LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Histórias da avozinha, de Figueiredo Pimentel
Edição de base:
Biblioteca Virtual Brasileira
Livro para crianças
Contendo cinqüenta das mais célebres, primorosas,
divinas e lindas histórias populares, morais e piedosas (todas diferentes dos
outros volumes de contos pertencentes a esta biblioteca), colecionadas umas,
escritas e traduzidas outras por
ÍNDICE
Pela terceira vez editamos um livro de contos para
crianças.
Animou-nos tal cometimento o extraordinário sucesso
dos anteriores – Contos da carochinha e Histórias do arco da velha
– que obtiveram êxito extraordinário, raro, nos anais da livraria brasileira.
Em verdade, ambos esses livros – dizemo-lo com
orgulho – vieram preencher sensível lacuna: neles estão reunidos muitíssimos
contos populares, que andavam espalhados exclusivamente na tradição oral,
passando de geração em geração, sem no entanto nunca haverem sido colecionados
escritos.
Continuamos hoje a série tão auspiciosa e
brilhantemente encetada, publicando este terceiro volume – Histórias da
Avozinha.
Estamos certos que o presente
livro, alcançará o mesmo estrondoso sucesso dos dois antecedentes, porque
encerra novos contos, a maior parte inteiramente inéditos, e que não estão
enfeixados nas Histórias do arco da velha, nos Contos da carochinha, ou
qualquer outra coleção nossa, ou das que ultimamente têm feito aparecer a
inveja e a imitação dos exploradores de idéias e trabalhos alheios.
As crianças brasileiras, às quais destinamos e
dedicamos esta série de livros populares, encontrarão nas Histórias da
Avozinha agradável passatempo, aliado a lições de moralidade, porque tais
contos encerram sempre um fundo moral e piedoso.
E, só com a satisfação que
experimentamos de sermos úteis aos nossos jovens patrícios, damo-nos por bem
pagos de nosso trabalho.
Rio de Janeiro, 1896.
André, o bom Andrezinho, menino querido e estimado
por todos que o conheciam, achava-se desesperado, banhado em lágrimas, aflito,
porque sabia que o seu extremoso pai estava nos paroxismos finais da vida.
Só ele velava no pequeno e desguarnecido aposento
onde jazia o moribundo. A lamparina acesa derramava amortecida claridade. Era
noite alta.
De súbito, o velho, quebrando o silêncio, falou:
— Sempre foste bom filho, André, e, por isso Deus
te ajudará na tua peregrinação pela terra.
Depois, olhou tristemente o filho, pela última vez;
fechou os olhos para sempre e expirou. Estava morto, mas parecia dormir apenas
um sono doce, calmo, tranqüilo, porque morrera serenamente, como um justo, que
sempre fora.
André, compreendendo a terrível realidade, chorava
amargamente. ajoelhado junto à cama, tendo entre as suas as mãos do seu amado
morto, beijando-as com todo respeito, deixou-se ficar na mesma posição, sempre
a chorar, até que, vencido pelo sono, exausto de fadiga, adormeceu.
Sonhou. Viu o Sol e a Lua inclinarem-se diante
dele. Viu o velho, de perfeita saúde, sorrindo-se, alegre como outrora, nos
seus dias de bom humor. Uma encantadora mocinha, tendo uma coroa de ouro sobre
a bela cabeça ornada de louros cabelos, estendia-lhe a mão, enquanto seu pai
lhe dizia: “Eis tua noiva, André. É a moça mais formosa do mundo inteiro”.
O menino despertou.
A agradável e radiante visão havia desaparecido.
Ninguém se achava a seu lado: no quarto, só estavam ele e o cadáver.
No dia seguinte enterraram o morto. André
acompanhou tristemente o enterro, lembrando-se que nunca mais havia de ver
aquele a quem ele tanto amara, e por quem tanto fora amado. Ouviu o som da
terra caindo sobre o caixão; ouviu os cantos suavíssimos das preces rezadas. E
chorou. As lágrimas fizera-lhe bem, aliviando-o.
Olhou em torno de si. O sol brilhava
majestosamente, dourando as árvores verdejantes, como se quisesse dizer-lhe:
“Consola-te, Andrezinho, contempla este céu, tão azul, tão sereno! É nele que
está teu pai rogando a Deus para que sejas eternamente feliz.”
E, ali mesmo, no cemitério, o mocinho protestou
consigo mesmo:
— Prometo que serei sempre bom, porque quero
reunir-me, um dia, a meu pai, que está no céu.
Em seguida, tendo ajoelhado e rezado mais uma vez,
no sepulcro do seu querido morto, retirou-se para casa, ainda triste, porém,
resignado, consolado.
***
Alguns dias mais tarde, André resolveu abandonar a
sua aldeia natal, para correr mundo em busca de trabalho.
Firmemente resolvido a executar esse projeto,
arrumou a sua trouxa, vendeu as poucas coisas que o velho deixara, conseguindo
reunir apenas cinqüenta mil-réis, e pôs-se a caminho, tendo ido primeiro ao
cemitério despedir-se do seu querido morto.
Por muitos e muitos dias caminhou ele, sempre em
frente, atravessando planícies, montes, vales, florestas e aldeias.
Por toda a parte, onde quer que chegasse, todos o
acolhiam efusivamente, simpatizando à primeira vista com a sua fisionomia
expansiva, leal, franca, honesta. E ninguém lhe recusava hospedagem.
Outras vezes, porém, longe dos povoados, quando a
noite baixava, dormia ao deus-dará, quer em pleno campo, ao relento, quer
abrigado em algum velho tronco de árvore anosa. Não receava as feras, os
animais, os bichos venenosos, acolhendo-se sob a proteção de Deus.
Um dia jornadeava ele por uma extensa campina. Ao
cair da tarde o tempo mudou bruscamente; enfarruscou-se o céu, coberto de
grossas nuvens negras. Ameaçava chuva. Trovões ribombavam. Relâmpagos
cruzavam-se nos ares.
Ao longe, muito longe, erguida sobre um pequeno
outeiro, alvejava uma capelinha.
André correu para ela; e, vendo a porta aberta,
entrou, para fugir ao temporal, que acabava de desabar.
Ajoelhou-se a um canto, fez a sua oração e
adormeceu.
Pelo meio da noite, despertou. A tempestade
cessara. A noite tornara-se calma. Pela porta aberta, o luar entrava,
iluminando a igrejinha.
Foi só então que o rapaz reparou: no centro da nave
estava um esquife aberto, com um cadáver, que não haviam tido tempo de inumar.
Não teve medo porém, pois sabia que os mortos não voltam; e que só os vivos fazem
mal, quando são maus.
Depois de fazer uma breve oração, por alma daquele
finado, ia de novo adormecer, quando ouviu barulho de passos. Ato contínuo,
entraram dois homens: dirigiram-se para o caixão, e fizeram menção de carregar
o corpo.
— Que querem os senhores com esse morto? perguntou
o mocinho, intervindo. Deixem-no em paz, pelo amor de Deus!...
— Não, respondeu um dos dois malfeitores: Vamos
atirá-lo fora, para servir de pasto aos urubus, porque ele nos devia dinheiro e
morreu sem nos pagar.
— Ignoro a quanto montava a dívida, disse o moço.
Toda a minha fortuna é cinqüenta mil-réis. De bom grado lhos darei, se os
senhores prometerem que não exercerão tão mesquinha vingança.
— Pois sim, concordaram os dois perversos. Já que o
senhor paga por ele, deixa-lo-emos apodrecer sossegadamente.
André deu-lhe o dinheiro, e os malvados
retiraram-se.
Ao amanhecer, o generoso mocinho saiu da igreja, e
prosseguiu na jornada, embrenhando-se numa floresta que viu em frente.
Tendo-a atravessado, ao cabo de alguns minutos
encontrou um rapaz, pouco mais ou menos de sua idade, que lhe perguntou:
— Para onde se dirige você, camarada?
— Vou por esse mundo em fora, até encontrar
trabalho, respondeu Andrezinho.
— Então vamos juntos, que eu sigo o mesmo destino,
disse o outro. E perguntou sem seguida: como te chamas?
— André... e tu?
— Miguel.
Os dois moços caminharam lado a lado, ambos
alegres, ora rindo, ora cantando, conversando, despreocupados dos prazeres da
vida e das fadigas da jornada.
Era dia alto, quando pararam para almoçar, à sombra
de uma frondosa árvore, dividindo irmãmente o farnel que cada um trazia.
Pouco depois viram passar, a alguma distância do
lugar em que se achavam, uma velhinha, muito velha, encarquilhada e trêmula,
carregando um molho de lenha que havia catado na floresta. Curvada àquele peso,
a custo caminhava a pobrezinha.
De súbito, a velha escorregou, e caiu no chão,
soltando gritos lamentosos. Os dois companheiros correram prontamente em seu
socorro, tentando levantá-la. Viram porém, que a infeliz havia fraturado uma
das pernas.
André propôs carregá-la até a casa, mas Miguel
sossegou-o. Tirou do bolso uma pomada, esfregou no lugar fraturado, e a
velhinha depressa ficou curada, como se nada houvesse sofrido.
Querendo pagar o relevante serviço que Miguel
acabava de lhe prestar, a velha presenteou-o com três varinhas verdes que
colhera, dizendo-lhe que eram preciosíssimas.
Sorriu-se André, vendo a insignificância do presente,
mas Miguel guardou-as com o máximo cuidado, pois sabia que virtude continham, e
de que maneira se serviria delas.
Os dois amigos caminharam o dia inteiro; e quando a
noite desceu, repousaram ao luar, sem cama, nem travesseiros, ao ar livre, mas
assim mesmo satisfeitos.
Rompeu a aurora. Pelo meio-dia, seguindo por
extenso campo a perder de vista, sob um sol causticante, os dois companheiros
encontraram um soldado caído, sem fala, exausto de forças, semimorto.
Miguel tirou do seu saco de viagem um vidrinho,
abriu com uma faca os dentes cerrados do soldado, e fê-lo engolir algumas gotas
do líquido – uma água vermelha, que o frasco continha. Imediatamente o militar
voltou à vida: comeu um pedaço de pão e queijo, que lhe ofereceu André; e pode
marchar.
Querendo testemunhar ao generoso Miguel o seu
reconhecimento, obrigou-o a aceitar a espada que trazia; e despediu-se deles.
À tarde jornadeavam ainda os rapazes, quando
ouviram nos ares os sons deliciosos de uma doce música. Levantaram a cabeça, e
viram um grane cisne branco, que cantava...cantava...enfraquecendo gradualmente
a voz... voando cada vez menos...descendo...descendo... até cair morto, junto
aos dois companheiros de viagem.
Miguel, vendo-o morto, servindo-se da espada que
lhe dera o soldado a quem socorrera, cortou-lhe as asas, dizendo para o seu
camarada:
— Estas asas valem ouro, meu amigo. Vou levá-las.
E meteu-as no saco, em companhia das três varinhas
da velha e do sabre do soldado.
***
Passados dois dias mais, chegaram finalmente a uma
grande e populosa cidade, que souberam ser a capital do reino de Mogador.
Pernoitando numa hospedaria, informaram-se com o
hoteleiro dos usos e costumes da terra.
Souberam que o rei Iris IV era excelente príncipe,
dotado de bom coração, o que não sucedia, porém, com a princesa Lucília.
Essa moça, extraordinariamente formosa, causando
pasmo a todas as pessoas que a viam, um só minuto que fosse, era cruel, era má,
era perversa.
O rei querendo casá-la, ela permitiu a todo mundo
pretender-lhe a mão, quer fosse fidalgo ou plebeu, milionário ou mendigo, sob a
condição de adivinhar, em três dias consecutivos, no que estaria ela pensando
no momento de falar ao pretendente. Se a pessoa adivinhasse, desposa-la-ia,
vindo a reinar por morte do pai; se não adivinhasse, morreria enforcada na
praça pública.
Mais de dois mil rapazes, de todas as classes, de
todas as partes do globo, haviam se sujeitado a tais condições, mas nem um só
conseguira adivinhar-lhe os três pensamentos.
E Lucília, bárbara, impiedosa, sem coração, não
tivera pena de um só, mandando enforcá-los todos.
Iria IV afligia-se com aquilo, mas nada podia
fazer. O povo também sofria.
André ficou horrorizado, ouvindo a narração
daquelas atrocidades: e amaldiçoava a princesa, opinando que devia ser
açoitada, para castigo da sua maldade.
Ainda estava sob tão desagradável impressão, quando
ouviu na rua grande rumor de gritos, exclamações, hurras e vivas. Correu à
janela. Era a princesa Lucília, que passava montada a cavalo, e o povo
aplaudiu-a, subjugado pela sua extrema beleza, todas as vezes que a avistava.
Mal a viu, André empalideceu. Era a visão, que vira
em sonhos, no dia da morte de seu pai. Ficou alucinado. Esqueceu tudo quanto
acabavam de lhe contar, para amá-la, amá-la doidamente, apaixonadamente.
Desde esse momento, tomou a resolução inabalável de
se apresentar candidato à sua mão. Debalde o hoteleiro, que logo com ele
simpatizara, lhe repetiu que a princesinha, por demais perversa, não tinha
coração, espalhando-se mesmo a lenda de que era uma feiticeira, auxiliada pelo
Diabo. Debalde o seu companheiro de viagem tentou dissuadi-lo daquela terrível
idéia.
André não os atendeu. Na manhã seguinte, vestiu-se
o melhor que pôde, e encaminhou-se para o paço, pedindo uma audiência ao rei.
Assim que o soberano viu aquele moço, formoso,
simpático, alegre, atraente, e soube que se apresentava como candidato à mão de
sua filha, ficou desesperado. Contou-lhe com a máxima franqueza qual era o
caráter da maldosa princesinha, e mostrou-lhe num dos jardins reais, esqueletos
sem conta dos pretendentes.
Não conseguiu, porém, fazê-lo mudar de resolução.
Então, o velho monarca mandou chamar Lucília,
apresentou-lhe André, que ao vê-la mais apaixonado ficou.
Marcou-lhe o dia seguinte para a primeira prova de
adivinhação.
***
Na cidade, a consternação era geral. Lastimavam
todos a sorte do belo e amável estrangeiro, pois ninguém duvidava que havia de
ser fatalmente vítima da maldade de Lucília. Fizeram-se preces públicas.
Fecharam-se os teatros: nem um só divertimento público funcionou. Toda a gente
trajava luto.
Ele era o único que se conservava calmo, contando
que Deus o auxiliaria no momento da adivinhação.
À noite deitou-se tranqüilo, como costumava, depois
de ter feito as suas orações, e não tardou em adormecer.
Miguem, também, deitou-se em outra cama, no mesmo
quarto da estalagem, e fingiu que dormia. Assim, porém, que viu o companheiro
ferrado no sono, levantou-se sorrateiramente. Abriu o seu saco de viagem,
apanhou as duas asas do cisne que matara, e colocou-as nas espáduas, bem
grudadas, muniu-se de uma das três varinhas que lhe dera a velha da floresta;
e, tornando-se invisível, voou pelos ares, em direção ao palácio de sua
majestade el-rei Iris IV, soberano de todo o vastíssimo país de Mogador e
terras circunvizinhas.
Aí esperou algum tempo. Pouco depois, viu abrir-se
uma das janelas dos aposentos da princesa, e ela aparecer, voando com asas
pretas, envolta num grande véu de filó alvíssimo.
Miguel, sempre invisível, voou acompanhando-a, mas
a fustigá-la com a varinha, sem piedade.
Longa foi a viagem pelos ares, até que finalmente
chegaram a uma gruta que havia no meio da mata. Morava aí o horrível feiticeiro
Barraguzão, que era o padrinho de Lucília.
A moça, tendo entrado, contou-lhe o que se havia
passado: a chegada do novo pretendente, a vinda dela pelos ares, sentindo,
entretanto, que a açoitavam. Pediu-lhe conselho como responderia no outro dia,
por ocasião da audiência.
O infame bruxo explicou-lhe que as pancadas que ela
sentira eram da neve, caindo; e recomendou-lhe que, no momento em que André se
apresentasse para lhe adivinhar o pensamento, pensasse numa coisa muito
simples. E combinaram que seria nas botinas dela.
Lucília despediu-se; e voltou, voando pelos
espaços, sempre seguida de Miguel, que invisivelmente, não cessou de
chicoteá-la, até chegarem ao palácio.
O misterioso companheiro, deixando a moça entrar,
voltou para a hospedaria; desgrudou as asas, que guardou cuidadosamente, e
deitou-se, sem que Andrezinho houvesse dado por falta dele.
Este acordou cedo, e começou a vestir-se, sem se preocupar
sequer com a sorte que lhe estaria reservada se não adivinhasse o pensamento da
princesa. Todo entregue à sua paixão, só pensava em Lucília, amando-a cada vez
mais.
Quando ia saindo para o palácio, para se submeter à
primeira prova, ainda não havia decidido como responder.
Então, Miguel chamou-o e aconselhou-o:
— Olha, André, naturalmente a
princesa para te desnortear, há de pensar numa coisa muito simples. Assim, acho
que deves lembrar de um dos objetos de seu vestuário: nas botinas, por exemplo.
— Pois sim, respondeu ele. Direi que é nas botinas
que ela está pensando.
No momento solene da audiência, perante a corte
reunida, em presença do rei e dos grandes dignatários do reino, André
compareceu. Lucília, lá estava, deslumbrante de beleza, mocidade e graça,
sentada num trono de ouro e marfim.
— Então, em que estou pensando?
— Nas botinas de vossa alteza, respondeu o moço.
A princesa ficou desapontada, mas não teve remédio
senão confessar que era verdade. Entretanto não desanimou, recordando-se que
ainda faltavam duas provas, não sendo provável que o pretendente se saísse tão
bem em ambas.
***
André passou o dia inteiro satisfeitíssimo, e assim
todo o povo. Já tinham alguma esperança que o jovem estrangeiro pudesse adivinhar
os outros dois pensamentos.
À noite, o rapaz deitou-se calmamente, confiando em
Deus. Logo que o viu adormecido, Miguel levantou-se devagarinho, como fizera na
véspera, apanhou outra vez as asas do cisne e a segunda das três varas que lhe
dera a velhinha da floresta.
Repetiu-se ponto por ponto a cena da noite
anterior. O misterioso companheiro de viagem, voando invisivelmente pelos
espaços, acompanhou Lucília, fustigando-a sempre, até a caverna do horrível
bruxo.
Aí, narrou Lucília o que se tinha passado, e
Barragazão, o feiticeiro, aconselhou-a a que se pensasse nas luvas.
Migue, o que tudo ouvira, ao despertar disse a
André que havia sonhado toda a noite com a princesinha e suas luvas, e pois
aconselhava-o a que se referisse a elas, quando lhe perguntasse em que estava
pensando.
O moço obedeceu, e Lucília quase morreu de dor,
vendo-o adivinhar pela segunda vez o seu pensamento.
A população estava em delírio, sabendo que havia
sido coroada de bom êxito a segunda prova. Fizeram-se deslumbrantes festas,
para comemorar o acontecimento.
***
Na terceira noite, André dormiu calmo e sereno,
como nas precedentes, e Miguel levantou-se sem barulho. Abriu o seu saco de
viagem; grudou nas omoplatas as duas asas brancas do cisne; muniu-se da
terceira e última varinha com que o brindara a velha da floresta; pôs à cinta a
espada do soldado que socorrera; e, descerrando a janela, voou em direção ao
palácio real.
Pouco depois, do mesmo modo que nas noites
anteriores, apareceu Lucília, e ambos, Miguel – sempre invisível, açoitando-a
sem cessar – voaram para a caverna do feiticeiro.
Longa foi a confabulação. A princesa estava
desesperada, porque André já tinha adivinhado duas vezes seguidas, e podia
sair-se bem da terceira.
O bruxo, porém, sossegou-a:
— Não! ele tem acertado porque tens pensado em
coisas simples. Amanhã pensarás em minha cabeça. O estrangeiro não me conhece,
naturalmente não sabe sequer que existo, e assim perderá.
Lucília, muito satisfeita, aceitou o conselho: e
partiu para o palácio.
Miguel deixou-a sair; e, vendo-se só com
Barraguzão, puxou da espada, e, de um golpe, lhe decepou a cabeça. Embrulhou-a
num lençol, e voou para a estalagem.
À hora da audiência, André pediu-lhe conselho como
deveria responder, vendo o bom êxito das duas primeiras vezes.
Então Miguel deu-lhe o embrulho, contendo a cabeça
do feiticeiro, recomendando que só o abrisse no instante em que a princesa lhe
perguntasse no que estava ela pensando.
O moço executou fielmente o que mandara o seu
misterioso amigo.
Lucília, mal avistou a cabeça do bruxo, compreendeu
tudo, mas não teve remédio senão receber o estrangeiro como esposo.
Celebraram-se imponentíssimos festejos para a
realização do casamento. O povo inteiro exultou de alegria.
Entretanto a formosa princesa, perversa como era,
não amava o noivo.
Foi ainda Miguel que o socorreu. Deu-lhe um
frasquinho contendo um precioso líquido cor de ouro, recomendando-lhe que o
misturasse no chá de Lucília, na noite do casamento.
A moça, ao bebê-lo, sentiu uma grande dor no peito,
mas ao mesmo tempo olhou terna e amorosa para o esposo.
Lucília amava pela primeira vez na vida, e
continuou a amar. Estava quebrado o encanto.
No dia seguinte, Miguel apareceu ao companheiro, e
disse-lhe:
— Eu sou a alma daquele morto, a quem não
consentiste que dois perversos atirassem no campo para servir de pasto aos
urubus. Com o único dinheiro que possuías, compraste a minha tranqüilidade no
túmulo. Porque foste bom, Deus te protegeu.
Agora minha missão está finda.
Sê feliz!
Acabando de pronunciar tais palavras,
transformou-se em luminosa nuvenzinha, e desapareceu nos ares.
Bastante velho já, fatigado por uma longa
existência de trabalhos e canseiras, exausto de forças e doente de velhice –
porque a velhice é, também, uma doença – estava tio Benedito, o bom e estimado
velhote tio Benedito: oitenta anos pesavam-lhe às costas, como um grande fardo
que ele a custo carregasse.
Na sua mocidade, e mesmo durante parte da velhice,
ninguém trabalhara mais que ele, honesto sempre, mourejando, dia e noite, para
sustento de sua família.
Não podendo fazer serviço algum, alquebrado pela
idade, veio morar em casa de Augusto, seu filho mais moço, já com um filhinho
de três para quatro anos, o pequenino e interessante Luís, vivo e esperto como
poucos.
Velho e enfermo, qual estava, tio Benedito como que
volvera à primeira infância; e, por isso, eram precisos inúmeros cuidados com
ele, que mal se sustinha sozinho, trêmulo, muito trêmulo, quase sem poder
andar.
Quando se sentava à mesa, para o almoço e para o
jantar, derramava sopa na toalha, quebrava pratos e copos, com as mãos fracas,
como uma criança arteira e estouvada.
Augusto, e sua mulher, Henriqueta, aturavam-no com
dificuldade, zangados, contrariados, aborrecidos principalmente com o prejuízo
diário que o pai lhes dava.
Afinal, não podendo mais suportar o velho,
resolveram comprar uma cuia; e às horas das refeições sentavam-no no chão,
perto da mesa dando-lhes a comida naquela tosca vasilha.
Quando Luisinho, o pequenino, viu que o avô não se
sentava mais à mesa, ficou triste, mas não disse palavra. Estranhou aquilo
porque a sua almazinha desabrochava formosamente para o bem; e se não manifestou
a sua impressão, foi por supor que assim se fazia sempre com os velhinhos, que
não se sentavam à mesa, nem comiam em pratos, como os outros.
O pequeno Luís era o único que verdadeiramente
estimava o ancião, próximos entre si aquela primavera e aquele inverno, aquela
criança e aquele velho, ambos na infância, ambos no crepúsculo da vida.
Dias depois, Augusto e Henriqueta viram o filho
entretido a brincar com alguns pedaços de tábuas, um martelo e pregos, como não
tinha por costume fazer.
A mãe, estranhando aquilo, perguntou:
— Que estás fazendo aí, Luisinho?
— Estou fazendo um prato, para dar de comer a papai
e mamãe, quando eu for grande, e eles já estiverem velhinhos como vovô,
respondeu ingenuamente a criança.
Henriqueta e Augusto entreolharam-se confusos,
vexados e arrependidos da sua ingratidão, e de novo trouxeram o pai para se
sentar à mesa, em sua companhia.
Desde então, trataram-no com todo o respeito, o
desvelo e a consideração que os filhos devem aos pais.
Contam que, em outros tempos, há milhares e
milhares de anos, quando nada existia do que hoje existe, viveu em certa cidade
um rico fidalgo, o barão de Macário, tão poderoso e opulento, quão orgulhoso e
mau.
Uma tarde, achava-se ele no seu escritório,
contemplando avaramente a grande fortuna que acumulara, roubando aos pobres, às
viúvas e aos órfãos, emprestando dinheiro a juros elevados, quando, de súbito,
se sentiu tocado por um raio de bondade, até então jamais experimentado pelo
seu coração empedernido.
Lembrou-se que já estava velho; e que, com aquela
idade, nunca fizera o menor benefício a pessoa alguma, sem ter dado jamais uma
única esmola sequer. Arrependeu-se, então, do seu passado.
Nessa mesma tarde, Augusto, um infeliz sapateiro,
seu vizinho, que vivia na maior pobreza, carregado de filhos, veio bater à
porta, suplicando que lhe emprestasse cem mil-réis, para se ver livre de uma
penhora, e poder comprar o material que precisava para os trabalhos de sua
profissão.
— Em vez de cem-mil réis, dar-te-ei um conto de
réis, Augusto; disse o barão, com a condição, porém, que, se eu morrer
primeiro, você irá vigiar meu túmulo, nas três primeiras noites depois do meu
enterro.
O sapateiro prometeu, acossado como estava pela
necessidade, e o fidalgo deu-lhe o conto de réis.
***
Dois meses depois, o barão de Macário morreu; e
Augusto, lembrando-se de sua promessa, como era homem de promessa, foi
cumpri-la.
Duas noites passou ele em claro, no cemitério da
cidade, cheio de medo, mas sem que ocorresse novidade alguma.
Na terceira e última, dirigia-se para ir velar
junto no túmulo, quando avistou um soldado encostado a um mausoléu.
— Eh! camarada! bradou. Que fazes aí? Não tens medo
de estar no cemitério?
— Eu não tenho medo de coisa alguma, respondeu o
militar. Vim para aqui, porque não tenho onde pousar esta noite.
Puseram-se ambos a conversar, enquanto o sapateiro
contava ao soldado por que motivo ali se achava.
Passou-se o tempo, sem que eles o sentissem, quando
o relógio da torre da igreja bateu compassadamente as doze badaladas fúnebres
da hora terrível da meia-noite!...
Então, nesse momento, próximo deles surgiu de
súbito, sem que soubessem de onde vinha, um homem vestido de vermelho, com os
olhos chispando fogo, e cheirando fortemente a enxofre.
Era o diabo, que lhes ordenou:
— Retirem-se daqui, rapazes! a alma deste homem,
que foi um grande usurário na terra, pertence-me, e eu vim buscá-la.
— Senhor vestido de vermelho, disse o soldado, o
senhor não é meu superior, nem mesmo um oficial. Não posso, pois, obedecer-lhe;
e, assim, digo-lhe que se retire daqui, pois aqui chegamos primeiro.
O diabo, vendo aquele militar destemido, não quis
puxar barulho, e lembrou-se de comprá-lo, perguntando-lhe quanto queria para se
ir embora.
— Aceito o negócio que me propõe, sr. Satanás.
Basta que me dê o dinheiro em ouro, que uma das minhas botas puder conter.
O diabo saiu, e foi pedir emprestado a um judeu seu
amigo, que morava naquela mesma cidade.
Enquanto não vinha, o soldado puxando o rifle,
cortou a sola do pé direito, e colocou-a por cima de um túmulo aberto.
Quando Satanás chegou, vergado ao peso de um saco
de ouro, esvaziou-a, peça por peça, dentro da bota. O dinheiro caía todo na
sepultura.
— Olé! disse o capataz do Inferno, esta bota
parece-me mágica!
— Vá buscar mais ... mandou o soldado.
Mais de dez sacos foram assim trazidos pelo diabo.
