas septuagenárias, cujos olhos se perdem, quase sem
brilho, nas brumas longínquas do passado. Procedem, as três, do
tumulto do mundo, de que são ali, meros despojos de um naufrágio,
atirados à praia, como tantos outros, pelas eternas tempestades da vida.
Cabeça baixa, olhos baixos, a mais velha das três solta, de
repente, um suspiro tão fundo, que lhe traz aos olhos uma
lágrima. As outras olham-na, compadecidas, e, para matar as horas, que,
por sua vez, as vão matando, resolvem contar os seus amores, as suas
aventuras, resumindo nestas o braço mau, ou leviano, que as atirou
à desgraça.
- Eu, - contou a mais velha - fui
vítima do meu noivo, o tenente Balduino, do antigo batalhão de
lanceiros. Confiando nele, nas suas juras, nas suas promessas apaixonadas e
ardentes, deixei-me arrastar, um dia, pela sua palavra e pelo seu braço,
até à sua casa, e, quando despertei no dia seguinte, foi para chorar,
como até hoje, a minha infelicidade...
- A minha história, - principiou
a segunda, - não é muito diferente. Passeava uma tarde com o meu
primo, o barão Reinaldo, pelas alamedas do jardim de meu pai, quando,
embriagada pela amavio dos seus juramentos de amor, me deixei cingir pelos seus
braços. O beijo pecador que pôs, como uma brasa, na minha boca
virgem, fez-me desmaiar. Meses depois o barão partia para o Oriente,
enquanto meu pai me atirava à rua, com o meu filho e a minha vergonha!
A terceira velhinha mantinha-se em
silêncio, meditativa, quando as outras a interrogaram:
- E a senhora, mãe Georgete?
- Eu? Eu vivia na Alsácia, em
1870, com meu pai e minha mãe. Era jovem e linda. Um dia, ouvimos troar
a artilharia nas vizinhanças da aldeia. Era o inimigo!
E calou-se. Mas as outras exigiram:.
- E o resto?
- Que resto?
As duas se entreolharam, e insistiram,
falando claro:
- Quem foi?
E a velhinha, limpando os olhos:
- Foram os alemães...
PAVORES DE ENFERMO
3 de setembro
Não obstante a sua
aparência de homem grave, circunspecto, ponderado, que lhe assegurara
aquele emprego de confiança, o coronel Bonifácio Coutinho,
diretor do Asilo de Senhoras Arrependidas, era, intimamente, um dos
temperamentos menos compatíveis com as responsabilidades daquelas
funções. Lutando, disputando-se o domínio da sua vontade,
defrontavam-se, nele, o desejo e o interesse. E não era sem custo, sem
violência, que este se superpunha à brutalidade dos seus nervos,
tornando-lhe possível a manutenção daquela sinecura
amável, que lhe amenizava as infinitas asperezas da vida. Assim
constituído, o coronel resolveu, um dia, quebrar a sua couraça e,
chamando em particular o médico do estabelecimento, pediu-lhe um
conselho:
- Diga-me cá, doutor, diga-me,
com reserva: o senhor acha que me fica mal conquistar uma ou outra das nossas
asiladas?
- Absolutamente, não! - acudiu o
facultativo. - Desde que elas queiram, não há, mal nenhum. Eu
próprio tenho me prevalecido dessa faculdade, procurando, apenas,
não investir contra aquelas que, de antemão, parecem rigidamente
sérias.
- E que faz o doutor para
diferençar umas das outras? - objetou o velho. - Como que o senhor as
distingue?
O galeno tomou-o pelo. braço,
arrastou-o para o silêncio de uma janela deitando sobre jardim, e
revelou-lhe o seu segredo:
- Olhe: o senhor, quando se quiser
aventurar a uma destas conquistas, faça o seguinte: chegue perto da
asilada que houver escolhido, pergunte-lhe a idade; se ela lhe disser uma idade
visivelmente inferior àquela que tem, faça-lhe a sua
declaração, que será, por força, bem sucedido.
E apertando-lhe a mão
- Experimente.
Um mês depois foi o médico
chamado para ver o diretor do Asilo, cujas condições de
saúde preocupavam seriamente os seus subordinados. O estado de
depressão era visível. O pulso, irregular, incerto,
descompassado, denunciava um profundo abalo orgânico, que os seus
cinqüenta e cinco anos haviam tornado perigoso. À vista do enfermo,
o médico compreendeu a sua missão, e, pedindo que os enfermeiros
se retirassem, começou:
- Meu caro coronel, é preciso
que o senhor mude de vida.
- Eu?
- Sim, senhor. O senhor abusou do meu
conselho, e deve lembrar-se que não é mais uma criança, um
moço, um rapaz no vigor dos anos.
E interrompendo-se:
- Que idade o senhor tem?
- Como? - atalhou o doente, alarmado.
- Eu estou perguntando que idade tem o
senhor.
A essa confirmação da
consulta, passou pelo cérebro do enfermo um pensamento sinistro. Com que
idéia lhe fazia o médico aquela pergunta? E foi com o pavor nos
olhos que se sentou, de repente, no leito, bradando, horrorizado, com os olhos
fora das órbitas:
- Cento e cinqüenta anos doutor!
Duzentos! Duzentos e cinqüenta anos, doutor!
E disparou, escada abaixo.
O ELEFANTE
6 de setembro
Abu-Beker, o mercador opulento que
espantava Bagdá com os esplendores do seu luxo, encontrou, um dia, entre
as suas quatrocentas mulheres, uma, de beleza excepcional, que lhe enchera do
vinho do desejo a bilha de ouro do coração. Chamava-se Kiusa, e
sua língua era doce como uma tâmara. Adorando-a até o
desespero, uma dúvida o atormentava, dia e noite, na suntuosidade do seu
palácio: a dúvida de que aquele corpo era seu, apenas, e de que
ninguém lhe violava, subornando os eunucos, a honestidade do gineceu. E
foi atormentado que, um dia, se dirigiu à mesquita, e pediu, com o rosto
em terra, soluçando versículos do Alcorão:
- Alá, tu, que abranges o
universo com teu poder, consente que seja minha, unicamente, a esposa do meu
amor. Eu tenho pensado, nas minhas vigílias aflitas, no meio de
conservá-la virgem de beijos alheios; e encontrei um remédio:
arrebatá-la para as montanhas, para os desertos, para as florestas que
marcam os limites do mar, onde não haja outros seres senão eu e
ela. Transforma-se, pois, na tua misericórdia, em um elefante soberbo e
poderoso, para que eu atravesse, puxando o seu carro, as regiões
desertas da Arábia!
Instantes depois, graças a um
sortilégio comum nas terras do Crescente, saía as portas de
Bagdá um carro suntuoso, tauxiado de ouro e forrado de púrpura,
puxado pesadamente por um elefante. E foi de coração sossegado
que Abu-Beker penetrou, transformado no monstruoso plantígrado, as
florestas da Índia, arrastando pacientemente o carro do seu amor.
Certo dia, após uma viagem
penosa e longa, o elefante parou de repente, desatrelou-se com o auxilio da
tromba, e, abandonando os varais, deu volta em torno do carro, cuja entrada era
por trás. E soltou um rugido de dor e de espanto: dentro, nos coxins que
a sua opulência amontoara, deitavam-se enlaçados, Kiusa,
maravilhosa de formosura, e bêbada de desejo, e, ao seu lado,
beijando-lhe os olhos, Ebn-Ali, mercador de Alexandria! Ele tinha vindo, desde
Bagdá, a puxar o carro dos dois amantes, que, dentro, se
enlaçavam amorosos, enquanto ele, confiado e sereno, feria as patas pelo
caminho!
Um barrido de desespero marcou o fim
daquele encantamento humilhante. E era tornado homem, com o seu manto de
mercador despedaçado pelos espinhos da viagem, que Abu-Beker gemia, com
o rosto no solo.
- Alá, bendito sejas tu, na tua
gloriosa sabedoria! Debalde tentarão os homens, mesmo com o teu auxilio,
forçar as mulheres à honestidade, quando dias querem
traí-los!
E debulhava-se em lágrimas,
quando ouviu, de súbito, uma voz poderosa, que lhe disse:
- Mortal, aprende, tu mesmo, à
tua custa, esta grande verdade; nenhum homem poderá, jamais, subtrair a
mulher à traição, quando ela o queira enganar. O insensato
que, como tu, trouxer, por prevenção, o leito às costas,
terá, ao fim da viagem, uma surpresa dolorosa: verá que arrastou
pelos caminhos, sem o saber, a mulher e o amante!
Abu-Beker levantou-se, enxugou os
olhos, e, para esquecer, começou a ler o Alcorão.
O RIO PURÚS
(De uma frase de Dumas
Filho)
8 de setembro
À pequenina mesa de chá
que Mme. Peixoto Leroux me reservara naquela primeira reunião dos seus
íntimos, sentavam-se, à sombra das mangueiras seculares da sua
linda chácara da Tijuca, o desembargador Abelardo, a jovem Mme. Costa
Retore e, mais alegre que todos nós reunidos, a encantadora baronesa de
São Bonifácio, recentemente chegada de Londres. Risonha,
graciosa, inteligente, a loura titular tomou conta, logo, de todos nós,
guiando a palestra com a habilidade com que dirige, às vezes, à
tarde, pelas estradas da Gávea, o seu grande automóvel de seis
lugares. Ligando os assuntos como quem liga, uma a uma, e continuamente, as
pérolas do mesmo colar, a baronesa indagou, de repente:
- É verdade, que noticias me
dão vocês da Lilita Wilson?
O desembargador, que é
entendidíssimo em novidades de salão, alcova e cozinha, acudiu,
pronto:
- Casou-se, outra vez. Logo que lhe
morreu o primeiro marido, casou-se com o Alberto Manzoni, de São Paulo.
Com a morte deste, na guerra, contraiu terceiras núpcias aqui mesmo.
- Com o Alexandre?
- Não; com o Viana Moreira, do
Rio Grande do Sul.
A baronesa, sem mostrar espanto,
sorriu, e, após um gole de chá e de uma torradinha
minúscula, que lhe encheu toda a boca, lamentou, penalizada:
- Coitadinha! Até parece, já,
o rio Purús, descrito por Euclides da Cunha!
- O rio Purús? - estranhei,
pousando a chávena.
E a minha amiga, perversa.
- Então? Ela tem mudado tanto de
leito!...
Uma folha amarela que se despregara da
mangueira pôs termo à conversa, caindo, certeira, aos rodopios,
como uma flecha vegetal, na xícara vazia da baronesa...
REPRESÁLIA
10 de setembro
Informado da maldade com que a baronesa
de São Bonifácio punira, na véspera, na chácara dos
Peixoto Leroux, a tríplice viuvez da sua sobrinha, Mme. Lilita Wilson, o
almirante Ribas, tão famoso pela sua malícia irreverente,
resolveu tomar uma desforra da linda titular, punindo-a pela perfídia
com que se referira à sua encantadora amiguinha de outrora. E o lugar
escolhido para a vindita foi a segunda mesa à direita, na Lalet, onde se
acharam, frente a frente, ontem, à tarde, entre o desembargador Ataulfo
e Me. Carvalho Gondra, a maravilhosa Anfitrite do norte e o velho tritão
dos grossos mares do sul.
A palestra decorria brilhante e
amável, quando o almirante, encontrando uma oportunidade feliz,
observou, rindo, à baronesa:
- É verdade; achei
admirável aquela comparação da Lilita com os rios que
mudam freqüentemente de leito!
- Quem lhe contou isso? - estranhou a
baronesa, espantada, recuando o busto soberbo.
- O desembargador Abelardo, que a ouviu
dos seus lábios.
- Indiscreto... - sussurrou a fidalga,
num muxoxo, retomando a xícara.
O almirante precisava, porém, de
uma vingança mais positiva, mais clara, mais ferina, e, sem deixar que a
presa fugisse, mudando de assunto, volveu, impiedoso:
- A baronesa sabe, porém, quando
é que os rios mudam de leito?
A fidalga encarou-o, franzindo a testa
magnifica, e ele, aproveitando o dialogo em que se distraiam os dois
companheiros de mesa, fulminou-a, terrível, descendo os olhos pelo
vestido significativamente frouxo:
- É quando engrossam...
Compreendeu?
E, vendo-a empalidecer, alto, e
risonho:
- V. Ex. está se sentindo mal?
O PRÊMIO
15 de setembro
A palestra, naquela mesa tão seleta,
versava um assunto delicadíssimo: o direito, que tem o esposo, de exigir
da mulher a mais acentuada obediência, e a prerrogativa, que esta pode
ter, de usar, ou de abusar, da liberdade que lhe seja concedida.
- Ninguém - afirmava D. Consuelo
Mendes, com o sangue no rosto, - ninguém, no Rio, é mais exigente
consigo mesma, do que eu. Ninguém me vê em bailes, em festas, em
piqueniques, em divertimentos mais ou menos comprometedores. Vivo para minha
casa, para meu marido, para os meus filhos. Acho, porém, que a mulher
que assim procede, tem o direito de, uma vez por outra, desforrar-se,
lançando mão da sua liberdade, distraindo-se, divertindo-se,
procurando, por suas mãos, o prêmio do seu cativeiro.
E como percebesse a estranheza causada
pelas suas palavras, retificou, esclarecendo:
- Eu, por exemplo. Eu vivo para o meu
lar. Não saio, não faço visitas, não veraneio em
Petrópolis, não faço estação em Poços
de Caldas. No Carnaval, porém, pago-me de tudo isso: danço,
folgo, divirto-me a valer!
Foi por essa altura, mais ou menos, que
o desembargador Abelardo de Barros interveio, abrindo, com elegância, a
sua cigarreira de ouro, polvilhada de brilhantes:
- Vossa Excelência faz,
então, D. Consuelo, como aquele honesto beberrão, de que me
falava, ontem, o Alfredo Pinto, na casa de Saúde do Poggi.
A moça franziu a testa,
desconfiada, e o magistrado contou:
- Certo boêmio, habituado a
entrar em casa depois de uma peregrinação sistemática por todas
as casas de bebidas, resolveu, um dia, corrigir-se. Era preciso energia para
não regressar aos tombos, e ele havia de tê-la, dali
As senhoras entreolharam-se e Dona
Consuelo interpelou-o, vermelha.
- Isso não tem nada com o meu
caso; tem?
- Absolutamente, nada, D. Consuelo!
acudiu o desembargador, vascolejando a cabeça: - absolutamente nada.
E mergulhou o nariz no chá.
A CIDADE INDISCRETA
17 de setembro
O Rio de janeiro é,
positivamente, a cidade mais indiscreta do mundo. A vigilância em torno
de sua Majestade o Rei Alberto, cujos passos e menores gestos são
acompanhados de perto pelos jornais e pelo povo, demonstrariam essa verdade, se
nós próprios, míseros mortais, não
tivéssemos chegado pessoalmente a essa ingrata convicção.
Não há, efetivamente, no Rio, um ponto, um abrigo, um
refúgio em que se possa evitar a curiosidade dos olhares e das perguntas
alheias. E quando esse lugar aparece, é tal a sofreguidão com que
o procuram as pessoas discretas, que ele se torna, de pronto, um dos mais
movimentados da cidade.
Ainda, agora, a propósito da
visita de SS. MM. os Reis da Bélgica à Escola Nacional de
Belas-Artes, veio-me à lembrança um episódio ali ocorrido,
e em que tomei parte, durante a última exposição de
artistas nacionais.
Solicitado por Mme. Cardoso Khan a
ministrar-lhe, sem a assistência do marido, uns conselhos paternais sobre
um caso do seu interesse, alvitrei, por telefone, a possibilidade de um
encontro em lugar reservado, onde pudéssemos conversar em respeitosa
intimidade. Aceita a minha proposta, a virtuosa senhora indagou:
- Onde poderá ser?