As moedas escorregavam pelo cano da bota, e iam cair no túmulo, de modo que a
bota jamais se enchia. Satanás, desesperado, ia trazendo saco por saco. Na
ocasião em que carregava o décimo saco, cheio de moedas de ouro, eis que
amanheceu de repente. O galo cantou; o sol rompeu; e o sino da igreja bateu
alegremente, chamando para a missa.
Satanás deu um berro e desapareceu...
Estava salva a alma do barão de Macário...
O soldado e o sapateiro Augusto repartiram entre si
a grande fortuna que o diabo deixara na cova; e foram viver ricos e felizes,
empregando uma boa parte do dinheiro em dar esmolas aos pobres.
Dário era um bom mocinho, alegre e esperto,
estimado por todos que o conheciam.
Um dia despedindo-se de sua família e de seus
amigos, saiu de casa, para ganhar honradamente a vida. Ele era o mais velho dos
cinco filhos que tinha o tio Pedro; e como a miséria lhes batia à porta,
forçoso foi que o moço saísse, para não sobrecarregar o pai, em prejuízo dos
irmãos menores, e também para ver se melhorava de sorte.
Ao despedir-se, o pai lhe dera por toda fortuna uma
moeda de prata; e ele julgou-se rico, porque não conhecia o valor do dinheiro.
Caminhava alegremente pela estrada que conduzia à
cidade, quando encontrou um velhinho, abrigado à sombra de uma árvore, gemendo
e chorando.
Dotado de excelente coração, Dário tratou
desveladamente do enfermo, e deu-lhe a sua única moeda de prata.
O velhinho, agradecido, disse:
— Já que foste tão caridoso, vou fazer-te um
presente. Aqui tens este violino. todas as vezes que o tocares, quem o ouvir
não poderá resistir ao desejo de dançar.
Dário saiu satisfeito com o presente, e pouco
adiante, encontrou-se com um judeu, homem avarento, que espoliava todo o mundo,
emprestando dinheiro a altos juros, em troca de bons e valiosos penhores de
prata, ouro e pedras preciosas, que nunca mais entregava aos respectivos donos.
Naquele mesmo instante o judeu acabava de perder um
vintém, e procurava-o aflitamente, como se se tratasse de imensa fortuna.
O moço ofereceu-se para ajudá-lo; e, como tinha boa
vista, enxergou a moeda de cobre caída no meio dos espinhos. Ia apanhá-la, mas
o avarento não o consentiu, pensando que Dário fosse capaz de roubá-la.
— Ah! judeu, disse Dário consigo mesmo: desconfias
de mim! Deixa estar que mo pagarás...
Esperou sentado; e, assim que viu o miserável
dentro dos espinhos, começou a tocar o violino.
O judeu, escutando aqueles harmoniosos sons,
começou a dançar; e quanto mais Dário tocava, tanto mais ele saltava, quase sem
fôlego, rasgando a roupa, ferindo-se nos espinhos.
— Pára!... Pára!... cessa esse violino do diabo!
Pára, que já não posso mais! berrava o judeu, desesperado, sempre a dançar.
O rapaz, porém, continuava sempre a vibrá-lo.
— Pelo amor de Deus, pára com essa música, que te
darei uma bolsa de ouro!... disse, enfim, o avarento.
— Ah! isso é outro modo de falar! respondeu o
mocinho, emudecendo o mágico violino, depois que o judeu atirou a bolsa.
No dia seguinte, chegando à cidade, Dário foi
preso. O judeu tinha ido queixar-se que havia sido roubado por ele.
O moço foi condenado à morte.
No momento em que subia para a forca, pediu que lhe
permitissem tocar pela última vez o violino.
O avarento, que estava ao pé do cadafalso, gritou
logo:
— Não o deixem tocar mais!... Não o deixem
tocar!...
O juiz, porém, que não via razões para recusar,
acedeu.
Dário começou a vibrar o violino, e imediatamente todos
– juiz, carrasco, soldados, homens, mulheres, velhos e crianças – todos
começaram a dançar.
— Basta! gritava o juiz.
— Basta! gritava o povo.
Dário cessou a música. O juiz convenceu-se que o
rapaz não era criminoso, perdoou-o, e mandou enforcar o judeu.
Em companhia de vários fidalgos, d. Bias, poderoso
príncipe, herdeiro do importante reino de Avalão, foi uma vez à caça
embrenhando-se numa imensa e intrincada floresta, que havia às portas da
cidade. Não conhecendo o caminho, sua alteza, tendo-se afastado de sua
comitiva, perdeu-se no mato, e não houve meio de poder dali sair.
Depois de andar léguas e léguas, chegou, extenuado,
a uma caverna aberta numa grande montanha. Residia aí uma família de gigantes,
composta de pai, mãe e filha.
O gigante, que se chamava Ragarrão, estava fazendo
lenha para o jantar. Arrancava facilmente com uma só mão, velhas árvores, que
nem vinte juntas de bois poderiam sequer balançar.
Ragarrão, avistando o príncipe, que lhe pareceu um anãozinho,
comparado com ele, por não lhe chegar nem até os joelhos, exclamou:
— Oh! que homem tão miudinho! Que queres aqui,
anão?
O príncipe contou-lhe a sua história; e Ragarrão
disse:
— Bem, visto isso, ficarás aqui, como meu criado. E
ficou chamando d. Bias de Miudinho.
Passado algum tempo, a filha do gigante, Clandira,
apaixonou-se por d. Bias, e d. Bias por ela.
Ragarrão, desconfiando da coisa, chamou o príncipe,
e disse-lhe:
— Contaram-me que tu te gabavas de ser capaz de
edificar, em uma só noite, um palácio para mim e minha filha. Se tal não
fizeres, amanhã, pela manhã, matar-te-ei.
O príncipe ficou desesperado; e chorava amargamente
quando apareceu Clandira. que lhe falou:
— Não te desesperes, meu querido príncipe. Amanhã,
pela manhã, o palácio estará feito.
Assim foi, porque Clandira era encantada.
Quando Ragarrão viu aquela obra, não pôs dúvida que
houvesse sido feita pela filha, e disse à mulher:
— Amanhã matarei Miudinho, antes que ele queira
casar com minha filha.
Clandira ouviu a conversa. Foi ao quarto de
Miudinho, fê-lo levantar-se; e, roubando da estrebaria um cavalo, que, de cada
passada, caminhava sete léguas, fugiu com ele.
Pela manhã, Ragarrão, dando por falta de Miudinho e
da filha, calçou as botas de sete léguas que haviam pertencido ao célebre
Pequeno Polegar, e saiu atrás dos fugitivos.
Quando os ia alcançando, Clandira transformou-se
num regato; Miudinho, num preto velho; o cavalo, numa árvore; o selim em
laranjas, e a espingarda que levavam, num beija-flor.
Ragarrão, chegando perto, perguntou ao negro:
— Você viu passar aqui um moço e uma moça, montados
a cavalo?
O africano riu-se estupidamente, e fez um gesto,
dando a entender que era surdo.
Ao mesmo tempo o beija-flor voou em direção ao
gigante, e quis furar-lhe os olhos.
Ragarrão, aborrecido, voltou para casa, e narrou à
mulher o que lhe havia sucedido.
— Ó palerma! bradou ela. Pois não sabes que o negro
era Miudinho; o regato, nossa filha; a árvore e as laranjas, o cavalo e o
selim; e o beija-flor, a espingarda. Volta de novo, e agarra-os.
Nesse entretanto, os fugitivos desencantaram-se, e
partiram a todo galope.
Ragarrão, porém, saiu-lhes outra vez ao encalço; e
ia encontrá-los, quando se transformaram – a moça, numa igreja; Miudinho, em
padre; o cavalo e o selim, no sino e no badalo; e a espingarda no missal.
O gigante entrou na igreja, e interrogou o cura:
— Vossa Reverendíssima não viu passar por aqui um
moço e uma moça montados a cavalo?
O padre, que estava dizendo missa, não respondeu e
começou a rezar.
Ao cabo de muito tempo, Ragarrão, aborreceu-se, e
retrocedeu.
— Oh tolo! disse a mulher, quando ouviu o que de
novo lhe sucedera. Volta para trás. O padre é Miudinho; a igreja, Clandira; o
sino e o badalo, o cavalo; e o missal, a espingarda.
O gigante voltou furioso, fazendo vinte léguas por
segundo. Avistou finalmente os fugitivos; mas, quando ia pegá-los, Clandira atirou
para trás um punhado de cinza.
Formou-se uma neblina muito densa, que Ragarrão não
pôde atravessar.
Voltou para casa, e desistiu da idéia de os
agarrar.
O príncipe d. Bias chegou, então ao seu reino, e
casou-se com Clandira, que se desencantou, deixando de ser da raça dos
gigantes, para vir a ser uma moça lindíssima.
Formosa, elegante, bem prendada, era Carolina,
filha dum importante capitalista, que vivia na cidade do Ouro.
Um dia, apresentou-se no palacete paterno um moço
muito bem apessoado, que vinha pedi-la em casamento.
A rapariga exultou de alegria; e, com grande
satisfação dos pais aceitou-o.
Marcaram o dia das núpcias.
À noite, enquanto os convidados dançavam e
folgavam, N. S. da Conceição, que era madrinha de Carolina, apareceu-lhe, e
disse-lhe:
— Minha filha: fica sabendo que te casaste com o
diabo, metido na figura desse bonito moço. Não faz mal, porém. Logo mais, ele
há de te levar para casa. Deves, então, dizer a teu pai, que queres ir montada
no cavalo mais magro e mais feio que aqui houver. Quando chegares à
encruzilhada do caminho, teu marido há de tomar a direita; tu tomarás a
esquerda, mostrando-lhe o teu rosário. Verás, então, o que acontecerá.
Perto da meia-noite, o marido manifestou desejos de
se retirar, mandando selar os cavalos. Para Carolina veio um esplêndido alazão,
muito gordo e lustroso. A moça, porém, recusou-o, declarando que só montaria no
animal mais feio, magro e lazarento que houvesse na estrebaria.
O pai admirou-se muito daquele pedido, mas acedeu
aos desejos da filha.
Os noivos cavalgaram e partiram.
Chegando ao lugar em que a estrada
fazia uma cruz, o demônio quis que a moça tomasse a direita, e fosse adiante.
— Não; vá você na frente, que sabe o caminho de sua
casa. Eu nunca fui lá, respondeu Carolina sem mais demora.
Tomou a esquerda, e mostrou-lhe o rosário.
Ouviu-se, então, um grande berro, que o diabo
soltou. A terra abriu-se. Sentiu-se forte cheiro de enxofre, e o demônio
sumiu-se para as profundezas do inferno.
Carolina disparou o cavalo, até chegar muito longe.
Aí, cortou os cabelos, e vestiu uma roupa de homem – calça, colete e paletó,
feitos de uma fazenda verde, completamente verde.
Continuou a viagem, e chegou à capital do reino,
onde foi servir no exército. Sendo promovida, pouco depois, ao posto e
sargento, ficou sendo conhecida por sargento Verde.
O rei, ao ver aquele formoso inferior das suas
guardas, tomou-lhe grande amizade, e destacou-o para sua ordenança particular,
querendo-o sempre em sua companhia.
A rainha apaixonou-se por ele; e tentou seduzi-lo,
chegando mesmo a propor-lhe casamento, porque naquele país toda a gente podia
casar-se quantas vezes quisesse. No entanto, o sargento Verde recusou trair o
seu soberano.
Em vista disso, a rainha foi ao marido e disse-lhe:
— Saiba vossa majestade que o sargento Verde
declarou ser capaz de subir e descer as escadas do palácio, montado no seu
cavalo, a toda a brida, dançando e atirando ao ar três ovos, e aparando-os, sem
que nenhum deles caia e se quebre.
O rei mandou chamá-lo e perguntou se era verdade
aquilo.
— Eu não disse tal coisa, real senhor; mas como a
rainha, minha senhora, o afirmou, vou tentar fazê-lo.
O sargento Verde saiu dali muito triste, e
sentou-se à porta da casinha que lhe haviam dado para morar, quando seu cavalo
o sossegou, dizendo:
— Não tenha receio. No dia marcado, faça o que tem
de fazer.
Assim sucedeu; e a rainha ficou desesperada,
vendo-o executar fielmente o que ela havia inventado
***
Algum tempo depois, ela tentou
novamente seduzi-lo; mas, como da primeira vez, ele não quis atraiçoar o rei.
— Saiba vossa majestade que o sargento Verde disse
ser capaz de plantar uma laranjeira pequenina, à hora do almoço e que, à hora
do jantar, já estará carregada de laranjas.
O rei chamou-o, e mandou fazer aquele milagre; e
tendo o sargento consultado o seu cavalo, conseguiu executá-lo, com grande
mágoa da rainha, que queria vê-lo enforcado.
Mas a perversa criatura nem por isso cessou de
persegui-lo; e, pela terceira vez, dirigiu-se ao rei:
— Saiba vossa majestade que o sargento Verde
declarou ser capaz de ir ao fundo do mar, e tirar a princesa, que ali está encantada.
Carolina, dessa vez, quase morreu de desânimo,
julgando impossível sair-se bem daquela dificílima empresa.
O cavalo, porém, acalmou-a, aconselhando:
— Muna-se a senhora de um garrafão de azeite, um
punhado de cinza e um agulheiro. Monte em mim; chegue à praia, e, com a espada
corte as ondas em cruz, que as águas hão de se abrir. Entre pelo mar adentro;
chegará à caverna, onde jaz a princesa encantada. Aí encontrará um dragão
marinho, que guarda a moça. Roube-a; monte-a na garupa, e corra a todo galope.
O monstro há de persegui-la. Assim que estiver quase a nos pegar, derrame
primeiro o azeite; depois a cinza; e, por último, o agulheiro.
Carolina procedeu como lhe ensinara o cavalo.
Entrou no mar; raptou a princesa; e partiu a todo dar.
O dragão marinho perseguiu-a. Quando ia quase
pegando-a, ela derramou o garrafão de azeite; formou-se uma grande lagoa, onde
o dragão se meteu, quase se afundando.
Conseguiu, finalmente, vencer o primeiro obstáculo;
e seguiu no encalço dos fugitivos.
Ia novamente alcançá-los. Carolina despejou a
cinza. Formou-se um nevoeiro espesso atrás dela, como se fosse uma montanha.
O monstro, depois de inúmeras dificuldades, passou
e voou.
Ia quase pega não pega o sargento Verde, quando
este espalhou o agulheiro.
Apareceu uma cerca de espinhos, que entraram no
corpo do dragão marinho, matando-o logo.
Chegando ao palácio, o sargento Verde contou a sua
história, e voltou a ser a formosa Carolina.
A rainha foi condenada à morte, para castigo das
suas diversas mentiras.
Gansos, patos, marrecos e outras aves da mesma
espécie residiam em vasto cercado que o dono da casa lhes dera por domínio.
Viviam bem, satisfeitos da vida, contentes com a sorte, porque nesse cercado
havia uma pequena lagoa, onde, durante o dia, iam se banhar, catando com o bico
bichinhos que apareciam à beira do lago, ou comendo peixinhos que podiam
apanhar, quando nadavam.
Em certas épocas do ano, aves de países distantes
vinham de passagem por aquelas regiões; e estacionavam na lagoa, para descansar
das grandes fadigas que traziam, voando de um para outro lugar.
Era lindo ver-se, então, aquela porção de aves
aquáticas, nadando pela lagoa soltando gritos de contentamento.
Ora, uma vez, estava uma velha pata chocando alguns
ovos que pusera, deitada num ninho de folhas.
E andava muito intrigada, meio desapontada, por
causa de um ovo, um só ovo, enorme, colossal, estranho, que, sem ela saber
como, viera parar no meio dos outros. Supunha ser de alguma das aves que por
ali passavam, e que, inconscientemente, o pusesse em seu ninho, assim que ela
começara a postura.
Estava a velha pata no choco, havia já quase quatro
semanas, e só faltavam quatro dias para os patinhos saírem dos ovos, o que ela
esperava com paciência, quando um belo dia, apareceu picado um primeiro ovo.
Foi uma alegria em todo o bando, e as comadres
vieram dar-lhe os parabéns.
Ela, satisfeita, agradecia as visitas, dizendo que,
dentro de dois dias, tencionava levar os patinhos à lagoa, para aprenderem a
nadar.
Dias depois, saiu finalmente o último patinho. Só
faltava o ovo grande, que, no entanto, nem sinal dava de estar picado.
As outras aconselhavam à velha pata que abandonasse
o intruso. Aquele ovo, evidentemente muito diverso os outros, enorme, não era
dela; e, assim cometia uma tolice vivendo em cima dele, a chocá-lo. Patas houve
que asseveraram poder até ser de um bicho, um ovo tão grande; e que esse bicho,
crescendo, poderia comer todos os patos do bando.
Mas a pata não ouviu tais conselhos. Disse que
queria ver que ave sairia dali; que aquilo era ovo de ave, se estava vendo; e
que enquanto não saísse, ela não abandonaria o ninho.
Sete dias depois de sair o último patinho, a velha
pata viu o ovo grande picado, e apareceu um bicho, parecido com pato, é
verdade, mas todo torto, escuro e aleijado.
Depressa a pata se arrependeu de ter chocado um
bicho tão feio. Mas, como era boa, e não querendo dar o braço a torcer,
mostrando-se aborrecida de ter na sua ninhada um pato desgracioso, repugnante,
nada falou às comadres.
Na manhã seguinte, bem cedo, disse para os filhos:
— Vamos, meus patinhos, hoje é dia de sairmos do
ninho; quero levá-los à lagoa e apresentá-los às suas tias e a seu pai, o pato
velho.
Quando a pata apareceu, foi uma festa geral, e
houve enorme alegria no bando. Todos a felicitaram elogiando os patinhos.
Uma pata, porém, mais indiscreta, reparou no
patinho aleijado, e disse para as companheiras: “Onde teria ela arranjado
aquilo?”
— Olha que bicho a nossa comadre chocou!
Desde então, não cessaram as caçoadas, remoques,
debiques, vaias por todo o plumitivo bando, na mãe e no filho. E a coisa chegou
a tal ponto que a pata, aborrecida, desgostosa, começou a odiar o aleijado.
No entanto, o infeliz palmípede vivia muito
modestamente, sem fazer mal a ninguém, sabendo nadar melhor que todos, mas
sempre repelido.
O tortinho não podia viver naquele bando, tantas
eram as beliscadas que lhe davam, tal era o inferno em que vivia.
Assim, resolveu fugir; e, um belo dia, nadando pela
lagoa a fora, distraiu-se, a ponto de quando chegou a noite, já estar do outro
lado, à margem de um juncal muito grande.
Aí chegado, procurou um lugar onde passar a noite,
e dormiu até pela manhã.
No outro dia achou que o local era bom, e viveu aí,
satisfeito, sem ter mais quem o ferisse. Uma vez, estando a banhar-se na lagoa,
viu dois pássaros, voando muito alto, tão alto, que quase encostavam nas
nuvens. O aleijadinho, ao vê-los, sentiu uma coisa dentro e si, e soltou um
grito estrídulo, tão forte, que se admirou de ter realizado um feito tão
sublime, como aquele som altíssimo que dera.
Passou o resto do dia triste, pensando naquelas
duas aves, que haviam passado tão perto do céu, voando tão serenas. Pediu a
Deus que lhe desse forças para fazer o mesmo que aquelas lindas aves.
E a sua existência deslizava-se tristíssima, sem
prazeres de espécie alguma, solitária, enfadonha, aborrecida, monótona, quando,
uma madrugada, cedo, o silêncio do juncal foi quebrado por inúmeros latidos de
cães e tiros de espingardas. Eram caçadores que tinham vindo em busca de aves
aquáticas.
Assim que o patinho viu aquela porção de gente a
matar pássaros, e cachorros perseguindo diversas aves, escondeu-se muito triste
em uma capoeira. Fechou os olhos, e esperou a morte.
Os caçadores levaram todo o dia a atirar; e, à
noite, depois e se retirarem, o patinho fugiu daquela lagoa, pensando que no
dia seguinte podiam voltar e talvez ele não escapulisse.
Foi andando pelo mato, até que encontrou uma
casinha, onde morava uma velha, em companhia de um gato e de uma galinha.
A velhinha, ao ver o novo hóspede, começou a
tratá-lo muito bem, imaginando que era uma pata, a qual, do mesmo modo que a
galinha, lhe daria ovos, frescos e excelentes, para o seu sustento.
O patinho vivia contente pelo bom trato que recebia
da velha, apesar da má vontade que lhe mostravam o gato e a galinha.
Passados dois meses, a velha viu que o pato era
macho, e por isso perdeu a esperança dos ovos.
Começou então a maltratar o bichinho que, vendo-se
perseguido pelos dois companheiros, o gato e a galinha, começou a maldizer de
sua sorte.
Dizia o gato:
— Sabes caçar ratos? Se não sabes, vai-te embora,
pois não tens serventia.
— Sabes pôr ovos? perguntava a galinha. Então
vai-te embora, pois não tens serventia.
E o patinho, vendo-se assim injuriado diariamente,
uma bela manhã desapareceu da casa da velha.
Pensando na sua vida amargurada, seguia caminho em
fora, quando viu de novo dois pássaros que voavam muito longe, bem alto.
Reconheceu naquelas aves as mesmas que, uma vez,
haviam passado por ele, na lagoa, e soltou segundo grito.
Ficou admirado de tê-lo dado tão alto, e quase morreu
de contentamento quando ouviu os dois pássaros responderem ao seu chamado.
Eles voavam, porém, alto, muito alto, e não mais
responderam.
O patinho foi muito triste, nadando sempre, até que
parou no lagozinho de um jardim de casa rica.
O pobrezinho, desde que saíra da lagoa, com medo
dos caçadores nunca mais vira água onde pudesse banhar-se.
Entrou na água, e começou a dar gritinhos de
contentamento.
Nisso apareceram dois grandes patos, brancos, tão
brancos como a neve, nadando em direção a ele, com as asas levantadas fazendo
de velas.
O patinho aleijado, vendo dois patos tão bonitos
dirigindo-se para ele, envergonhou-se e baixou o pescoço, para se esconder.
Nisso viu que a sua imagem, reproduzida na água,
era semelhante à dos patos brancos.
Uma criança, que ouvira os gritos do patinho ao
entrar no tanque, veio ver que pássaro assim gritava, e exclamou:
— Que lindo cisne! meu pai, venha ver. É mais
bonito que os nossos, que existem no lago; como é formoso!
E pôs-se a dar-lhe migalhas de pão.
O patinho aleijado, que ouviu chamarem-no de cisne,
e de bonito, ficou maravilhado de tanta felicidade, e começou a nadar
garbosamente, à semelhança dos outros, com as asas levantadas, parecendo as
velas enfunadas de uma embarcação.
***
Mais tarde explicou-se o caso.
O ex-patinho devia ser filho de algum cisne, que,
passando por acaso pela morada dos patos, pusera um ovo no ninho da velha pata.
O aleijado, agora transformado em magnífico, lindo
cisne, ainda viveu muito feliz em companhia de seus dois irmãos, os cisnes do
lago.
Hostiaf VI era rei de um vasto país, e um dos
soberanos mais opulentos e poderosos da terra. Apesar disso, porém, era um
monarca tão bom, tão magnânimo, tão justiceiro, que mais parecia um pai, que um
rei.
Hostiaf tinha um filho, Julião, que era tão bom
quanto ele.
Um dia, o rei, estando a caçar, animado e
satisfeito, embrenhou-se dentro de um espinheiro, a fim de apanhar um
passarinho que havia matado. Os espinhos, porém, eram tantos, que o pobre rei
neles se espetou, e cegou de ambos os olhos.
O rei e o príncipe voltaram para a casa muito
tristes pela infelicidade que acabava de suceder; o povo, que amava o seu
soberano, ao saber da desgraça, cobriu-se de luto. Em todas as igrejas, capelas
e oratórios particulares, fizeram-se muitas promessas de ver se o bom rei
recobrava a vista.
***
Um dia, o príncipe Julião saiu de casa, dizendo ao
pai que ia buscar remédio a fim de lhe curar a cegueira.
Saindo da cidade, penetrou em uma floresta muito
grande; e, sentindo-se bastante cansado, sentou-se numa pedra, e chorou.
Nisso um besouro de ouro começou a voar ao redor
dele, e perguntou-lhe:
— Príncipe Julião, porque choras? Acaso
aconteceu-te alguma desgraça?
— Choro, disse o príncipe, porque meu pai está
cego. Procuro um remédio para a sua cegueira, mas ainda não o achei. Tenho sido
tão bom e agora sou ferido no que tenho de mais querido neste mundo. Que devo
fazer?
— Continua a ser bom, que alguém te há de proteger,
respondeu o lindo inseto.
Julião levantou-se de onde estava sentado, e
encaminhou-se para uma cidade que existia no fim da floresta. Aí chegando, viu
alguns homens dando com um pau em um cadáver.
Indagando o que queria dizer aquilo, responderam
que aquele homem estava apanhando, depois de morto, porque tinha deixado
dívidas, e o costume da terra era se proceder assim com os caloteiros.
O jovem teve pena do morto, pagou-lhe as dívidas e
mandou enterrá-lo.
Quando os homens se retiraram, o príncipe ouviu um
zumbido perto dele, e viu o besouro de ouro que lhe disse:
— Estou te acompanhando desde que saíste do
palácio. Sabia que eras bom, e agora certifiquei-me mais com a ação que
acabaste de praticar, mandando enterrar esse pobre homem. Em paga disso, vou
ensinar o remédio que há de curar a cegueira de el-rei teu pai. Vai ao reino
dos Papagaios. Entra lá à meia-noite, despreza os papagaios bonitos, e procura
o mais feio e velho, que está numa gaiola de pau, e traze-o. Depois, tira-lhe o
sangue, e molha com ele os olhos do teu pai, que recobrará a vista.
***
O príncipe tanto andou, que chegou ao reino dos
Papagaios. Assim que bateu meia-noite, entrou. Ficou deslumbrado com o que viu:
ricas gaiolas de ouro, de brilhantes e de pedrarias, que ofuscavam a vista;
papagaios de todas as cores, cada qual mais lindo.
Apanhou o papagaio, com a gaiola que lhe pareceu
mais bonita, deixando a um canto um papagaio, velho e triste, em uma gaiola já
podre, toda enferrujada.
Quando o rapaz ia saindo, o papagaio deu um grito.
Os guardas acordaram, perseguiram-no, e prenderam-no.
O jovem foi conduzido à presença do rei dos
Papagaios, que perguntou o que queria ele com aquela ave apanhada em seu reino.
O pobre moço contou a história de seu pai; e o rei,
condoendo-se dele, disse que lhe daria o papagaio, se lhe trouxesse uma espada
do reino das Espadas.
O jovem aceitou a proposta. Ia muito triste; e,
chegando mais adiante, encontrou o mesmo besouro, que lhe disse:
— Porque estais tão triste, príncipe Julião?
O moço contou o que lhe havia sucedido no reino dos
Papagaios.
— Eu não disse! Foste apanhar o papagaio bonito, e deixaste
o velho e feio! Aconteceu-te esta desgraça, mas ainda há um remédio: vai ao
reino das Espadas. Aí verás muitas – ricas, lindas, ofuscantes. Não te importes
com essas; apanha a mais feia, mais velha e mais enferrujada, que lá existe, a
um canto.
O moço seguiu em demanda ao reino das Espadas.
Assim que aí chegou, ficou maravilhado: viu espadas
de ouro, de prata e de brilhantes. Sem considerar no que fazia, apanhou a mais
bonita, não se lembrando da recomendação do besouro. Ia saindo, quando a espada
deu um estalo, tão forte, que os guardas acordaram, e prenderam-no, levando-o à
presença do rei das Espadas.
Julião contou a história de seu pai; e o rei, tendo
pena dele, prometeu dar-lhe a espada, se ele trouxesse um cavalo do reino dos
Cavalos.
Saiu dali o príncipe, arrependido de não ter
seguido por duas vezes os conselhos do besouro, quando este lhe apareceu mais
uma vez:
— Príncipe Julião, já sei porque vais tão triste.
Não quiseste, ainda desta vez, ouvir meus conselhos. Vai ao reino dos Cavalos,
e traze de lá o mais feio, mais velho, mais magro. Não te importes com os
bonitos, os gordos e bem arreados. Procura o que está a um canto, muito magro.
Quando o príncipe entrou, à meia-noite, no reino
dos Cavalos, pasmou, vendo os mais lindos cavalos de puro sangue, que existiam
em todo mundo. E disse consigo mesmo:
— Ora! pois eu mesmo hei de levar aquele cavalo,
tão magro, que nem me agüentará na viagem! antes esse aqui, que é forte!
E trouxe o mais bonito de todos – um cavalo todo
preto, de crinas e cauda de ouro, com arreios de brilhantes.
Ainda bem Julião não tinha saído, quando o cavalo
relinchou, tão alto, que todos os soldados se levantaram, e o prenderam.
O jovem dessa vez julgou-se perdido, porque os
soldados disseram que ele ia morrer.
Pediu, então, para ir à presença do rei dos
Cavalos, a quem contou a sua triste história.
O rei, penalizado, disse que lhe daria o cavalo, se
fosse furtar a filha do rei vizinho.
O moço aceitou a proposta, mas pediu que lhe dessem
um bom cavalo, para poder sair-se bem de uma empresa tão perigosa. Deram-lhe um
animal muito bom, que andava tanto quanto o vento.
No meio da estrada, encontrou-se ele outra vez com
o besouro, que lhe disse:
— Porque estais tão triste, príncipe?
O príncipe contou tudo quanto lhe acontecera no
reino dos Cavalos.
Não podendo mais conter-se, o besouro falou:
— Príncipe Julião, eu sou a alma daquele homem a
quem mandaste enterrar, e cujas dívidas pagaste. Ando protegendo-te, desde que
saíste do palácio de teu pai. Não tens querido seguir meus conselhos. Ouve,
porém, o que te vou dizer, porque esta é a última vez que te apareço. Monta
neste cavalo; entra à meia-noite no palácio do rei vizinho; põe a filha na
garupa; larga rédea ao teu cavalo; e foge depressa. O teu cavalo anda como o
vento, e por isso não há receio de te apanharem; mas toma cuidado de não
olhares para trás. Passa pelo reino dos Cavalos, para te darem o teu. Segue
diretamente para casa, e não dês ouvidos a ninguém. Anda sempre pelo caminho
real; não procures atalhos. Vai depressa, que teu pai está agonizando.
O príncipe fez tudo quanto lhe disse o besouro
encantado.
***
Antes, porém, de chegar em terras do reino,
encontrou-se com os irmãos, que vinham buscar notícias suas.
Quando o viram com uma princesa tão bonita e
objetos tão ricos, começaram a aconselhá-lo que devia passar por um atalho do
caminho, porque, além de ser mais perto, evitaria dessa maneira os ladrões, que
andavam em bandos pela estrada.
Julião acreditou neles; e, tendo saltado do animal,
para beber água em uma fonte, os dois o jogaram para o fundo de uma caverna.
Depois, os perversos apanharam tudo quanto
pertencia a Julião, e marcharam em direção ao palácio de seu pai.
Supondo-o morto, entraram com toda a riqueza do
príncipe. A moça, porém, ficou muda; o papagaio, triste, com a cabeça debaixo
da asa; a espada começou a marear; e o cavalo emagrecia cada vez mais.
Estando o príncipe quase para morrer, na caverna,
apareceu-lhe o besouro, que, ainda desta vez, o livrou da morte, tirando-o
dali.
Voltou para casa, e mal pôs o pé na escadaria, a
moça começou a falar; o papagaio voou para o seu ombro; o cavalo soltou um
relincho muito forte, e principiou a engordar; e a espada luzia que nem um
brilhante.
Ao entrar, tirou um bocado de sangue do papagaio, e
o pôs sobre os olhos do seu velho pai que recobrou logo a vista.
***
Os irmãos, amedrontados com o
aparecimento do mais moço, a quem julgavam morto, atiraram-se do alto da torre
do palácio, à calçada, morrendo no mesmo instante.
O príncipe Julião casou-se com a
formosa princesa que trouxera; e, mais tarde, por morte de seu pai, veio a
reinar sempre querido e abençoado pelo seu povo.
O MOÇO PELADO
Inácio Peroba era um infeliz
pescador, homem muito caridoso, honrado e de excelente coração. Tendo se casado
cedo, sua mulher mimoseou-o com muitos filhos. Além deles, tinha de alimentar
alguns sobrinhos órfãos, sua velha mãe e seu sogro. Por isso, a pesca, de que
sempre vivera, até então, já lhe não bastava para sustentar tão numerosa
família, e ele vivia desesperado.
Um dia, foi pescar, como
costumava. Debalde lançou as redes ao mar, repetidas vezes, durante todo o dia:
nem um só peixe, por mais pequenino que fosse, conseguiu apanhar. Ao anoitecer,
regressava tristemente para casa, quando a poucas braças da canoa, viu um
robalo deitar a cabeça fora da água. E foi com espanto que o pobre homem ouviu
o peixe dizer:
— Inácio Peroba, se prometeres
trazer-me o que encontrares quando chegares à casa, lança as redes na água...
Peroba prometeu, lembrando-se que,
assim que chegava, de volta da pesca, a primeira coisa que lhe aparecia era a
cadelinha Mimosa. Atirou as redes, e recolheu tanto peixe, tanto, que encheu a
embarcação.
Chegando à casa, a primeira coisa
que viu foi um filhinho, que nascera em sua ausência.
O pescador ficou triste; mas, como
era homem de honra, cumpriu fielmente a sua palavra. Dizendo à mulher que ia
dar a criança a criar, levou-a à praia, e jogou-a no mar.
A criança não morreu. Mal as águas
se tinham aberto, apareceu uma grande concha, puxada por peixes, que a
apararam, levando-a para o palácio do rei.
***
O menino cresceu. Haviam-no
batizado com o nome de Remi.
Quando tinha cerca de vinte anos,
o rei chamou-o e disse-lhe:
— Vou fazer uma viagem de quinze
dias. Fica com as chaves do palácio, mas não abras porta alguma, senão
matar-te-ei quando chegar...
O rapaz não pôde conter-se. Assim
que o soberano dos Peixes partiu, abriu a porta de um quarto. Dentro havia três
grandes caldeirões – um com ouro fervendo, outro com prata e o terceiro com
cobre. Abriu novo quarto, e viu três cavalos muito gordos – um preto, um
russo-queimado e um alazão, comendo carne fresca, em vez de capim. Abriu o
terceiro, onde se achava um grande e gordo leão, que, ao contrário dos cavalos
tinha capim para comer, e não carne. Por último, abriu o quarto aposento. Viu
uma bonita mesa de escritório, com as gavetas cheias de papelinhos brancos e
verdes, dobrados, e armas de toda a espécie.
O rapazinho, como era arteiro,
quis trocar a comida dos animais, dando capim aos cavalos e carne ao leão, mas
o alazão falou:
— Não faças isso. Teu padrinho te
matará, quando chegar. Agora, se quiseres sair daqui, vai ao quarto onde está a
mesa: tira dois papéis – um azul e outro branco; veste-te com a melhor roupa
que encontrares; pega numa boa espada; monta num de nós, e leva o outro pela
rédea, sai do palácio, mergulhando primeiro a cabeça no caldeirão de ouro. Teu
padrinho, ao regressar, há de ir ao teu encalço. Assim que estiver quase a
pegar-te, larga um dos papéis; mais tarde o outro; e deixa o resto por nossa
conta.
Remi obedeceu pontualmente, depois
de ter dourado os cabelos, que ficaram lindíssimos. Montou o alazão, e foi
puxando o russo-queimado.
Seguiu viagem a todo galope. Ao
cabo de vinte dias, o rei dos Peixes chegou ao palácio. Vendo que o afilhado
fugira, cavalgou o preto, e foi à sua procura.
Depois de muito andar, avistou-o.
Então o cavalo alazão disse a Remi que largasse o papelzinho branco.
Imediatamente formou-se espesso nevoeiro, que o rei a custo furou. Quando o
conseguiu, o rapaz já estava longe.
Dando de esporas, já ia de novo o
alcançando, mas Remi, a conselho do alazão, abriu o papel verde. Formou-se um
espinhal.
O rei disse para o cavalo preto.
— Se conseguires passar comigo
este espinhal, eu te desencantarei.
— Tira-me, então, os arreios,
respondeu o animal.
Mas, quando iam chegando ao meio, o
cavalo atiro-o ao chão, e seguiu sozinho.
Passados alguns dias mais,
chegaram perto de uma cidade.
Aí o cavalo alazão tomou a
palavra.
— Nós vamos ficar aqui encantados
em pedras. Deixa conosco tua roupa e tuas armas, e continua sozinho. Mais adiante
encontrarás um boi morto; abre-o; tira-lhe a bexiga, e cobre com ela a cabeça
para esconder os cabelos. Vai e segue tua vida. Quando precisares de nós,
procura-nos.
O rapaz executou aquelas
recomendações.
Chegado à cidade, encontrou um
palácio. Falou ao jardineiro, que estava trabalhando, e pediu-lhe emprego. O
jardineiro aceitou-o como ajudante, e o moço ficou empregado.
No palácio toda a gente gostava
dele, porque Remi era bom trabalhador, mas achavam-no muito esquisito por não
ter um só fio de cabelo. Por isso chamavam-no “o Moço Pelado”.
Uma vez, julgando-se ele a sós,
tirou a bexiga de boi, e apareceu com os seus lindíssimos cabelos de ouro. A
mais moça das filhas do rei, viu-o e ficou apaixonada.
Tempos depois, houve importantes
cavalgadas, às quais toda a gente compareceu.
O Moço Pelado, que havia ficado
sozinho, mal viu o palácio deserto, correu para onde estavam os cavalos, e
contou-lhes tudo.
O russo-queimado surgiu
deslumbrantemente arreado. O rapaz vestiu-se com roupas próprias, e entrou na
liça, onde ganhou os prêmios, oferecendo a argolinha de ouro à filha mais moça
do rei.
Ninguém sabia quem era aquele
formoso mancebo de cabelos de ouro, montado num cavalo sem igual. Só a
princesinha foi quem ficou meio desconfiada, e por isso mesmo, mais apaixonada.
No segundo dia ocorrera-se novas
cavalgadas. O rei, querendo saber, a todo custo, quem era o misterioso
cavaleiro, que excedia a todos em garbo e valentia, conquistando os prêmios,
mais ricamente vestido, conquistando os prêmios, mais ricamente vestido e
montando o melhor animal, mandara um numeroso batalhão para prendê-lo.
O Moço Pelado, mesmo assim não se
mostrou receoso. Entrou na arena; e, dado o sinal de partida, avançou na frente
de todos, ganhando ainda desta vez, a argolinha de ouro.
Como no primeiro dia, ofereceu-a à
princesa, e, fazendo um cumprimento geral, disparou o cavalo que voou por cima
dos soldados, espantados com aquela audácia e ligeireza.
No terceiro e último dia de festa,
tudo sucedeu como nos antecedentes, com a diferença que havia mais gente, e que
soldados armados de baionetas, em maior número, foram colocados em todas as
saídas, a fim de evitar a fuga do jovem cavaleiro.
Remi, porém, sempre confiado e
protegido pelos três cavalos encantados, ganhou o prêmio e conseguiu safar-se,
sem que o atingissem as pontas das baionetas e o chuveiro de balas disparadas
contra ele.
Nunca se soube, e nem se
desconfiou sequer quem fosse o vencedor das cavalgadas. Apenas a princesinha
tinha uma ligeira suspeita de que era o ajudante dos jardins reais, o guapo e
formoso mancebo. Entretanto nada dise, e as coisas continuaram no ramerrão
diário.
***
Passados tempos, o rei anunciou
que, quem matasse uma fera terrível que desde muitos anos devastava o país,
causando toda a sorte de horrores e estragos, casaria com sua filha mais velha.
Sabendo disso, Pelado foi
consultar o russo-queimado, que lhe disse:
— Arranja um espelho, que
colocarás no meu peito, e vai dar combate ao bicho. Quando ele vir a sua imagem
reproduzida, ficará atrapalhado; e poderás, então, matá-lo.
A coisa passou-se como dissera o
cavalo.
No dia seguinte, a fera amanheceu
morta.
Ninguém se acusou, todavia, como
tendo sido o autor, e o monarca julgou-se dispensado de cumprir a palavra.
Resolvendo casar as três filhas no
mesmo dia, mandou que elas escolhessem noivos.
As duas mais velhas quiseram dois
poderosos príncipes, ao passo que a mais moça declarou terminantemente que só
se casaria com o Moço Pelado, ajudante do jardineiro real.
O rei, como a estimava muito, não
teve remédio senão aceitá-lo como genro. Ordenou que se preparasse um grande
banquete, no qual todas as aves seriam caçadas pelos seus futuros genros.
Mas nenhum deles, a não ser o Moço
Pelado, nada conseguiu matar. Um dos príncipes, encontrando-o no mato,
carregado de caça, e não o conhecendo, propôs-lhe comprar tudo, ao que ele
acedeu, exigindo, porém, recibo.
Na ocasião do banquete, o rei
pediu que cada um dos genros contasse uma aventura curiosa, que lhes houvesse
sucedido.
O primeiro, levantando-se, tirou
do bolso o cotoco da língua da fera, e declarou:
— A maior façanha que tenho feito
em toda a minha vida, foi matar o bicho que assolava o país. Não o disse naquela
época, por modéstia.
O segundo, tomando a palavra,
disse:
— Tenho feito muita coisa notável,
que não quero lembrar. Direi apenas que fui eu quem caçou todas essas aves que
estamos comendo.
Todos os convivas aplaudiram muito
os altos feitos de tão valentes príncipes.
Chegando a vez de Remi, falou ele:
— E eu tenho a dizer que esses
dois moços mentiram descaradamente. A prova é que, o que o primeiro apresentou,
foi o cotoco da língua, porque quem matou a fera fui eu, e aqui mostro a ponta.
Quanto às aves, eis o recibo que me passou o segundo, o que demonstra que
também fui eu quem as caçou.
Dizendo isso, arrancou a bexiga de
boi que lhe cobria a cabeça, e apareceu com os seus formosos cabelos de ouro,
reconhecendo-se, assim, nele o moço misterioso das cavalgadas, para vergonha
dos dois príncipes intrujões.
Os três cavalos desencantaram-se,
tendo cumprido a missão que lhes fora destinada de proteger o filho de Inácio
Peroba.
OS TRÊS
CAVALOS ENCANTADOS
Jerônimo trabalhou a vida inteira;
e, apesar de haver sido sempre honrado, bom e virtuoso nunca pode fazer
fortuna.
Aos cinqüenta anos de idade, era
tão pobre como quanto nascera, acrescendo a circunstância de que era chefe de
numerosa família, a quem tinha forçosamente que vestir e alimentar.
Além de quatro filhas, tinha ainda
três rapazes: João, Pedro e Manuel.
Quando João, o mais velho,
completou vinte e um anos, chegou-se para o pai, e assim falou:
— Meu pai, já estou homem feito e
quero ganhar a minha vida, correndo mundo, para ver se sou feliz.
O pai, muito triste, separou-se
dele, dizendo:
— Meu filho, que queres tu? O
pouco dinheiro que te reservei, sem a minha benção? ou a minha benção, sem
dinheiro algum?
— Dinheiro, respondeu ele. E acrescentou:
— Quando a roseira que plantei
começar a murchar é porque estou em perigo. Mande Pedro em meu auxílio.
Disse e partiu.
Depois de andar muitas terras, ter
visto muitas coisas, por este mundo afora, João chegou à residência de uma princesa,
que tinha duas irmãs, tão parecidas com ela como duas gotas d’água.
João pediu ousada em casa dessa
princesa, que se chamava Rosalina.
À hora da ceia, Rosalina chegou-se
para ele:
— Meu hóspede, disse ela, em minha
casa todo mundo é bem recebido; mas, quando nos sentamos à mesa fazemos sempre
uma aposta. Vamos começar a cear: aquele que de nós dois que comer mais do que
o outro, é senhor deste outro... Está feita a aposta?
O rapaz aceitou, sentindo-se com
uma fome devoradora, em resultado da longa viagem.
Rosalina comeu muito; e, quando
não podia mais, pediu licença para ir até à cozinha, ver um petisco que mandara
preparar pelo cozinheiro.
Aí mandou a irmã substituí-la.
João, que não sabia da semelhança que havia entre as irmãs, de nada desconfiou,
e via que já não podia mais comer, ao passo que a moça cada vez parecia ter
mais fome.
Afinal não pôde mais, e cruzou os
talheres, ficando dessa maneira cativo da princesa.
***
Já por esse tempo, a roseira que
plantara começara a murchar, cada dia mais.
Pedro, o segundo filho, vendo
aquilo, disse ao pai:
— Meu pai, João corre perigo, e eu
quero ir em socorro dele.
— Pois bem, disse o velho. Que
desejas? a minha benção sem dinheiro, ou o dinheiro sem a minha benção?
— Desejo dinheiro, respondeu
Pedro.
Horas depois, saiu de casa.
Tanto andou, que um dia foi ter
justamente à casa da princesa Rosalina e suas irmãs. Antes de Pedro partir,
disse ao pai:
— Se meu craveiro murchar, é
porque corro perigo. Mande Manuel me socorrer.
Assim que Pedro chegou ao palácio
da princesa, pediu pousada. À hora do jantar aconteceu-lhe o mesmo que a João.
Em casa, o craveiro começou a
murchar.
Manuel, o mais moço, vendo as duas
plantas murchas, pediu licença ao pai para ir socorrer os irmãos.
O pai fez a mesma pergunta que
tinha feito aos outros dois filhos, e ele respondeu que queria a benção,
unicamente, sem a menor quantia.
Quando Manuel saiu de casa,
encontrou uma velhinha, que era Nossa Senhora, sua madrinha, assim disfarçada.
Sem se dar a conhecer, a velha entabulou com ele grande conversa, e terminou
por lhe dizer onde se achavam João e Pedro. Narrou-lhe tudo quanto havia
sucedido aos dois moços, e o que Rosalina costumava fazer para ter presos
tantos homens.
Por último, aconselhou-o que
aceitasse a aposta, mas que não permitisse a princesa levantar-se, porque ela
faria a troca por sua irmã, sem que ele desconfiasse, embora prevenido como
estava.
Manuel chegou à casa da princesa.
À hora do jantar, aceitou a aposta, em tudo semelhante às outras, que lhe fez
Rosalina.
Procedeu como sua madrinha lhe
ensinara, e, quando a moça quis levantar-se não consentiu, ganhando por isso a
aposta.
***
Manuel não quis a princesa como escrava.
Contentou-se em soltar todos os presos que lá se achavam.
Os três irmãos, quando se viram
juntos, ficaram alegres, e foram correr mundo.
No meio do caminho, porém, João e
Pedro, revoltaram-se contra o outro, tomaram tudo quanto ele possuía, e levaram-no
cativo.
Seguiam os dois a cavalo, bem
montados, e o pobre do Manuel, a pé, pela estrada afora, triste de sua vida, e
chegaram a um país onde existiam misteriosos animais, que todas as noites
vinham estragar as hortas e os jardins do rei, não havendo quem pudesse dar
cabo deles.
Assim que Pedro e João souberam do
caso, foram-se oferecer ao rei para matá-los.
Entraram na horta, e ficaram a
conversar, esperando as feras.
Mas, já para o meio da noite, uma
noite muito quente, começaram a se sentir fatigados, e pegaram no sono, de modo
que, no dia seguinte, pela manhã, foram dizer ao rei, envergonhados, que nada
tinham conseguido.
O rei expulsou-os do palácio, como
intrujões.
Chegou a vez de Manuel, que se foi
oferecer para matar os animais, que tanto estragavam os jardins.
Chegando a noite, muniu-se de sua
violinha, e começou a cantar e a tocar, para se distrair do sono, que já lhe
pesava nas pálpebras.
Pelas onze horas, ouviu enorme
barulho.
Prestou atenção, e viu três cavalos
encantados, que se encaminharam para as hortas, não podendo, porém, entrar,
porque se apresentou em frente deles.
Cada um dos cavalos pediu-lhe uma
folha de couve, que o moço deu.
Disse então o primeiro cavalo:
— Quando se vir em algum perigo,
diga: Valei-me, meu cavalo preto!
O segundo falou:
— Quando se vir em algum perigo,
diga: Valei-me, meu cavalo baio!
O terceiro disse:
— Quando se vir em algum perigo,
diga: Valei-me, meu cavalo ruço!
Em seguida partiram.
No dia seguinte os jardins e as
hortas do rei apareceram em perfeito estado, e Manuel ganhou muito dinheiro.
Pedro e João desapareceram
envergonhados.
***
Vivia Manuel satisfeito, gozando
dos rendimentos que o rei lhe dera, quando soube que a princesa Catarina, filha
única do rei, dissera que só se casaria com um homem que, a cavalo, subisse as
sete escadarias do palácio real, e lhe tirasse a flor que ela tinha na cabeça.
Marcou-se o dia para a festa, e
ninguém conseguiu passar da primeira escadaria.
Manuel lembrou-se do cavalo, e
disse:
— Valei-me, meu cavalo preto!
Surgiu um cavalo preto, como
azeviche, com arreios de prata.
Manuel montou, e chegou até a
terceira escadaria no meio de vivas entusiastas e aclamações porque nenhum
cavaleiro se apresentara em animal tão bonito e tão bem arreado.
No segundo dia, os cavaleiros se
apresentaram e nada fizeram.
Já supunham a festa terminada,
quando apareceu um cavalo baio, muito mais bonito que o preto do dia
antecedente, com arreios de ouro.
O povo, ao ver aquele cavaleiro,
que era Manuel, ficou deslumbrado.
O cavalo foi até a quinta
escadaria.
No terceiro dia o povo já estava
impaciente por ver chegar o cavaleiro, que em dois dias seguidos, tanto se
distinguira dos seus contendores, e aparecia tão ricamente montado.
Assim que apareceu em frente ao
palácio, em seu cavalo ruço, com arreios de brilhantes, o povo não se conteve
em aplausos sem fim.
O próprio rei estava impaciente
com o resultado, pedindo a Deus que fosse ele o vencedor.
Quando Manuel assomou na primeira
escadaria, a princesa chegou a acenar-lhe com a mão.
O cavalo ruço chegou até o último
degrau da última escadaria, e parou. O moço fez uma cortesia, e tirou a flor do
penteado da princesa.
Todo o mundo queria ver de perto
tão intrépido cavaleiro.
Efetuou-se o casamento da
princesa, no meio de aplausos da população, que veio em massa saudar os recém-casados.
Manuel mandou buscar o seu velho
pai.
Os três cavalos encantados
mudaram-se em três príncipes, que assim estavam transformados para castigo e
gravíssimos crimes cometidos, devendo permanecer em tal estado enquanto não
tivessem uma ação meritória.
HISTÓRIA
DE UM PINTINHO
Qui- Qui -Ri- Qui- Co-có-ró-có!
Num terreno de grande
chácara, pertencente a opulento capitalista, viviam em profusão galos,
galinhas, pintos, perus, patos, marrecos, galinholas, pavões – todas as
espécies de aves domésticas, numa palavra. Vida regalada passavam eles
alimentados à farta. A única exceção era um pobre pintinho, que vivia muito
triste. Por ser muito pequeno e magro, os companheiros levavam todo o dia a
beliscá-lo, de modo que o infeliz pintinho andava sempre ferido e quase sem
comer, por quanto as galinhas não lhe deixavam um grãozinho de milho sequer.
Vivia o coitadinho muito
triste de sua vida, pensando em fugir de perto dos outros, devido aos
maus-tratos que constantemente recebia, quando, uma vez, mariscando, viu um
papelzinho, e disse:
“Bravo! Agora estou com a
minha vida ganha! Vou levar esta carta ao rei, e ele com certeza, em paga, há
de mandar-me dar milho bastante para eu comer durante a minha vida inteira.”
Ficou o pintinho tão
satisfeito, pensando em arranjar uma casinha para morar, onde pudesse passar os
dias longe de terreiro, livre das beliscadas de seus companheiros, que cantou
pela primeira vez:
— Qui-Qui-Ri-Qui!
Os outros, ouvindo aquela voz
desconhecida, olharam e viram-no a cantar.
O galo velho, pastor do
terreiro, perguntou:
— Quem é que canta aqui neste
terreiro sem minha ordem?
— Sou eu,
disse o pintinho, porque achei uma carta, e vou levá-la a el-rei nosso senhor.
Disse, e partiu em direção ao
palácio real.
Depois de muito andar, parou para
descansar das fadigas de viagem. Estava beliscando a terra, pensando na fortuna
que o rei lhe havia de dar, quando passou uma raposa, que, avistando-o lhe
dirigiu a palavra:
— Bons-dias, sr. Pinto. Por aqui
por estas alturas? Onde vai tão cedo?
— Qui-Qui-Ri-Qui, retorquiu o
pinto, vou levar esta carta a el-rei nosso senhor.
— Se não é abuso, sr. Pinto,
pedia-lhe para me levar em sua companhia. Desejava ver o palácio do rei. Dizem
que é muito bonito, que tem muitos soldados, e que a gente, só de o ver, se
diverte.
— Não faço dúvida em levá-la, dona
Raposa. Se quiser, entre aqui no meu papinho, que a conduzirei até lá.
A raposa fez o que o pintinho
mandou, e lá seguiram os dois em demanda do palácio.
Andaram muito; e, depois de já bem
cansados, o pintinho encontrou um riacho. Desanimou de seguir viagem, por não
poder atravessar a nado um rio tão grande e com tanta correnteza.
Encarapitou-se em cima de uma
pedra; e, muito triste, pensava num meio de transpor o rio, quando este lhe
falou:
— Olé, sr. Pinto, porque se aflige
tanto? Há meia hora o estou vendo a olhar para mim, com cara tão triste.
Diga-me o que sente. Talvez lhe possa ser útil.
— É o caso, senhor Rio, que tenho
de levar esta carta a el-rei, nosso senhor, mas não posso, porque não tenho
coragem de o atravessar a nado.
— Não seja essa a dúvida, sr.
Pinto. Po-lo-ei na outra margem, sem risco de sua própria vida, mas com a
condição de me levar também em sua companhia.
— Pois bem, entre no meu papinho,
e vamos ver o rei, respondeu ele.
O rio entrou, e seguiram viagem os
três; o pintinho, a raposa e o rio.
Mais adiante encontraram um
espinheiro.
— Onde vai, sr. Pinto, com tanta
pressa? inquiriu este.
— Qui-Qui-Ri-Qui! Vou ao palácio
do rei levar-lhe esta carta, e não quero me demorar, porque pretendo lá chegar
antes da noite.
— Quer levar-me em sua companhia?
Talvez eu lhe seja útil.
O espinheiro entrou também, e
seguiu com seus companheiros para o palácio do rei.
Chegados aí, o pinto dirigiu-se à
guarda do palácio, dizendo que tinha uma carta para entregar a sua majestade
real. A sentinela não quis deixá-lo entrar. Ele, porém, tão alto falou, tanto
cantou, que o rei, ouvindo aquele barulho todo, chegou à janela, e perguntou
porque razão aquele pinto fazia tamanha algazarra.
— Saberá vossa
real majestade que este pinto quer por força entrar, para entregar uma
mensagem, disse o soldado.
— Pois deixe-o entrar.
O rei recebeu o papelinho do
bico do pinto, e vendo que era um simples pedaço de papel sujo, ficou zangado
com aquele atrevimento, e mandou que seus vassalos o pusessem no poleiro, em
meio das galinhas e galos, que no palácio havia em grande quantidade.
Assim que ele entrou, os
outros vendo um hóspede novo, começaram a beliscá-lo.
Nisso gritou a raposa:
— Sr. Pinto, espere que vou
defendê-lo. Ensinarei a esses tratantes que não se maltrata assim uma ave tão
distinta.
Saiu do papo do pintinho, e
começou a comer toda a criação que existia no poleiro.
Em seguida, saíram ambos a
toda a pressa, fugindo do cozinheiro que havia corrido a ver o que havia de
extraordinário ali, para que as galinhas tanto gritassem.
Quando entrou e não viu ave
alguma, alguém foi comunicar ao rei que o pintinho, que na véspera levara a
carta, e que fora metido no poleiro, em castigo do seu atrevimento, fugira,
tendo matado as galinhas.
O rei, exasperado mandou que
um batalhão fosse logo em procura do fugitivo, e que o trouxesse vivo ou
morto.
Já estava o pinto muito
longe, e fugia a bom fugir, quando ouviu tropel de animais, retinir de espadas.