- Na "Mére Louise", no
Leblon! - lembrei.
- Não, lá, não; tem
muita gente. Podiam ver-nos, maliciar, e ir dizer ao Abelardo.
- Então, na casa de D. Matilde,
no Flamengo! - tornei.
- Também, não. Ela
é muito relacionada. Vai muita gente lá...
Apresentados e repelidos outros
alvitres, veio-me à idéia, de súbito, a
revelação de um amigo, e propus:
- A senhora já foi à
Exposição da Escola Nacional de Belas Artes?
- Não.
- Pois, então, vá.
Chegando lá, espere por mim, que subiremos, os dois, para o
terraço que há em cima do edifício, o qual está
sempre deserto. Abrigados por uns respiradouros que já existem,
poderemos conversar sozinhos, inteiramente à vontade.
- Não sobe lá
ninguém?
- Ninguém, filha! Eu estive
lá o ano passado uma tarde inteira, e não apareceu
ninguém!
À hora combinada, entrava na
Escola, risonha e medrosa, a elegante criatura. Fiz-lhe um sinal e ganhamos a
escada. De repente, recuei.
Em cima, no terraço, havia mais
gente, aos casais, do que em baixo, na Exposição!
O LADRÃO
20 de setembro
Quem lê os jornais desta capital,
tem a impressão de que a arte que mais tem progredido, é, no Rio
de janeiro, a arte de furtar. Os feitos da gatunagem são, realmente,
aqui, tão numerosos e freqüentes, que se fica supondo, ao
examiná-los, que os nossos gatunos são homens
inteligentíssimos, capazes de ludibriar o resto da
população.
O caso não é, entretanto,
este. Os gatunos não progrediram, não acrescentaram uma
página, sequer, ao famoso compêndio do padre Antônio Vieira.
O que sucede é coisa diferente: a população ingênua,
ou incauta, foi que se tornou mais incauta ou mais ingênua tornando,
assim, mais fácil do que outrora, a infração do
sétimo mandamento. O caso do comissário Francisco Ambrósio
é, mais ou menos, uma viva demonstração dessa verdade.
Funcionário policial de uma
argúcia surpreendente, Francisco Ambrósio de Oliveira era
apontado em toda a parte como um legítimo espantalho da gatunagem
urbana. Não havia meliante, malandro ou desordeiro que ele não
conhecesse. O seu faro de perdigueiro, auxiliado por uma perspicácia
digna de Sherlock Holmes, constituía, pode-se dizer, o melhor elemento
de repressão de que, até hoje, dispôs a policia.
Certa noite, porém, ao entrar,
de regresso da ronda, na sua própria casa, ouviu Francisco
Ambrósio, de repente, movimentos de gente estranha no pavimento
superior. Cauteloso, habituado a essas experiências da própria
coragem, galgou, três a três, os degraus da escada, até que
observou, espantado, que o visitante noturno se havia homiziado no seu quarto
de dormir. Ao abrir o compartimento sofreu, no entanto, uma
decepção: a única pessoa que ali se achava era D.
Luisinha, a qual, ao escancarar-se a porta, pulou, assustada, da cama, sem
saber do que se tratava.
O faro policial é, felizmente,
uma virtude que se manifesta contragosto, mesmo, de quem a possui. E assim foi
que, sem custo, Francisco Ambrósio descobriu, impondo silêncio com
o dedo indicador estirado sobre os lábios, que havia um gatuno debaixo
da cama.
- O gatuno está ali debaixo! -
rosnou, convicto, ao ouvido da mulher.
E em voz alta, arrancando o revolver do
bolso traseiro da calça:
- Quem está aí?
D. Luisinha tremeu, pela sorte do
marido.
- Quem está aí? - gritou,
de novo, o comissário.
E ia perguntar pela terceira vez.
quando a moça, temendo que o ladrão lhe saltasse sobre o esposo,
segurou a autoridade pela manga do paletó, puxando-a para fora do
quarto, ao mesmo tempo que aconselhava, amorosa:
- Deixa disso, Francisco. Ele, que
não responde, é com certeza, porque não é
conhecido...
O PRESTÍGIO DO
"ROUGE"
23 de setembro
Quando a gripe devorava, no Rio de
janeiro, diariamente, centenas de vidas, a porta do Céu fazia, recordar,
lá em cima, as portas de cinema, em dia de programa sensacional. Homens,
mulheres, crianças, pessoas cuja morte estava iminente ou marcada para
uma época muito distante, amontoavam-se diante da grande fachada
refulgente de estrelas, reclamando, com o bilhete de entrada, o prêmio
das suas boas obras ou do seu martírio.
- Antônio Esmeraldino Gomes de
Albuquerque! - chamava, em voz alta, o santo do dia, lendo uma lista de nomes.
- Presente! - respondia o invocado,
encaminhando-se para a porta.
São Pedro conferia os sinais da
pessoa e dava-lhe, então, entrada, entre o coro festivo dos anjos.
Uma tarde, porém, chegou
à fachada do Paraíso, entre milhares de vítimas da
epidemia, uma senhora de uns quarenta e tantos anos, vitimada naquele dia.
Pálida, com os lábios alvos como a cera dos círios que
deixara na terra, a sua fisionomia denunciava cansaço, tristeza,
sofrimento. De repente, chamaram um nome:
- D. Luíza Gonçalves
Pedreira.
- Presente! - confirmou a nobre
defunta, pondo, já um dos pés no batente sagrado.
Uma grande mão desceu,
porém, sobre o seu ombro, detendo-a.
- É a senhora? - indagou,
severo, o chaveiro.
- Sou eu mesma, meu santo!
- Mas a outra, a que vivia na terra,
tinha, segundo os sinais que me fornecem, as faces muito coradas.
A dama não respondeu.
- E os lábios muito vermelhos.
Novo silencio.
- E os cabelos muito negros.
Silencio ainda.
- E umas olheiras muito pronunciadas.
Nesse ponto, antes que a
enumeração tomasse um caráter comprometedor, D. Luisinha
teve uma idéia: mergulhou as mãozinhas pálidas no forro da
mortalha, arrancou de lá um lápis de "rouge", um
pedaço de bistre, um canudo de cosmético, penteou-se, empoou-se,
endireitou-se, e, levantando a cabeça, encarou o apóstolo.
- Pronto! - exclamou a dama.
São Pedro mirou-a, sorrindo. E,
escancarando a porta, convidou:
- Ahn! É a senhora mesmo...
Entre!
E ela entrou.
A FESTA DA INTELIGÊNCIA
25 de setembro
Por especial deferência do sr.
ministro das Relações Exteriores, foi-me permitido, anteontem,
nos "Diários", tomar parte, como diplomata, nas homenagens
prestadas pela intelectualidade brasileira a Sua Majestade o Rei da
Bélgica. Relegado para as filas destinadas aos jovens
funcionários do Itamarati, não foi sem custo que consegui
aproximar-me do local distribuído aos homens de ciências e de
letras, cujos paramentos, tirados às sete cores do arco-íris,
davam à solenidade um tom de magnificência, de luxo, de riqueza,
verdadeiramente excepcional. Ao lado dos fardões acadêmicos,
faiscantes de ouro, berravam o vermelho dos capelos, o verde das murças,
o negro das becas, assinalando, no tumulto das cores, os catedráticos
das Faculdades de Medicina e de Direito, os membros do Instituto
Histórico, os doutores da Ordem dos Advogados. E como se não
bastasse o aspecto magnificente das vestimentas, cintilavam por toda a parte as
medalhas, os crachás, as condecorações de todos os
países do mundo, como se tivesse caído sobre aquela
assembléia de sábios uma luminosa chuva de pedrarias.
A atual sociedade brasileira, educada
nos costumes igualitários da República, não pode ver,
entretanto, a sério, essas manifestações suntuosas da
vaidade humana. Deslumbrados com o que viam, os espíritos divagavam,
tontos, sem compreender a legítima expressão daquele
espetáculo. Dessa verdade lamentável, tive eu vários
documentos, que me causaram a mim verdadeira indignação. A minha
primeira desilusão foi à entrada do Sr. barão de Ramiz
Galvão, o velho e glorioso fidalgo do Império. Trajando uma
casaca irrepreensível, o eminente educador trazia ao peito, do ombro
à cintura, e de ambos os lados, todas as suas condecorações.
Eram a da Rosa, do Brasil; a de Santiago, de Espanha; a da Ordem de Cristo, de
Portugal; a da Legião de Honra, da França; a do Elefante Azul, da
Pérsia; a de Estanislau, da Polônia; a da Ordem do Latrão,
do Vaticano; e tudo isso no meio de passadeiras, bentinhos, cordões,
amuletos, fitas, distintivos, medalhas e penduricalhos, obtidos em sessenta
anos de discursos e magistério. À chegada do venerando professor,
houve um deslumbramento; e o primeiro comentário, de uma senhora
colocada nas proximidades do corpo diplomático, foi, logo, este:
- Meu Deus! Parece... porta de casa de
brinquedos!
A entrada do desembargador Ataulfo de
Paiva, da Academia de Letras, causou o mesmo pasmo, o mesmo espanto, a mesma
admiração. Ornamentado com as suas dezenove
condecorações, postas em destaque pela sua faixa vermelha de
Cavaleiro de São Maurício e pela originalidade do seu
cordão da Ordem do Dragão, da China, o ilustre magistrado estava
deslumbrante. Sem perder a calma, o primeiro a registrar, com espirito, a sua
situação, foi ele próprio.
- De onde vem, desembargador? -
indagou, com graça, à entrada do salão, a Sra. Santos
Lobo.
E ele, sorrindo:
- Da festa da Penha,
excelentíssima!
Dentro, no recinto dos homens
eminentes, destacavam-se, também, pela singularidade, os distintivos de
Carlos Malheiro Dias. Antigo fidalgo da Casa Real Portuguesa o brilhante
escritor vestia uma capa em vermelho e preto, semeada de comendas azuis, de
crachás amarelos, de medalhas reluzentes, a emergirem de um oceano de
fitas simbólicas, pertencentes a vinte ordens diversas. Ao vê-lo
indagou uma senhora:
- Que capa é aquela do Dr.
Malheiro Pias?
E a outra explicou:
- É uma capa... da "Revista
da Semana", menina!
A impressão geral daquele
publico republicano, foi interpretada, porém, entre tantos
episódios, por uma frase, ouvida por mim no termo da festa.
Comprimindo-se com arte, apertando-se com elegância, empurrando-se com
delicadeza, a multidão procurava a porta de saída, quando
encontrei à minha frente um grupo de moças, no meio do qual ia um
cavalheiro idoso, afogado até o pescoço na sua enorme beca de
professor de Direito. Oprimido de um lado, empurrado de outro. o educador
defendia-se aflitamente, quando uma das filhas lembrou, compadecida:
- Porque papai não tira... o
dominó?
E o Carnaval caiu na rua.
CONSEQÜÊNCIAS
DO PROTOCOLO
A vida boêmia levada no Rio de
janeiro por Sua Majestade o Rei Alberto não tem sido um
obstáculo, apenas, à pratica do protocolo organizado pelo Sr.
Ministro das Relações Exteriores. Homem simples, democrata, identificado
com as camadas populares do seu reino, o monarca dos belgas tem revolucionado
as praxes aristocráticas estabelecidas pelo governo, e influído,
mesmo, nas nossas relações internacionais.
Ainda ontem chegou ao Itamarati,
oficialmente, a notícia dessa influencia, que se foi refletir, de modo
lamentável, fora do continente. Como toda gente sabe, era pensamento do
Sr. Dr. Antônio José de Almeida, ilustre Presidente da Republica
Portuguesa, vir ao Brasil, pagando, assim, em nome dos seus concidadãos,
a visita que lhe fez, de regresso da França, o Sr. Dr. Epitácio
Pessoa. Com a iniciativa de S. M. o Rei da Bélgica, vindo ao Rio de
janeiro, mais se acentuou no eminente estadista português o desejo de
visitar-nos, e de tal forma que, há três dias. recebia o Sr. Dr.
Duarte Leite, embaixador de Portugal, um telegrama do seu governo, indagando
qual havia sido aqui, o protocolo a que se submetera o rei Alberto.
Solícito, o notável diplomata respondeu, de pronto, como era do
seu dever.
- "No primeiro dia - explicou S.
Ex., em telegrama, - o Rei visitou o Presidente da Republica, e jantou em
palácio; no segundo, tomou banho na praia de Copacabana, e visitou o
Congresso; no terceiro, recebeu a sociedade brasileira, e tomou banho em
Copacabana; no quarto, tomou banho em Copacabana, e passou em revista as tropas
de terra e mar; no quinto, recebeu as saudações das
associações literárias e científicas, e tomou banho
A resposta do Presidente de Portugal
não se fez esperar. Vinte e quatro horas depois recebia o Dr. Duarte
Leite o seguinte telegrama do Dr. Antônio José de Almeida:
- "Impossibilitado satisfazer
exigências protocolo, desmanchei viagem".
O governo brasileiro foi informado,
realmente, de que o Sr. Dr. Antônio José de Almeida tem andado com
febres.
XCI
OS COLCHETES
2 de outubro
Eram cinco horas da tarde, quando,
fechado o escritório, o Dr. Godofredo entrou no seu palacete do
Flamengo, para levar a mulher a passeio. Enveredando pela casa com a sua liberdade
de marido jovem, foi ele encontrar a encantadora senhora de pé, diante
do "psyché", recebendo os últimos retoques no seu
vestido novo, pronta para sair. Ajoelhada no tapete de pelúcia cor de
ouro, a costureira, a boca repleta de alfinetes, pregava aqui, repregava ali,
endireitava acolá, ajustando, como o artista ao seu quadro, as
últimas curvas, as últimas ondulações da fazenda
naquela maravilhosa estátua de carne.
Sentando-se no canapé do quarto
de "toilette", o moço olhava, em silêncio, a meticulosidade
da costureira, a perfeição do seu trabalho e a paciência do
seu modelo, quando, diante daqueles toques e retoques infindáveis, lhe
aflorou à boca uma observação:
- Silvia, dizes-me uma coisa?
- Que é? - atendeu a
moça, sem voltar-se, com os olhos no espelho.
- Por que é que os vestidos das
mulheres, em geral, abotoam para trás?
A costureira riu, cuspindo os alfinetes
na mão, estranhando a pergunta; a estátua que ela retocava
apressou-se, porém, em explicar-lhe o caso, sorrindo-lhe pelo cristal do
"psyché".
- Você, então, não
sabe?
E explicou:
- O momento mais glorioso da vida da
uma mulher, é aquele em que ela se prepara para sair. Diante do espelho,
refletindo-se na lâmina lisonjeira, ela se glorifica a si mesma, olhando-se,
mirando-se, namorando-se. Antes de agradar aos outros, ela quer agradar-se a si
mesma; e daí as horas que passa diante do espelho, mirando-se,
remirando-se, quando lhe seria mais vantajoso estar na rua, no salão, no
passeio, recebendo ou fazendo visitas, para ser vista, louvada, admirada.
E depois de uma pausa, forçada
por uma recomendação à costureira:
- Com essa paixão por si mesma,
pelas suas "toilettes", pelo namoro da sua própria figura, a
mulher não poderia admitir, evidentemente, que, ao ir vestir-se, outra
mulher se pusesse entre ela e o espelho, para abotoá-la. Seriam momentos
de auto-contemplação que ela perderia, e que ela evitou,
relegando para trás os botões, os colchetes, os alfinetes, as
pressões, e, com eles, a costureira, que deixa de lhes fazer sombra
diante do espelho.