Compreendeu que era gente
mandada pelo rei para prendê-lo.
Soltou o rio do seu papinho,
que, estendendo-se pelo campo afora, impediu a marcha do batalhão.
Os soldados levaram muito
tempo a arranjar canoas que os conduzissem à outra margem.
Nesse intervalo, ia o
pintinho ganhando terreno. Corria sempre, para se livrar dos seus
perseguidores.
O batalhão conseguiu, finalmente,
transpor o rio, e correu a toda a brida atrás do pinto.
Mestre Pinto, vendo-se assim
quase alcançado pelos seus perseguidores, deixou sair do papo o espinheiro, que
formou expressa, impenetrável cerca de espinhos, impedindo, assim, os soldados
de continuarem a empresa.
O galináceo, livre,
finalmente de tantos perigos voltou para o terreiro, mas teve vergonha e receio
de entrar, com medo das pancadas que viria a sofrer dos companheiros.
Começou a espreitar por trás,
de uma cerca, e não avistando nenhum dos antigos companheiros, atreveu-se a
entrar.
Ficou maravilhado, vendo o
bom trato que a nova geração, assim que saía do poleiro, lhe dava.
Fizeram-lhe muitas festas, e
ofereceram-lhe casa, comida e o lugar do galo velho pastor de terreiro, que
havia morrido dias antes, porque nesse tempo, o pintinho era um frango bonito,
preto, com penas douradas nas asas.
Assim, ficou ele sendo o
galo, dono do terreiro, e viveu longos anos, muito feliz no meio dos seus
iguais.
Longe, muito longe daqui, lá
para as bandas onde o sol nasce, dizem que existia maravilhoso país, diferente
em tudo e por tudo do nosso.
Governava-o um soberano, um
rei, que fez a felicidade dos seus súditos, pelos generosos dotes de coração
que abrigava; pelo seu amor e respeito à Justiça, ao Direito, à Liberdade, à
Igualdade e à Fraternidade; e, sobretudo pela sua grande sabedoria.
Chamava-se Marval, e tinha
três filhas, qual delas a mais bonita: a primeira tinha por nome Alice, – a do
meio – Rosa, e a terceira, – Amanda.
Um dia ordenou-lhes o pai que
elas lhe contassem todos os dias, pela manhã, o sonho que por acaso, cada uma
tivesse durante a noite.
As meninas
receberam essa ordem com certa estranheza. Contudo, como eram mui obedientes,
prometeram cumprir o que lhes era mandado.
À noite, antes de se
deitarem, em conversa, começaram a discutir aquela ordem absurda e tão fora de
propósito.
Dizia Alice, a mais velha:
— Estou admirada da ordem que
o nosso pai nos deu, manas, tão esquisita é ela; e nem sei que farei amanhã, se
acaso sonhar uma tolice, como às vezes sucede a gente sonhar. Com certeza terei
pejo em narrá-la.
— Eu não, disse Rosa, não
tenho vergonha alguma de meu pai, e contarei tudo, se tiver algum sonho.
— E eu, falou Amanda, a
caçula, já que, é a vontade do meu pai, dir-lhe-ei tudo nem que saiba zangar-se
ele depois comigo.
No dia seguinte, pela manhã,
Marval mandou, dizer às moças que já estava à espera, para elas lhe contarem os
seus sonhos.
As duas primeiras nada tinham
sonhado, por isso nada disseram. Amanda, porém, sonhara que por aqueles dias
havia de se casar com um príncipe muito lindo e muito rico, senhor de um país
onde as casas eram de ouro e pedras preciosas, e que cinco reis haviam de lhe
beijar a mão, achando-se entre eles seu pai.
O monarca, zangadíssimo com a
filha, declarou que se ela sonhasse outra vez semelhante coisa, e tivesse
coragem de lhe relatar outro sonho, assim tão soberbo, mandaria matá-la.
As duas irmãs ficaram
tristes, quando souberam do sonho de Amanda e foram lhe pedir para não contar
outro, que por ventura tivesse, no mesmo sentido, sendo nesse caso preferível
mentir.
— Papai disse que te mandaria
matar. Ora, bem sabes que palavra de rei não volta atrás. Por isso acho bom
nada mais lhe narrares.
No dia seguinte a menina quis
enganá-lo. Mas como não sabia mentir, chegou-se para ele chorando muito, e lhe
contou entre lágrimas, o sonho da véspera, que se repetira naquela noite.
Marval enfureceu-se com a
desobediência da filha, pensando, que ela estava procedendo prositadamente.
Mandou, pois, que os criados a levassem para uma floresta distante, e a
matassem; trazendo-lhe o dedo mindinho, como prova de sua morte.
As irmãs, tendo notícia da
sentença, de joelhos, pediram ao rei que a perdoasse, pois se Amanda havia
contado o sonho, foi porque lho tinha sido ordenado; que elas duas lhe haviam
aconselhado não repetir a narração, mas, como era muito verdadeira, não quis
mentir, e confiara na bondade do pai para absolvê-la.
— Antes papai a mande presa
para a torre dó castelo, opinou Rosa, sem poder sair, senão uma vez por ano.
Continuando a suplicar o
perdão da irmã, ou, pelo menos, a comutação da pena, Rosa e Alice inventaram
mil castigos. O rei, todavia, foi ínflexível; não revogou a ordem, e as meninas
saíram dali com o coração cheio de dor, pela próxima perda da irmãzinha que
tanto estimavam.
No outro dia, assim que
rompeu a madrugada, a princesa Amanda partiu para a Floresta Negra, toda de
luto, com um véu preto, que lhe cobria completamente o rosto, a ponto de
torná-la desconhecida.
Ordenara-lhe Marval o uso
desse véu, para que a corte ignorasse o fato, e não começasse a propalar a sua
maldade.
Os próprios criados de
confiança, que foram designados para matar a princesa, não sabiam quem era
aquela moça toda de preto, com um véu tão espesso, que não deixava ver sequer a
sua fisionomia.
Antes de chegarem à Floresta
Negra, os emissários reais encontraram uma velhinha, uma mendiga, que todos os
dias ia receber esmolas que Amanda lhe dava.
Essa velhinha, que era
adivinha, ao ver passar aquela gente tão cedo, ainda de madrugada, conheceu
logo a princesa, e gritou:
— Adeus, princesa Amanda, minha
benfeitora, filha do muito poderoso rei Marval! Desejo-lhe muitas venturas. Vá
depressa, que seu noivo está à sua espera!...
A moça, que ia muito triste,
pensando na sua sorte desgraçada, mais triste ficou, por se lembrar que a
pobrezinha ia passar sem esmolas.
Não obstante não poder parar,
nem um segundo, sob hipótese alguma, a carruagem que ia, teve ela ainda tempo
de atirar uma moedinha, que se achava acaso no bolso do vestido.
A velha, compreendendo o bom
coração da menina, exclamou:
— Deus nunca desampara os
bons, princesa Amanda! Nossa Senhora há de acompanhá-la e protegê-la!
Ora, entre os criados que
haviam ido levar a princesa, para matá-la na Floresta Negra, achava-se um, de
nome João, já velho, que a tinha criado. Sabendo, pelas palavras da mendiga,
que a moça a quem levavam para assassinar tão cruelmente, ser a sua querida, a
sua extremosa, sua dileta filhinha, – como ele chamava e considerava a
princesa, – protestou logo no não-cumprimento da ordem real, sucedesse o que
sucedesse.
Firme nesse propósito, logo
que o cortejo chegou à entrada da Floresta Negra, João disse aos seus
companheiros que fora ele o encarregado de matar a moça; e por isso que o
esperassem ali, pois não precisava de ajudante para tal serviço. Levou a menina
para longe, no meio da mata, e como estimava muito a princesinha teve pena de
matá-la. Trouxe, todavia, para o rei não desconfiar, o dedo mínimo de Amanda
como, prova de sua morte, e em cumprimento à ordem que recebera.
Assim que a jovem Amanda se
viu só, principiou a chorar de medo, porque ouvira dizer que aquela floresta
era mal-assombrada. Começou a andar; e, andando muito, já bastante fatigada,
chegou a um buraco.
Aproximou-se dele, e assim
que transpôs a entrada, percebeu que quanto mais caminhava, tanto mais largo se
tornava ele, do mesmo modo que
o terreno mais pedregoso e
cheio de raízes, se cobria de relva fina e macia, que seus pés cansados
pisavam.
Prosseguindo sempre,
deparou-se-lhe deslumbrante palácio todo de mármore cor-de-rosa, e janelas e
portas de ouro.
Sentindo-se bem, ficou
residindo aí, satisfeita, almoçando, jantando e ceando, sem no entanto ver
pessoa alguma, o que de algum modo a impressionava.
A única coisa que quebrava o
silêncio desse palácio, era um papagaio, que falava dentro de um quarto fechado
e cujas portas jamais se abriam.
***
Havia algum tempo já que
Amanda ali se achava, vivendo, cada vez mais serena e feliz, apenas muitíssimo
triste, quando um dia, lhe apareceu um moço, formoso, ricamente vestido.
Entregou-lhe ele a chave do quarto, dizendo que podia abri-lo, o que fez sem
mais demora.
Foi um deslumbramento. Ficou
maravilhada de ver papagaio tão grande, tão bonito, de asas tão douradas que
parecia o sol, e tendo na cabeça um diamante de inexcedível preço, e lindo,
lindíssimo, sem igual no mundo.
Ao ver aproximar-se a moça, a
ave sacudiu as penas, contentíssima, e disse:
— Bons-dias, princesa Amanda,
filha do rei Marval! Como vem tão bonita, tão formosa!
— Mais formoso do que
eu, és tu, meu lindo papagaio dourado...
Ainda bem não havia terminado
a última palavra, e o papagaio transformou-se no lindo moço que lhe tinha
aparecido para lhe dar a chave do quarto.
Esse moço era sua alteza o
príncipe imperial Calcim, filho e herdeiro de Manarés XI, imperador da região
das Pedras Raras. Fora transformado num papagaio, e deveria permanecer nesse
estado até encontrar uma princesa que descobrisse o palácio subterrâneo e o
desencantasse.
Assim, meses após,
celebrou-se o seu casamento com Amanda, comparecendo cinco reis tributários do
imperador Manarés XI, entre os quais se achava o rei Marval para beijarem a mão
da noiva.
Todos os outros beijaram a
mão da princesa, mas, quando chegou a vez de Marval, a nova imperatríz
recusou-a.
Escandalizado com tão grave
injúria, à vista dos outros reis, Marval perguntou o motivo do procedimento da
princesa.
Calcim, querendo dar uma
satisfação da recusa, perguntou a Amanda por que assim procedia com um rei tão
ilustre e senhor de urna nação poderosa e amiga.
A moça narrou, então, a sua
história, que foi ouvida por todos com a máxima atenção. Marval foi muito
censurado, mas, mostrando-se arrependido, obteve o seu perdão, e viveu feliz ainda
muitos anos.
Manuel Borba, depois de
trabalhar a existência inteira, velho e cansado já, próximo do fim, via-se,
como no princípio da sua carreira, cada vez mais pobre, ganhando o
indispensável para não morrer de fome. Toda a sua fortuna consistia em uma roça
que cultivava com os dois filhos.
Ao chegar
a casa, uma tarde, teve notícia que a mulher dera à luz um menino muito
desenvolvido e forte que ficou se chamando Anselmo. Não obstante ser pobre,
ficou muito contente com o nascimento do filho, que prosperava dia a dia, a
olhos vistos, cada vez mais, a ponto de ser, ao cabo de um mês, do tamanho de
um homem. Além disso, comia como um gigante; só se contentava com um boi
inteiro para jantar!
Borba, vendo que não podia
sustentar um filho assim, aconselhou-se com Barbosa, sua mulher, e
combinaram os dois de mandar o rapaz procurar a vida.
Anselmo não se incomodou com
a notícia. Pediu apenas que o pai mandasse fazer uma bengala de ferro, uma foice
e um machado, grandes e pesados.
Assim que tais instrumentos
ficaram prontos, partiu ele a correr mundo.
***
Depois de muito andar, chegou
à casa de um lavrador, e ofereceu-lhe os seus serviços, que foram aceitos.
Sendo incumbido de fazer uma
roça, em três ou quatro foiçadas, pôs abaixo todas as matas da fazenda.
O fazendeiro, assustado com
semelhante empregado, deu uma desculpa qualquer, e despediu-o, dizendo que não
precisava mais dele.
À hora do jantar, quando
apresentaram a comida comum, recusou-se Anselmo a jantar, dizendo que, o que
estava na mesa não chegava nem para o buraco de um dente, e pediu, para aliviar
um pouco a fome com que estava, um boi e dois sacos de farinha.
O fazendeiro mandou dar-lhe o
que pedia, e muito admirado, ficou quando o viu devorar tudo. Então, cada vez
mais amedrontado, despediu-o.
Partiu o nosso herói em busca
de novo emprego chegando ao palácio de um rei.
Perguntando o que sabia
fazer, Anselmo respondeu:
— Saberá vossa real majestade
que sei fazer, tudo, e sou capaz de tudo neste mundo.
À vista disso, o rei, para
experimentá-lo, mandou-o caçar seis leões, que andavam devastando os arredores.
O moço aceitou a incumbência,
e pediu um carro com três juntas de bois.
Passou seis dias nas matas,
onde estavam os. leões. Em cada dia matava um boi para comer, e prendia um
leão, que amansava e atrelava ao carro.
No fim desse tempo, cortou
árvores das mais grossas e trouxe-as para a cidade, no carro puxado pelos leões
amansados.
O povo, ao ver aquele carro
com árvores enormes, puxado por leões, correu a contar o que via.
Assim que Anselmo chegou à
praça, em frente ao palácio real, o rei mandou que os soldados matassem os
seis animais ferozes, e avisassem o homem que saísse o mais depressa possível,
sob pena de ser fuzilado.
Recebendo tal intimação,
ficou Anselmo admirado de ter feito coisa que zangasse a real majestade, e
indagando porque motivo o expulsavam do reino, não obteve resposta alguma.
Desconsolado por ver que
ninguém queria aceitar seus serviços, partiu da cidade, protestando que não se
empregaria mais.
— Agora vou trabalhar por
minha conta; não quero mais saber de patrões, pois tenho sido infeliz com meus
amos. Quero experimentar a vida, sem ter que dar satisfação a pessoa alguma.
Jornadeava ele por uma
estrada muito larga e muito comprida, a ponto de se perder de vista, quando,
depois de muito caminhar, encontrou um rio.
Parando, para descansar, viu
um homem atravessá-lo, sem se molhar.
— Corno é que você anda na
água, sem se molhar? indagou. Como se chama você?
— Eu me chamo o Homem-peixe.
Você admirado de me ver passar este riacho; quanto mais se souber que acabei de
atravessar todo o mar!
— Quer vir em minha
companhia? perguntou Anselmo.
— Quero, disse o Homem-peixe.
— Pois então, passe-me para o
outro lado.
O Homem-peixe carregou-o nas
costas e caminhou para a outra margem.
Seguiram os dois
companheiros, quando, depois de andarem muito tempo, encontraram um homem
cortando cipó e emendando-o para fazer um laço.
— Que fazes aí, homem? Como
te chamas?
— Chamo-me o Homem-laçador.
Estou a fazer este laço para laçar uma boiada que está pastando num campo, dez
léguas daqui.
— O que me dizes,
Homem-laçador, é admirável! Queres vir em nossa companhia?
— Pois não; e até estimo,
porque não gosto de viajar só.
E lá seguiram os três
companheiros a procurar a vida, por este mundo de Cristo em fora.
Pararam numa casa abandonada,
no meio de uma floresta, e combinaram que o Homem-peixe fosse buscar comida
para os três.
O companheiro encontrou no
caminho um molequinho, muito preto, com uma carapuça dourada na cabeça, que lhe
pediu fogo para o cachimbo.
O Homem-peixe, não quis
dá-lo; e o moleque, para se vingar, arrumou-lhe o cachimbo na cabeça, com tanta
força, que o prostrou sem sentidos, no chão.
Quando voltou a si, já não
encontrou mais o pretinho, mas dirigiu-se para casa, contando aos outros o que
lhe havia sucedido.
Disse o Homem-laçador:
— Qual Homem-peixe, você é,
um moleirão! Amanhã quem vai sou eu; quero ver se o molecote me põe também por
terra, sem sentidos.
E assim fez.
Estava já o laçador muito
longe, quando lhe apareceu o moleque, pedindo-lhe fogo para a cachimbo.
O laçador não quis dar, e os
dois começaram a lutar numa briga muito feia que durou mais de uma hora.
Afinal, o moleque de carapuça dourada lhe deu com o cachimbo tal pancada na
cabeça, que o pôs por terra, desacordado.
Quando o laçador deu acordo
de si, voltou envergonhado para casa e contou aos companheiros o que lhe
acontecera.
Anselmo começou a caçoar,
chamando ambos maricas, moleirões, e disse que era ele quem iria no dia
seguinte.
De manhã cedo partiu com a
sua bengala de ferro e, depois de muito andar, em um lugar afastado encontrou o
tal moleque, que lhe disse:
— Olá, Anselmo, como vai?...
— Bem obrigado. E tu, como
vais, moleque?
— Bem. Muito obrigado. Dá-me
fogo para acender o meu cachimbo?
— Não, moleque, não dou; e
retira-te já daqui, senão... senão...
Meteu-lhe a bengala, e o
moleque meteu-lhe o cachimbo.
Travaram uma luta medonha de
mais de duas horas.
Afinal Anselmo deu-lhe com a
bengala de ferro, com tanta força, que o moleque se viu de repente sem a
carapuça dourada na cabeça.
Anselmo apanhou-a, mais que
depressa.
— Dê-me a minha carapuça,
pelo amor de seu pai! dizia o moleque, de joelhos.
— Só ta darei, se me deres as
três princesas que tens em teu poder, respondeu o valentão.
— Não posso, porque não são
minhas.
— Então, vai-te daqui, negro
amaldiçoado!
O negro, que era o diabo, que
vigiava as três princesas, foi andando... Anselmo acompanhou.
De repente o moleque entrou
por um buraco, feito na terra, sempre acompanhado por Anselmo, que não deixava
de o perseguir.
Chegaram a um palácio
riquíssimo, todo de ouro, onde havia muita gente trabalhando em caldeiras, em
fogo, em ferro, e outros metais.
Aí chegando, o moleque pensou
que o outro tinha medo do que via, e pediu novamente a sua carapuça. Respondeu
Anselmo que só a entregaria se o negro lhe desse as três princesas.
O diabo, vendo que era o mais
fraco, resolveu-se a entregá-las.
— Agora, só te darei a
carapuça se me puseres lá fora, disse Anselmo.
Satanás não quis, e ele
meteu-lhe outra vez a bengala.
Vendo o diabo que de todo não
podia com Anselmo, fez tudo quanto ele exigia.
O Homem-peixe e o laçador,
que tinham ido à espreita, assim que viram três moças lindas saírem daquele
buraco, fugiram com elas, enganando dessa forma o companheiro.
***
Anselmo não se incomodou
muito com aquilo.
Recebera ele de cada uma das
três moças um lenço, e sabia que mais tarde ou mais cedo havia de lhes
descobrir o paradeiro.
O Homem-peixe e o
Homem-laçador souberam que elas eram filhas de um rei poderoso, que habitava
não longe dali, se fossem por mar, e muito longe se a caminhada fosse feita por
terra. Seriam, então, precisos dois anos para se chegar lá.
O Homem-peixe disse:
— Com isso não me incomodo,
minhas formosas princesas, pois até ando melhor na água do que em terra; o que
está me impedindo de fazer a viagem por mar é que não as posso levar e mais o
meu companheiro.
— Não seja esta a dúvida, Homem-peixe.
Se te comprometeres a nos levar por mar, sem perigo, vou fazer um laço para
prender as três lindas princesas e nós dois as levaremos.
Ficaram combinados.
Chegados ao palácio, o rei recebeu
com alegria as filhas, e já tratava os dois companheiros como filhos.
Nesse intervalo, Anselmo,
cansado de procurar as três princesas, sonhou que os três lenços que elas lhes
haviam dado eram encantados, e se ele quisesse o conduziriam ao palácio do rei.
Acordou muito satisfeito,
apanhou o primeiro lenço e disse:
— Voa, meu lenço, para o colo
de tua dona.
O lenço virou papagaio, e
desapareceu.
Quando a princesa o viu,
lembrou-se do seu salvador e disse:
— Meu pai, só me casarei com
o dono deste lenço.
Anselmo fez o mesmo com o
segundo, que foi no colo da segunda princesa, que repetiu ao rei o que sua irmã
dissera.
Vendo os dois lenços se
transformarem em dois papagaios, Anselmo pegou no terceiro:
— Voa, lenço que a princesa
me deu, voa e leva-me até o castelo del-rei, seu pai.
O lenço transformou-se num
grande papagaio com um selinzinho de ouro nas costas.
Anselmo cavalgou-o, e quando
deu acordo estava no palácio.
Descoberto o embuste, Anselmo
casou-se com a mais bonita das princesas. Os dois companheiros foram expulsos,
depois de bem castigados.
As outras duas princesas
casaram-se com dois príncipes vizinhos, senhores de um reino amigo.
No tempo em que os animais
falavam, nesse mesmo tempo chamado do Onça, em que se amarravam os cachorros
com lingüiça, achava-se uma onça dormindo a sesta, enganchada num galho de
árvore, quando exclamou:
— Qual! isto assim não tem
jeito! Estou há longo tempo a procurar cômodo neste pau, e nada de poder
dormir! Vou fazer uma casa para morar.
Foi a um lugar da floresta, e
depois de procurar bem, disse:
— É aqui mesmo; melhor lugar
não poderia encontrar.
Roçou o mato que ali havia,
capinou tudo muito bem.
Mestre Cabrito também andava com
vontade de fazer casa de moradia. Saindo, uma vez, em busca de local
apropriado, deu com o roçado que dona Onça tinha feito horas antes, e disse:
— Bravo! Que belo sítio este aqui!
Parece feito de propósito para uma casinha!
Dizendo isso, pôs-se logo a cortar
grossos paus para servirem de esteios à casa; fincou no chão, e foi descansar.
No dia seguinte chegou dona Onça,
e vendo os esteios já fincados, exclamou:
— Com certeza é Deus quem me está
ajudando. Ontem, apenas limpei o mato, e hoje já venho encontrar os esteios da
casa!...
Cortou mais paus; fez a cumeeira;
pôs as travessas e retirou-se.
Quando o sr. Cabrito chegou, e viu
aquele progresso na construção, exclamou:
— “Qual!
Decididamente Deus Nosso Jesus Cristo está me ajudando! Estou encantado de
graça... Não pode ser outra coisa. Por isso, mãos à obra, sr. Cabrito, quanto
mais depressa melhor.
Então colocou caibros na
casa, e nesse dia deu por findo o serviço, achando que havia trabalhado muito.
Quando dona Onça veio, ainda
mais admirada ficou. Nada disse, todavia. Pregou as ripas e os enchimentos, e
foi-se embora.
O cabrito pôs as varas, os
portais e as janelas, e saiu.
A onça cobriu a casa de
telhas.
O cabrito assoalhou, e fez o
teto.
Um dia, um, outro dia, outro,
trabalharam sucessivamente os dois animais, sem no entanto jamais se
encontrarem, cada um pensando que era Deus que o protegia.
Ficando pronta a casa, dona
Onça fez a cama e deitou-se.
Ainda não tinha ferrado no
sono, quando chegou também o cabrito, que, vendo a onça, disse:
— Não, comadre onça; esta
casa é minha. Fui eu que finquei os esteios, pus os caibros, os portais, as
janelas, etc.
Depois de muita discussão, a
onça, que já estava com vontade de comer o cabrito falou:
— Bem, compadre, não é preciso
fazer questão; vivamos juntos, como bons amigos.
O cabrito, embora com muito
medo, aceitou a proposta da onça, mas, por precaução, armou a cama longe, perto
da janela, para poder escapulir ao primeiro sinal de perigo.
Achava-se ainda na cama, aos
primeiros albores da madrugada, quando a onça se virou para ele, e lhe disse:
— Vou dizer-lhe uma coisa,
compadre Cabrito: quando estou zangada, começo a franzir o couro da testa. Tome
cuidado.
— E eu, comadre Onça, –
respondeu o outro, fazendo-se forte, mas, com verdadeiro pavor, – quando estou
com raiva, começo a sacudir as minhas barbinhas, e se der algum espirro, então
fuja, porque não estou para brincadeiras.
Vendo que o outro não fugia,
a onça saiu, dizendo que ia buscar alguma coisa para comerem.
Meteu-se atrás de uma moita,
num mato muito cerrado, pertinho de um regato, onde os outros bichos costumavam
ir beber água.
Apareceram diversos animais,
mas a onça não se mexeu. Quando, porém, chegou um cabrito grande, muito gordo,
de um salto caiu-lhe ela em cima e matou-o.
Arrastou-o até a casa e, de
fora, já vinha gritando;
— Abra a porta compadre
Cabrito, para eu poder passar com a minha caça!
Mestre Cabrito, já
desconfiado daquele barulho, imaginando ser alguma cilada que lhe armava ela,
respondeu no mesmo tom:
— Está aberta, comadre; basta
empurrá-la.
Quando o cabrito viu o seu
companheiro teve muito medo, e disse consigo mesmo:
— Se ela matou este, que é
maior e mais que eu, como não procederá para comigo?
E protestou ficar cada vez
mais alerta.
Ofereceu-lhe a onça um bocado
de carne, mas o cabrito não aceitou, dizendo já ter almoçado.
***
No outro dia foi ele quem
disse à onça:
— Agora, comadre, sou eu quem
vai à caça. Vou arranjar alguma coisa para comermos.
Embrenhou-se pela floresta
adentro, quando viu uma onça muito grande e gorda.
Disfarçou, e começou a cortar
cipós fortes.
A onça, chegando perto,
indagou:
— Amigo cabrito, para que é que
está você cortando tanto cipó.?
— Oh! Amiga onça, não sabe do
caso? Então não sabe que o mundo está para vir abaixo, que um grande dilúvio e
grande ventania vem cá para a terra? Trate de si, que é o que deve fazer. Eu
vou-me amarrar com estes cipós, porque não quero morrer já.
A onça, com medo, escolheu um
pau bem grosso, e pediu ao cabrito por tudo quanto havia que a amarrasse.
O cabrito amarrou-a
perfeitamente, com uma porção de cipós, e, quando a viu bem segura, matou-a.
Desatou o cipó que a prendia,
e começou arrastá-la até à casinha.
Quando chegou, disse à sua
comadre, que ficara em casa:
— Comadre onça, trago comida
para dois dias, venha ver, e vamos esfolar o bicho, que está gordo que faz
gosto.
A onça, quando viu uma
companheira sua morta pelo cabrito, teve muito medo, mas nada disse.
***
Começaram os dois a ter medo
um do outro.
Um dia, o cabrito estava
perto da janela tomando fresco, quando viu a onça com o couro da testa todo
enrugado, o que nela era sinal raiva.
Teve receio. Começou a
sacudir as barbinhas e deu um grande espirro.
A onça ouvindo-o e
lembrando-se que era sinal da zanga do cabrito, pulou de cima da cama e começou
a correr como uma desesperada, por este mundo afora.
O cabrito, por seu lado,
fugiu também, em direção oposta, com medo da onça.
E os dois ainda hoje se
evitam.
O sr. Aleixo Pitada era um
homem honrado e bom, estimado, por todos que o conheciam, e vivendo sozinho,
num recanto, com sua mulher e seus numerosos filhos.
O pobre velho trabalhava na
roça todo o santo dia, plantando legumes e tratando das frutas, e, aos
domingos, vinha com o tabuleiro de quitanda, à cidade, para vender a sua mercadoria.
A mulher, que se chamava Engrácia,
fazia o serviço da casa; ia ao mato cortar lenha, e à noite ainda ajudava o
marido, descascando o feijão e amarrando os molhos de vagens.
Apesar de trabalharem assim,
tanto, passavam mal, viviam na maior miséria, e nunca tinham dinheiro para comprar
o que precisavam, havendo até dias que nem tinham pão para os filhos.
— Olha, Engrácia; não podemos
dar sustento a nossos filhos, senão trabalhando mais que um boi de canga. Por
conseguinte, se viermos a ter mais algum, levá-lo-ei para a cidade, um domingo,
quando for vender quitanda, e dá-lo-ei a quem quiser aceitá-lo, mesmo ao diabo,
se ele me aparecer.
— Não digas isso, Aleixo,
olha, que não será mais uma boca que nos virá atrasar a vida.
— Já te disse, mulher; se
nascer mais algum filho, dá-lo-ei a quem quiser. Até ao diabo, repito.
Meses após tiveram outro
filho; e, no domingo seguinte, quando o homem foi levar a quitanda ao mercado,
a mulher vestiu o pequeno e entregou-o ao marido.
Assim que Pitada chegou à
cidade, encontrou na entrada da rua que ia dar ao mercado um cavalheiro bem
vestido, perguntando o que era aquilo no braço.
— É um filho que minha mulher
teve há uma semana, meu nobre senhor, e eu trouxe o pequerrucho para ver se
alguém quererá ficar com ele. Sou muito pobre, e não posso sustentar meus
filhos. São tantos, que resolvi dar os que vierem a nascer a quem os quiser.
— Pois eu aceito o menino,
bom homem. Se tens que o dar a outro, dá-mo, que cuidarei bem dele.
O pai entregou a criança, e
depois de vender toda a quitanda voltou para casa muito satisfeito por ter
encontrado facilmente um homem, tão distinto, de tão belas maneiras, que lhe
pedisse o pequerrucho.
Chegando a casa, contou tudo
à esposa, que exclamou:
— Que Deus o proteja, e faça
dele um bom cristão!
***
O cavalheiro que tinha tomado
o menino para criar era o diabo, que ouvira toda a conversa do casal, e viera
buscar a criança.
O menino vivia muito contente
no palácio de seu protetor, onde nada lhe faltava, divertindo-se bastante,
porque passeava e brincava em todos os lugares.
Notava, porém, que seu
padrinho (como, ele chamava Satã), nunca lhe havia mostrado três quartos
existentes no palácio, que estavam sempre fechados, e nos quais nunca tinha
entrado.
Mas, como o respeitava muito,
jamais desejou entrar naqueles aposentos, que tanto despertavam a sua
curiosidade.
Uma vez o diabo, indo fazer
uma viagem, chamou o menino, que então já tinha quinze anos, e disse:
— Vou dar um passeio, e como
me demoro alguns dias, deixo contigo as minhas chaves. Podes correr o palácio
todo à exceção destes três quartos onde não deves entrar, o que te proíbo
expressamente.
Demorou-se satã fora do
palácio quase um mês; e quando voltou pediu as chaves ao menino, que as
entregou sem receio, pois tinha cumprido fielmente ordens recebidas.
Passado tempo, fez segunda
viagem e, antes de partir, entregou ao afilhado chaves com a mesma
recomendação.
Mas o rapaz, desta vez não
pôde conter a sua curiosidade, e supondo que o padrinho nunca viesse a sabê-lo,
foi abrir os quartos.
Descerrando a porta do
primeiro, ficou deslumbrado.
Era um quarto todo forrado de
cobre, transformado numa estrebaria, também de cobre, onde se via um cavalo
castanho muito lindo, e que corria muitíssimo.
Entrando no segundo aposento,
mais adiantado ficou: viu outro quarto todo de prata, e uma estrebaria também
de prata, onde comia um cavalo branco, mais bonito e mais veloz que o castanho,
o primeiro.
Entrou no terceiro
compartimento, e não pôde conter um grito de surpresa.
Era todo ele de ouro, e
também a estrebaria, na qual estava comendo um cavalo preto mais bonito ainda
que os anteriores, e que não corria: voava.
Aqueles três cavalos eram
encantados.
O castanho chamou-o, e
disse-lhe que não tinha tempo a perder, porque o diabo ia chegar da viagem; e,
se o encontrasse ali, era capaz de matá-lo.
O menino ficou com muito
medo, mas o cavalo recomendou:
— Vá à cozinha e embrulhe um
pedaço de sabão num papel, noutro alfinetes, ponha um pouco de água em um vidro
e venha ter comigo depressa. Mas não se demore, senão não respondo por sua
vida.
O mocinho fez tudo aquilo, e
quando voltou, o animal tornou a falar:
— Agora
entre no quarto de ouro, porque ao sair estará dourado, e monte em mim, que
quero salvá-lo.
O maldito, ao chegar, não
encontrou o afilhado.
Correu para os quartos e não vendo
o cavalo castanho, compreendeu que o menino fugira.
Montou no cavalo preto e,
como havia vento, voou, avistando-o horas depois.
Assim que o castanho se viu
perseguido pelo seu dono, que já estava perto, disse para o menino:
— Depressa, jogue o papel com
sabão!...
Apareceu imediatamente um morro de
sabão muito alto, que o cavalo não podia subir, pois escorregava.
O diabo voltou para casa, aborrecido,
mas de repente lembrou-se que, se tivesse levado uma faca, bastaria para cortar
o sabão para poder passar.
Montou novamente e, quando já
o ia alcançando, o castanho disse:
— Depressa, jogue o vidro com
água, senão estamos mortos!...
Transformou-se o vidro em
grande lagoa, e satã, vendo tanta água, voltou com medo de se afogar.
Chegando à casa lembrou-se
que com o poder que tinha, podia fazer desaparecer a lagoa.
Tomou de novo o cavalo e voou
em perseguição do fugitivo, e quando lá chegou não encontrou mais lagoa alguma.
Foi voando, até que chegou a
vê-los de novo.
O castanho, assim. que sentiu
a aproximação do diabo, disse:
— Atire os alfinetes, senão
estamos perdidos...!
O menino fez o que
aconselhava o seu cavalo e viu ,formar-se atrás de si um espinheiro tão cerrado
que ninguém podia passar.
O diabo, na fúria de pegar a
criança, quis romper à força o espinheiro, ficou preso, e de tanto se debater
para sair, morreu todo espetado.
***
Os outros dois cavalos foram ao
encontro do menino, e depois de andarem muito chegaram à capital do reino, onde
governava um rei poderosíssimo.
Este rei tinha uma filha
chamada a princesa Aurora.
Quando ela viu aquele moço
dourado, ficou apaixonada, e foi dizer ao pai que se casaria com ele, custasse
o que custasse.
Sua Majestade recusou-se
terminantemente, porquanto o moço não era filho de rei, nem mesmo fidalgo.
E receando que Aurora ficasse
ainda mais apaixonada ordenou que os soldados formassem um grande quadrado, o
colocassem no centro e o fuzilassem.
A princesa, sabendo daquela
ordem, pediu-lhe que não fizesse aquilo, porque seria a morte do mancebo, que
não poderia escapar a tantas balas.
O soberano recusou-se, e as
suas ordens foram executadas fielmente.
O moço pediu, antes de entrar
no quadrado, que o deixassem morrer montado no seu cavalo:
Deu-se a voz de preparar ...
apontar... e partiram os tiros.
Aurora, ouvindo aquele
estampido, teve um ataque e desmaiou.
Assim que a fumaça se
dissipou, viu-se o moço dourado montado no cavalo preto, voando, do outro lado
do quadrado.
***
O monarca, em vista daquele
caso extraordinário, verdadeiro milagre, estupendo, inaudito, consentiu no
enlace, compreendendo que não tratava de uma pessoa vulgar.
Assim, pouco depois
celebrou-se o casamento e logo que o padre abençoou o casal, viram-se três
pombos brancos voando pelo céu em fora.
Eram os três cavalos que iam
para o céu, já que o moço dourado não precisava mais da proteção deles.
País grande, importante, populoso
e rico, era o que governava Edmundo XXII, rei poderosíssimo. Na capital do
reino existia uma velha, tão velha, que já contava mais de duzentos anos.
Essa velha, a tia Joana, como
todos a chamavam, vivia na floresta numa casa arruinada, tendo por única
companhia um gato.
Dizia-se que ela era adivinha
ou bruxa, e era de acreditar porque tudo quanto dizia saía certo.
Nunca vinha à cidade, salvo
sendo chamada por alguém que quisesse saber do seu futuro.
O rei Edmundo tinha um filho,
único, Roberto, herdeiro e sucessor no governo do país.
Quando sua alteza completou
quinze anos, a rainha, sua mãe, preocupada com o seu futuro, querendo a todo o
custo saber o que lhe reservava o destino, mandou convidar a velha feiticeira
para vir ao palácio e aí ler a buena dicha do príncipe.
A velha, a princípio não quis
dizer o futuro que estava reservado ao príncipe, mas a rainha tanto lhe pediu
que ela profetizou haver o príncipe Roberto de morrer enforcado.
A rainha desde esse dia,
viveu imersa em profundíssima tristeza.
Roberto, notando que sua
querida mãe vivia sempre no quarto, chorando inconsolável, perguntou-lhe o
motivo porque andava tão desesperado.
A rainha nada lhe quis dizer pretextando
moléstia. Mas o jovem príncipe tanto insistiu, que a pobre mãe não teve remédio
senão revelar a causa de sua tristeza.
O moço não se arreceou do
destino lhe estava reservado.
Disse que não se incomodava
com o gênero de morte que teria, porquanto tinha de morrer um dia e, que, nesse
caso, tanto se lhe dava ser desta ou daquela maneira.
Pediu então, já que lhe
estava destinada aquela sorte, que os pais lhe dessem licença para ir correr
mundo, a fim de morrer em país estranho, longe dos seus, e não afligir os pais
com o espetáculo de sua morte horrorosa.
O rei, só a muito custo lhe
concedeu a licença pedida.
Roberto aprontou-se para a
viagem. À despedida a rainha deu-lhe dinheiro que bastasse para se sustentar
durante o resto de sua vida.
***
Começou o
príncipe a correr mundo; e depois de haver percorrido muitas cidades e reinos
foi ter a um pequeno povoado onde existia uma capelinha erguida no alto de um
morro, dedicada a S. Miguel.
O povo desse lugarejo era
muito pobre, de modo que não só a igrejinha como S. Miguel e a figura do diabo
e as demais alfaias do templo, tudo, já se achava em péssimo estado.
O príncipe Roberto,
apiedando-se da miséria em que estavam a capela e as imagens, mandou consertar
tudo à sua custa.
Resolveu, então, demorar-se
aí por algum tempo à frente dos operários, administrando as obras.
Concluídas que foram, o
pintor, disse que ficara um resto de tinta, pois não pintara o Anjo Mau, por
lhe parecer que não merecia a pena, com que o príncipe não concordou, ordenando
que pintasse também a figura do diabo.
Quando tudo ficou pronto e
nada mais faltou, retirou-se da povoação, levando consigo a bênção do povo, que
só assim vira a sua capelinha restaurada.
Roberto continuou a viagem, a
correr mundo, indo ter à casa de uma velhinha, na beira de uma estrada
solitária, a quem pediu pousada por uma noite.
A velha, que era uma bruxa
muito má, cedeu-lhe a pousada pedida e mostrou-lhe o quarto onde ele devia
passar a noite.
O moço, entrando no quarto que
lhe fora destinado, começou a contar o dinheiro que tinha no bolso.
A feiticeira, que estava à
espreita, pelo buraco da fechadura, ficou admirada de ver tanto dinheiro e
correu para a cidade, dizendo que em sua casa estava um estrangeiro a lhe
roubar toda fortuna.
A polícia acompanhada de
soldados bem armados, dirigiu-se para lá e deu voz de prisão ao príncipe,
conduzindo-o para a cadeia amarrado pelos pulsos, com duas cordas grossas.
Ficou Roberto na cadeia à
espera do resultado do processo, quando um dia soube que fora condenado à forca
por gatuno.
Quis se defender, mas nada
conseguiu.
Como era aquela a sua sina,
depressa se resignou.
***
Chegando o dia de ser
executada a sentença, seguiu o príncipe Roberto para a praça em direção à
forca, no meio de uma escolta de soldados de armas embaladas.
São Miguel que estava na
capelinha que o príncipe mandara consertar, virou-se para o diabo e disse:
— Então, agora não estás mais
bonito?
— Estou sim respondeu ele.
— Sabes quem te mandou
consertar?
— Sei. Foi aquele
honrado príncipe que há tempos passou por aqui?
— Pois fica sabendo que este
bom príncipe a esta hora está a caminho da forca, a que foi condenado
injustamente. Está todo amarrado, no meio de uma escolta e daqui a pouco estará
morto. Vai defendê-lo.
Quando o diabo ouviu o que S.
Miguel lhe contou, montou num cavalo preto de crinas de fogo, veloz como um
raio e voou a toda a brida para a casa da velha que dera queixa contra Roberto.
Chegando aí conduziu a bruxa,
que confessou o seu crime, dizendo que o príncipe era inocente, e que ela tinha
feito tudo aquilo com o fim de se apoderar da riqueza do estrangeiro que tinha
pedido pousada.
O rei, sabendo do ocorrido,
por intermédio do diabo, imediatamente lavrou ordem de soltura para o príncipe.
Entregou-a ao diabo, que,
rápido, como o pensamento, foi à praça onde estava levantada forca, e entregou
a absolvição do príncipe ao carrasco.
Já não era sem tempo. Mais
dois segundos demorasse, estaria o príncipe morto.
Roberto foi levado à presença
do rei que perguntou quem era e de onde vinha.
O moço contou-lhe que era
filho do rei de um país muito distante dali; que saíra do reino porque sabia
que a sua sina era morrer enforcado, e não queria que a sua morte fosse no
domínio de seu pai.
O rei ficou penalizado com a
história do jovem.
Obrigou a velha a restituir o
dinheiro que roubara ao moço e mandou prendê-la.
Assim que se viu livre e
embolsado de seu dinheiro, Roberto continuou a viagem.
No meio do caminho
encontrou-se com um fidalgo, montado num cavalo muito bonito e ricamente
arreado.
O cavaleiro perguntou-lhe
para onde ia, ao que respondeu o príncipe que estava correndo terras e não sabia
qual o seu destino, nem podia dizer onde ia pernoitar.
E pelo caminho foram andando
em direção à capelinha que o príncipe havia anos mandara consertar.
Durante a viagem o príncipe
contou ao cavaleiro a sua história, como tinha se tinha livrado da forca, mas
que tinha a certeza de morrer enforcado porque era aquela a sua sina.
O fidalgo, então lhe disse:
— E não sabeis quem vos
salvou quase na hora da morte?
— Não, disse o príncipe.
— Pois sabei que fui eu. Eu
sou a figura daquele diabo que o pintor não quis pintar por não valer a pena, e
que ordenaste consertar e pintar. Sabendo do embaraço em que vos acháveis, vim
ao vosso encontro. Podeis voltar para vossa terra. A vossa sina está
desmanchada, em vosso lugar foi enforcada aquela bruxa que era feiticeira. O
encanto está quebrado.
Dizendo isso o cavaleiro
sumiu-se e foi para sua morada na capelinha.
O príncipe ao passar pela
capelinha, entrou e começou a rezar.
Depois voltou para a sua
cidade, onde encontrou seus pais que o receberam com grande contentamento.
Já o rei Edmundo sabia que a
sina do seu filho estava desmanchada, porque Joana fora ao palácio contar a
história do príncipe Roberto.
Quantos séculos correram depois
da história que vamos narrar, não sei, nem pessoa alguma poderá sabê-lo, só se
sabe que, por esse tempo, existiu o reino das Maravilhas, e nele uma jovem tão
linda, que nada neste mundo se podia comparar. Chamava a princesa dos Cabelos
de Ouro, porque os seus cabelos eram louros, tão louros, que pareciam feitos de
raios de sol, e tão grandes e crespos que chegavam aos pés.
O seu nome, porém, era
Mirtes.
A princesa andava sempre com
os cabelos desenastrados; tinha uma coroa de flores na cabeça, e usava vestidos
bordados a ouro, diamantes e pérolas, de sorte que, quem a via, ficava logo
apaixonado pela sua formosura.
Existia em Gabor, país
vizinho, um rei ainda moço e solteiro, chamado Frederico, e possuidor de
extraordinária riqueza.
Sabendo da existência da
princesa dos Cabelos de Ouro, conquanto nunca a tivesse visto, ficou
apaixonadíssimo, resolvendo enviar um embaixador pedindo-a em casamento. Para
isso mandou preparar um carro de ouro, puxando por cavalos brancos, e seguido
de mais de cem criados, recomendando que lhe trouxessem a princesa Mirtes, a
todo o custo.
O embaixador chegou ao reino
das Maravilhas e entregou a mensagem. Mas, ou porque nesse dia não estivesse de
bom humor, ou aquela comitiva toda não lhe parecesse a ela suficiente para uma
princesa tão linda, o fato é que respondeu que agradecia muito ao rei
Frederico, tão alta distinção, mas que não pensava ainda em casar.
O embaixador saiu, da corte
muito triste por não regressar com ela para Gabor, voltando com todos os presentes
que levara da parte de seu senhor.
Mirtes, que era sensata,
sabia que uma moça não deve receber presentes de um rapaz, mas, para o rei não
tomar essa recusa, como ofensa, aceitou apenas uma carta de alfinetes.
Assim que o embaixador chegou
à cidade, onde era esperado impacientemente, todo o mundo se afligiu por não
haver ele trazido a princesa dos Cabelos de Ouro; e o rei chorou, sabendo do
resultado da embaixada.
***
Ora, havia na corte um pajem de
beleza extraordinária, tão lindo que era conhecido pelo apelido de Formoso.
Todos o estimavam muito,
menos os cortesãos invejosos que se incomodavam com a preferência que lhe dava
o rei Frederico encarregando-o dos seus mais importantes negócios.
Formoso, estando uma vez a
conversar num grupo, onde se falava da volta do embaixador, criticando de sua
inépcia em comissão tão melindrosa, sem refletir no que dizia, assim se
externou:
— Se o rei me tivesse enviado
em embaixada à princesa dos Cabelos de Ouro, estou certo que a traria comigo.
Não faltaram alcoviteiros que
fossem ao rei e dissessem:
— Saiba vossa real majestade
que o pajem se gaba de ser capaz de trazer a princesa dos Cabelos de Ouro,
assim que vossa majestade o mande. Considere bem vossa majestade no seguinte:
Formoso, com isso quer ter a pretensão de ser mais belo que o nosso rei,
pensando que se a princesa o visse, o amaria tanto que o acompanharia.
O rei ficou desesperado
ouvindo tão pérfida intriga, e exclamou:
— Ah! esse pajem
brinca com a minha desgraça! Pois bem: prendam-no na torre grande e que o
deixem lá até morrer de fome.
Os soldados do rei foram à
casa de Formoso, que já nem se lembrava mais do que dissera; arrastaram-no à
prisão, e aí fizeram-lhe as maiores atrocidades.
O pobre rapaz só tinha um
bocado de palha para se deitar; e teria morrido de sede se não fosse pequena
uma fonte que corria perto da torre onde estava preso.
Um dia em que já não podia
mais, exclamou suspirando:
— De que se queixa el-rei meu
senhor? Nunca fui infiel, nunca o ofendi. Porque estou preso, quase a morrer de
fome?
Frederico, por acaso passava
perto da torre. Quando ouviu a voz daquele que tanto estimara, parou para
ouvi-lo, apesar dos vassalos que estavam ao pé do rei e que odiavam Formoso,
dizerem:
— Não lhe ouvidos, real
majestade. Não sabe que Formoso é um tratante?
O rei respondeu:
— Deixem-me quero
ouvi-lo.
Tendo escutado aquelas
queixas, as lágrima subiram-lhe aos olhos.
Abriu a porta da prisão e
chamou o seu pajem favorito.
Formoso veio muito triste se
ajoelhar aos pés do rei dizendo:
— Que lhe fiz, senhor, para
me tratar tão cruelmente?
— Zombaste de mim e do meu
infortúnio, dizendo que se eu te houvesse enviado como embaixador à princesa,
traze-la-ia com certeza.
— É verdade, disse Formoso,
eu teria feito a princesa conhecer as qualidades de tão ilustre monarca, e
estou persuadido que ela não recusaria aceitar o meu ilustre rei por esposo.
Suponho que isto não é caçoar nem falar mal de vossa majestade.
Frederico achou que não
tivera razão para ser tão cruel.
Mandou que lhe tirassem os
ferros e levou-o consigo, arrependido da maldade que fizera.
Depois de mandar Formoso
jantar em sua companhia, chamou-o aos seus aposentos e lhe disse:
— Ainda amo apaixonadamente a
princesa Cabelos de Ouro, e apesar da recusa que tive, não desanimo de me vir a
casar com ela. Queres ser meu embaixador?”
— Senhor, respondeu o pajem:
Estou pronto para cumprir vossas ordens. Se quiserdes partirei amanhã.
— Amanhã, não, disse o rei:
quero mandar uma embaixada mais rica do que a primeira.
— Perdoe-me vossa
majestade, mas não desejo levar comitiva alguma. Desejo apenas que me mande dar
um bom cavalo e as cartas que devo entregar à princesa.
O rei abraçou-o, vendo a
disposição com que estava ele de o servir.
No dia seguinte de manhã,
Formoso partiu sem pompa nem ruído, pensando no meio que empregaria para fazer
Mirtes dar o sim.
Levava consigo uma pasta,
onde havia tudo quanto era necessário para escrever: papel, pena, tinta, lápis,
etc., e quando vinha à sua cabeça um bonito pensamento, escrevia-o no seu
livrinho de notas para o não esquecer e poder dizê-lo à princesa.
Assim procedendo o fiel
pajem, pensava apenas na maneira de ser agradável à princesa para ver se ela
consentia em se casar com seu amo.
Uma manhã, passando ele por
um prado extensíssimo, apeou-se do cavalo em que ia montado, e sentou-se em uma
pedra, à margem do rio que atravessava o campo. Admirava a beleza do lugar
quando viu uma piaba pular fora da água e debater-se durante alguns segundos.
O pobre peixinho ia morrer
quando Formoso o apanhou, atirando-o ao rio.
Assim que a piaba sé sentiu
outra vez na água, nadou rapidamente para longe da margem, voltando, porém,
logo após para dizer:
— Formoso, agradeço-te
muito o serviço que acabas de me prestar. Se não fosses tu, estaria morta.
Talvez algum dia te pague esta dívida.
Disse e desapareceu.
O pajem ficou admirado de ver
um peixe falar, mas não se importou mais com o caso e seguiu viagem.
Em outro dia viu um corvo
perseguido por uma águia.
O corvo voava para um lado e
para outro, mas sempre perseguido. Estava prestes a cair no bico do seu
inimigo, quando o rapaz que assistia àquela luta apanhou a espingarda e fazendo
boa portaria, matou a águia.
Vendo-se livre, o corvo fugiu
para longe, dizendo:
— Formoso, livraste-me de uma
morte certa. Se não fosse o teu socorro estaria nas garras do meu perseguidor.
Nada valho; sou apenas um pobre corvo, mas talvez algum dia te possa pagar esta
dívida, porque não sou ingrato.
Mais admirado ficou ainda
Formoso, vendo um pássaro falar.
Seguiu adiante e já estava
muito distante, quando ouviu uma coruja piando desesperadamente.
O pajem disse consigo:
— Eis aí uma coruja que está
piando demais. Com certeza caiu em algum laço que caçadores armaram.
Adiantou-se mais e viu uma
grande coruja presa numa armadilha colocada no galho de uma árvore.
Tirou da bainha uma faca, que
trazia e cortou o barbante que a prendia.
— Não é necessário, Formoso,
fazer discursos para agradecer o bem que me acabas de fazer. Sou uma coruja que
para nada presta. Mas, se algum dia precisares de mim, estarei pronta para te
servir. Talvez ainda te pague este beneficio que me fizeste.
Foram estas as três aventuras mais
importantes que aconteceram ao jovem pajem Formoso, no trajeto de Gabor até o
palácio do reino das Maravilhas, onde residia Mirtes, a linda princesa dos
Cabelos de Ouro.
Formoso tinha pressa de
chegar ao reino da princesa dos Cabelos de Ouro para dar conta de sua
embaixada.
Dois dias depois de sua
última aventura, aportava à capital. Pediu que lhe ensinassem onde ficava o
palácio, e disseram-lhe:
— Siga por esta rua, em
frente, quando chegar ao fim, encontrará uma praça muito grande que tem um
chafariz de mármore, o qual em vez de jorrar água, jorra leite para os pobres
que a princesa manda dar. Em frente a este chafariz fica um palácio muito
bonito; é aí que mora a princesa Mirtes.
O pajem seguiu pela rua que
lhe haviam ensinado, ficando maravilhado ao chegar em frente ao edifício.
Nunca vira nem mesmo
imaginara em sonho um palácio tão rico. Era um grande castelo todo de mármore
cor-de-rosa, com portas e portais de ouro maciço. Ao redor via-se um gradil de
prata lavrada de uma riqueza maravilhosa.
Vestiu-se com a roupa mais
rica que tinha e dirigiu-se para o palácio levando consigo um cachorrinho que
comprara à entrada de um bosque a alguns meninos que queriam atirar o
animalzinho no rio.
Como dissemos, Formoso era um
lindo rapaz. Apresentou-se aos guardas do palácio da princesa, dizendo-lhe o
que queria, é os soldados acharam-no tão bonito, simpatizaram tanto com ele que
o deixaram passar.
Lacaios foram avisar a
princesa que o Formoso, o pajem de um rei vizinho, desejava uma audiência.
Mirtes ao ouvir o nome do
pajem disse:
— Formoso é um nome que
significa alguma coisa; não foi à toa que lhe deram esse nome. Aposto que é um pajem
bonito e que me vai agradar.
— É verdade, princesa,
disseram as damas de honra; é um rapaz de uma beleza extraordinária. Nós o
vimos através das persianas e ficamos tão admiradas de sua beleza, que não
saímos da janela enquanto ele falava com os guardas do palácio.
Mirtes mandou então buscar o
seu vestido mais rico e depois de desatar os seus cabelos louros da cor do sol,
foi sentar-se no trono, dizendo:
— Quero que esse pajem tão
bonito diga que sou verdadeiramente a princesa dos Cabelos de Ouro.
As damas estavam com tanta
curiosidade de ver Formoso, que não sabiam mais o que faziam.
A princesa, depois de pronta,
sentou-se no trono e mandou que começassem a tocar vários instrumentos e
cantassem baixinho, de modo que não interrompessem a conversa.
Conduziram Formoso à sala das
audiências e, ele, ao entrar, ficou admirado, tão admirado de ver uma moça tão
linda, a ponto de perder a voz. Encorajando-se adiantou-se um pouco, e
comunicou à princesa o fim de sua embaixada.
— Formoso, respondeu ela,
todas as razões que me dás para me casar com teu rei são muito aceitáveis, e eu
as aceitaria de bom grado se não fosse o seguinte. Há um mês, indo eu tomar
banho no rio, sem saber como, por descuido mesmo, caiu dentro d’água o anel que
trazia ao dedo, com um enorme brilhante. A perda desse anel foi para mim maior
que a do meu trono. Fiz um juramento de não aceitar proposta alguma de
casamento, se o embaixador que para isso viesse ter comigo, não trouxesse o meu
anel. Vê, portanto, o que te compete fazer. E não há nada neste mundo
que me faça mudar de resolução.
Formoso ficou admirado de
ouvir tal juramento e retirou-se para casa muito triste, sem saber que fazer.
Dizia o pobre rapaz.
— Onde irei achar o tal anel,
e como posso encontrá-lo no fundo do rio? A princesa inventou esse juramento
para me colocar na impossibilidade de reiterar o pedido de sua mão para o rei
Frederico. É até uma loucura empreender encontrar uma jóia que caiu no rio.
O cachorrinho, que se chamava
Peri, lhe disse:
— Meu senhor, não desespereis
assim de vossa fortuna; tendes sido muito bom, para não serdes feliz. Vamos
amanhã cedinho à beira rio.
Formoso afagou o animalzinho
e nada respondeu.
Sultão, assim que rompeu o
dia, tanto gritou, tanto latiu, que acordou o amo e lhe disse:
— Meu amo, vesti-vos e vamos
até ao rio.
O rapaz vestiu-se e caminhou
insensivelmente para a margem do rio. Passeava muito triste, pensando como
fazer a vontade da princesa, e já planejando o dia de sua partida, quando ouviu
uma voz que dizia:
— Formoso, Formoso!
Olhou para todos os lados e
não viu pessoa alguma.
Pensou que fora uma ilusão e
começou a passear quando ouviu de novo:
— Formoso, Formoso!
— Quem me chama? disse ele.