Horas depois regressavam os dois do
passeio, durante o qual o jovem advogado estivera a meditar sobre a vaidade
feminina, refletindo sobre o que lhe dissera a esposa em relação
à origem do feitio dos vestidos, quando compreendeu que era mentira tudo
quanto ela, à tarde, lhe contara. Foi quando a mulher, preguiçosa
e risonha, lhe voltou as costas. pedindo:
- Desabotoa aqui?
A origem daquele costume era,
positivamente, aquela. As mulheres puseram os colchetes e pressões dos
vestidos para trás, unicamente para os maridos lhes beijarem as
espáduas...
O VESTIDO
4 de outubro
Uma das minhas primeiras crônicas
nesta folha, há três ou quatro anos, versou, se bem me lembro,
sobre o milagre realizado por certas senhoras elegantes, as quais, tendo
recebido do esposo um simples corte de seda, conseguem fazer com ele, por
processos que só dias conhecem, quatro ou cinco vestidos de cores
diferentes. Os esposos que ignoram, em absoluto, esses curiosos fenômenos
de química, fecham os olhos, inteiramente, a todos os prodígios
desse gênero; outros querem, porém, apoderar-se do segredo, e o
resultado é tentarem obtê-lo à força, esgaravatando
a esposa com uma faca ou, o que é menos bárbaro, com uma bala de
revólver.
Deste último gênero,
fiscalizando a mulher como quem fiscaliza uma fronteira ameaçada era,
felizmente ou infelizmente, o Dr. Cantidiano de Sampaio Gutterres, figura
tão conhecida no foro da cidade, e, principalmente, nas altas rodas
mundanas. Chefe de família exemplaríssimo, o notável
advogado não admitia que lhe entrasse em casa, sequer, um alfinete, sem
o seu consentimento. As compras, as mais insignificantes, era ele quem as fazia
pessoalmente, e isso, menos pelo temor de ser enganado no preço dos
objetos adquiridos do que pelo programa, que se traçara, de tomar
conhecimento de tudo que lhe entrasse no lar.
Desse cuidado do ilustre advogado,
dá idéia, para honra sua, o episódio que lhe ia
perturbando, há poucos dias, a vida doméstica, depois de doze anos
de casado. O Dr. Gutterres havia comprado para a mulher, há um mês
antes de partir para São Paulo, um vestido de seda verde, de uma que
esteve em moda, no máximo, oito dias. De regresso, ao entrar em casa,
sem ser esperado, encontrou-se, na escada, com a esposa, que vestia uma
"toilette" nova, e, essa, amarela, gema-d'ovo, e sobretudo,
riquíssima. Ao defrontarem-se, ficaram, os dois, mais amarelos do que o
vestido.
- Que quer dizer isto, senhora? -
trovejou o esposo, crispando os dedos, de cólera.
D. Antonieta encarou-o, sem dizer
palavra.
- Que significa este luxo, na minha
ausência? - tornou, terrível, o marido. - Quem lhe deu esse
vestido?
- Foi você... - sussurrou a pobre
senhora, tremelicando o beicito vermelho de "rouge".
- Eu? O vestido que eu lhe dei,
então, não era verde? Como é que, agora, a senhora se
apresenta com um vestido amarelo?
Ao cérebro da moça
acorreu, de súbito, uma idéia, que fugiu logo, deixando apenas o
rastro. Os olhos brilharam-lhe, vivos, úmidos, penetrantes, numa
floração de luz, tornando-a mais jovem, mais fresca, mais linda.
- Era... - confirmou a moça
O marido encarou-a, esperando a
confissão abominável. O rosto de dona Antonieta irradiou, de
repente, no anúncio de uma surpresa, que podia ser um sorriso, ou uma
lágrima.
- Era verde, sim... tornou, baixando os
olhos: - mas...
E, perturbadíssima, sem
encontrar outra saída:
- Amadureceu, Cantidiano...
CONVENIENTES DO
CIÚME
7 de outubro
Com a sua perspicácia de mulher
inteligentíssima e original, Ninon de Lenclos recomendava aos maridos
que se não mostrassem ciumentos sem um motivo claro, seguro, evidente,
para a manifestação de tal sentimento. "Não é
com suspeitas - afirmava ela, - não é com suspeitas que se
fortalece a fidelidade da mulher". E acrescentava, experiente: "Uma
injúria tal, longe de a prender, enfraquece-a, familiarizando-a com
sentimentos cuja só idéia devia parecer-lhe um crime. Acreditar
na sua inconstância, faz com que ela se acostume a encará-la como
possível, a aproximar-se mais dela. Isso só pode contribuir para
que a mulher acredite ser a fidelidade um mérito, quando somente devia
ser um dever."
Essas observações
endereçadas a todos os maridos injustificadamente ciumentos, faziam
parte, já, do meu cabedal de experiência, fornecida por um
incidente que, há meses, profundamente me impressionou.
Senhora de uma formosura incomum, D.
Colete abandonou o marido, arrastada pela violência do
coração. Esse gesto, que poderia tê-la conduzido à
miséria, à lama, à vergonha, levou-a, pelo contrário,
ao esplendor e à felicidade. O jovem capitalista que a recebera nos
braços na sua queda, era considerado, e merecidamente, o homem mais rico
da capital. E era a fortuna e o coração desse homem generoso,
nobre, cavalheiresco, que ela via a seus pés, derretidos numa chuva de
ouro, como aquela com que Júpiter fecundou, na torre de Argos, a
desditosa mãe de Perseu.
Robusto, moço e
riquíssimo, o ilustre capitalista não tinha motivos para temer um
competidor. O seu orgulho, a consciência da sua própria
situação econômica, deviam conservá-lo muito alto,
acima de quaisquer temores. O coração que lhe batia no peito era,
porém, medroso, covarde, infantil, e foi dominado por essa fraqueza que
ele chegou, uma vez, a confessar o seu susto, dizendo à mulher amada,
com o rosto nas mãos:
- Tu não imaginas, Colete, o que
tem sido a minha vida, depois que vivemos juntos. Eu tenho por ti uma
paixão desesperada. A minha fortuna, a minha vida, o meu destino
estão nas tuas mãos. Dou-te, como tens visto, o que desejas, e
dar-te-ia mais, se m'o pedisses. A minha felicidade é, entretanto,
perturbada por um temor permanente: temor de que me deixes, susto de que me
abandones, receio de que te apaixones por outro, deixando a minha companhia!
A essas palavras, tão sinceras,
arrancadas do coração, a rapariga franziu a testa modelar,
coroada de cabelos dourados, como quem acaba de ouvir uma novidade
surpreendente. Com os cotovelos de mármore fincados na mesa de jantar, e
com o rostinho de boneca, muito claro e muito lindo, pousado nas mãos de
seda a sua fisionomia denunciava uma grave preocupação. De
repente, a testa se lhe vincou ainda mais, e uma pergunta aflorou, franca,
ingênua, encantadora de naturalidade, na sua boquita vermelha:
- Há, então, no Rio,
outro homem mais rico do que tu?
E, intrigada, de si para si:
- Quem será?
MIOPIA
10 de outubro
Uma das graças que eu devo ao
Supremo Arquiteto do Universo é haver me dotado de vista excelente.
Até os sessenta e cinco anos eu recusei aos olhos, sempre, qualquer
auxílio artificial, vindo a capitular, apenas, há seis, quando
tive de recorrer à piedade ótica de um monóculo
providencial. Um aparelho visual perfeito vale por uma benção do
céu; e deve levantar as mãos, rendendo-lhe o culto do seu
coração, todo homem, velho ou moço, que tem a luz
suficiente para enxergar, de noite ou de dia, os perigosos buracos do mundo.
Não era assim, infelizmente, o
meu saudoso amigo Vieira Cardoso, a quem a magnanimidade do imperador concedeu,
mais tarde, o titulo de visconde de Guaxupé.
Vieira Cardoso, que foi duas vezes
ministro na Monarquia, era, talvez, o homem mais míope de todo o Brasil.
Usava grau três, reforçado, e, tirando o pince-nez, era capaz de
confundir um ovo com um prego e de comer o prato em lugar da lingüiça.
Ele era, mesmo, tão curto dos olhos, que muitas vezes se surpreendeu,
ele próprio, batalhando nas fileiras do partido contrário,
vitorioso na véspera, na suposição de que estava, ainda,
ao lado dos seus correligionários derrotados. O fruto desse defeito
colheu-o ele, entretanto, nos limites do lar, em um incidente que ele mesmo, um
dia, me contou.
Era o visconde ministro da
Justiça, no gabinete Tamandaré, quando, certa manhã,
entrou na sua sala de trabalho, em sua própria residência, uma
senhora encantadora, que lhe ia pedir, como as esposas de hoje, um emprego para
o marido. Cabeça baixa, olhos e nariz no papel, estudava o ministro um
dos processos que lhe eram submetidos a despacho, quando, insensivelmente,
estendeu o braço, alcançando a dama pela cintura. Com a brutalidade
da surpresa, a moça não abriu, sequer, a boca; e nem lhe era isso
possível, porque, quando quis protestar, estava, já, com os
lábios grossos do visconde grudados, como ostra em rochedo, nos seus
polpudos lábios famintos!
Nesse momento, porém, abre-se,
ao fundo, a porta do gabinete, e surge, com a cólera faiscando nos
olhos, o vulto da viscondessa.
- Sr. visconde, que é isso? -
exclamou, rubra, a esposa do ministro.
A essa voz, a aventureira, de um salto,
ganhou a porta fronteira, desaparecendo sob o reposteiro solferino.
Boquiaberto, o visconde deixou-se ficar sentado, com os
braços estendidos. Ouvindo, porém, de novo as palavras indignadas
da esposa, estranhou, aflito, pondo-se de pé:
- Então, não era Vossa
Excelência, Sra. viscondessa? Não era Vossa Excelência que
estava aqui, a meu lado?
E, tateando na mesa, procurando, com os
dedos trêmulos, o pince-nez, lamentou, batendo na testa, com a mão
espalmada:
- Maldita miopia!... Maldita miopia!...
E escanchou a bicicleta no nariz.
O SAPATEIRO
14 de outubro
Sempre que as mulheres realizam uma
nova conquista política, obtendo novos lugares, novos postos de relevo
na vida civil, surgem de toda a parte os argumentos sobre a sua suposta
inferioridade mental, como se fosse possível contestar com teorias
aquilo que é contrariado pela evidencia incontrastável dos fatos.
Forte, ou fraca, auxiliada pelos deuses ou pelo demônio, o certo é
que a mulher se tem manifestado, por mais de uma vez, superior ao homem, pela agudeza,
pela perspicácia, e, não menos, pelo bom senso com que resolve
determinados problemas da vida.
Um caso que me vem à
memória toda a vez que se levantam discussões sobre essa
matéria debatidíssima, é o que ocorreu, há anos,
Andava o Sr. Manoel Lourenço
pelos quarenta anos de vida, dos quais vinte e cinco haviam sido consumidos em
calçar de chinela e tamancos a décima parte da
população local, quando lhe apareceu na oficina, para encomendar
um sapatinho de cordavão, a risonha Clotildinha, meninota de quatorze
anos, mais ou menos, pertencente a uma família modesta, mas honrada,
residente no lugar. Respeitoso, o Manoel Lourenço ajoelhou-se no
chão, marcou no tijolo, com dois riscos de faca, o tamanho do pé,
apanhou-lhe a altura com uma tira de papel dobrado, e, não sabe como, ao
erguer-se, estava inteiramente transfigurado de coração.
À noite, o pobre sapateiro
não pode dormir. Mal fechava os olhos, e surgia-lhe no pensamento a
perna morena da Clotildinha, a emergir do mistério da saia curta, de
chita encamada, como se fosse o caule duplo de uma rosa em botão, cujo perfume
lhe ficava eternamente vedado. E tanto o mísero se preocupou, aflito,
com o caso, que, um mês depois, estavam casados, com todos os sacramentos
e todas as bênçãos, a menina e o sapateiro da Baixa Verde.
Só depois de casado,
porém, foi que o Sr. Manoel Lourenço verificou a barbaridade que
cometera. Menina ainda, a Clotildinha podia ser, pela sua idade, pelas suas
maneiras e, principalmente, pelo seu físico, sua filha e, até -
quem sabe? - sua neta. E era pensando nisso que a mantinha a seu lado
carinhosamente, paternalmente, tratando-a como quem trata uma criança.
Quem não gostava desses modos
era, porém, a Clotildinha. O Manoel Lourenço tinha ido
buscá-la à casa materna para mulher, para companheira, para
sócia da sua vida e do seu destino, era natural, portanto, que a tratasse
como tal, fazendo-lhe participar da existência em comum, e, até,
dos negócios comerciais da sua oficina.
Certa manhã, havia o Manoel
Lourenço acordado cedo e, como de costume, chamou a menina,
ordenando-lhe que se sentasse a seu lado, na beira da rede, para conversarem. A
moça sentou-se, e conversavam os dois, como pai e filha, com os olhos
pregados no teto, quando viram, de repente, correr um camundongo, um ratinho de
meia polegada, o qual, passando entre os caibros e as telhas, se foi perder, em
cima, nos buracos da cumeeira. Ao ver o rato, Clotildinha virou-se, de
súbito, para o marido, e pediu, dengosa:
- Sabes, Manoel, que é que eu
queria?
- Que é? - indagou o esposo,
divertindo-se com aquela alegria.
- Eu queria que tu matasses aquele rato
e fizesses um par de sapatos para mim!
O sapateiro achou graça na
infantilidade da moça, e retrucou, rindo:
- Que tolice, Clotilde! tu não
vês que o couro daquele camundongo não dá para um par de
sapatos?
A moça encarou-o com as faces em
brasa, e, pondo a cabeça no seu peito, gemeu, na ânsia de possuir
o seu sapato:
- Dá, Manoel, dá!
E ao seu ouvido, com a voz tremula:
- Olha, Manoel, o couro... espicha!
E abraçou-o, chorando.
ENTRE OS PAPUAS
17 de outubro
Um dos maiores sonhos da minha infancia
era atravessar a vida viajando. As aventuras do "Guliver" de Swift; o
"Rocambole", de Ponson, e as fantasias de Júlio Verne, cuja
primeira obra me foi oferecida no dia do meu 14° aniversário,
exerceram tamanha influência sobre o meu ânimo, que eu não
pensava, na adolescência, senão naquelas viagens maravilhosas.
Homem feito, abracei a carreira que mais se coadunava com as minhas
aspirações de criança; e, como a vida fosse curta para
tanto projeto desordenado, é com verdadeira alegria que os completo
hoje, mentalmente, ouvindo, aqui e ali, onde os deparo, a palestra dos amigos
mais viajados do que eu.
Uma destas noites, após o jantar
elegantíssimo com que o desembargador Corrêa da Cunha festejou o
regresso do comendador Adeodato de Barros, que voltava da sua última
excursão às índias e à Oceania, tive eu um dos
momentos mais felizes da minha vida, ouvindo a história desse passeio de
milionário, o qual durou, como é sabido, cerca de três anos
e meio. Com a sua palavra viva, segura, concisa, narrava o soberbo capitalista
os episódios mais interessantes, quando, em certo momento, se voltou
para as senhoras, explicando:
- O costume mais curioso que eu
encontrei foi, porém, o dos indígenas das Molucas, entre os quais
me demorei algum tempo.