Imediatamente apareceu a
piaba, que lhe disse:
— Salvaste-me a vida,
Formoso, um dia à beira de um rio, muito longe daqui. Prometi pagar essa
dívida. Aqui tens o anel da princesa dos Cabelos de Ouro.
O pajem abaixou-se, apanhou
da boca do peixe o anel, agradecendo muito.
Em vez de voltar para casa,
dirigiu-se imediatamente ao palácio da princesa, com Sultão, que estava muito
satisfeito de ter conseguido seu senhor ir até à beira do rio.
Disseram à princesa que o
jovem pajem pedia para lhe falar.
— Coitado! O pobre rapaz,
disse ela, veio se despedir de mim, pois viu que o que eu quero é impossível, e
vai dizer isso ao seu rei.
Fizeram entrar o pajem que
disse:
— Princesa aqui está o seu anel
e, portanto cumprida a sua ordem. Quer agora receber meu rei por esposo?
Quando Mirtes viu o anel
ficou tão admirada que pensava sonhar.
— De fato, é preciso que
sejas protegido por alguma fada, porque, sozinho, não acharias esta jóia.
— Princesa, não conheço
nenhuma fada, porém, o desejo que tenho de obedecer é grande.
— Já que tens tanta vontade
de me servir, faze-me outro serviço, sem o que não me casarei. Há um príncipe
vizinho do meu reino que tem vontade de se casar comigo. Fez-me sabedora disso
por meio de ameaças temíveis que se eu não me casar com ele desgraçará meu
reino. Assim, qualquer dos meus vassalos que entra no seu país é logo morto e
comido por ele. Esse príncipe é o gigante Baltasar, tão alto como a mais alta
torre. Quando vai à caça, serve-se de canhões como se fossem pistolas. É o meu
maior inimigo, por isso se queres que me case com o teu rei, vai matá-lo e
traze-me a sua cabeça.
Formoso amedrontou-se ouvindo
tanta coisa de um gigante e mais ainda quando a princesa comunicou querer que
ele trouxesse a cabeça do seu inimigo.
Ficou muito tempo pensativo e
depois disse:
— Pois bem, princesa, eu vou
combater com Baltasar. Com certeza morrerei, porém, serei um herói.
Arranjou armas e partiu em
direção ao palácio do gigante.
No caminho, todos que
encontrava diziam-lhe que desistisse da empresa.
Tanto falaram do gigante,
contaram tantos horrores que Formoso já estava desanimado.
Nisto disse o cachorrinho:
— Meu amo, vá sem susto. Eu
mordo-lhe os calcanhares, e quando o gigante se abaixar para ver o que é,
meta-lhe a espada.
Enfim, chegou perto do
palácio de Baltasar, onde encontrou ossos, caveiras de corpos humanos que tinha
sido comidos pelo gigante.
Começou a ouvir um estrondo
que mais parecia trovoada.
— Onde estão os pequenos
homens para eu trincar nos dentes?
Era o gigante que aparecia
mais alto do que as árvores.
Formoso respondeu: – Aqui estou
para com minha espada quebrar teus dentes.
Quando Baltasar ouviu aquilo,
olhou para todos os lados e viu o pajem mais baixo que os seus joelhos.
Arremessou com fúria uma bengala de ferro muito grossa, que trazia consigo,
como se fosse uma varinha, e teria esmagado Formoso, se nessa ocasião não
aparecesse um corvo, que, com o bico, lhe furou os dois olhos. Este, ao sentir
a dor, e vendo-se cego, começou a bater a torto e a direito sem nada conseguir.
Formoso, começou a ferir as
pernas do gigante, que cada vez mais se enfurecia.
Tanto sangue perdeu o gigante
que afinal caiu por terra; e Formoso, aproveitando, cortou-lhe a cabeça para
levá-la à princesa.
O corvo que fora se
empoleirar numa árvore assim que viu o gigante sem cabeça, dirigiu-se ao pajem
desta maneira:
— Não me
esqueci do serviço que me fizeste há tempos, salvando-me das garras de uma águia.
Não te lembras, Formoso? Agora estamos pagos.
— Eu é que te
devo ainda, corvo, disse o pajem. Se não fosses tu, estaria agora reduzido a
migalhas.
Montou o cavalo levando na
garupa a cabeça do gigante.
Assim que o pajem entrou na
cidade, o povo começou a gritar:
— Venham ver o
bravo Formoso que matou o gigante Baltasar.
A princesa, ouvindo aquela
enorme gritaria pensou que vinham lhe comunicar a morte do pajem.
Ficou admiradíssima ao saber
que trazia a cabeça do gigante.
Formoso lhe disse:
— Agora princesa, nada lhe
resta senão consentir em desposar o meu amo, o poderoso rei Frederico, já que o
nosso inimigo está morto.
— Consentirei em ser a esposa
do teu rei, intrépido e corajoso pajem. Para isso é preciso no entanto que me
prestes um último serviço. Desde já previno-te que é o mais arriscado de todos.
Queres assim ou preferes dizer ao teu rei que nada conseguistes?”
— Princesa, já que comecei
irei até ao fim, disse Formoso, falai que estou ao vosso serviço.
— Pois, então, ouve:
— Consentirei em me casar com
o príncipe Frederico, se me trouxeres um pouco da água da gruta Tenebrosa. É
uma gruta que existe perto daqui, com dez léguas de circunferência; sua entrada
é guardada por dois dragões que impedem a aproximação de qualquer mortal,
deitando fogo pela boca e pelos olhos, de sorte que não pode escapar da morte
quem se aventura a ali penetrar. Quando se desce à gruta vê-se a duzentos
passos um único buraco, que é ao mesmo tempo entrada e saída. Esse buraco está
cheio de serpentes, cobras, lacraias, em suma, toda a espécie de bichos
venenosos. No fundo dele é que está a fonte da Beleza e da Saúde. É essa água
que eu quero. Quem se lavar com ela se é velho, fica moço; se é doente, são; se
é feio, torna-se bonito; e se é bonito torna-se lindo como os amores.
Compreendes, Formoso, que não posso deixar meu reino sem ter essa água. Vai e
traze-me um frasco cheio dela.
— Princesa, disse o pajem,
sois tão bela que esta água vos é inútil. No entretanto, seja feita a vossa
vontade: irei buscar o que deseja embora na certeza de não voltar.
A princesa dos Cabelos de
Ouro, não mudou de resolução e o pajem partiu no dia seguinte em direção à
gruta.
Sabendo do destino que levava,
dizia toda a gente:
— É pena que um moço tão
bonito, tão amável, vá à fonte dos Dragões. Nem que fossem mil soldados cada
qual mais valente, lá ficariam, quanto mais ele, que vai só. Para que anda a
princesa a pedir impossíveis?
O pajem, entretanto,
caminhava sempre. Chegando ao alto de uma montanha, sentou-se para descansar.
Deixou o cavalo pastando e Peri começou a seguir alguns pássaros. Formoso sabia
que a gruta era por ali perto, e olhava para ver se distinguia alguma coisa.
Descobriu afinal um rochedo,
negro como tinta de onde saía fumaça. Após dois minutos, viu um dragão que
deitava fogo pelas goelas, com o corpo malhado de preto e amarelo, e uma grande
cauda que se enroscava numa infinidade de voltas.
O cachorrinho latiu, assim
que avistou tão medonho bicho, e não sabia onde se esconder, tanto era o medo
que tinha.
O pajem, estando resolvido a
morrer, apanhou a garrafa que a princesa lhe dera para encher. Com a outra mão
segurou na espada, dirigiu-se para a entrada da gruta, e disse ao cãozinho:
— Tudo está acabado para mim.
Nunca poderei apanhar esta água, guardada por dois dragões. Quando eu morrer,
meu leal Peri, enche a garrafa com o meu sangue, e leva-o à princesa, para que
ela veja quanto custou o seu capricho. Volta em seguida para o reino do nosso
senhor e conta-lhe a minha desgraça.
Havia apenas acabado de
proferir tais palavras, quando ouviu:
— Formoso, Formoso!
— Quem me chama? indagou. Olhando em torno viu por acaso
no buraco de uma velha árvore, uma coruja, que lhe disse:
— Há tempos
livraste-me de um laço que caçadores me tinham armado. Salvaste-me a vida.
Quero te pagar essa dívida. Dá-me a garrafa que irei buscar a água da fonte da
Beleza e da Saúde.
Formoso deu-lha, e, em menos
de um quarto de hora, viu a coruja de volta com o vaso cheio.
Montou a cavalo, e
apressadamente cavalgou para o palácio da princesa, depois de agradecer
muitíssimo ao pássaro aquele favor que lhe fizera, livrando-o da morte.
Apresentou à moça a garrafa;
e ela agradecendo, deu ordem para que se preparasse tudo para a sua viagem.
***
No entanto a princesa achava
Formoso cada vez mais amável, e dizia:
— Se quisesses
eu te teria feito rei, e não teríamos partido do nosso reino.
Ele, porém, respondia:
— Nem por todos
os reinos da terra, eu seria capaz de trair meu amo, conquanto vos considere
mais linda que o sol.
Passados alguns dias, a comitiva
chegou, enfim à grande cidade do rei Frederico, que sabendo da vinda da
princesa dos Cabelos de Ouro, foi ao encontro, levando os mais belos e ricos
presentes do mundo.
Semanas após, casou-se o rei
com a princesa. A moça, entretanto, que amava Formoso do fundo de seu coração,
só estava satisfeita quando o via, e vivia sempre a louvá-lo.
— Eu não seria tua esposa,
Frederico, se não fosse Formoso, que fez coisas impossíveis. Por minha causa,
deves ser-lhe grato. Se não fosse a sua intrepidez, eu não possuiria a Água da
Beleza por meio da qual nunca envelhecerei, e serei eternamente bela.
Os intrigantes, que ouviram a
rainha, disseram um dia ao rei:
— Vossa real majestade não é
ciumento, e tem contudo bastante motivos para o ser: a rainha gosta tanto de
Formoso, que não come no dia que não o vê. Elogia-o a todo o momento; diz que
lhe deve muitas obrigações; que ele é um herói como se outro qualquer que fosse
designado a embaixada não fizesse tanto como ele.
— Na verdade, previno-me a
tempo. Prendam-no na torre com ferros nos pés e nas mãos, ordenou ele.
Os intrigantes e invejosos,
que não viam com bons olhos as atenções e honras que os soberanos prestavam a
Formoso, apressaram-se em cumprir a ordem real.
Encarcerado nos lôbregos e
úmidos subterrâneos da torre, Formoso vivia isolado e esquecido, exceto pelo
carcereiro que, assim mesmo, lhe atirava por um buraco um pão duro e lhe dava
água numa caneca de ferro.
Todavia, Peri, o seu fiel
cão, não o abandonou. Todos os dias vinha visitá-lo, e contava-lhe as novidades
ocorridas no palácio.
Quando a
princesa soube da desgraça que acontecera ao pajem, lançou-se aos pés do rei,
pedindo o perdão do corajoso mancebo. Frederico, porém, enfurecido pela
proteção de sua mulher ao pajem. maltratava cada vez mais o pobre moço.
Torturado de ciúmes, julgando
que não era bonito, a ponto de não saber fazer-se amar pela esposa, o rei
resolveu lavar o rosto com a preciosa água da Fonte da Beleza, que se achava
numa garrafa sobre a toilette da rainha, onde ela própria a guardava,
para melhor a vigiar.
Aconteceu, porém, que uma das
criadas, indo uma vez espanar o lavatório, desastradamente atirou a garrafa ao
chão, quebrando-a, e perdendo assim todo o precioso líquido.
Amedrontada, foi aos
aposentos do rei Frederico, e apanhou uma garrafa, em tudo semelhante à que
quebrara e substituiu-a.
A água que essa outra
encerrava tinha a particularidade de matar a pessoa que lavasse o rosto com
ela.
Frederico, que não sabia da troca
feita pela criada, lavou-se na água e morreu pouco depois.
O cãozinho, assim que soube
da morte do rei, chegou perto da rainha e disse-lhe:
— Linda rainha, não vos
esqueçais do pobre Formoso.
A rainha, lembrando-se das
penas e maldades que por sua causa o pajem sofrera, correu à torre, e com as
suas próprias mãos tirou os ferros que torturavam o pajem. Depois,
colocando-lhe uma coroa de ouro sobre a cabeça e o manto real sobre os ombros,
exclamou:
— Vem, amável Formoso,
faço-te rei e tomo-te para meu esposo.
Os invejosos e perversos
cortesãos que tanto haviam intrigado o ex-pajem, foram condenados à pena
última, e subiram à forca.
Um ano depois, findo o luto,
a princesa dos Cabelos de Ouro celebrava o seu casamento com o valente Formoso,
realizando-se imponentes festejos que duraram sete dias e sete noites, toda uma
semana de folguedos, luminárias, bailes públicos, espetáculos gratuitos, e mil
festejos diversos.
Roberto era muito trabalhador
e serviçal. Sempre que alguém precisava dos seus serviços, prestava-os de boa
vontade, sendo por esse motivo estimadíssimo toda a gente que o conhecia.
Tinha ele três filhas, cada
qual mais bonita, principalmente a mais moça, de beleza extraordinária, chamada
Marocas.
A pobre família vivia da
pesca que o homem fazia todas as madrugadas, indo, durante o dia, vender o
peixe pelas ruas da cidade próxima.
O seu único sustento e de
toda a sua numerosa família era a pesca. Parte da noite, até romper a manhã,
Roberto passava pescando. Durante o dia, ia vender o peixe de casa em casa. À
tarde tratava da canoa, das linhas e das redes.
Feliz no seu negócio, trazia
sempre a canoa cheia de peixes grandes e bons.
Um dia lançou a rede ao mar e
nada trouxe.
Lançou-a outra vez, e só
vieram peixinhos peixinhos, que nada valiam.
No dia seguinte aconteceu-lhe
o mesmo que na véspera. Deitou a rede diversas vezes; e, nada tendo conseguido,
ia voltar para casa, desolado, pensando que naquele dia sua família não teria o
que comer.
De súbito ouviu uma voz que
partia do mar:
— Roberto, terás muito peixe,
se me prometeres trazer o que avistares, assim que chegares à casa.
O pescador respondeu que
daria, pois sempre chegava à praia, encontrava o cachorrinho de Marocas, que ia
esperá-lo, latindo a saltando alegremente.
Tendo-o prometido, os peixes
começaram a saltar para a canoa, e ele nesse dia obteve muito dinheiro com a
sua venda.
De volta o pobre velho ia
quase abicando à praia, contentíssimo por ter dinheiro para dar à família,
quando ao olhar para a terra viu sua filha mais moça, Marocas, justamente
aquela por quem tinha maior predileção.
Ficou desesperado, aturdido,
triste, lembrando-se da promessa e chegando à casa contou à família o que se
tinha passado.
Quando acabou de falar a
menina respondeu:
— Meu pai, não chore por tão
pouco. Eu vou e estou certa de que é para meu bem. Com certeza serei muito
feliz, e demais minha família terá sempre com que se sustentar.
Roberto vendo como a filha se
sacrificava por ele de tão boa vontade, ficou menos pesaroso. No dia seguinte,
pela madrugada, embarcou com ela na canoa de pesca.
Assim que chegou ao lugar
onde ouvira a voz, as águas se separaram um pouco, e o pescador atirou Marocas,
que desapareceu imediatamente.
Voltou para terra com a canoa
cheia de peixes, sem ter sido preciso lançar a rede.
A moça foi ter a um palácio
no fundo do mar, habitado pelo Rei dos Peixes, que fora quem havia falado ao
pescador.
Encontrou aí tudo quanto lhe
era necessário: salas e quartos mobiliados, vestidos riquíssimos e jóias de
subido valor.
Entre essas jóias havia um
anel de brilhantes, muito rico, com uma dedicatória feita pelo soberano dos
peixes.
Contudo, apesar de tudo isso,
Marocas vivia tristíssima, porque não via pessoa alguma, principalmente os
seus.
O serviço da casa era feito
por encanto, pois nunca vira um ser vivente no palácio, e os objetos estavam
sempre em ordem.
Depois de já estar habituada
àquela solidão, na noite, quando já estava deitada, a formosa Marocas ouviu
ruído.
Sentiu-se receosa, assustada,
esperando ver entrar algum monstro, algum bicho que viesse matá-la.
Sossegou, porém, ao ver
entrar um enorme peixe, com uma coroa de ouro na cabeça.
Era o rei dos Peixes. Entrou
silencioso, quase sem fazer bulha, andando naturalmente em seco como se
estivesse na água.
O rei entrou dentro, e logo
após saiu, aparecendo aos olhos deslumbrados da jovem um moço elegante e lindo,
ricamente vestido à corte, com trajes de gala, que bem indicavam o seu
nascimento real. Sempre calado, aproximou-se da moça e pôs-se a contemplá-la,
enleado, maravilhado.
Marocas disse-lhe então:
— Príncipe, porque não vieste
há mais tempo?
— Porque receei
que, vendo um peixe tão feio, tivesses medo. Se vim hoje admirar tua beleza,
foi porque julgava que dormias.
Desde esse dia, Marocas e o
rei dos Peixes viveram juntos, completamente felizes. O serviço do palácio
continuava a ser feito por encanto. O único ser vivo que a moça via era o
Rei-peixe e sempre nessa figura.
Apenas uma vez, de sete em
sete dias, deixava aquela aparência, para vir a ser o príncipe encantador,
divinamente belo, que era em verdade.
Estavam casados havia já um
ano, quando uma vez, Marocas lhe pediu, rogou, suplicou, insistentemente que a
deixasse ir ver sua família.
— Podes ir, respondeu o
príncipe, mas com a condição de só te demorares lá uma semana. Quando quiseres
voltar, põe este anel no dedo, que imediatamente estarás aqui. E deu-lhe um
anel de aço.
A moça pôs num baú muita
roupa e presentes que levou à família, e no dia seguinte quando o velho Roberto
veio pescar, apareceu na canoa e foi com ele para terra.
Em casa ficaram todos muito
alegres ao vê-la, e sua mãe e suas irmãs começaram a indagar como vivia ela; se
estava satisfeita; se o noivo era bonito.
Marocas respondeu que julgava
que era, que não garantia, pois só via o príncipe de noite.
Lembraram-lhe, então, a
conveniência de levar para o fundo do mar um pedaço de vela, para se o rei de
fato era bonito.
A jovem concordou. Ao sexto
dia, chegando ao palácio, não dormiu à noite, esperando que o príncipe
adormecesse primeiro que ela.
Assim que o ouviu ressonar,
saiu da cama, com a vela acesa, e foi se certificar da beleza do noivo. Tendo
porém, chegado a vela muito perto, deixou cair um pingo de sebo no peixe. Ficou
trêmula de medo, receando que ele acordasse, e com o tremor, derramou mais
outros pingos, os quais se transformaram em chagas.
O Peixe-rei acordou, sofrendo
horrivelmente, e exclamou:
— Foste tu a
causa destas chagas Se quiseres viver comigo, tens que me procurar num lugar
muito distante daqui, chamado pico do Amor.
Assim que o peixe acabou de
dizer essas palavras, desapareceu por encanto, e Marocas viu-se num lugar
deserto, em meio de uma mata virgem.
Começou a caminhar muito
triste; e, como estava fatigada, sentou-se debaixo de urna árvore, e ouviu esta
conversa:
— O rei dos
Peixes está muito mal e ninguém pode pô-lo bom, porque não sabem qual é o
remédio necessário.
Disse outra voz:
— Nada mais fácil, basta
apanhar três de nós, torrar-nos e colocar esse pó nas feridas.
Disse uma terceira voz:
— Ai de nós, se souberem
disso!...
A moça levantou-se para ver onde
estavam as pessoas que assim falavam.
Ficou admirada quando viu
três andorinhas, que conversavam no alto de uma árvore.
Armou um laço e apanhou-as.
Imediatamente torrou-as, guardando cuidadosamente o pó.
Continuou a andar, até que
chegou finalmente ao pico do Amor, por onde se entrava para o palácio do rei
dos Peixes.
Soube que ele estava quase
para morrer e pediu que a deixassem falar com o rei, o que os criados não
consentiram. Não desanimou. Insistiu outra vez, tanto, tanto, que conseguiu
mandar-lhe um prato de mingau.
O príncipe começou a comê-lo,
e quando pôs a segunda colherinha na boca, sentiu que havia um caroço misturado
no mingau. Foi ver o que era, e reconheceu o anel que tinha dado à filha do
pescador.
Ordenou que trouxessem a
mendiga ao quarto e conheceu a moça.
Dias depois já estava
restabelecido, graças ao remédio das andorinhas que Marocas trouxera.
Voltaram ao Palácio do Mar
apanharam todas as riquezas e foram morar em terra.
Mandaram buscar o pescador
Roberto e sua família, e casaram-se dias depois.
O príncipe desencantou-se de
uma vez e nunca mais se transformou em peixe.
Sebastião nascera de pais
opulentos. Desde a mais terra infância vivia no meio de grande esplendor, só
vestindo seda, gorgorão, veludo, rendas finas; deitava-se em berços riquíssimos
e luxuosos; tinha à sua disposição toda a sorte de brinquedos. No entanto, a
natureza fê-lo cretino, pateta, tatibitate.
Aos oito anos começou a
freqüentar bons colégios, e a aprender com professores célebres. Contudo, nunca
perdia o ar de tolo que tinha desde criança.
O sr. Leocádio, seu pai,
resolveu um dia mandá-lo viajar, para ver se ele assim conseguia melhorar.
Uma manhã Sebastião saiu com
bastante dinheiro nas algibeiras, e começou a correr terras.
Depois de viajar algum tempo,
foi ter a uma cidade onde estavam fazendo leilão de um pássaro que todo o mundo
porfiava para ver se o arrematava.
Indagando Sebastião porque
motivo naquela terra um passarinho custava tão caro, disseram-lhe que todo o
mundo desejava possuir aquele, porque, quando ele cantava, todos que o ouviam
adormeciam no mesmo instante.
Em vista disso o moço lançou
elevada quantia e ficou com o pássaro.
Prosseguindo na viagem foi
ter a outra cidade, onde se estava vendendo um besouro que já estava por
elevadíssimo preço.
Sebastião, aproximou-se de um
dos homens que estavam no leilão e perguntou:
— Qual é a preciosidade desse
besouro para se pedir tão caro por ele?!...
— É que ele invisivelmente
faz tudo quanto a gente mandar, e é capaz de arrombar uma porta por mais forte
que seja.
O moço arrematou o besouro e
seguiu adiante.
Chegando a outro país, viu
outro leilão, onde toda a gente oferecia grandes somas para ver se arrematava
um ratinho.
Inquerindo da vantagem de
semelhante animal, disseram-lhe que aquele rato tinha a particularidade de
fazer tudo o que se lhe mandava, e, além disso, era capaz de furar paredes
sobre paredes, sem ser pressentido.
Achando que esta terceira
preciosidade poderia convir-lhe mais tarde o rapaz arrematou o ratinho e
levou-o consigo.
Ao cabo de muitas semanas de
jornada chegou por fim a um reino, onde viu imensa multidão fazendo caretas em
frente à janela onde estava a princesa Carlota, filha do rei.
Perguntando o que significava
aquele povo parado a fazer gatimonhas, responderam-lhe que intentavam ver se
conseguiam fazer a princesa rir; e explicaram-lhe que ela, desde que nascera,
nunca se rira; e que se casaria com ela aquele que o conseguisse, segundo
promessa do rei.
Sem se importar com aquela
gente, Sebastião dirigiu-se para baixo das árvores, que ficavam em frente ao
palácio, apeou-se do cavalo, e pendurou a gaiola do pássaro num galho.
Ia sentar-se, para descansar,
quando se dirigiu para os animais, dizendo:
— Agora, mestre rato, vá
buscar água para o cavalo, e tu, besouro, traze capim.
Os dois bichinhos foram fazer
o que lhes mandava seu amo. Assim que a princesa viu o besouro trazendo capim
para o cavalo, desandou em gostosa gargalhada.
As pessoas que se achavam
debaixo da janela, começaram a dizer:
— Fui eu quem fez a princesa
rir.
— Fui eu, dizia outro.
E cada qual se julgava ser o único
causador de tão grande acontecimento, esperando em vista disso casar-se com a
interessante Carlota, e vir a reinar por morte do velho monarca.
O rei, admirado, e ao mesmo tempo
para não ter dúvidas, perguntou à filha quem tinha sido o autor daquele
assombro.
— Foi aquele
homem, disse a princesinha, que está sentado embaixo da árvore, com uma gaiola
e outros bichos mais.
Sua majestade imediatamente
ordenou que Sebastião viesse à sua presença e comunicou-lhe que tinha de casar
com a princesa.
O moço ficou espantado, por
não esperar por aquilo, e como sabia que a vontade do rei havia de ser
cumprida, teve de se casar.
Na noite do casamento
mostrou-se ele muito acanhado. A princesa desconfiando ser pouco caso que o
rapaz lhe mostrava, no dia seguinte foi dizer ao rei que estava enganada que
não fora aquele, e sim outro, o homem que a fizera rir.
Anulou-se o casamento com
Sebastião, e fez-se com outro.
Na noite do casamento, o moço
que tinha voltado para debaixo da árvore, calculando a hora em que os noivos
deviam ir para o quarto, falou para o passarinho:
— Canta, rouxinol!...
O pássaro abriu o bico e
todos no palácio ferveram no sono.
O rapaz dirigiu-se ao
besouro:
— Agora, entra tu no quarto dos noivos, desarruma tudo,
e faze lá dentro uma mixórdia.
O besouro fez a sua obrigação
melhor do que se pode imaginar.
Ao outro dia, quando a
princesa viu aquela desordem, ficou muito contrariada, e foi-se queixar ao rei
que aquele não era o homem que ela supunha, e que queria desmanchar o
casamento.
O rei ficou aborrecido, e
disse-lhe que esperasse mais algum dias para ver.
Na noite seguinte, depois de
todos novamente dormirem com o canto do pássaro mavioso, Sebastião, mandou o
rato desmanchar tudo quanto houvesse no quarto da princesa.
O rato ainda melhor que o
besouro; pôs tudo numa desordem impossível.
Carlota, a princesa, ao
acordar, vendo tudo aquilo foi dizer ao pai que não havia mais dúvida, que o
seu primeiro marido era o verdadeiro.
Sebastião foi chamado, e
ficaram os dois casados, tornando-se ele um moço desembaraçado, bem falante,
conversador, espirituoso e inteligente. Desde esse dia, ambos viveram
felicíssimos, e nunca mais se queixou a formosa princesa do pouco caso que lhe
ligava seu marido.
Ter um ofício qualquer que
seja ele, por mais rude que possa parecer, mesmo o mais brutal e pesado, é a
melhor coisa que pode haver. É por isso que o Positivismo, a bela e nobilíssima
religião da Humanidade, fundada pelo imortal filósofo Augusto Comte, exige dos
seus adeptos que aprendam um ofício, que tenham uma profissão, uma arte manual.
Devia até ser obrigatório a todos os cidadãos.
Ora, ouçam, o que sucedeu a
três irmãos: João, José e Joaquim.
Vivendo numa cidade antiga,
há muitos e muitos anos passados, o mais velho, João, aprendeu para ferreiro,
José para carpinteiro, e Joaquim para barbeiro.
Quando já se achavam mestres
em seus ofícios, os dois primeiros solicitaram do pai licença para irem ganhar
a vida, e lhe pediram a benção à hora da despedida.
Joaquim quis também ir correr
mundo; mas em vez da benção, que não lhe encheria a barriga, disse o perverso e
mau rapaz, em tom zombeteiro, que queria a pequena herança que lhe coubera por
morte de sua mãe.
Por isso foi castigado.
Quando saiu de casa, ao transpor a porta da rua, deu uma topada tão forte que
lhe arrancou uma unha. Foi esse o primeiro contratempo que teve.
Enfurecido, vendo estrelas ao
meio-dia, cego com a dor, exclamou:
— Diabos te levem, porta do
inferno!...
Ouvindo-o o pai retorquiu-lhe
— É no inferno mesmo que hás
de ir parar um dia, filho desnaturado!
Joaquim respondeu com mau
modo, e partiu em busca de João e José, seus irmãos.
Depois de haver andado por
muitas cidades, indagado sempre se não tinham visto dois irmãos um ferreiro, e
outro carpinteiro sem que ninguém soubesse lhe dar notícias deles, já estava
desanimado de os encontrar, quando chegou, uma vez, a uma grande capital.