As senhoras voltaram-se, interessadas,
e o comendador começou, mexendo, pausadamente, com uma colherinha de
prata, a sua taça de vinho com água e açúcar:
- Entre os papúas, o casamento
é inteiramente livre. Adeptos da poligamia, como o são, em geral,
os povos brutalizados, esses indígenas permitem que o homem tome, e
sustente, as mulheres que bem entenda. Uma exigência é, no
entanto, feita a quantos se queiram prevalecer dessa faculdade: cada casamento
que o indivíduo contrai é selado com uma cerimônia
bárbara, que consiste em arrancar um dente aos esposos. Ao
contrário do que sucedia a certos povos antigos, entre os quais o
contrato nupcial era selado com a incisão em duas veias do braço,
para que o sangue dos noivos se misturasse, os papúas exigem esse
sacrifício dos dentes, de modo que o beijo de núpcias é um
beijo sangrento em que se confunde, num pacto horrendo, que é um
símbolo da união na vida, o sangue dos nubentes.
- Que horror! - observou Mme. Schwartz,
fazendo uma careta.
- Que bárbaros! -
reforçou Mlle. Toledo Gomide, repetindo o mesmo gesto de nojo.
As outras senhoras comentavam esse
costume dos indígenas com a mesma indignação incontida,
quando Mme. Corrêa Gomes indagou, curiosa:
- Quanto tempo o comendador passou
entre essas feras?
- Um ano, minha senhora.
- Sem se afastar deles?
- Não, senhora. Saí duas
vezes, para ir a Amboine, capital do arquipélago.
Passado um instante, explicou,
distraído:
- Mas demorei-me pouco longe deles. Fui
apenas concertar a dentadura...
E continuou a mastigar, forte, com
todos os dentes.
AS "MENINAS"
19 de outubro
Há páginas de literatura
tão de acordo com a verdade, com as lições severas e
surpreendentes da vida, que a gente se fica, às vezes, a pensar horas e horas
em semelhante duplicidade. Essa curiosa surpresa tenho-a eu tido de vez em
quando, e tive-a ontem, mais uma vez, após uma leitura meticulosa da
viagem feita por Stendhal à Suíça no ano de 1821.
Os jornais do Rio de janeiro aparecem,
como é sabido, cheios, diariamente, de notícias de roubos, de
assaltos audaciosos, à luz do dia ou no silêncio da noite,
à propriedade alheia. Não se abre nesta capital uma folha da
manhã, ou da tarde, sem encontrar a descrição da escalada
de um muro ou de uma janela, por um dos numerosos ladrões que perturbam,
zombando da policia, o sossego da cidade.
- É uma calamidade, conselheiro!
- dizia-me, na tarde de ontem rumo da sua casa, onde íamos jantar com as
suas Exmas filhas, o comendador Fulgêncio Gadelha da Cunha. - Raro
é o mês em que me não penetra um gatuno no quintal,
carregando-me com as galinhas, com os vasos de planta, com a roupa do tanque,
enfim, com tudo que lhe fica ao alcance. Já não sei mais o que
faça!
- O comendador não tem cachorros
no quintal? - indaguei, penalizado daquela queixa.
O velho comerciante virou-se para mim e
protestou, sacudindo a cabeça:
- Eu? Não!
- Pois, olhe, - insisti; - se o senhor
tivesse um ou dois cachorrões de raça, desses cães de
guarda destinados a defender as habitações, ninguém lhe
penetraria, sequer, no jardim, fora de horas.
- Deveras? - tornou o velho.
Eu confirmei, e ouvi, com espanto, esta
resposta absolutamente inesperada:
- Nesse caso, não os quero.
- Nos os quer? - estranhei, arregalando
os olhos[.
- Absolutamente. Porque, se eu puser
cachorros no quintal...
E concluiu, ao meu ouvido, rindo, e
piscando um olho:
- As meninas... não se casam!
Nesse momento penetrávamos, os
dois, no jardim da casa, onde uns pedreiros haviam deixado, por esquecimento,
há seis meses, uma escada encostada ao prédio, ao lado,
exatamente, da janela das "meninas"...
ELAS...
23 de outubro
O relógio da igreja
próxima havia acabado de anunciar as dez horas da manhã quando a
encantadora mundana Suzete Latour penetrou, nervosa e célere, na risonha
"garçonniére" do jovem advogado Silvestre Lobato, que
envergava, ainda, àquela hora, o seu felpudo roupão de banho.
- Isto é certo? - indagou a
rapariga, estendendo-lhe um jornal com a mão esquerda, enquanto atirava
para uma cadeira, com a direita, o seu lindo chapéu de palha da
Itália, florido como uma campina pela primavera.
A notícia do jornal era, nada
mais, nada menos, do que o noivado do ilustre bacharel com uma senhorita de
família distintíssima, chegada recentemente de São Paulo.
Sem tocar na folha que a amante lhe estendia, o rapaz respondeu, simplesmente,
acendendo um cigarro:
- É.
Essa resposta fria, seca, brutal,
desnorteara Suzete. Aquela afirmativa, embora esperada, fora, para ela, um
golpe no coração. Fulminada por esse monossílabo, a
rapariga segurou-se ao espelho da cama, para não cair. De súbito,
porém, subiu-lhe ao rosto uma onda de sangue, e foi vermelha, rubra de
cólera, com os olhos brilhantes e os dentes cerrados, que ela, amassando
na mão o jornal, rugiu, num desespero de leoa ferida:
- São assim, os homens! Nascem,
dizem eles, para o amor, para sorverem, altivos e alegres, todos os gozos da
vida. Encontram no seu caminho uma mulher cheia do mesmo sentimento, disposta a
conceder-lhes tudo, tudo, tudo, para que eles experimentem, até o
êxtase, a glória de viver. Com a alma ardente, ela entrega-se a
eles; dando-lhes venturas que eles nunca sonharam, oferecendo-lhes a
taça do prazer, da alegria, da felicidade livre, para que a esvaziem,
até o último gole. E, no entanto, eles têm vergonha,
têm nojo, têm asco dessa mulher, preferindo, a ela, que não
esconde os ardores do seu sangue nem os ímpetos do seu
coração, a mulher-mentira, a mulher-falsidade, a
mulher-simulação, que lhes não entrega nem a alma, nem o
corpo, em obediência, unicamente, a preconceitos, a exigências
sociais! À mulher que afronta a sociedade, fiel ao seu temperamento
preferem eles, covardes diante do mundo, aquelas que não têm
coragem para vencer, para atirar longe, em nome do seu amor, a grilheta das
conveniências!...
Cabisbaixo, olhos pregados no tapete
semeado de flores de seda, o rapaz ouvia, sem um protesto, a explosão
daquele cofre de jóias malditas, daquela criatura venenosa, mas
admirável, que o guiava, há três anos, pelo complexo
labirinto da vida boêmia. E a rapariga continuava a andar, agitada, de um
lado para outro do compartimento, passando, nervosa, as mãos finas,
alvas, esguias, pelos finos cabelos dourados:
- É bom, mesmo, que eu seja
punida. A virtude, para os homens, é a falsidade, é a
simulação, é a mentira. Eles não sabem que o amor
é incompatível com o pudor, com o receio, com o respeito
às convenções, e que ele está, só ele, acima
da vida e acima da morte!
E, numa onda de soluços mal
sufocados, crispando os dedos:
- Infelizes! Buscam o amor, e onde o
encontram, puro e selvagem, fogem dele! Procuram a sinceridade, a lealdade
feminina, a mulher que não mente, nem com a sua boca, nem com o seu
coração, nem com a sua carne, e, quando querem amparar diante da
lei uma criatura, vão buscar aquela que menos conhecem, sem imaginar que
a timidez é, nas mulheres, um cálculo, e sem se lembrarem que as
mulheres que amam não calculam nem pensam!...
Arrebatada pelas próprias
palavras, Suzete limpou os olhos no lencinho de seda, já ensopado de
lágrimas, e, na mesma agitação, tomou o chapéu,
disposta a partir.
- É a última vez, sabes?
nunca mais me verás no teu caminho. Adeus!
E ia já no rumo da porta, quando
ouviu uma voz, que era um gemido:
- Suzete!...
A rapariga voltou-se, imperativa.
Sentado na cama, com o rosto molhado de pranto, o rapaz a fitava, olhos
implorantes, braços estendidos. Ela fixou-o, severa, e ouviu,
então, esta súplica, ou, melhor, este soluço, que era uma
capitulação para a vida e para a morte:
- Suzete... Fica!...
BARBA DE BODE
26 de outubro
Foi recolhida, segunda-feira
última, no Hospício Nacional, vítima de uma erva
erroneamente receitada por um herbanário dos subúrbios, a
encantadora senhorita Carmélia Passos, filha única e inteligentíssima
da viúva Carlota Passos, proprietária nesta capital.
Eu desconhecia ainda este caso, e
já aplaudia com todo o meu coração a atitude da
Saúde Pública, perseguindo, punindo, combatendo com as armas da
lei a praga dos curandeiros. E aplaudia-a com a lembrança, apenas, de um
episódio doloroso, que me fora narrado, semanas antes, pelo meu
prestimoso amigo o Sr. senador Elói de Souza.
O coronel Raimundo de Araújo,
comerciante em Natal, capital do Rio Grande do Norte, havia entrado na casa dos
sessenta anos quando, após quatorze de viuvez, entendeu de contrair
novas núpcias com uma sólida moçoila de São
Gonçalo. Pedida, porém, a rapariga, começaram as
complicações, as dificuldades, os obstáculos e, com eles,
o adiamento da cerimônia. Homem de idade avançada, sujeito,
portanto, ao efeito das emoções violentas, o coronel, assim que
ficou noivo, começou a declinar de forças, de coragem, de
saúde, e de tal forma que, após um mês de noivado, parecia
haver envelhecido dez anos. Aflito, impressionado, combalido, o abastado
comerciante recorreu, e sempre inutilmente, a todos os médicos da
cidade. E já estava quase desiludido da cura e da vida, quando um seu
compadre, o capitão Ferreira, tabelião aposentado, a quem
participara a sua infelicidade, lhe perguntou, interessado:
- O compadre já usou chá
de barba de bode?
- Barba de bode? - indagou o outro,
espantado.
- Sim. Pega-se todo o dia um punhado de
barba de bode, faz-se um chá bem forte, e toma-se três vezes por
dia.
E acentuou, sincero:
- É um santo remédio, compadre!
Animado com a nova esperança; o
coronel Araújo mandou chamar à sua casa de negócio um
caboclo de Currais Novos, o Antônio Severo, grande criador de caprinos
naquela parte do sertão, e, sem lhe dizer para que era a encomenda,
pediu que lhe mandasse na primeira oportunidade, e a qualquer preço, um
saco com barbas de bode.
- Que quantidade, coronéo? -
indagou o sertanejo.
- Uns dez quilos.
Duas semanas depois recebia o coronel
Araújo a sua encomenda, entrando, de pronto, no uso da medicina
receitada. À medida, porém, que tomava o chá, sentia
efeitos exatamente opostos àquele que esperava: uma vontade doida de
chorar, de berrar, de bodejar lamentosamente, e, sobretudo, um desejo irresistível
de fugir às mulheres. No fim de um mês, a situação
do enfermo era, mesmo, desesperadora: magro, nervoso, espumando pelo canto da
boca, passava as noites na rua, encostando-se às paredes, às
arvores, às pedras das estradas, nas proximidades do porto, do mercado e
do quartel, e em estado tal de desmoralização que os amigos,
penalizados com a sua infelicidade, tiveram de mandá-lo internar, com
recomendações especiais do Dr. Ferreira Chaves, então
governador do Estado, em uma casa de saúde de Pernambuco!
Esse desfecho de uma vida honrada e
laboriosa impressionou, como era natural, o meio em que vivia o conhecido
negociante. Quem, entretanto, mais pensava naquele infortúnio era o seu
compadre Ferreira, autor da receita. Preocupado com o caso, e sem encontrar
para ele uma explicação aceitável, ia o velho
tabelião um dia pela praça do mercado quando sentiu, de repente,
uma pancada no ombro. Era o Antônio Severo, de Currais Novos, que havia
chegado naquele dia com uma partida de couros. A figura do sertanejo avivou-lhe,
naquele momento, uma lembrança; e como esta fosse teimosa, forte,
renitente, o velho Ferreira não se conteve, e indagou:
- Diga-me uma coisa, Severo: o coronel
Araújo não lhe fez, quando você esteve aqui da
última vez, uma encomenda de barba de bode?
- Fez, sim, senhor; e eu mandei, logo
que cheguei lá.
- E você tem certeza de que era,
mesmo, barba de bode?
Ante essa insistência, o matuto
sorriu, cuspiu longe, por entre os dentes, e, com a sua vozinha de
ingênuo e de esperto, confessou:
- Home, "seu" capitão,
garantir eu não garanto. O coronéo me encomendou, é
verdade, dez quilos de barba de bode. Mas porém, onde eu ia achar bode
p'ra tanta barba? E como pensei que desse tudo na mesma coisa, mandei mesmo de
cabra!
O TRIUNFADOR
31 de outubro
O ano de 1940 decorre tranqüilo e
próspero na cidade do Rio de Janeiro. As festas do Centenário,
celebradas em 1922, legaram à metrópole dos cariocas uma grande
série de melhoramentos, que a tornaram a capital mais formosa do mundo.
A Avenida da Independência, aberta a cães e o antigo Campo de
Sant'Ana, fulge ao sol, soberba e larga, com os seus prédios
monumentais, de doze a vinte andares. Inaugurados, há quinze anos, o
carros elétricos da Empresa Aérea de Transportes atravessam o
espaço em todas as direções, indo, em poucos minutos, do
alto da Gávea à fortaleza de Santa Cruz, à
semelhança de insetos monstruosos que voassem, rápidos, ligados
pelas antenas a invisíveis fios de arame. Das estações do
Pão de Açúcar, do Corcovado, de Santa Teresa, da
Babilônia, levantam vôo a todo instante aerobus enormes, que fazem
o serviço para Petrópolis, para Teresópolis, para
Friburgo, para Minas, para São Paulo e para as ilhas, de bordo dos quais
se agitam lenços esvoaçantes, de pessoas que se despedem
saudosas, de parentes ou amigos que lhes dizem adeus do terraço dos
grandes edifícios.
Em baixo, na Avenida da
Independência, a estátua de Epitácio Pessoa faisca,
monumental. Vendedores de jornais, montando pequenos veículos de duas
rodas, apregoam, alto, as novidades do dia, entre as quais avulta a
notícia de que o Loyd, nesse ano, não deu "deficit". As
ruas, as praças, as avenidas, e o próprio espaço,
fervilham de passeantes e de veículos, quando um guarda civil do
serviço aéreo anuncia, pelo telefone sem fio a
aproximação de um aeroplano esquisito e de marcha retardada, que
procede do Sul.
Afixados os cartazes elétricos
no alto dos morros, os transeuntes elegantes retiram os binóculos da
cintura, afixam-nos na direção indicada, esperando o viajante
desconhecido. Será um selenita, um dos misteriosos habitantes da Lua?
Será um emissário de Marte? Nariz para o ar, chapéu na
mão, os cariocas acompanham a marcha do gafanhoto de aço, que
desce, aos poucos, trepidando e zumbindo, até pousar, em frente ao Club
Revolucionário Maurício de Lacerda, na praça Carlos
Sampaio, onde era antigamente o morro do Castelo. Curiosa, a
população precipita-se, correndo e voando, naquele
rumo, para ver o recém-chegado, que salta com dificuldade do seu
aparelho. É um ancião alto, magro, de cabeça alva, e com
uma barba de neve que lhe desce, abundante, até o estômago.
Admirado, olha ele para um lado e
outro, como a perguntar-se a si mesmo se não terá errado o
caminho, quando um cavalheiro idoso o encara, e recua. E um grito de entusiasmo
estruge, reboa, troveja, abalando a cidade.
- De Lamare! De Lamare!
É De Lamare que regressa,
vitorioso, do "raid" a Buenos Aires!...
A CORNUCÓPIA
1° de novembro
O Gabrielzinho havia regressado da rua
intrigadíssimo com aquela novidade. Por que motivo, realmente, a
prosperidade havia de ser simbolizada sempre por um chifre repleto de moedas,
que uma mulher despejava de cima, com o sorriso nos lábios? Que
significaria aquele anúncio berrante da casa de loterias, no qual se via
a Fortuna a derramar o ouro da sua cornucópia sobre a cabeça
irrequieta dos homens? Ingênuo, puro, infantil, o seu primeiro cuidado,
ao chegar em casa, foi perguntar ao velho Gabriel:
- Papai, por que é que a Fortuna
é representada, sempre, com um chifre na mão?
O honrado comerciante coçou a calva,
atrapalhado, mas D. Lavínia o tirou da dificuldade, insistindo:
- Responde, Gabriel! Você
não tem lá dentro um livrinho que trata dessas coisas? Essa
figura, como ele diz, representa, mesmo, a Fortuna. Se você duvida, veja
o livro.
- É verdade! - exclamou o velho.
- Aquele livro deve dar.
E, indo buscar um volume, pequeno,
miúdo, edição popular, do "Dicionário da
Fábula", de Chompré, tradução portuguesa, leu,
alto, à pag. 165:
- "FORTUNA -, deusa que preside ao
bem e ao mal."
- Não é aqui, - acrescentou.
Folheou para trás, e tornou a
ler, à pag. 4:
- "ABUNDÂNCIA - divindade
alegórica que se representa na figura de uma donzela no meio de todo o
gênero de bens, grossa de carnes, com vivas cores, e tendo na mão
um corno cheio de flores e frutos. Dizem ser filha de Acheres ou da cabra
Amaltéa."
Folheou para a frente, e continuou,
à pagina 31:
- "AMALTÉA - É o
nome da cabra que deu leite a Júpiter. Em reconhecimento deste bom
serviço, ele a colocou, com dois cabritos, seus filhos, no céu, e
deu um dos seus cornos às ninfas que cuidaram dele desde a sua
infância, com a virtude de produzir quanto elas apetecessem.
Chamava-se-lhe o "Corno da Abundância".
Terminada a leitura, D. Lavínia
observou, teimosa:
- Então, é ou não
é?
- O que? - indagaram, ao mesmo tempo, o
pai e o filho.
- O chifre, nas mãos de uma
mulher, é, ou não é, o símbolo da Fartura?
Os dois calaram-se, e D. Lavínia
continuou, ingênua, na sua honestidade:
- Eu, que digo, é porque sei.
E, simples, boa, cândida na sua
virtude. recomeçando o seu "crochet":
- Eu estou cansada de dizer a teu
pai...
O MILAGRE DE S.
BENEDITO
2 de novembro
O corpo da pobre lavadeira Maria Jovita
havia sido levado, na véspera, para o cemitério, por um carro
mortuário da Santa Casa, deixando ali, naquela situação
aflitiva, aquela pretinha de cinco anos, herdeira triste, e inocente, da sua
cor e do seu destino. Atirada para o corredor do casarão, a pequenita
passara uma noite encostada à parede, agasalhando-se como lhe era
possível nos farrapos da camisinha de riscado grosseiro; uma vizinha de
quarto condoeu-se, porém, da sua sorte, sendo a pretinha recolhida,
então, por misericórdia, como um cão sem préstimo
que se apanhasse piedosamente na rua.
Dois dias após a sua orfandade, era
o dia dos mortos, como o de hoje. E como toda a gente, na casa de
cômodos, se encaminhasse para o cemitério, em visita aos seus
defuntos não esquecidos, a pequenita Carlota acompanhou-os, ferindo os
pés descalços no pedroiço do calçamento, e
recebendo na carapinha descoberta, enroscada no couro da cabeça, toda a
inclemência daquele horrível sol de verão. Chegada ao
cemitério, perguntou a negrinha, medrosa:
- Onde está minha mãe?
As pessoas que tinham ido ao enterro da
Maria Jovita indicaram-lhe um monte de terra fresca, molhada ainda, à
cabeceira da qual a pequena se ajoelhou, juntando, numa prece fervente, os dois
carvãozinhos das mãos. E estava ela sozinha, nessa postura, no
silêncio daquela quadra abandonada, destinada aos humildes, aos
desamparados, aos náufragos da vida e da morte, quando ouviu uma voz,
que a chamava:
- Carlotinha?
A pretinha voltou-se, espantada, e
sorriu, enxugando os olhos úmidos com as costas das mãozinhas
encarvoadas: atrás dela, sorrindo-lhe com bondade, com doçura,
com meiguice, estava, em ponto grande, do tamanho de uma pessoa, com a mesma
cor, a mesma aureola e o mesmo burel, a imagem do senhor São Benedito,
que sua mãe, quando viva, possuía no quarto, no oratório de
uma pequena caixa de papelão!
- Meu São Benedito!... - gemeu a
pequena, atirando-se ao solo, e beijando-lhe, comovida, a fímbria do
manto escuro.
E ia juntar as mãos para rezar,
quando o santo lhe ordenou, paternal:
- Carlotinha, junta estas pedras.
A pretinha arrepanhou quanto pôde
as pontas do vestidinho roto, e pôs-se a apanhar, um por um, os seixos
miúdos que havia pelo chão, entre as sepulturas sem nome. E assim
que enchia o regaço, despejava os calhaus, a mandado do santo, sobre o
monte de terra que assinalava, naquele oceano de túmulos, o lugar em que
sua pobre mãe dormia para sempre.
De repente, cansadinha já
daquela faina, a pretinha ouviu chamar, de longe, pelo seu nome:
- Carlota?
E como não respondesse, de
fatigada, as pessoas da casa de cômodos foram à sua procura,
até que, encontrando-a, recuaram, maravilhadas.
Diante da pretinha, que orava, de
joelhos, a sepultura rasa de Maria Jovita, um simples cômoro de areia,
desaparecia, toda ela, sob um monte de rosas!
O LEILÃO
4 de novembro
- Um conto e duzentos! Um conto e
duzentos! Dou um conto e duzentos!
Foi ao som desse pregão
intempestivo que o Dr. Alfredo Camilo despertou, alta madrugada, na sua cama de
casal, na alcova suavemente iluminada por uma pequenina lâmpada de
cabeceira. Espantado, o ilustre médico voltou-se no leito, e percebeu
que era a sua jovem esposa, a formosíssima D. Belita, que insistia, no
meio de um sono agitado:
- Um conto e duzentos! Um conto e
duzentos! Dou um conto e duzentos!
Sentando-se na cama, o Dr. Alfredo
bateu no ombro nu da esposa, sacudindo-a, com força:
- Belitinha! Belitinha! Que é
isso? Que é que tens? Acorda!
- Hein? Hein? Que é? Que
é que tem? - exclamou a moça, despertando, espantada, esfregando
os olhos com as mãos.
- Estás com pesadelo? - indagou
o marido.
- Não; era um sonho... Por que?
- Estavas para aí fazendo
leilão...
- Ahn! - exclamou a linda senhora,
espreguiçando-se. - Uma extravagância... uma tolice...
- Conta! Quero saber o que era! - pediu
o esposo; enciumado.
- Não vale a pena, Alfredo!
- Conta! - exigiu o Otelo.
D. Belita agasalhou, a cabecita de ouro
no peito do marido, e começou a narrar, de olhos fechados:
- Eu sonhei que me achava em um
mercado, não sei em que cidade, nem em que país onde estavam
fazendo um leilão de homens, para maridos, os quais eram disputados por
centenas de mulheres. De repente, depois de várias
arrematações, levaram um rapagão alto, forte, formoso, uma
verdadeira beleza, que encantou, logo, todas as pretendentes. Ao vê-lo, a
Luisinha, mulher do Alonso, que também estava presente, lançou
duzentos mil réis. Eu lancei trezentos. A Abigail ofereceu quinhentos.
Eu cobri o lance com oitocentos, e estava oferecendo um conto e duzentos quando
tu me despertaste.
Com os olhos presos na cabeça da
esposa, o Dr. Alfredo ouvia, em silêncio, essa história, quando,
chegada a narração ao fim, protestou, revoltado:
- Sim, senhora! Uma senhora honesta, e
casada, a ter sonhos destes!...
Não convindo, porém,
brigar, àquela hora, por um simples sonho, um mero fenômeno de
imaginação, procurou consolar-se, indagando:
- E eu, não estava lá,
não?
- Você? Não vi.
- Mas, se eu estivesse lá, as
mulheres dariam uma fortuna... Não?
D. Delita sorriu, e, esfregando os
olhos:
- Você?
E com desprezo, rindo:
- Como você havia lá
às dúzias, a cinqüenta mil réis, e ninguém
queria!
E virou-se para o outro lado,
roncando...
LÂMPADAS E
VENTILADORES
8 de novembro
- A resistência física da
mulher, Sr. conselheiro, - dizia-me, uma destas tardes, saboreando voluptuosamente
o seu sorvete de melão, o meu velho amigo o conselheiro Abelardo de
Brito, a resistência física da mulher é um fenômeno
que merece a atenção dos fisiologistas e, principalmente, dos
psicólogos. O poder da vontade é, nelas, maravilhoso, extraordinário,
formidável. Senão, observe. Há um baile na sua casa, ao
qual concorrem dezenas de moças. Com o entusiasmo que lhes empresta a
alegria, essas encantadoras criaturas dançam, seguidamente,
continuamente, valsa sobre valsa, polca sobre polca, mazurca sobre mazurca, ou,
como hoje acontece, "rag time" sobre "rag time",
"fox-trot" sobre "fox-trot", tango sobre tango, maxixe
sobre maxixe.
- Perdão! - interrompi. Em minha
casa não se dançaria isso!
- Eu sei! eu sei! - tornou o antigo
magistrado, batucando a colherinha no fundo da taça, para dissolver o
sorvete. - Eu sei disso. É uma simples comparação!
E continuou:
- Na festa, enquanto se dança
ninguém se fatiga. As moças rodopiam, correm, pulam, divertem-se com
alarido, sem atentarem para as horas, que se passam. Às três da
manhã estão ainda tão lépidas, tão
dispostas, como no momento em que entraram. E assim continuam, pela festa
adiante. De repente, dá-se o baile por terminado. A musica retira-se,
começam as despedidas, aproximam-se, buzinando, os
"landaulets" dos convidados. E é uma calamidade: as
moças, que, dois minutos antes, dançavam, riam, pulavam, mal
podem, agora, dar um passo! Estão todas cansadas, fatigadas, com os
pés rebentados, de modo a ser necessário levá-las, uma a
uma, pelo braço, para dentro dos automóveis!...
A tarde estava quente, abafada,
ameaçando tempestade. Na sala da sorveteria onde tomávamos
chá, os ventiladores ronronavam, como gatos, refrescando o ambiente.
Lufadas ardentes, fortes, brutais, varreram, lá fora, o asfalto da
Avenida. O céu escureceu, de repente, e um trovão estalou,
rolando pelo céu. Nesse momento. as lâmpadas do salão,
abertas àquela hora, apagaram-se todas, ao mesmo tempo que, dependendo
da mesma corrente elétrica, os ventiladores foram, pouco a pouco,
diminuindo a marcha, até que pararam, de todo, como aves que acabam de
chegar de um grande vôo. Estranhando aquela interrupção, ao
mesmo tempo, da luz, e dos aparelhos, o meu venerando amigo levantou a
cabeça venerável, e sentenciou, apontando o teto:
- As moças, meu
velho, são assim. Apaguem as luzes do salão em que rodopiaram sem
descanso, e elas se sentirão, em seguida, como esses ventiladores,
cansadas, exaustas, quase mortas!
Lá fora, no ar pesado, um novo
trovão estalou. E a chuva caiu, graúda, como grãos de
milho, tamborilando descompassadamente no chão.
MILITARISMO
16 de novembro
O militar, por menos apegado que seja
as coisas da sua profissão, acaba necessariamente se habituando com
elas, identificando-se com o quartel. A influência das armas é
tamanha, naqueles que a elas se votam, que se reconhece na rua, ao menor golpe
de vista, mesmo quando vestido à paisana, o tenente, o capitão, o
major, o coronel. Ao ver, na via publica, um oficial do Exército envergando
um jaquetão ou um fraque, a impressão que se tem é de que
falta alguma coisa à sua elegância. Por mais correto que ele
esteja nas suas roupas apuradas, lembra-nos, sempre, um tigre metido na pele de
um urso, ou um leão enfiado, por modéstia, no couro de um
elefante.
E essa tirania da farda não se
mostra de modo menos acentuado na fisionomia moral das suas vítimas.
Absorvido pelo seu pensamento de glória, o soldado revela-se em toda a
parte e em todas as circunstâncias: no calor das palestras, na energia da
vontade, na severidade da vida, na intransigência das atitudes, na
disciplina do porte, e, até, às vezes, no emprego do
vocabulário, a que procura dar, aqui fora, as mesmas
aplicações. O caso do tenente Pamphilio Godofredo de Medeiros
é uma demonstração pública e policial dessa
verdade.
Militar garboso, bravo, decidido, o
tenente Pamphilio utilizava os dias de serenidade da pátria passeando
elegantemente na Avenida, quando viu, uma tarde, em certa casa de chá,
uma criatura que lhe fez acordar, tocando alvorada, todos os clarins do
coração. Ousado e robusto, pôs-se, logo, em atividade, e de
tal modo que, no dia seguinte, sabia já o suficiente para um vigoroso
ataque aos muros da fortaleza: a dama era casada, morava à rua
Voluntários da Pátria, em uma casa de portão de ferro, o
qual só se abria com ordem especial do marido.
Informado de tudo isso, o tenente
apareceu, no dia seguinte, diante do palacete, e espremeu, comovido, o tumor
sonoro da campainha. O silêncio era absoluto na casa, e ninguém
atendeu. Duas, três, quatro vezes repetiu ele o sinal, mas inutilmente. E
batia, já, em retirada, quando ouviu um chocalhar de corrente no
portão. Voltou-se, e viu: era o jardineiro que abria a grade para dar
passagem ao dono da casa, passando, de novo, a corrente de cadeado.
Atordoado pelo seu pensamento de
ventura, e, não menos, pela consciência da sua superioridade de
militar, o oficial não teve dúvidas: parou, deu meia volta, e
marchou, firme, no rumo do cavalheiro que saíra da casa. Estacaram,
pálidos, um diante do outro.
- Que deseja o senhor? - bradou, com a
alma nos olhos, o marido da moça.
Mão no revolver,
disfarçando a tempestade do coração, o tenente rugiu,
apenas, seco:
- A senha.
E atracaram-se.
CVI
APÓLOGO
SERTANEJO
18 de novembro
Viúvo da Razão, que havia
morrido no hospício, abandonou o coração, um dia, a sua
fazenda no interior do país, trazendo para uma grande cidade do litoral,
em sua companhia, afim de esquecerem o golpe recente, os seus filhos e filhas.
Estes eram, ao todo, nove, sendo três homens - o Amor, o Pudor e o
Orgulho, e seis mulheres - a Fé, a Esperança, a Amizade, a
Coragem, a Caridade e a Hipocrisia.
Chefe de família descuidado, o
Coração esqueceu-se, na cidade, de fechar solidamente as portas
da casa, exercendo sobre os filhos uma vigilância constante e rigorosa.
Jovens e ambiciosos, era possível que os rapazes e, mesmo, as raparigas,
gostassem de divertir-se, de passear, de espairecer. E o resultado dessa
liberalidade paterna foi imediato: os filhos e filhas passavam a noite fora de
casa, atentando contra os bons costumes, com grande escândalo do
ancião, que nunca pensara, em sua vida, em semelhante vergonha para sua
velhice.