Como já era tarde, foi dormir
na guarda do Tesouro, tendo pedido licença ao sargento comandante. Sucedeu,
porém, que nessa noite os ladrões arrombaram as portas para roubar o dinheiro
que ali havia.
Sendo pressentidos, foram
presos, e também Joaquim, foi tomado como cúmplice deles.
Não tendo naquela cidade quem
o conhecesse, o rapaz escreveu a seu pai, mas este não lhe respondeu,
justamente queixoso com as ingratidões e infâmias daquele malvado filho,
indigno e desrespeitador.
Achando-se Joaquim no
cárcere, cumprindo sentença, aconteceu que o ferreiro da cadeia onde estava o
irmão precisasse de um oficial do mesmo ofício, e João apresentou-se como
ferreiro, e foi aceito, começando a trabalhar logo na forja. Como era bom
oficial e muito hábil, dentro em pouco tempo passou a contramestre.
Mais tarde precisou-se de um
carpinteiro e José ofereceu os seus serviços.
No dia em que Joaquim dava
entrada na cadeia, preso, escoltado por seis soldados, João e José, usando da
grande consideração com que eram tratados pelo administrador das prisões, por
serem ótimos oficiais e homens honrados e dignos, foram empenhar-se com o rei
para soltar o irmão, alegando que ele era inocente.
Sua majestade não lhes
atendeu o pedido e o mais moço foi condenado à forca, ao passo que os
verdadeiros ladrões que haviam arrombado o Tesouro foram absolvidos recaindo
toda a culpa, por uma dessas fatalidades inexplicáveis, um desses erros muito
comuns na justiça de todo os países, sobre o inocente.
No dia da execução, na praça
pública, quando Joaquim já estava quase a ser enforcado, chegou um cavaleiro a
toda a brida, gritando que suspendessem tudo. Dirigiu-se ao palácio do rei e
disse-lhe:
— Venho para que atendas ao
pedido que te fizeram os irmãos daquele inocente, e isso quanto antes senão
morrerás, e Joaquim ficará com o teu reino.
O rei pasmado com tamanha
audácia, a ao mesmo tempo encolerizado, bradou:
— Quem és tu, homem atrevido,
que vens ao meu palácio me ordenar coisa que não quero fazer? Vai-te embora,
senão mando-te fazer companhia àquele pobre diabo que a esta hora já deve estar
enforcado.
O cavaleiro, que era o diabo,
soltou estridente gargalhada. Em seguida encostou um dedo na fronte do rei, que
tombou fulminado, como se fosse um raio que lhe tivesse caído em casa.
Ficou o ex-preso, pois, com a
coroa, e João e José tornaram-se vassalos de seu irmão.
Essa notícia correu mundo, e
chegou até aos ouvidos do pai de Joaquim, que, quando soube que o seu filho era
rei de um grande e opulentíssimo país, se dirigiu ao palácio, pedindo-lhe
perdão pelo que tinha dito quando saíra de casa.
Joaquim respondeu:
— Fique sabendo meu pai, que
passei por grandes aflições, disse o rapaz. Estive preso por ladrão, e quase
fui enforcado; vi a morte de perto, e quem me salvou foi o diabo. Quem o há de
valer nos mesmos perigos será minha mãe. Por isso quero que a traga aqui, sob
pena de mandar enforcá-lo.
O velho humilhando-se,
respondeu cheio de medo:
— Ah! rei, senhor e caro
filho. Tua mãe eu a mandei matar por ter três crianças. Quem te amamentou foi
uma vaca, que hoje pertence ao Rei da Chamas e está no campo das Feras.
— Não quero saber disso.
Quero já e já, sem demora, minha mãe e mais a vaca que me amamentou.
O velho retirou-se do
palácio, muito triste, quando encontrou um cavaleiro que lhe perguntou por que
motivo ia ele tão aflito.
O pobre homem narrou o que
acabava de lhe suceder, chorando amargamente, porque sabia que ia ser condenado
à morte.
— Pois eu vou te ensinar o
remédio de alcançares o que desejas. Quando tiveres percorrido os três rios
deste país, distantes um do outro mil léguas, encontrarás o que queres.
O pai de Joaquim ficou
espantado, ouvindo o que lhe dizia aquele desconhecido. Quis indagar de que
maneira conseguiria tamanho impossível, mas não teve tempo, porquanto o
misterioso cavaleiro deu de esporas ao cavalo; e partiu na disparada, rápido
como um relâmpago.
O velho, pôs-se, então, a
matutar.
Lembrando-se que tinha
fatalmente de fugir, para ver se conseguia escapar aos furores do novo rei,
resolveu seguir o conselho do cavaleiro, pois tanto lhe fazia ir para um como para
outro lado, e era bem possível que tivesse ligado com Satanás, e assim viesse a
ser bem sucedido.
***
Pôs-se, então, a caminho, no
mesmo instante, e tão depressa viajou, que, ao fim de três dias, chegou à
margem do primeiro rio.
Não podendo atravessá-lo, por
já ser escuro, e não ter canoa, ou qualquer outro meio de transporte, dispôs-se
a passar aí a noite. Entrou num buraco ou gruta, cavado na ribanceira, e
deitou-se.
Ora, era nesse lugar que os
diabinhos se reuniam, à meia-noite, para se comunicarem as bruxarias que
faziam pela Terra, antes de se retirarem para o Inferno. Julgando-se a sós,
puseram-se a conversar.
O diabo, que era o mais
velho, perguntou a um deles:
— Ó Capenga! que fizeste
hoje?
— No reino das Chamas fiz uma
mulher ter três filhos gêmeos, porque sabia que o marido havia de matá-la.
Os outros diabinhos, cada um
por sua vez, contaram então as suas proezas.
Pela madrugada findou-se a
sessão; e o velho, que não tinha dormido, levantou-se do lugar onde estava e
continuou a viagem.
Andou quinhentos dias e, no
fim desse tempo encontrou o segundo rio. Deitou-se à margem para dormir, por
ser noite fechada, e não poder atravessá-lo.
À meia-noite chegaram Fadas,
em vez de demônios que ali se reuniam em certos dias do ano, em numerosa
assembléia.
Sentaram-se, e a mais velha
propôs:
— Vamos contar os nossos
feitos pela Terra.
Uma delas tomou a palavra:
— Eu fiz um rei deserdar a
filha do trono.
— Eu encantei o reino das
Maravilhas, disse outra, e só o desencantará João, o Ferreiro, que é vassalo do
irmão.
— Eu, retorquiu a terceira,
encantei a cidade do Amor, que só será desencantada pelo José Carpinteiro.
— Eu o reino das Chamas, que
só desencantará Jorge, pai dos três felizes que hão de ser reis, mas só depois
de andar mil semanas. Terá que passar três dias debaixo da água, e ser comido
pela serpente. Depois de tudo isso, será então, feliz – falou a última fada,
dando-se assim por terminada a sessão.
O velho estava mais morto do
que vivo, por ouvir que tinha de passar por tantas provações.
Estando muito fatigado, viu
uma gruta e deitou-se para adormecer.
Ia adormecendo, quando ouviu
uma voz, que lhe, disse:
—
Levanta-te, depressa, segue tua viagem, senão serás comido por uma serpente.
Acordou e começou a correr.
Mas já era tarde; foi engolido por uma enorme serpente, que o perseguia.
Aí, no ventre do bicho, viveu
ele quatrocentas e noventa e sete semanas, quando ela entrou num grande rio,
conservando-se três dias dentro da água.
No fim do terceiro dia
morreu, e foi parar na outra margem, à beira das matas encantadas no reino das
Chamas.
O velho saiu de dentro da
barriga da serpente, muito magro e fraco. Adormeceu sobre a relva macia, e
ouviu outra vez a mesma voz, que lhe dizia:
— Levanta-te e acompanha-me.
Pega nestas chaves, abre aquela porta e todas as outras que encontrares em tua
frente. No último quarto verás uma caixa com uma bola de vidro, e dentro da
bola um fio de cabelo. Em uma gaveta da mesa que ali verás, está uma espada.
Amola-a bem, até ficar afiada como uma navalha. Em seguida quebra a bola e
apanha o fio de cabelo. Corta-o nos ares. Se o não cortares da primeira vez,
todos os bichos ferozes que existem nas matas encantadas irão sobre ti e te
devorarão. Se ao contrário, conseguires fazer o que te digo, serás feliz.
O velho seguiu, tremendo, o
caminho que lhe ensinavam.
Abriu todas as portas que
encontrou, e, ao chegar ao último quarto, viu os objetos que a voz lhe
indicara.
Levou um dia inteiro a amolar
a espada, que ficou mais afiada que uma navalha. Depois, deu um golpe no fio de
cabelo, partindo-o em dois, enchendo-se, então, a casa de sangue. Tantos eram
os pingos, quantos soldados apareceram.
Apareceram-lhe, depois, sua
mulher mais a vaca que amamentara Joaquim. Levou-as ao rei.
Vieram todos muitos felizes,
sendo o pai e cada um dos irmãos, João e José, reis de três países riquíssimos.
Ubaldo VI, rei do país de
Karkom, foi um soberano tão bom, tão carinhoso e tão amante dos vassalos, que,
depois de sua morte, e mesmo em vida, o povo o cognominou – o Bom Rei.
Estando um dia a caçar um
coelho, que cães perseguiam, pulou em seus braços.
O rei acariciou o coelhinho e
disse-lhe:
— Já que te colocaste sob
minha proteção, não consentirei que te façam mal. E levou o bichinho para o
palácio.
À noite, quando já estava em
seus aposentos, pronto para se deitar, apareceu-lhe uma moça formosíssima,
vestida de branco, com os deslumbrantes e opulentíssimos trajes de uma princesa
real, tendo, porém, cingida à fronte, em vez de uma coroa, uma grinalda de
rosas brancas.
Sua majestade ficou admirada
de vê-la no quarto, porque a porta estava fechada, não sabendo como podia ter
ela entrado.
— Eu me chamo Cândida e sou
uma fada, disse ela. Estava no bosque, enquanto caçavas, e quis ver se eras bom
como todo o mundo diz. Por isso encantei-me no coelhinho, e saltei em teus
braços. Queria ver se eras bom para os animais, porque sei que quem tem piedade
deles, ainda tem mais pelos homens, seus semelhantes. Se me tivesses recusado
socorro, acreditaria que eras mau. Vim agradecer o serviço que me fizeste, e
garantir-te a minha proteção. Pede o que quiseres, que te prometo fazer.
— Linda fada, disse o bom
rei, deves saber o que desejo. Tenho um único filho que muito estimo, e por
isso lhe chamo Querido. Se quereis conceder-me alguma graça, sede sua
protetora.
— De boa vontade, tornou a
fada, “posso fazê-lo o mais rico, o mais belo e o mais poderoso dos príncipes.
Escolhe o que queres para ele.
— Nada disso desejo para meu
filho, respondeu Ubaldo. Ficarei muito agradecido se fizerdes dele o melhor de
todos os príncipes. De que lhe servirá ser belo, rico, poderoso, se for um
malvado? Sabeis perfeitamente que seria infeliz, e que só a virtude fará dele
um homem venturoso.
— Tens muita razão, mas não
tenho poder para tanto. É preciso que ele trabalhe para ser um homem virtuoso.
O mais que posso prometer é dar-lhe bons conselhos, protegê-lo, repreendê-lo e
castigá-lo pelas suas faltas, se não se corrigir ou não se punir por suas
próprias mãos.
O soberano ficou satisfeito
com essa promessa da fada Cândida, e morreu pouco tempo depois.
O príncipe Querido chorou
bastante a perda de seu velho pai, e daria todos os seus reinos, toda a sua
fortuna para salvá-lo.
***
Dois dias após a morte do
rei, estando Querido deitado, apareceu-lhe Cândida, que lhe disse:
— Prometi a teu falecido pai
ser tua protetora, e vim cumprir minha palavra fazendo-te um presente.
E no mesmo instante colocou
um anel de ouro no dedo do moço, dizendo-lhe:
— Guarda com muito cuidado
este anel, que vale mais que todos os tesouros da terra. Todas as vezes que
fizeres uma ação má, ele espetará teu dedo. Mas, se apesar disso, persistires,
perderás a minha amizade e tornar-me-ei tua maior inimiga.
Dizendo tais palavras Cândida
desapareceu, deixando o príncipe admirado.
Querido conservou-se sensato
por muito tempo, a ponto de não sentir o anel espetá-lo nenhuma vez.
Tempos depois, indo à caça,
sentiu que o anel o incomodava, mas não fez caso; e, como não encontrasse
pássaro algum para matar, voltou para casa de mau humor.
Entrando em seu quarto, uma
cadelinha que possuía, chamada Mimosa, começou a saltar-lhe em frente,
festejando-o, latindo alegremente.
— Passa fora! gritou. Hoje
não estou disposto a receber festas.
A cadelinha, não entendendo o
que lhe dizia o príncipe, puxou-lhe a aba do paletó, para obrigá-lo ao menos a
olhar par ela.
Isto impacientou o príncipe,
que lhe deu um pontapé.
Nesse
momento o anel deu-lhe uma ferroada tão forte que parecia alfinete. Querido
ficou muito admirado, e foi sentar-se a um canto do quarto, envergonhado da sua
ação.
E dizia consigo mesmo:
— Afinal de contas, está me
parecendo que a fada brinca comigo. Que grande mal fiz em dar um pontapé num
animal que me importuna? De que me serve ser senhor de um grande império, se
não tenho liberdade de castigar o meu cão?
— Eu não brinco contigo,
disse uma voz que respondia ao pensamento do príncipe. Cometeste três faltas em
vez de uma. Estavas de mau humor, porque não gostas de ser contrariado, e
pensas que os animais e os homens foram feitos para te obedecer. Ficaste zangado,
o que é malfeito, e demais, foste cruel para um animalzinho que não merecia ser
maltratado. Sei que vales mais que o cão; mas, se é uma coisa razoável e
permitida que os grandes possam maltratar os pequenos e os fracos, agora mesmo
eu, que sou fada, podia castigar-te, e até te matar, porque sou mais forte que
tu. A vantagem de ser senhor de um grande império não consiste em poder fazer o
mal que se quer, mas sim todo o bem que se pode.
O jovem confessou a sua
falta; e prometeu corrigir-se; mas depressa faltou à palavra. Em pequenino fora
criado por uma velha ama que lhe fazia todas as vontades. Se acaso desejava
alguma coisa, fazia manha, gritava, batia com o pé, esperneava a ponto de, para
se calar lhe darem o que pedia. Ficou por isso com um gênio muito irascível. E
demais, a ama lhe dizia sempre que ele um dia havia de ser rei e governar o
povo, de sorte que todos teriam que lhe obedecer.
Mais tarde, quando moço, o
príncipe compreendeu o seu mau gênio, mas não pôde emendar-se dos defeitos que
na meninice adquirira.
Dizia, então, consigo mesmo:
— Sou bem desgraçado em ter
de combater todos os dias a minha cólera e o meu orgulho. Se me tivessem
corrigido quando pequeno, hoje não sofreria tantos dissabores.
O anel ferroava-o muitas
vezes. Em várias ocasiões, ele se detinha em alguma ação má; mas em outras
continuava, e o que havia de singular era o anel que o picava pouco por uma
falta ligeira; mas quando fazia alguma maldade, o sangue saía do dedo.
Por fim aquilo o impacientou,
e querendo ser livre, jogou o anel fora, livrando-se dessa maneira das
constantes ferroadas.
Julgou-se desde então o homem
mais feliz do mundo, e começou a praticar toda a sorte de loucuras, de modo que
se tornou um homem mau e perverso, que ninguém podia aturar.
Meses depois, percorrendo a
passeio as ruas da capital, avistou à janela de uma casa de modesta aparência,
uma formosíssima jovem, por quem imediatamente se apaixonou.
Essa moça, embora fosse de família
paupérrima, não era ambiciosa, e fora criada com muito recato e honradez por
seus pais. O príncipe, porém, julgando-a facilmente, imaginou que ela ficaria
satisfeitíssima se lhe desse a mão de esposo. Assim dirigiu-se sem mais demora
à casinha, e perguntou-lhe o nome. A rapariga respondeu que se chamava Zélia, e
que era pastora. Então Querido propôs-lhe o casamento.
— Não,
príncipe sei que sois belo, porque agora mesmo estou olhando para vossa alteza.
Mas que me serviriam vossa beleza, vossa riqueza, lindos vestidos, carros
magníficos que me désseis, se as más ações que vos visse praticar todos os
dias, me forçariam a vos desprezar e odiar? respondeu ela com a máxima
franqueza. Querido encolerizou-se muitíssimo com aquela recusa e mandou que os
seus soldados a trouxessem ao palácio.
Passou todo o dia agitado e, como estava
verdadeiramente apaixonado, não teve coragem de lhe fazer mal.
Entre os seus favoritos havia um, chamado Xerim,
seu irmão de leite, em quem ele depositava toda a confiança.
Esse homem, que tinha inclinações baixas, próprias
de um mau-caráter, lisonjeava as paixões do seu amo, e dava-lhe péssimos
conselhos.
Assim que viu o príncipe triste, tratou de indagar
o motivo.
Respondeu-me o jovem que não podia suportar o
desprezo de Zélia, e que estava disposto a corrigir-se de seus defeitos, já que
era preciso ser virtuoso para agradar à moça.
O perverso Xerim aconselhou-o, então:
— Príncipe, sois muito criança em vos incomodares
com uma pastora. Se eu fosse vossa real majestade, obrigá-la-ia a obedecer-me.
Lembrai-vos de que sois rei, e que é ridículo a tão alto personagem sujeitar-se
aos caprichos de uma plebéia, que ficaria muito contente em ser vossa escrava.
Prendei-a a pão e água, e vereis se ela consente ou não em se casar convosco.
Ficareis desonrado, se souberem que uma moça do povo resiste aos vossos
desejos.
— Mas não ficarei desonrado se fizer morrer uma
inocente, porque Zélia não é culpada de nenhum crime? replicou Querido, que
ainda tinha uns restos de bons sentimentos.
— Uma pessoa não é inocente, quando não cumpre as
vontades de seu rei, retorquiu o infame. Contudo, é preferível que vos acusem
de uma injustiça, do que de se estabelecer o princípio de desrespeito a um rei
tão ilustre.
O favorito tocou o ponto fraco do rei que, receoso
de ver a sua autoridade desprestigiada, abafou a vontade de se corrigir, e
partiu para o quarto onde estava a moça, disposto a fazê-la consentir no
casamento, ou então vendê-la como escrava no dia seguinte.
Quando o príncipe abriu a porta do quarto em que prendera
a jovem, com a chave que sempre trazia no bolso, ficou como doido por não
encontrá-la. Zélia havia fugido.
Existia nesse tempo um cortesão que estimava muito
o príncipe, e que havia sido seu preceptor.
Esse pobre homem, chamado Salomão, mais de uma vez
o aconselhara a reprimir as suas loucuras.
Querido, as primeiras vezes, ouvira-o de bom modo;
mas, por fim impacientando-se, já não queria saber mais do velho, nem dos seus
conselhos tendo retirado todas as regalias que o preceptor tinha no palácio.
Salomão, sendo muito sensato, os moços da corte não
o estimavam, e por isso procuravam todos os meios de o molestar.
Assim que o rei deu por falta de Zélia, não
faltaram intrigantes que dissessem ter sido Salomão quem havia facilitado a
fuga da moça, e até contaram que alguns criados ouviram a conversa em que ele
promovia a fuga.
Possuiu-se o jovem soberano de grande raiva, e
mandou que trouxessem o velho Salomão preso.
Depois de dar essas ordens, retirou-se para o
quarto. Apenas, porém, acabava de entrar, a terra toda tremeu, ouviu-se um
grande trovão, e Cândida apareceu-lhe, dizendo:
— Prometi a teu pai dar-te bons conselhos, e
punir-te se recusasses segui-los: desprezaste-os; não conservaste do homem
senão a figura, e os teus crimes te mudaram em um monstro de terror para o céu
e para a terra. Já é tempo que eu termine a minha promessa, castigando-te.
Condeno-te a ficares semelhante aos animais quadrúpedes. Faço-te semelhante ao
leão pela cólera, ao lobo pela gulodice, à serpente pela ingratidão, pois
maltrataste o velho Salomão, aquele que foi teu segundo pai, e ao touro pela
brutalidade. Traze em tua figura o caráter desses animais.
Apenas, a
fada acabava de pronunciar tais palavras, viu-se o príncipe, com horror, tal
como ela dissera: um monstro com cabeça de leão, chifres de touro, patas de
lobo, e cauda de serpente. No mesmo instante achou-se em uma grande floresta, à
beira de uma fonte, onde se refletia a sua horrível figura, e ouviu uma voz,
que lhe disse:
— Olha o estado a que te reduziram teus crimes! Tua
alma é mil vezes mais feia que a tua figura.
Reconheceu Querido a voz da fada, e possuído de
furor, quis investir contra ela.
— Zombo da tua fraqueza e da tua raiva. Vou
confundir o teu orgulho, colocando-te sob o domínio dos teus súditos.
A fera foi andando pela floresta quando de repente
caiu num buraco muito fundo.
Era um laço que caçadores de animais ferozes
armavam para fazê-los cair.
Os caçadores, que estavam à espreita, desceram,
foram prender a fera e levaram-na acorrentada para a cidade, onde estava o seu
palácio.
Quando lá chegaram, viram toda a população em
festas, e perguntaram o que significava aquela alegria.
Respondeu-lhes um homem do povo:
— O
príncipe Querido só gostava de atormentar os seus súditos, e por isso fora
fulminado em seu quarto por um raio. Deus não pudera suportar tanta crueldade,
e livrara a terra de tão mau rei. Quatro homens cúmplices de seus crimes,
quiseram partilhar o reino entre si, mas o povo que sabia terem sido os seus
maus conselhos que prejudicaram o príncipe, expulsou-os do país e ofereceu a
Salomão, a quem o príncipe Querido queria mandar matar, a coroa de rei. Esse
digno cidadão acaba de ser coroado, e nós celebramos o dia de hoje como de
nossa liberdade, porque Salomão é virtuoso, e vai trazer a seu povo a paz e a
abundância
A fera mordia de raiva a corrente em que estava
presa, ao ouvir esse discurso, porém mais raivosa ainda ficou quando chegou à
praça onde estava o palácio, e viu o velho sentado no trono, e. todo o
povo a lhe desejar longa vida.
Salomão fez um sinal com a mão, pedindo silêncio, e
disse:
— Aceitei a coroa que me oferecestes, para
conservá-la ao príncipe Querido. Ele não morreu, como supondes. Uma fada mo revelou;
e talvez, um dia, vós o vejais virtuoso como era nos seus primeiros anos.
Coitado! continuou ele derramando lágrimas, os aduladores o seduziram. Eu
conhecia o seu coração, que era feito para a virtude e se não fossem os maus
conselhos, ele era o nosso pai. Abominai os vossos vícios, mas lastimai
o pobre príncipe, e roguemos a Deus que nos devolva o nosso rei, bom como fora
seu pai. Eu me consideraria muito feliz, se soubesse que meu sangue derramado
fá-lo-ia digno de um povo bom como sois.
As palavras de Salomão foram diretas ao coração do
príncipe, que desde esse dia começou a ser dócil, não mais querendo partir a
jaula em que estava.
O homem que tomava conta das feras, no jardim
zoológico, era um bruto que a toda a hora castigava os animais.
Querido sofria todos os castigos,
manso como um cordeiro, não querendo nunca reagir contra o seu domador.
Aconteceu que um dia a jaula do
tigre ficou aberta por descuido, e o desgraçado domador teria morrido, se não
viesse à sua frente a curiosa fera, que lutando com a outra, a matou,
salvando-lhe assim a vida.
O pobre homem não sabia como
acariciar a fera que o tinha salvo, quando ouviu uma voz que disse:
— Não há uma boa ação sem
recompensa.
Nisso, o príncipe foi de súbito transformado num
lindo cão.
O domador, vendo aquele espantoso caso, foi contar
ao rei o sucedido, e este mandou vir para o palácio o cão, que se viu feliz na
sua nova transformação. Mas aí não lhe davam o alimento necessário, porque
diziam que quanto mais comida lhe dessem, mais ele cresceria, de sorte que o
príncipe passou novas provações e, às vezes, até fome.
Certa vez, recebeu ele o seu pedaço de pão e ia
devorá-lo, quando viu uma pobrezinha a arrancar ervas para comer. Teve pena da
pobre mendiga, e deu-lhe o pedaço de pão, dizendo consigo mesmo que ele poderia
esperar pela sua ração até o dia seguinte, e a pobre parecia estar com tanta
fome que era bem capaz de morrer.
Estava pensando na miséria da desgraçada, quando
ouviu grandes gritos. Eram quatro homens que empurravam Zélia pelo meio da rua,
forçando-a entrar numa casa.
O cão sentiu não ser a fera que tinha sido, para
poder livrar a moça que tanto amava. Contentou-se, porém, em latir, até ver se
chegava alguém que a defendesse dos malfeitores.
Não aparecendo quem viesse em socorro da vítima, o
cão começou a esperar por Zélia para ver se ela aparecia.
Nisso viu uma janela abrir-se e imediatamente
jogarem uma porção de carne assada perto do lugar onde ele estava.
O cão, que não comia desde a véspera, estava já
disposto a comer aquela carne, vinda tão a propósito, quando a pobre, vendo-o,
gritou:
— Não comas desta carne, meu cãozinho que está
envenenada.
No mesmo instante o príncipe ouviu uma voz que
dizia:
— Vês tu que uma boa ação não fica sem recompensa?
E
imediatamente viu-se mudado num belo pássaro azul. Começou a voar até a casa
onde vira Zélia entrar, e, depois de percorrer todos os quartos, voou em
direção a um bosque perto.
Qual não foi o seu espanto quando viu a moça
sentada à sombra de uma árvore ao lado de um ermitão!
Assim que a viu, voou ao seu ombro, e começou a
festejá-la.
Zélia encantada pela mansidão do pássaro,
correspondeu às carícias e disse que havia de o amar para sempre.
Então o pássaro se transformou no príncipe Querido,
tal como a moça o tinha visto da primeira vez.
O ermitão, vendo aquilo, transformou-se também na
fada Cândida, e disse:
— Está quebrado o encanto, príncipe. Só voltarias à
tua forma humana no dia em que Zélia gostasse de ti. Ela acabou de o confessar.
Vou conduzir-te ao teu reino, onde está à tua espera o mais leal dos vassalos,
o velho Salomão. Confia nele, que é o teu segundo pai. Segue-lhe sempre os
conselhos, que te não arrependerás.
Mal a fada acabou de proferir estas palavras, o
príncipe Querido viu-se no seu palácio, em companhia de Zélia.
O velho Salomão, quando o viu, chorou de alegria.
Querido tomou conta do reino, e casou-se com a
pastora Zélia, vivendo desde então na mais completa felicidade.
Salomão escreveu a história do príncipe Querido,
tal como acabamos de narrá-la, para ensinamento de todos, grandes e pequenos,
ricos e pobres, fidalgos, e plebeus, reis e vassalos, a fim de que toda a gente
se convença que a felicidade, neste mundo, consiste unicamente em vivermos em
paz com a nossa consciência, fazendo sempre o bem, mesmo à custa dos maiores
sacrifícios e nunca praticando o mal.
Um pobre homem, chamado Luís, vendo que não podia
mais viver na cidade por ser muito cara aí a vida e não ter ele dinheiro para
sustentar a família, foi morar na roça, em companhia de sua mulher Marfa, e seu
filho Renato.
Tendo assim resolvido, escolheu um lugar bem
deserto, onde ele e os seus apenas se sustentavam da caça que o velho matava.
Poucos anos depois Luís veio a falecer.
Renato estava com quinze anos de idade, quando seu
pai morreu.
Compreendendo que a vida naquelas matas seria muito
pesada para ele, pediu a sua mãe para voltarem à cidade, onde podiam viver do
trabalho que poderia obter em alguma oficina, dizia ele.
A velha concordou; e, reunindo o pouco que possuíam
– um cavalo, uma espingarda de caça e um cão – dirigiram-se para a cidade. Era
noite quando aí chegaram. O rapaz correu toda a cidade, e não encontrou
vivalma. Bateu em todas portas e ninguém lhe respondeu.