Horrorizado com tudo aquilo, resolveu o
velho remediar o mal, regressando, com a família, para as suas
propriedades, no alto sertão. E na hora da partida, reuniu os filhos,
chamando-os, um por um:
- Esperança?
- Pronto! - respondeu a moça.
- Coragem?
- Presente!
- Amor?
- Presente!
E assim chamou, obtendo resposta, e
metendo-os no trem, a Fé, a Amizade, a Caridade e o Pudor. Chegada,
porém, a vez dos dois mais velhos, gritou:
- Orgulho?
Ninguém respondeu.
- Hipocrisia?
O mesmo silêncio. Aflito, o pobre
pai procurou-os em torno, chamando-os aos gritos. E foi debalde. Nesse
instante, o trem apitou, anunciando a saída. O ancião correu, e
tomou o carro.
Momentos depois o trem partia, levando
para o interior do país a Esperança, a Amizade, o Amor, a
Coragem, a Fé, a Caridade e o Pudor, e deixando na cidade, apenas, o
Orgulho e a Hipocrisia.
AS GARRAFAS
20 de novembro
D. Eleonora havia mandado chamar o seu
primo, o Dr. Alfredo Bonifácio, para uma consulta íntima, sobre
diversos remédios que lhe haviam recomendado, quando abriram
inesperadamente o portão da casa.
- É o Augusto! - exclamou,
horrorizada, a pobre senhora, apanhando com o pente os lindos cabelos em
desordem.
E torcendo as mãos, aflita, a
andar de um lado para outro da sala de jantar:
- Minha Nossa Senhora! que horror! que
eu hei de fazer, meu Deus!...
E ia, já, nos extremos da
aflição, da angustia, do desespero, quando, abrindo a porta que
comunicava aquele compartimento com a cozinha, teve uma idéia
providencial:
- Esconde-te ali, Alfredo! Depressa!
anda! anda!
E empurrou o primo, com o chapéu
na mão, para dentro da despensa completamente às escuras.
O velho magistrado não era,
felizmente, homem de grande perspicácia, desses que advinham a passagem
de estranhos por obra e graça do indício mais simples. Casado em
segundas núpcias, confiava na mulher como confiava no Código. E
enganando-se, tanto com o Código como com a mulher, foi com a alma
tranqüila, calma, satisfeita, que penetrou em casa, naquela noite,
após uma palestra sisuda na residência do presidente do Tribunal.
Aberta a porta, o ilustre chefe de
família entrou, e, pendurando a cartola na chapeleira, sentou-se, grave,
à mesa do chá, ao lado da esposa carinhosa. E ia contar-lhe a sua
conversa com o outro sacerdote da Justiça, quando ouviu um barulho de
garrafas na dispensa
Que é isso? Ouviste, Eleonora? -
exclamou, assustado.
A mulher empalideceu, e ia, talvez,
comprometer-se com uma denúncia, quando o velho, ouvindo de novo o
barulho, se levantou de repente, encaminhando-se, firme, para a porta da
despensa.
- Quem está aí? - gritou
o magistrado, com o terror na garganta..
Na despensa escura, semeada de garrafas
de cerveja e águas minerais, a situação do Dr.
Bonifácio era delicadíssima. De pé, no meio do
compartimento, não podia, sequer, mexer-se. Cada passo que aventurava,
era um desastre, uma calamidade, que ia despertar, fora, com um rumor de vidros
partidos, a atenção do dono da casa. Ao terceiro barulho, o velho
tornou, severo, com o revólver em punho:
- Quem está aí?
E estava, já, resolvido a
conformar-se com o silêncio das vezes anteriores, quando uma voz surda,
cava, soturna, respondeu, de dentro:
- São as garrafas...
Satisfeito com a descoberta, o
magistrado embolsou o revolver, e voltou, sereno, a tomar o seu chá.
PELE CURTA
24 de novembro
Dize-me como dormes que eu te direi os
pecados que tens. É durante o sono, realmente, que a consciência
se revela. O sono agitado, aflito, repassado de gemidos e roncos, denuncia sempre
uma alma atribulada, um espírito perseguido de cuidados, um
coração atormentado pela consciência. A consciência
tranqüila, dorme com o corpo, irmanados num grande sossego reparador.
As mulheres que se revoltam contra os
maridos que roncam alto, não cometem, portanto, com isso, uma
injustiça. Um escritor já disse, uma vez, que a garganta de um
esposo, era, às vezes, a trombeta de Jericó, diante da qual
ruíam todas as ilusões da mulher. E a afirmação era
justa, porque é durante o sono que, adormecida a tirania da vontade, o
homem se manifesta, sonoramente, com todos os defeitos dissimulados durante o
dia.
Há, entretanto, casos
patológicos, que, embora não justifiquem uma
alteração do critério geral, servem, contudo, para
ilustrar, com uma variante curiosa, um capítulo sobre a matéria.
A fazenda de Santa Justina, no
município de Maricá, estava entregue, já, ao primeiro sono
compensador, quando bateram à porta do casebre do Antônio Luiz,
único, naquelas alturas, que ainda coava a luz da candeia pelos interstícios
das paredes, das janelas e dos portais.
- Quem é? - gritou, de dentro,
aborrecido, o dono da casa, juntando, com os dedos úmidos de saliva, as
cartas de um baralho espalhadas sobre a madeira de um tamborete.
- Sou eu! - respondeu, de fora, uma voz
desconhecida no lugar.
Aberta a porta, o Benedito Gamela, que
ia de viagem, explicou o seu desejo: queria pousada por uma noite, afim de
alcançar, no dia seguinte, a fazenda do Atoleiro, onde ia trabalhar na
apanha de café.
- Você não tem, por
aí, alguma moléstia pegadeira? - indagou o Antônio Luiz,
desconfiado.
- Eu? D'aonde, minha Nossa Senhora? Eu
nunca tive moléstia na minha vida. A doença que tenho, desde
pequeno, nunca fez mal a ninguém, graças a Deus.
- Que moléstia é essa?
- A minha? Eu sofro de pele curta.
- Pele curta? - estranhou o morador.
Não querendo, porém,
mostrar-se desconhecedor de certas novidades da medicina, Antônio Luiz
não insistiu: acendeu uma lamparina, foi ao compartimento
próximo, desenrolou no chão uma esteira de palha, e,
concluído tudo, convidou:
- Entre p'ra cá. A casa é
sua.
E encostando a porta, deitou-se na sala
próxima.
Dez minutos não se tinham
passado ainda quando o dono da casa deu um pulo, sobressaltado: do quarto do
hospede, onde a lamparina bruxoleava, desenhando visagens na parede, subia um
rugido de tempestade, que abalava o aposento.
- Camarada!... Camarada!... - chamou o
Antônio Luiz, empurrando a porta. - Que é isso? Você
está morrendo?
- Hein?... Hein?... - acordou o
caboclo, em sobressalto. - O que é?... O que é?...
- Você está roncando como
um trovão. Que é isso?
- É "pele curta",
homem. Eu não disse a você? - explicou o Benedito, estremunhado.
O outro não compreendeu, e ele
explicou:
- A minha moléstia é
essa: quando eu fecho os olhos, abro a boca. É por isso!
E, estirando-se na esteira, desandou,
de novo, a roncar.
MALITIA SEXUS
28 de novembro
Não obstante as teorias
espalhadas pelos moralistas modernos, a virtude máxima da mulher
será, sempre, o pudor. Afirmem embora que este não é um
aliado permanente da inocência, argumentando, para isso, com as
crianças e os selvagens; eu continuarei a considerá-lo a flor
mais mimosa da castidade e a atribuir à sua ausência a maior parte
dos venenos que dissolvem a sociedade e a família. Aos meus olhos, o
pudor está para a honestidade como o fumo está para o fogo.
Compreender honestidade sem pudor seria admitir fogo sem fumo.
Essa convicção não
é, entretanto, privilegio meu; e não foi sem alegria que li
há dias, em uma revista européia, a solidariedade de um eminente
magistrado francês, patenteada em uma lição oportuna, e
rigorosa, a algumas dúzias de senhoras parisienses.
Em um dos tribunais de Paris
debatia-se, em uma das últimas sessões do ano último, um
processo escandaloso, cujas peças documentais, que deviam ser lidas e
mostradas, atentavam, de modo clamoroso, contra a pudicícia das damas
que enchiam, naquele momento, a sala do tribunal. Constrangido ante aquele
publico feminino, o velho magistrado que presidia a sessão fez tilintar
o tímpano, pedindo atenção. Feito silêncio, o juiz
avisou:
- É dever meu, como magistrado e
chefe de família, comunicar às damas presentes neste recinto que
vão ser exibidos, aqui, alguns documentos do processo capazes de ferir
as susceptibilidades femininas. Nessas condições, eu peço,
pois, às senhoras pundonorosas que se afastem da sala, de modo que os
interessados possam discutir essas provas sem constrangimento.
A esse aviso, as sessenta ou setenta
senhoras presentes no tribunal entreolharam-se, consultando-se tacitamente. De
tantas, porém, duas, apenas, se levantaram, retirando-se, deixando-se
ficar as demais nos seus respectivos lugares.
Ao fim de dois minutos, o juiz indagou,
alto:
- Nenhuma das senhoras que se deixaram
ficar sentadas se mostrarão escandalizadas com as peças
repugnantes que vão ser exibidas?
Silêncio geral.
Ante essa resposta muda, o magistrado
enrubesceu, revoltado com aquele espetáculo de despudor, e, virando-se para
o comandante da força, ordenou:
- Chefe da guarda, mande pôr fora
da sala o resto das senhoras!
E a guarda cumpriu a ordem.
MME. LONDON BANK
30 de novembro
Contam as crônicas do
Império Romano que Mitridates, o famoso rei do Ponto, que enfrentou as
hostes de Sila, de Pompeu e de Lúculo, apanhou, um dia, de surpresa, um
general inimigo, e, para matar-lhe a fome de riquezas, fez-lhe derramar pela
garganta uma panela de ouro derretido. Incompletos nas suas
informações, os historiadores antigos não dizem, de modo
claro, como ficou a boca da vítima; a impressão que eu tenho, em
seguida a essas leituras, é, porém, que o general se tornou, com
isso, o grande antepassado de certas senhoras e cavalheiros do nosso tempo, e que
eu encontro diariamente na cidade, os quais transformaram a boca em Caixa de
Conversão, depositando alí, em obturações
dispendiosíssimas, grande parte da sua fortuna.
Felizmente, há, entre as
senhoras, espíritos esclarecidos, que movem, contra esse abuso, uma
campanha infatigável. Ainda ontem, uma destas beneméritas, D.
Clara de Souza Castelo, que me fora apresentada pelo Sr. Dr. Afrânio
Peixoto, me informava, preocupadíssima:
- Esta moda das dentaduras de ouro
está se desenvolvendo, Sr. conselheiro, como o senhor não
imagina.
E após uma dúzia de nomes
próprios, aludindo a pessoas notabilizadas por esse mão gosto,
assinalou, penalizada, uma ilustre dama atualmente em Petrópolis, cuja
boca é considerada, ali, pela quantidade de ouro que encerra, uma
verdadeira sucursal dos cofres do London Bank.
- E não é só a
falta de gosto, senhor conselheiro - acentuava a minha curiosa conhecida da
véspera. - O pior de tudo, é o perigo a que está exposta
uma criatura nessas condições. O senhor não conhece o caso
de D. Laurentina, mulher do Dr. Filomeno Miranda?
A minha resposta foi, como era natural,
negativa, e ela contou:
- D. Laurentina tem, como o senhor
sabe, uma grande fortuna, herdada do pai. Aos vinte e cinco anos, os seus
dentes começaram a estragar-se, e ela, que possuía dinheiro, mandou
obturá-los a ouro. E de tal maneira procedeu, que, hoje, possui a boca
inteiramente dourada! Quando ela fala, e os lábios se lhe descerram,
é um deslumbramento, um luxo de ouro, que se tem a impressão de
que se abriu, de repente, a porta grande da igreja da Candelária!
Eu tossi, estranhando a imagem, e Dona
Clara continuou:
- O pior, porém, era o que lhe
ia sucedendo. Imagine o senhor que, uma destas noites, ao regressar de uma
visita, o Dr. Filomeno percebeu que havia ladrão na casa. Corajoso,
hábil, experiente, empunhou ele o revolver, chamou os criados, e
começou a percorrer o palacete. No quarto de dormir, o jardineiro
abaixou-se, e olhou para debaixo da cama. E deu um grito, de horror e de
alarma. O ladrão estava lá, debaixo do leito, escondido!
Por essa altura, D. Clara tomou
fôlego, e reatou:
- Arrancado, à força, do
esconderijo, pelo pulso dos criados, o miserável não negou o
crime premeditado. Estava ali para roubar a fortuna da dona da casa!
- E estava armado? - indaguei, aflito.
- Estava, Sr. conselheiro, estava! -
acudiu a minha informante.
E, olhando para um lado e outro,
soprou-me, perversa, ao ouvido:
- Levava... um boticão!...
E soltou uma gargalhada sonora,
demorada, reboante, dessas que somente sabem dar, na terra, as mulheres de
dentes bonitos.
EFEITOS DO TANINO
1° de dezembro
Preocupado com a mocidade da sua linda
companheira e temendo, ao mesmo tempo, a decadência de tão
maravilhosa formosura, principalmente daquele admirável colo de neve, que
era o seu orgulho e que ela mostrava, contente, até aonde lhe era
possível mostrar, o coronel Epifânio Fonteneles procurou, uma
tarde, a proprietária de um famoso Instituto de Beleza, e expôs
claramente o seu caso. A Circe francesa ouviu-lhe a narrativa, compreendeu-lhe
os temores, percebeu-lhe as apreensões, e, com um sorriso nos
lábios artificialmente vermelhos, tranqüilizou-o:
- Pode ficar tranqüilo, coronel. O
preparado que possuímos para conservar a graça do busto, a
mocidade da pele, enfim, a beleza do colo, é infalível. É
uma loção adstringente, de efeito seguro e poderoso, que tem
realizado verdadeiros milagres. Basta dizer que entram nela, em dose
elevadíssima, a pedra-hume, a casca de romã, a folha de carvalho,
a casca de manga, enfim, todas as substâncias taninosas, que fazem
contrair e fortalecer a epiderme, conservando-lhe a juventude.
E retirando um vidro da prateleira:
- O senhor leva um vidro, e recomende a
madame que o use todos os dias. Toma-se de um pouco de algodão delicado,
molha-se no liquido, e umedece-se com ele a pele do colo, principalmente o
seio, cuja rijeza é preciso conservar. Deixa-se secar o liquido na pele,
põe-se uma ligeira camada de pó de arroz, e está feito o
remédio, e, com ele, a "toilette" do dia.
Balançando a cabeça a
cada informação, o coronel mostrou haver entendido bem, pediu
dois vidros da loção, pagou-os, recebeu-os, e tocou-se para casa,
onde os entregou à encantadora D. Ignezinha, a quem transmitiu, palavra
por palavra, todas as explicações.
No dia seguinte, à tarde, usado
o liquido de acordo com as instruções do marido, e enfiado o seu
vestido de decote mais longo e mais frouxo, desceu a linda senhora, sem colete,
afim de patentear melhor a graça do busto deslumbrante, para a sala de
visitas, onde já se havia feito anunciar, como um dos amigos mais
freqüentes da casa, o jovem engenheiro militar Dr. Epaminondas Rufino.
Pausado, meticuloso, disciplinado em
tudo, o coronel demorou-se ainda nos seus aposentos, vestindo-se para jantar.
Meia hora depois, ouviam-se os seus passos na escada, e, logo, em seguida, a
sua entrada no salão, onde madame sorria, discreta, contando uma
história qualquer ao capitão Epaminondas.
- Então, como vai essa bravura?
bradou, jovial, o velho coronel, estendendo a grande mão gloriosa, para
apertar a do amigo.
O engenheiro ia responder no mesmo tom,
mas, de repente, contraiu o rosto, empalideceu, e continuou mudo.
- Que é isto? Está se
sentindo mal? - tornou o coronel apreensivo.
O capitão fez um novo
esforço, com os músculos de todo o rosto, procurando descerrar os
lábios apertados, contraídos num espasmo da mucosa e, com uma
dificuldade horrível, quase com a boca cerrada, respondeu, apenas, num
sibilo, com a língua presa, dura, paralisada pelo tanino:
- Nun... tãnho... nada!
E ganhou a rua.
ZURTZ
4 de dezembro
Quando o professor Krause esteve no Rio
de janeiro, em 1920, falou-nos, a mim e ao seu colega Dr. Fernando de
Magalhães, em uma descoberta que estava revolucionando a fisiologia nas
vésperas da sua partida da Alemanha. Tratava-se de uma
comunicação feita à Academia de Ciências
Médicas, de Berlim, pelo professor Zurtz, de Munich, o qual havia
conseguido uma fórmula miraculosa para aumentar o crescimento do cabelo.
O poder desse preparado era tão prodigioso que, posto pela manhã,
o aumento constatado à tarde era de, pelo menos, meia polegada. Um
destes dias, ia eu pela Avenida, quando encontrei, com grande alegria de
coração e de espirito, o ilustre diretor da Maternidade, que me
foi, logo, perguntando:
- Conselheiro, lembra-se daquela
descoberta de que nos falou o professor Krause?
- Qual?
- A do professor Zurtz.
Eu fiz um esforço de
memória, remexi, com os dedos do pensamento, no escaninho cerebral das
minhas lembranças, e respondi afirmativamente.
- Pois, aquilo, - continuou o Dr.
Fernando - é um fato. As revistas francesas, italianas, alemãs e
inglesas que ultimamente recebi, falam, já, no prodígio.
- Deveras?
- É verdade. E com uma
circunstância mais: aperfeiçoando o seu invento, o professor Zurtz
conseguiu três modalidades do mesmo preparado, com diversas
aplicações. A primeira serve unicamente para o cabelo, o qual
pode crescer, com ele, dez centímetros por dia. A segunda é de
aplicação zootécnica: faz crescer em poucas horas, com
vantagem para a industria, a lã dos carneiros. E a terceira, destinada
à pecuária, faz nascer, com rapidez, os chifres aos bois, aos
cordeiros, às cabras e a outros animais que os tenham atrofiados. A esse
preparado deu o inventor o seu próprio nome, com diversas numerações:
n. 1, n. 2, e n. 3, como os produtos químicos de Mme. Selda
Potocka.
Nesse momento, um cavalheiro alto,
magro, calvo, que estava perto, aproximou-se de nós, e, pedindo
licença, indagou, respeitoso:
- Os senhores acreditam nisso?
O Dr. Fernando olhou-o de alto a baixo,
e confirmou.
- Pois, eu, - tornou o desconhecido,
sou uma prova da ineficácia desse remédio. Calvo, há
muitos anos, mandei buscá-lo, usei-o, e veja!
E descobriu o crânio irregular,
pelado como um ovo.
O Dr. Magalhães escorregou os
olhos pela cabeça do homem, franziu a testa, mordendo o dedo, com
aborrecimento. E, ao fim de um minuto, pediu:
- Diga-me uma coisa.
O indivíduo fitou-o.
- O senhor não tomou errado?
O careca desapareceu.
A CHUVA LUMINOSA
7 de dezembro
- Maravilhoso colar este seu, senhora
viscondessa; é pena que dê, aos meus olhos, uma
sensação de tragédia, embora de linda tragédia!
As senhoras voltaram-se, todas, para a
viscondessa de São Germano, e admiraram. Emergindo do vestido solferino,
graciosamente decotado, o seu colo parecia mais alvo do que nunca; e o que
realçava ainda mais essa alvura de leite era a graça de um colar
de rubis que lhe volteava o pescoço de linhas puríssimas, dando a
impressão de um crime sinistro, horrendo, brutal, que lhe fizesse
florescer a garganta de neve com um vivo círculo de gotas de sangue.
- É lindo, mesmo! - confirmou o
general Tasso Fragoso, assestando na jovem senhora o seu fortíssimo
"pince-nez" de míope.
- É um deslumbramento! -
asseguraram, ao mesmo tempo, o senador Azeredo e a baronesa de Pereira Alves.
Percebendo, perspicaz, a tortura a que
o seu galanteio estava submetendo a beleza honesta da viscondessa, o almirante
Ribas resolveu correr em seu auxílio, arrancando-a daquela deliciosa e,
ao mesmo tempo, angustiosa situação. E tentou:
- As pedras preciosas, aliás,
foram atiradas à terra para punição e
glorificação das mulheres.
As senhoras olharam-no sorridentes, na
certeza de mais um conto oriental do velho marinheiro, e ele; compreendendo o que
aqueles olhos lhe pediam, começou, acariciando o rosto escanhoado e cor
de rosa, coroado por uma fina cabeleira de prata:
- Antes do Dilúvio e do Pecado
Original, os astros que ornavam o céu tinham, cada um, a sua cor
peculiar. Sírios era verde, como as águas do oceano. Saturno era
de um azul pálido, como os olhos da Sra. condessa de Souza Furtado.
Marte era vermelho como o sangue. Júpiter, de um amarelo vivo. Netuno,
roxo. Urano, azul, forte. O Sol, cor de púrpura. E a Lua e Vênus,
alvas como a inocência.
- Devia ser lindo, o céu! -
comentou, encantada, a baronesa.
O general Tasso Fragoso aparteou,
erudito, contando que, de Marte, segundo Flamarion, ainda se viam
dessas paisagens celestes, e o almirante continuou:
- Resplendente de astros de todas as
cores, o céu era, em verdade, um deslumbramento.
Endireitou-se na grande
"maple" tauxiada de prata, e contou:
- Uma tarde, vinha o Onipotente por uma
das alamedas do Paraíso, quando se lhe deparou um quadro revoltante:
abraçados, trêmulos, conscientes do próprio crime,
Adão e Eva escondiam-se, horrorizados de si mesmos, entre as
árvores enormes daqueles primeiros dias da Criação.
Compreendendo, na sua sabedoria, o que havia sucedido às duas
fragilíssimas criaturas a que pretendera conceder a graça da imortalidade,
trovejou o Senhor que eles abandonassem, de pronto, os limites do Éden.
Súplices, os réprobos imploraram perdão, pedindo
clemência. A resposta foi, porém, uma ordem severa, brutal,
imperiosa, para que o anjo Gabriel manejasse a sua espada de chama. E, enquanto
isto acontecia, deu-se, de súbito, o milagre deslumbrante: a um gesto do
Senhor, os astros todos começaram a lançar sobre os perseguidos
uma chuva de fogo, como aquela que destruiu, mais tarde, Gomorra e Sodoma, a qual,
desfeita em gotas de todas as cores, em pingos luminosos de todas as
cambiantes, fustigavam, numa apoteose terrível e magnífica, a
sublime fraqueza dos dois pecadores!
As senhoras fitavam, mudas e
encantadas, o delicioso narrador, e este continuou:
- Essas gotas de fogo, tombadas na
terra poluída pelo pecado, coagularam-se, cristalizaram-se,
consolidaram-se.
Firmou as mãos no apoio da
"maple" e, fazendo menção de erguer-se, concluiu:
- E apareceram na terra, minhas
senhoras, as ametistas, os diamantes, os topázios, as opalas, os
berilos, as esmeraldas, as safiras, as turmalinas, os rubis, essas gotas de
fogo, em suma, que são, pelo desejo que vos despertam e pelo realce que
vos dão à beleza, a vossa glória e o vosso castigo!
E levantou-se, entre palmas.
PEDRAS PRECIOSAS
12 de dezembro
Segurando o almirante pela manga da
casaca impecável, a baronesa forçou-o a sentar-se, de novo:
- Não, senhor, não pode
ir; tem que contar-nos, agora, a virtude de todas as pedras preciosas exibidas
pelas senhoras que aqui se acham.
- Eu? - obtemperou o ilustre
marinheiro, levando a mão clara ao peitilho espelhante da camisa:
- Sim, senhor. É este o seu
castigo.
E imperativa:
- Sente-se!
Generalizada, de novo, a palestra, a
viscondessa de São Germano indagou, com sincero interesse:
- É verdade, almirante é
certo, mesmo, que a ágata é "porte-malheur"?
- É verdade, afirmam isso... -
acrescentou Mme. Sampaio Gomes.
O almirante contestou:
- É uma invenção
recente, essa, D. Violeta. Os antigos, pelo menos, não dão
notícia dessa propriedade. Plínio, que a ela se refere
longamente, atribui-lhe a virtude de tornar os atletas invencíveis. Os
egípcios indicavam-na como infalível contra mordedura das
víboras, dizendo-se, mesmo, que as águias a colocavam no ninho
para afugentar as serpentes, que lhes perseguiam os filhos.
- E o rubi? - indagou a baronesa.
- O rubi é a pedra dos
espíritos esclarecidos. Teofrasto aponta-o como um dos incentivos
misteriosos da inteligência, circunstância que a levou, ao que
parece, a ser adotada como pedra simbólica dos bacharéis. Outros
acreditam que ele preservava contra a peste, contra os venenos, e contra outros
perigos da vida. É, mais ou menos, como a esmeralda.
- Como a esmeralda?
- Sim. A esmeralda fortalece,
também a inteligência, e cura, segundo Plutarco, as mordeduras de
cobra. Alberto, o Grande, recomendava-a contra a epilepsia e Cornélio
Agripa contra as hemorragias.
Foi por essa altura que a encantadora
D. Ritinha, que até então se limitara a sorrir, fazendo companhia
ao contentamento dos outros, aventurou, cândida:
- Mas, há pedras portadoras de
desgraças; não há, senhor almirante?
- Dizem que a opala é desse
número, minha senhora; mas eu não creio.
- Não crê?
E entre a atenção geral:
- Pois, olhe, há dois anos, meu
marido ia sendo vítima de uma dessas pedras de mau agoiro. Esteve muito
mal!
- E que pedra foi essa? Pode-se saber?
A moça não lhe sabia o
nome; a baronesa correu, porém, pérfida, em seu auxílio:
- Era o carbúnculo; não
era, Dona Ritinha?
A jovem senhora, desabituada
àquele meio super-civilizado, bateu com a cabeça, confirmando,
ingênua, a horrenda perversidade:
- É isso mesmo; era o
carbúnculo. E compadecida:
- Quase ele morre, coitado!...
O BRAVO
15 de dezembro
Pai de uma menina que era um encanto, o
coronel Peregrino encontrara na vida, pela primeira vez, uma dificuldade que
lhe detivera o passo: o casamento da filha, a escolha de um noivo digno, bravo,
correto, entre os jovens oficiais da guarnição. Três tenentes,
nada menos, disputavam-lhe a mão, e era essa rivalidade, exatamente, que
dificultava a solução do problema. Todos eram galantes rapazes e
elegantíssimos oficiais, e, como a pequena se não decidisse por
si mesma, o caso era atirado, inteiro, à delicada responsabilidade do
pai.
Certo dia, reunida no quartel a
oficialidade da guarnição, chamou o coronel à parte os
três jovens tenentes, e, torcendo marcialmente, com as duas mãos,
as fortes guias do bigode grisalho, propôs, severo:
- Eu sei que os senhores, os
três, têm paixão pela minha filha, cuja mão já
me pediram
- Perfeitamente! - exclamou o tenente
Coimbra.
- Perfeitamente! - confirmou o tenente
Torres.
- Perfeitamente! - concordou o tenente
Samuel.
- Nesse caso - tornou o coronel - vou
submetê-los a uma prova.
E ordenou; para dentro:
- Cabo Matias, prepare a metralhadora.
O inferior puxou a maquina para o
pátio, mexeu nas munições, remexeu nas ferragens, e
avisou:
- Pronto, Sr. coronel.
O velho militar examinou a arma e,
vendo que tudo ia bem, tomou os rapazes pelo braço, colocou-os a seis
metros do aparelho mortífero, e ordenou, com voz de comando:
- Um!... Dois!...
E ia dar o último sinal para
descarga da metralha, quando dois vultos pularam, rápidos, num movimento
de terror, colocando-se fora do alvo.
- Covardes! - trovejou o coronel. E
eram estes pusilânimes que pretendiam a mão da minha filha!...
E dirigindo-se ao terceiro, que se
não afastara do lugar:
- O senhor, sim, é um bravo! A
menina é sua!
E, estendendo-lhe a mão:
- Venha daí; vamos ver a sua
noiva.
O oficial detinha-se, porém,
imóvel.
- Vamos, homem! - insistiu.
O tenente olhou para um lado, olhou
para outro, e, afinal, confessou:
- Posso lá o que! Se eu pudesse
sair daqui, eu tinha corrido!
E para o soldado:
- Matias, empresta-me a tua
calça?
CXVI
18 de dezembro
A estação de
Carirí, na Estrada de Ferro de Sobral, no Ceará, é
separada da Serra Grande, ou da Ibiapaba, por dez ou doze léguas de
planície, onde se estendem as caatingas uniformes e pedregosas, ou se
levantam, aqui e ali, os outeiros cinzentos, ásperos, desertos,
inteiramente despidos de vegetação. A falta de açudes ou
de lagoas e, mesmo, a pequena fertilidade das terras, tornou alí menos
densos, e menos próximos, os núcleos humanos. As fazendas
são mais raras, e os povoados mais distantes, vendo-se, apenas,
quebrando aquela monotonia, de légua em légua, pequenos grupos de
reses, que se disputam, melancólicas, os poucos recursos de pastagem.
Contrastando com esse panorama
desolador, que a impiedade do sol torna mais triste, surge, porém, de
repente, aos olhos de quem viaja, um ramalhete de verdura, um breve
oásis em que as arvores se aglomeram, e que se conservam permanentemente
viçosas, como aqueles plátanos da Arcádia que protegeram
os primeiros amores de Zeus. É alí, nesse breve refrigério
da natureza, que os vaqueiros e transeuntes repousam da travessia sertaneja,
descansando na terra o bordão de caminheiro ou amarrando nos troncos,
à sombra dos juazeiros e das oiticicas, as velhas alimárias
fatigadas.
- Que bosque é este? -
perguntei, um dia; diante dessa paisagem curiosa, à simplicidade do meu
guia, um caboclo serrano, moreno, forte, de alma de criança e
pescoço de touro.
- Aqui? Aqui é a mata do
Nicolau.
- E esse Nicolau, mora aqui? -
indaguei.
O caboclo sorriu, zombeteiro, e
explicou:
- Não mora, não, senhor;
já morou.
O caso, como era natural, intrigou-me,
e, como eu insistisse, o caboclo sentou-se no alforje, que atirara ao
chão, e contou-me, enquanto almoçava o seu pedaço de
queijo fresco, a maravilhosa história daquela paragem.
- Antes da seca de 77 - começou
- havia neste lugar uma povoação, que vivia, com a graça
de Deus, na maior fartura. Então, não havia estas árvores.
Tudo isto era campina; caatinga, chapadão, como lá fora. A gente
era muito ativa e decidida, e, como a terra fosse boa, não faltava nada.
Com a Seca Grande, porém, veio a fome, a miséria, um horror. O
povo, fiado em Deus, e
- E quem era esse Nicolau? -
interrompi.
- Espere lá, já lhe digo.
Esse Nicolau era o sujeito mais respeitado do lugar. Sério como ele
só. A mulher, D. Felismina, era uma santa. Não perdia missa, nem
novena, nem ladainha, e ia até o Carirí, sozinha, para ouvir a
Santa Missão. E como era ainda o menos pobre, foi o Nicolau encarregado
de resolver o caso, em nome dos companheiros de desgraça. Devoto como era,
resolveu ele pedir o auxílio de São Filomeno, e meteu-se, nessa
mesma noite, na capela, trancado. Trancou-se, rezou muito, e, lá pela
madrugada, dormiu. E foi aí que se deu o milagre.
- Milagre?
- Sim, senhor. Diz ele que, assim que
pegou no sono, viu São Filomeno descer do altar, e ir crescendo;
crescendo, até que ficou do tamanho de um homem. Depois, aproximou-se
dele, e disse: "Nicolau, o povoado vai ser reduzido a cinza porque, todos
nele são pecadores. As mulheres, então, já estão
mais degradadas do que as galinhas do teu terreiro e do que as cabras do teu
serrote!" - "É possível, senhor?!" - exclamou
Nicolau, espantado. O santo não entrou, porém, em
explicações, limitando-se a dizer: - "Olha, Nicolau, o
momento não é para vinganças nem para derramar sangue de
cristão. Mas eu vou te dar elementos para apurar a verdade. Toma, -
disse, entregando-lhe dois punhados de caroços; - toma estas sementes, e
distribui, uma a uma, pelos homens casados do povoado, para que eles plantem
à porta da sua casa. Depois, fujam, abandonem o lugar, a capela, tudo,
porque a seca vai continuar ainda por dois anos. Ao fim desse prazo, voltem, e
examinem: na porta daqueles cujas mulheres os tenham traído, estas
sementes terão nascido; e só não nascerão, Nicolau,
na porta daquele cuja mulher nunca o tenha enganado!" O homem cumpriu a
recomendação do santo, distribuiu as sementes pelos companheiros,
plantaram, e fugiram para o Amazonas. Anos depois, voltaram.
- E então?
- E então? Então,
encontraram este bosque verde, viçoso, que nunca mais morreu!
- Nasceu, então, até a
semente da porta do Nicolau?
O caboclo sorriu, e atendeu:
- A porta do Nicolau era ali.
E indicou um pé de jatobá
imenso, largo, robusto, cuja copa dominava o oásis e guiava, de longe,
os viajantes que transitam, hoje, entre a frescura da Serra Grande e a
estação da Estrada de Ferro, nos sertões do Carirí.
O JAVALI DE CALYDON
23 de dezembro
Amigo íntimo do casal, o Dr.
Fernando Magalhães tinha a vantagem, que o bairro inteiro invejava, de penetrar,
a qualquer hora do dia, sob qualquer pretexto, ou sem pretexto algum, no
gracioso palacete do engenheiro Alfredo Scholl, nos fins da Avenida
Atlântica, ao lado da montanha e diante do mar. Pessoa de
confiança, o Dr. Fernando conversava alguns momentos com a encantadora
dona da casa, que lhe dava o prazer de, minutos depois, colocá-lo
à sua frente, na pequenina mesa de chá, com serviço para
dois. E, como o ilustre médico dispõe de uma cultura variada, bebida
na ciência de toda ordem e na literatura de todo gênero,
sucedeu-lhe, naquela dia, lembrar-se, a propósito de um incidente comum,
da triste fábula do rei Anceo, que tomou parte, como se sabe, na famosa
expedição dos argonautas.
- A senhora não conhece,
então, essa história fabulosa, D. Alaíde? indagou, gentil,
o ilustre ginecologista.
A moça levou a xícara de
porcelana chinesa aos lábios mais delicados e vermelhos que a porcelana
da xícara, e, com a boquita cheia, e uma torradinha entre os dedos,
pediu:
- Não; conte-ma.
E, sorrindo, com tentação:
- Conte-ma; sim?
O ilustre médico fitou-a, com os
olhos doces, e começou, com simplicidade, mas com graça:
- De regresso da Colchida, aonde havia
ido com os outros príncipes gregos, governava Anceo o seu povo da
Arcádia, quando, certo dia, um escravo lhe disse, à mesa, que ele
nunca mais beberia vinho da sua vinha. Soberbo e incrédulo, Anceo achou
espírito na predição, zombando da palavra do servo. E,
para demonstrar a sua incredulidade, ordenou, de pronto, ao escravo:
- Traze-me vinho da minha vinha! Queres
ver como o bebo?
O escravo trouxe-lhe uma taça de
ouro transbordante, e entregou-a ao senhor.
- E agora, que te disse eu? - observou
o monarca.
- O que eu sei, meu senhor, - retrucou
o servo, curvando-se, - é que entre o copo e a boca ainda medeia um
espaço que pode ser, talvez, uma eternidade!
Anceo sorriu, na sua arrogância,
e ia levantar a taça de vinho fervente, quando a guarda apareceu, de
súbito, em tumulto, à porta do grande salão.
- O javali de Calidon, meu senhor! -
gritavam todos, alarmados; - o javali de Calidon acaba de entrar na vossa
vinha!
Abandonando a taça, antes de
levá-la aos lábios, o soberano atira-se, de um salto, sobre a sua
lança, sobre o seu escudo, sobre a sua espada, ordenando, ao mesmo
tempo, que as buzinas convoquem, sonoras, os guerreiros da vizinhança.
E, precipitando-se para o vinhedo, enfrenta, alí, sozinho, a fera
formidável, a qual se atira contra ele, ferindo-o, matando-o,
estraçalhando-o, de modo que se cumpriu o que dissera o escravo, o qual
assegurara que ele não chegaria aos lábios, apesar de tê-lo
nas mãos, o vinho da sua vinha!
Com o queixo de mármore na curva
da mão pequenina, debruçada sobre a toalha de linho bordado, D.
Alaíde ouvia, embevecida, de olhos semicerrados, a palavra do narrador,
que se debruçara, também, no seu rumo, para falar-lhe melhor. De
rosto a rosto não havia mais, talvez, que a distância de um palmo,
quando bateram, de leve, na porta que dava para o terraço, a qual se
achava trancada à chave. Pé ante pé, D. Alaíde vai
até à vidraça e espia, sem ser vista.
- Quem é? - indaga, em segredo,
o Dr. Fernando.
E a moça, à meia voz, com
a mãozinha junto da boca:
- É o javali!...
AUTOS E
"TAXIS"
27 de dezembro
Com o pensamento, talvez, de
aperfeiçoar a raça, já de si tão robusta e formosa,
votou o Parlamento uruguaio um projeto de lei determinando às
autoridades que não realizem mais casamentos sem que os noivos se tenham
submetido, com resultado negativo, à reação de Wasserman.
Acham os legisladores de Montevidéu que a mulher constitui para os
homens uma cruz, e foi com pena deles, provavelmente, que se tomou a
providência. Que seria, em verdade, do mortal que tomasse aos ombros a
cruz da família depois de ter duas, ou três, constatadas num
paciente exame de sangue?
Vindo de uma época
excessivamente escrupulosa, em que os pais dos namorados sindicavam das
condições sanitárias dos antepassados até à
quinta geração, e em que os próprios noivos tomavam um purgativo
de óleo de rícino oito dias antes do casamento, - eu não
podia ser contrário à humanitária medida promulgada pelo
governo do Uruguai. O meu espírito faltaria, entretanto, ao seu dever de
sinceridade, aos hábitos de franqueza incondicional, se não
confessasse o temor, que tenho, de que essa exigência venha reduzir, ali,
o número de casamentos.
O casamento é, realmente, hoje,
encarado por um prisma original, que degrada, é certo, a mulher, mas
reintegra a espécie na natureza, permitindo-lhe a
realização do seu verdadeiro destino. Dessa teoria, dava-me,
ontem, uma perfeita imagem industrial o Sr. Roberto de Aguiar, agente de
pneumáticos americanos, ao explicar-me, sem constrangimento nem entraves
na língua:
- O casamento só pode ser
julgado com segurança Sr. conselheiro, por pessoa que já teve
automóvel. A esposa ou o esposo definitivo é, para o homem ou
para a mulher, uma espécie de automóvel particular. E nada
há no mundo, como o senhor sabe, que, como um automóvel particular,
dê tanto trabalho: um dia, é uma peça que falta; no outro,
é a gasolina; mais tarde, é a capota, que está estragada.
O dono de um automóvel vive a fazer despesas todos os dias, a
incomodar-se a todo instante, e, quando mais precisa do carro, tem a noticia de
que ele não pode funcionar!
Eu encarei o homenzinho, disposto a
deixá-lo, àquela hora da madrugada, na primeira esquina da
Avenida, e ele continuou:
- Com a amante, ou o amante,
não; o amante, qualquer que seja o sexo, é o "taxi" do
coração: a gente toma-o, paga-o, e salta onde entende, sem perguntar,
sequer, o nome da "garage". Marido ou amante, auto particular ou
"taxi", que importa à mulher, ou ao homem, a espécie do
veículo, se ele faz a viagem da mesma maneira? E isso com a vantagem de,
ao abandonar o carro, não ter passageiro que se incomodar com o estado
do motor, nem com a qualidade dos lubrificantes.
Nesse momento, soavam,
monótonas, em uma torre da Avenida, três badaladas
metálicas, quebrando o silêncio da noite, quase acabada:
- Três horas! - espantou-se o
major Afonso Gomide, que ia conosco. - Vamo-nos?
O agente americano estendeu os olhos
pela Avenida deserta, e lamentou:
- Sim, senhor! Nem um
"taxi"!... E agora?
- Vamos no meu automóvel, -
convidou o major, fazendo sinal ao seu "chauffeur".
Desabituado desses luxos, eu continuei
o meu caminho, a pé...
"GIGOLÔ"
29 de dezembro
Na pequena mesa redonda, em que havia
lugar para três, D. Georgina comentava com a liberdade das suas maneiras,
o capítulo de uma revista parisiense sobre um termo de
criação recente, que tem, já, uma aplicação
universal.
- Eu não sei, nem compreendo,
afinal, a prevenção contra esse vocábulo.
- Que vocábulo, minha senhora? -
inquiri, intrigado.
- Que vocábulo? O
"gigolô", masculino de "gigolete", que toda a gente
emprega, hoje, nos salões, nas festas, nos passeios, nos cinemas, sem o
menor constrangimento. Uma das minhas amigas, Mme. Perez, tem uma cadelazinha a
que deu o nome de "Gigolete", e chama-a por essa forma, em qualquer
parte, sem o menor escândalo dos que a ouvem. As moças, hoje,
andam à "gigolete", vestem-se à "gigolete",
fantasiam-se de "gigolete" no Carnaval, e dizem-no sem
rebuços, sem temores, sem que se engasguem com a aspereza da
expressão. Não se pode, entretanto, falar em
"gigolô", nem, mesmo, entre íntimos, sem que haja uma estranheza,
um arrepio em todas as almas, principalmente nas que se dizem limpas de pecado.
Por que essa diferença, essa disparidade, essa prevenção?
Eu olhei o Dr. Moraes, esposo da
ilustre senhora, e, como o visse impassível, dirigi-me à mulher:
- E que é
"gigolô", D. Georgina?
- O senhor, então, não
sabe, conselheiro? Não sabe, mesmo?
E como lesse a ignorância
estampada na minha fisionomia, explicou, virando-se para mim:
- "Gigolô" é o
indivíduo adorado por uma mulher que tem outro homem que a ama, e que
ela sustenta, à custa do último. Geralmente moço, o
"gigolô" é tratado pela mulher que o adora com todos os
requintes da paixão. Para ele são os seus melhores beijos, os
seus melhores mimos, os seus maiores cuidados. O marido, ou o amante,
ordinariamente idoso, fornece-lhe tudo, cercando-a de conforto, de luxo, de
abundância, à custa, às vezes, dos maiores
sacrifícios. Ela passa, entretanto, tudo isso ao "gigolô",
que é, enfim, o único a lucrar com os amores e com o trabalho do
outro.
CEFALALGIA
31 de dezembro
A maior ambição de D.
Tereza, desde que lhe morrera o marido, consistia em casar a sua filha
única, a encantadora e risonha Edelmira, com o Zézinho,
acadêmico de engenharia e filho único, também, do seu
irmão Samuel. Criados juntos, quase como irmãos, os dois primos
votavam-se uma estima sincera, profunda, inquebrantável, que o amor
havia consolidado. E era este sonho máximo da sua vida que D. Tereza
acabava de realizar, naquela dia, ao ver chegar à casa, de regresso da
igreja, o cortejo nupcial, de que a Edelmirinha se apeava, com os olhos
vermelhos de pranto feliz, entre punhados de flores que lhe atiravam, sorrindo,
as suas amiguinhas da vizinhança.
Não querem. Entretanto, os deuses,
que a felicidade seja duradoura, nem eterna. No céu azul de uma vida sem
cuidados, há de passar, sempre, uma nuvem cinzenta, que interrompa a
continuidade da ventura. E era nisso que pensava D. Tereza, após o
jantar íntimo oferecido aos convidados, quando lhe foram dizer, na copa,
que o Zézinho se estava sentindo indisposto.
- Que é, meu filho, que é
que você tem? - correu a boa senhora, aflita, com a angústia
estampada no rosto, a indagar do rapaz.
- Não é nada,
mãezinha, não é nada; não se aflija! - pedia ele,
pálido, ao lado da noiva.
O caso era, entretanto, de molde a
originar preocupações. Sustentando a cabeça nas
mãos, o moço não podia disfarçar mais a dor
horrível que lhe estalava o crânio, modificando-lhe, pela violência,
a serenidade da fisionomia.
- Meu Deus! que será isto! Que
terão feito ao Zéca, minha Nossa Senhora?...
E, agoniada, a andar de um lado para
outro da casa:
- Isso foi inveja! foi
feitiçaria! foi mau olhado que puseram nele! Meu Deus, tende piedade de
mim!...
Na sala, a desorientação
não era menor. Cada pessoa presente recomendava um remédio, uma
droga, um recurso caseiro.
- Dê um escalda-pés, D.
Edelmira, - aconselhava uma senhora gorda, montanhosa, que se abanava,
paciente, com um grande leque de plumas. - Dê um escalda-pés, que
é um santo remédio!
- Um chá de erva-doce, Dona
Tereza; faça um chá de erva-doce bem forte! - intervinha outra
dama, professora pública, jubilada. - Isso é estômago, com
certeza!
Iam as coisas por essa altura, quando o
Dr. Álvaro Osório de Almeida, que havia sido padrinho do
casamento, interveio, acalmando tudo:
- Isso não é nada;
deixem-se de aflição, de barulho, de agonia. É uma
enxaqueca sem importância, que se trata em uma hora. O essencial é
o repouso.
E para D. Tereza:
- Dê-lhe uma cápsula de
aspirina, e deixem-no descansar um pouco. Dentro de uma hora, estará
bom. O que é indispensável, é que ele descanse, repouse,
fique à vontade.
E dando, ele próprio, o exemplo,
tomou o chapéu, despediu-se dos recém-casados, e retirou-se,
sendo acompanhado, nisso, pelos outros convidados.
Esvaziada a sala, o noivo tomou a
cápsula recomendada, e, despedindo-se da tia, recolheu-se, com a noiva,
à alcova nupcial.
Meia hora depois, toda a casa entrava
- Zéquinha?... Zéquinha?...
E, com doçura:
- A cabeça passou, meu filho?
O silêncio, no quarto, era
completo, perfeito; absoluto. Ninguém respondeu. Com o seu
coração de mãe, D. Tereza compreendeu tudo, e soltou um
suspiro de alívio. O Zéquinha estava bom. A cabeça, com
certeza, havia passado...
Núcleo de Pesquisas
em Informática, Literatura e Lingüística