Depois de muito andar por diversas ruas, todas
desertas, foi ter a um sobrado, o único que achou aberto.
Bateu palmas, e, não ouvindo resposta, entrou pelo
corredor, subiu as escadas, correu a casa, e ninguém encontrou.
Nessa casa todos os quartos estavam abertos, menos
um, que se conservava fechado.
Renato tomou conta da casa, e aí dormiu com sua
mãe.
No dia seguinte ainda não viu pessoa alguma, nem
percebeu o menor movimento pelas ruas; e não encontrando o que comer, foi para
o mato, como fazia seu pai.
Quando estava caçando, apareceu à velha Marfa, sua
mãe, que ficara no sobrado, o gigante Barraguzão, dizendo-lhe que devia ser
morta, por ter-se apoderado da casa, sem seu consentimento, mas que, por ser
mulher, a perdoava, com a condição de ela viver ali, e nunca mais sair para
lugar algum.
A velha ficou com muito medo, e disse que tinha um
filho em sua companhia.
— Esse não quero para nada. Comê-lo-ei esta noite,
respondeu o gigante.
— Qual, o senhor não pode com meu filho retorquiu a
velha.
— Por quê? não é ele um homem como os outros?
— É sim; é um homem.
— Pois então, não há perigo. Pois se eu pude com
todo o povo que morava aqui, nesta cidade, não hei de poder com um fedelho?
Tinha graça.
— Mas é que meu filho tem muita força, e é capaz de
matá-lo.
— Pois bem: se não posso com ele, como dizes, vou
te ensinar um meio de acabarmos com ele, propôs o gigante. Quando ele voltar da
caça, deita-te na cama, finge-te doente, e a gritar com uma dor muito forte nos
olhos. Dize-lhe que o único remédio que te curará é a banha da serpente que
existe no mato. Ele, com certeza irá matar a serpente; mas, como não poderá com
ela, será mordido pelo animal, e cairá fulminado.
Ao chegar Renato da caça, ao escurecer, a velha
Marfa fez o que lhe fora ensinado pelo Barraguzão, e o moço tornou incontinenti
para o mato, à procura do animal que havia de curar sua mãe.
No caminho encontrou um velhinho que lhe perguntou
onde ia àquela hora, por uma noite tão escura.
— Vou matar uma serpente, que mora aqui neste mato,
para apanhar a banha, e untá-la nos olhos da minha velha mãe que deixei em
casa, gritando com dores, respondeu o bom filho.
— Não vás, disse o velhinho, porque a serpente te
matará. Tu não podes com ela.
— Irei, aconteça o que acontecer, objetou Renato.
Como é para minha mãe, Deus me há de ajudar.
— Pois vai, que hás de ser feliz, falou o velho.
E assim
sucedeu. Chegando à floresta, Renato deu combate à terrível jibóia – um bicho
colossal, de cerca de vinte metros de comprimento, e conseguiu matá-la, depois
de porfiada luta.
Chegando à casa, fomentou com o remédio os olhos de
sua mãe, que não teve remédio senão dizer que ficara boa.
Voltando Barraguzão, à noite, ficou admirado de ver
um homem tão valente, e disse a Marfa:
— Teu filho é o homem mais corajoso que tenho visto.
Agora amarra-o com esta corda, e vê se ele é capaz de a arrebentar.
Quando o moço voltou da caça, nessa segunda vez, a
velha lhe disse:
— Meu filho, reconheço que és valente, mas duvido e
aposto mesmo, como não és capaz de arrebentar esta corda que aqui está.
O rapaz aceitou a aposta, e Marfa enleiou-lhe todo
o corpo, da cabeça aos pés.
Renato forcejou o corpo e partiu a corda em
diversos lugares.
Marfa ficou pasmada de tanta valentia, e, à noite,
quando o gigante Barraguzão chegou, narrou-lhe tudo.
Este já não sabia o meio de se ver livre do jovem,
quando, depois de muito pensar, disse:
— Bem, teu filho é forte, mas sempre desejo ver se
é homem que arrebente esta corrente. Amanhã enleia-o bem nela, para ver se me
escapa desta vez.
Ao tornar Renato da caça, a mãe lhe disse:
— Meu filho, és mais valente que cem homens juntos;
teu pai não era capaz de fazer o que tens feito por minha causa. Se és tão
homem assim, quero ver se eu te prendendo nesta corrente és forte bastante para
a arrebentar.
— Isto não, minha mãe, não posso arrebentar uma
corrente.
— Pois sim, meu filho: experimenta.
— Pois se minha mãe quer, vamos ver.
Marfa
enleiou-o na corrente, com a qual lhe deu uma porção de voltas em redor do
corpo. Renato esforcejou-se, mas nada conseguiu.
Neste instante apareceu o gigante, com um grande
facão, e dirigiu-se para o rapaz, a fim de matá-lo.
— Pode matar, disse Renato. Desejo apenas que me
faça três coisas, que lhe vou pedir.
— Cumprirei vinte, quanto mais três, prometeu
Barraguzão, que começou a amolar a faca.
— Primeiro: Não quero que faça uso dos objetos que
meu pai deixou, isto é, do cavalo, da espingarda e do facão. Segundo: Quando me
matar, não estrague o meu corpo, e parta-o em cinco pedaços. Terceiro pedido:
Ponha-me dentro de dois jacás, no cavalo, com a espingarda e o facão e vá
atirar-me no mato.
O gigante fez o que lhe pediu o moço.
Nesse entretempo, o cavalo, assim que se viu com os
jacás que encerravam o corpo de seu amo partido em cinco pedaços, disparou a
toda a brida, e foi ter à casa do velhinho que Renato encontrara na floresta,
quando fora matar a serpente.
O velho tinha uma filha. Estava essa moça à janela,
e reconhecendo o cavalo de Renato, pelos sinais que dele lhe fizera seu pai,
foi chamar o velho, que assim falou:
— Minha filha, o que ali estás vendo é Renato, que
vem morto, partido em cinco pedaços; vai buscar o cavalo, pois quero dar vida
ao pobre rapaz.
O velho pediu a banha da serpente, de que também
guardara uma grande porção, ao sabê-la morta pelo corajoso mancebo, juntou os
pedaços do corpo de Renato, que logo ficou bom.
—
Sentes alguma coisa, meu filho? ou estás inteiramente sarado? inquiriu o velho,
ao vê-lo restituído à vida.
— Falta-me a vista, respondeu Renato.
O ancião pediu certo ungüento
misterioso, cujo segredo só ele tinha, e com ele esfregou os olhos do moço, que
recuperou imediatamente a vista.
O jovem apanhou a espingarda e o facão, e partiu
para a casa do gigante.
Assim que entrou, viu Barraguzão dormindo. Enterrou
o facão no peito do monstro, e matou-o.
Marfa, ao ver o gigante morto por seu filho,
atirou-se-lhe aos pés, pedindo que a perdoasse.
Renato fê-la levantar-se, dizendo que nada lhe
faria , por ser sua mãe.
Voltou à casa do velho; a quem contou tudo quanto
fizera.
O velho então lhe disse:
— Meu filho, a tua melhor ação é ter salvo tua mãe,
que, apesar de ter sido má, sempre é tua mãe. Sou o teu anjo da guarda, que
para aqui vim, somente para te defender.
Dizendo isso, desapareceu, subindo para o céu.
Renato casou-se com a moça que o velhinho criara. Voltou para a cidade, e
encontrou toda ela povoada, porque estava apenas encantada com a presença do
gigante, e só se desencantaria quando ele morresse.
Xisto e Tomás eram conterrâneos filhos da mesma
aldeia, uma aldeiazinha de Trás-os-Montes, em Portugal. Desde crianças, sendo
quase da mesma idade, eram íntimos amigos, e continuaram sempre na mesma
intimidade, depois de grandes, casados e pais de filhos, vindo até a serem
compadres.
Tão amigos eram, que resolveram embarcar para o
Brasil já que na aldeia não tinham esperanças de melhorar de estado, ao passo
que ouviam dizer que nos Brasis, floria a Árvore das Patacas. Era só a gente
subir aos galhos, e recolher moedas.
Assim um belo dia embarcaram no mesmo navio.
Sofreram iguais privações, juntos compartilharam as mesmas mágoas, as mesmas
saudades da Santa Terrinha, que deixaram, e das esposas, os filhos, os amigos,
o burro, mais a vaca, dois bezerritos, quatro leitões, e mais de dúzia e meia
de cabeças de criação.
Aqui, porém, a sorte mudou. Xisto enriqueceu no
comércio de escravos, e numa porção de negócios do mesmo gênero. Tomás, no
entanto, continuava pobre, e mais pobre se viu, depois que, à imitação do
compadre, mandara vir a mulher. A sua vida, por último, era um horror, e vendo
que não podia viver mais na cidade, onde tudo estava caríssimo, por preços
exorbitantes, resolveu-se a ir pedir ao comendador Xisto, que possuía léguas e
léguas de terras abandonadas, de todo incultas, alguns palmos de terreno, onde
pudesse construir uma casinha de morada, e cultivar alguns produtos de pequena
lavoura, que o sustentassem, mais a família, e que pudesse ir vender à vila.
Xisto, dessa vez mostrou-se compassivo e generoso:
cedeu ao seu compadre pobre, a terra que necessitava, e Tomás ali se aboletou,
numa choupana coberta de sapé, que edificou por suas próprias mãos.
As duas moradas eram vizinhas. De um lado, via-se a
miserável cabana de Tomás da Abadia, e do outro, a soberba e luxuosa vivenda do
“honrado comendador Xisto Manuel de Souza e Silva.
Certa vez, Tomás estava cavando a terra, e Xisto se
achava perto, gozando o prazer de não trabalhar, e ver o seu íntimo amigo a
mourejar como um escravo. De repente, a enxada de Tomás bateu num corpo
estranho, duro, resistente. Cavou mais, afundou o buraco, e eis que descobriu
uma panela cheia de moedas de ouro.
Como as terras lhe pertenciam, Xisto apressou-se em
levar o pote a casa, muito agitado, e não consentiu mais que o compadre pobre
trabalhasse em suas terras. Despediu o pobre Tomás, e chamou a mulher para
verem as riquezas que existiam em sua propriedade.
Abriram então a panela, mas encontraram apenas uma
casa de maribondos. Julgando que aquilo era caçoada de Tomás, o milionário
ficou possesso de raiva, e protestou que havia de lhe pregar uma peça.
Apanhou a casa, colocou-se com muito jeito num
saco, para não alvoroçar os bichos, e dirigiu-se à casa de Tomás.
Assim que o avistou, foi logo gritando:
— Compadre, fecha as portas e deixa somente um lado
da janela aberto...
Tomás fez o que lhe dizia o outro.
Xisto chegando perto da janela, jogou para dentro a
casa de maribondos, dizendo:
— Fecha agora tudo, compadre, e toma este presente
que te trago.
Mas os maribondos assim que bateram no chão,
transformaram-se em moedinhas de ouro, e o pobre Tomás chamou a mulher e os
filhos para ajuntá-las.
Xisto gritava:
— Ó compadre, abre a porta!
— Deixa-me compadre Xisto, já não posso mais com
estes malditos bichos, que me matam de ferroadas, respondia o outro, que
compreendeu imediatamente o que havia sucedido, satisfeito por ver que Xisto
não conseguira fazer o mal que pretendera.
E o rico ria-se da boa peça que havia pregado ao
pobre.
Ficou assim o pobre rico, e o rico pobre, por
querer fazer maldade que não conseguiu.
O MACACO E O MOLEQUE
Iaiá Romana era o apelido porque toda a gente
conhecia uma velhinha que possuía uma bela roça, onde havia além de muitas
outras frutas, uma bela plantação de bananeiras.
Quando as bananeiras estavam carregadas de cachos,
a velha não tinha por quem mandar tirá-las, se sorte que ficavan maduras, e
eram comidas pelos passarinhos, ou apodreciam.
Um dia, apareceu-lhe na roça um macaco, que lhe disse:
— Ó tiazinha, por que é que a senhora não colhe
essas bananas, que já estão maduras, e não as põe na dispensa? Se não tiver
quem lhe faça esse serviço, aqui estou eu, ao seu dispor.
Romana aceitou o oferecimento. O macaco, porém,
assim que se pilhou trepado nas bananeiras, começou a comer as maduras e jogar
as verdes para a velha, que , desesperada, jurou vingar-se.
Desde esse dia, vivia constantemente a procurar um
meio de apanhá-lo. Qual! O bicho era esperto, e ela ficava sempre lograda.
Mas, um dia, a velha lembrou-se de fazer uma figura
de alcatrão, fingindo um moleque, e colocou-lhe um tabuleiro de bananas bem
madurinhas no cabo, como, se as estivesse vendendo.
Poucas horas depois apareceu o macaco. Supondo que
era mesmo um pretinho, pediu uma banana. O moleque ficou calado.
— Moleque, dá-me uma banana, senão levas um sopapo!
gritou.
O moleque permaneceu calado, e o macaco
desandou-lhe a mão, ficando com ela grudada no alcatrão.
— Moleque, larga a minha mão, senão levas outro sopapo!...
repetiu o macaco.
E o moleque sempre calado.
O macaco soltou outro bofetão, e ficou com a outra
mão grudada.
— Moleque! moleque! larga as minhas duas mãos,
senão levas um pontapé!... berrou o mono, enfurecido.
Como é bem de ver, o moleque calado estava e calado
continuava.
O macaco deu-lhe um pontapé, ficando com o pé
preso.
— Moleque dos diabos, larga meu pé que te dou outro
pontapé! exclamou.
E o moleque calado.
O macaco deu outro pontapé, e ficou com os pés
presos.
Aí não se conteve mais, e disse:
— Moleque dos infernos, larga os meus dois pés e as
minhas mãos, senão te dou uma umbigada!
E o moleque calado.
O macaco deu-lhe uma umbigada, e ficou
completamente agarrado ao alcatrão.
Assim que o viu preso, Iaiá Romana apareceu, foi ao
mato, cortou umas varinhas, e começou a dar-lhe com toda a força uma sova
enorme, enquanto ia dizendo:
— Eu não te disse, macaco, que havias de me pagar?
Toma lá agora, para não vires caçoar comigo!
O macaco tanto se debateu, que afinal conseguiu se
livrar do alcatrão, e nunca mais quis graças com a velha Romana.
O BOM JUIZ
Zenóbio era empregado da Limpeza Pública; – exercia
tão baixo cargo porque não encontrara de pronto outra colocação e necessitava
sustentar uma numerosa família. Trabalhava alegremente, sem se importar com os
tolos preconceitos sociais, porque era um desses homens sensatos que pensam,
com justa razão, que é o homem que nobilita o emprego, e não o emprego que
nobilita o homem. Há varredores honrados, do mesmo modo que há ministros
desonestos.
Um dia em que estava varrendo uma rua pouco
freqüentada, achou uma bolsa contendo cem mil-réis. Em vez de ficar com o
achado, como era honesto, procurou o dono, e tanto fez que o encontrou
Mas esse homem, que era um negociante, sovina,
avaro e miserável em vez de ficar agradecido, retirou de dentro dez mil-réis, e
acusou o varredor de ter roubado.
Foram à justiça.
O juiz, um bom, honrado e digno magistrado, ouviu a
acusação, e depois a defesa. Em seguida sentenciou da seguinte forma:
— O comerciante diz que perdeu uma
bolsa com cem mil-réis, e que o varredor Zenóbio a achou. Ele, pelo seu lado
diz que a entregou sem conferir, tal como a havia encontrado. Ora, como a bolsa
contém noventa e não cem mil-réis, que o negociante alega, claro está que não é
esta. Assim, mando que entregue a bolsa ao varredor, e deverá pagar ainda por
cima as custas.
Zenóbio ficou muito satisfeito, ao passo que o
outro ainda teve que gastar mais dinheiro, para castigo de sua ganância e
perversidade.
A MOÇA ENCONTRADA NO MAR
As leis do reino de Sarinhã – grande e riquíssima
nação, que há séculos e séculos deslumbrou o mundo pelos altos feitos do seus
príncipes e pela sua opulência, – obrigavam o soberano reinante a casar-se
assim que completasse quinze anos de idade.
O príncipe Altir, que governava Sarinhã, na época
em que se passa esta história, querendo conformar-se com as leis, resolveu
casar-se.
Para realizar o seu desígnio, ordenou que lhe
apresentassem as moças mais famosas que existissem no país, embora morassem nos
confins do reino.
Os emissários, já haviam corrido
todas as cidades, vilas, aldeias, povoados de casa em casa, e nenhuma das
jovens apresentadas a Altir lhe tinham agradado.
Tinha ele perdido a esperança de casar com a moça
mais linda do país, conforme desejava, e por isso vivia muito triste, quando se
deu um fato interessante.
O batalhão que dava a guarda de honra do palácio,
unicamente composto de moços fidalgos, escolhidos entre os mais ricos,
instruídos, famosos e valentes do reino, tinha ido assistir à missa na capela
real.
Entre os soldados, havia um jovem marquês, nascido
numa província longínqua, filho de nobilíssima e antiga família, e que pouco
antes fora admitido nas guardas do rei.
Era a primeira vez que ele entrava na real capela,
pois não havia ainda um mês que chegara à capital.
Estava admirando o luxo, o esplendor, a arquitetura
do templo, um dos mais elegantes e célebres do mundo inteiro e percorria com o
olhar as imagens, nos altares, cada qual mais primorosamente executada por
afamado artista, quando fitou a de N. S. do Rosário, que ficava justamente a
seu lado.
Não pôde deixar de soltar um grito de espanto, ao
mesmo tempo que de seus olhos jorravam lágrimas abundantes.
O general comandante, que era o príncipe Seraf,
estranhando aquele procedimento, indagou do jovem marquês, cujo nome era Odern,
a causa da exclamação que soltara e do pranto que derramava.
Odern disse que chorava porque havia se lembrado de
repente de sua família, de sua casa, situada havia um mês de viagem, e
lembrara-se ao ver a imagem de N. S. do Rosário, que era o retrato exatíssimo,
perfeito, de uma de suas quatro irmãs, Gabi, a mais moça.
A notícia correu de boca em boca. Muita gente
zombava, não acreditando, porquanto essa imagem era uma perfeição, um primor de
escultura, um ideal de beleza, e não podia existir uma criatura humana que se
parecesse com ela, quanto mais que fosse a mesma coisa, o modelo vivo.
No entanto a notícia chegou aos ouvidos do príncipe
Altir, que mandou chamar Odern, a quem falou:
— Se tua irmã é assim tão bonita, dize-me onde mora
tua família, que quero mandar buscá-la para minha esposa.
— Saberá vossa real majestade, respondeu o marquês,
que meus pais moram nos desfiladeiros do monte Camocim, distante daqui dez mil
léguas por terra e cinco mil por mar.
O rei mandou imediatamente preparar uma esquadra
par ir buscar a jovem Gabi, enviando para isso embaixadores ao pai, pedindo-a
em casamento. Odern fez parte dessa embaixada.
***
Ao cabo de três meses de viagem, os navios
aportaram finalmente a Camocim; todos, ao verem a moça, ficaram maravilhados
com sua beleza extraordinária.
O embaixador entregou a carta do rei ao velho duque
Odern, que aceitou o honroso pedido do rei Altir, e deixou a formosa Gabi
partir, em companhia de seu irmão.
Regressava a esquadra, quando caiu um grande
temporal, que obrigou os navegantes a procurar o primeiro abrigo que se lhes
deparou. Era uma enseada desconhecida, que não figurava em mapa algum.
Mas ninguém se importou com aquilo, e todos
saltaram em terra, indo pedir pousada à casa de uma velhinha que ali morava.
Era uma velhinha com perto de noventa anos, magra,
baixa, e horrorosamente feia, caolha e aleijada. Devia ser com certeza uma
bruxa mas disse que se chamava Sarda.
Em conversa indagou donde vinham e para onde iam
tão ilustres navegantes, e soube assim o destino da embaixada real.
Aproveitando-se de uma ocasião favorável, convidou
Gabi para dar um passeio pela horta, e aí chegando atirou a pobre menina no
poço que ali havia.
Para não darem por falta dela, pôs em seu lugar uma
filha que tinha, moça em verdade, mas horrível de feia.
Como já era noite os viajantes não deram pela
troca, e conduziram-na para bordo.
Quando os navios levantaram ferro, a velha foi ao
poço, tirou dele a moça, cortou-lhe os cabelos, furou-lhe os olhos e deitou-a
num caixão, que atirou ao mar. Mas o caixão, em vez de afundar, flutuou, e foi
chegar ao reino primeiro que a esquadra real.
Pedro, um pescador, achou-o. Vendo-o muito pesado,
julgou ter dinheiro, e começou a gabar-se que havia achado uma fortuna no fundo
do mar, e que por isso seria mais rico que o rei.
Sendo chamado à presença do monarca, Pedro disse
que de fato tinha achado um caixão com dinheiro.
Altir mandou que os guardas fossem se certificar o
que havia de verdade no que dizia o pescador.
Aberto o caixão, deram com a moça dentro, ficando
todos com pena, de ver uma jovem formosíssima. divinamente bela, mas cega e com
os cabelos cortados.
Os soldados voltaram conduzindo a moça, chegando ao
palácio, um dia depois de ter aportado a embaixada trazendo a filha da velha.
O embaixador, dando conta da missão, disse ao rei:
— Real majestade, fui alegre e volto triste;
sujeito-me, porém, à pena que me quiserdes dar. Quanto ao marquês Odern, ao ver
a irmã ficar tão feia, de um dia para o outro, receando a justa cólera de vossa
majestade, lançou-se ao mar.
— Não há remédio, disse o rei, casar-me-ei com essa
mulher feia.
Efetuou-se o casamento, mas o rei conservou-se
sempre triste.
No outro dia, quando lhe apresentaram a moça dos
olhos furados e cabelos cortados, todos da embaixada reconheceram sem demora a
formosa Gabi Odern.
Contando-se-lhe o que havia ocorrido com o temporal
e a hospedagem na casinha da velha Sarda, Altir desconfiou da infame bruxa, e
mandou buscá-la por um navio veloz.
Sarda a princípio negou tudo, e até fingiu
desconhecer sua própria filha, mas esta era muito parecia com ela, de sorte que
se descobriu toda a falsidade das duas malvadas feiticeiras.
Por castigo, o rei mandou furar os olhos da velha e
cortar-lhe os cabelos. Assim que cumpriram a ordem real, os olhos de Gabi
ficaram perfeitos, e cresceram-lhe os cabelos, tornando-se ela ainda mais
formosa, mais deslumbrante, o verdadeiro tipo da beleza.
O marquês Odern não havia morrido afogado. Tenho
sido lançado à praia, foi recolhido pelo mesmo pescador Pedro. Sabendo que sua
irmã estava viva e sã, e que casara com o rei Altir, apresentou-se no palácio,
sendo magnificamente recebido pela rainha, sua irmã, e pelo seu real cunhado.
A família do duque de Odern deixou os desfiladeiros
de Camocim, e veio residir na capital do reino de Sarinhã, onde viveu sempre
feliz e considerada.
AS TRÊS PRINCESAS ENCANTADAS
Bermudes era um bom pai de família, mas não sabia
dar educação conveniente a seus filhos. Um pouco fraco, deixava que eles
fizessem tudo quanto desejassem, e o resultado foi que, dos três únicos filhos
que tinha – João, Manuel e José, – os dois primeiros eram malcriados,
insolentes, e o terceiro de gênio um pouco vivo demais.
Um dia o pai repreendeu-os, e João e Manuel
zangaram-se e fugiram de casa, sem dizer para onde. Bermudes ficou muito
aflito, e mandou que José, o caçula, fosse procurá-los.
O rapaz saiu de casa para cumprir a ordem paterna,
e começou a viajar.
Ao cabo de três dias de fatigante jornada, em meio
de campos, vales, montes e florestas, foi ter à choupana de um velhinha,
chamada Miriam.
Era uma velha amável, bondosa e
caritativa, que o hospedou com todo o carinho, dividindo com ele a sua ceia.
Acabando a ceia, puseram-se a conversar:
— Que vieste fazer por estes lugares, meu netinho?
disse Miriam, que era a Virgem Maria disfarçada em velha.
— Minha avozinha, respondeu ele, ando à procura de
meus dois irmãos mais velhos, que fugiram da companhia de meu pai, e ele quer
que eu os leve para casa.
— Pois dorme, meu filho, que eu te ensinarei onde
estão eles.
***
No outro dia a velhinha, depois de lhe dar um bom
almoço, disse-lhe que fosse ao Reino das Três Pombas, onde encontraria os dois
irmãos, porque havia ali uma grande festa na qual tomariam parte todos os
jovens do país, devendo casar-se com a filha do rei, o que melhor se
sobressaísse.
— Leva, disse Nossa Senhora, esta vara e esta
esponja, mas toma cuidado que ninguém as veja, porque teus irmãos hão de te
caluniar, dizendo ao rei que te gabas de ser capaz de ir ao fundo do mar
quebrar a pedra que lá existe e desencantar as três princesas, filhas do rei,
que uma fada perversa encarcerara. O rei há de mandar chamar-te, e tu deves
sustentar que sim. Vai, então, à beira do mar, e joga a esponja, que boiará.
Deverás acompanhá-la por onde ela seguir. Mas não percas a varinha, e com ela
bate na pedra que se partirá ao meio. Não te assustes com a serpente que te
aparecer: toca com a varinha nela, que adormecerá no mesmo instante. Entra na
pedra, e tira de dentro uma caixa; dá-lhe uma pancada, que se abrirá
imediatamente. Dentro dela está um ovo, que tem três gemas; parte esse ovo, e
dá a clara para a serpente beber. Verás o resto.
José agradeceu muito a Miriam o benefício que lhe
fazia, e seguiu viagem para o reino onde estavam os seus dois irmãos.
Ali chegando, viu a grande festa que se estava
celebrando.
Achando-o mal vestido, os irmãos, fingiram que não
o conheciam, e trataram de intrigá-lo, dizendo ao rei que ele se gabava de ser
capaz de desencantar as princesas.
O rei mandou chamá-lo, e perguntou se era verdade o
que diziam dele.
— Saberá Vossa Majestade que não disse tal coisa.
Mas se o rei meu senhor ordenar, estou pronto para cumprir as suas ordens.
Todos ficaram admirados, e duvidaram do que dizia o
mocinho.
No outro dia apresentou-se ele no palácio para
seguir para a expedição, e o rei mandou pôr cem navios à sua disposição,
dizendo que, se trouxesse as princesas, casaria coma que escolhesse, ou com a
mais moça, à única que existia, por não ser nascida, quando a fada má
enfeitiçou as três mais velhas; e se voltasse só, seria enforcado no mesmo dia.
José
dispensou os navios, preferindo ir a nado, com a certeza de que voltaria com as
jovens.
Toda a gente julgou impossível ir um homem nadando
até a pedra, que sabiam ficar no meio do oceano, e, em vista disso, mais
duvidaram do bom resultado da empresa.
No entanto José foi: e assim que chegou à praia,
atirou ao mar a esponja, e acompanhou-a até a pedra.
Bateu com a varinha, e ela se abriu por encanto.
Entrou, e viu a serpente, em quem deu também uma pancada, adormecendo-a
imediatamente.
No interior da pedra encontrou a caixa, em que
também deu, abrindo-se ela no mesmo instante.
Tirou de dentro o ovo, partiu a casca, deu a clara
à serpente, saindo então as três princesas, que estavam no ventre do monstro.
Chegando José ao palácio do rei, justamente com as
três donzelas, todo o mundo admirou sua coragem.
João e Manuel, seus irmãos, invejosos por vê-lo tão
felicitado, não ficaram satisfeitos, e foram dizer ao rei que ele dissera ser
capaz de trazer a serpente viva, do fundo do mar.
O rei, que não estava disposto a casar a filha com
José, ordenou-lhe que fosse buscar o bicho, sob pena de morte.
José procedeu como da primeira vez, e trouxe a
serpente.
Então, para caçoar com as pessoas que duvidavam
dele, tocou com a varinha em todos, a começar pelo rei, e os fez adormecer.
Mandou, depois, agarrar seus dois irmãos e levá-los
a seu pai.
O rei, quando acordou, consentiu que se casasse com
a mais bonita das princesas, e ele sabendo disso, tocou com a vara novamente em
todas as pessoas presentes, que dormiram outra vez até que chegassem seu pai e
irmãos, para assistirem ao casamento.
José viveu feliz e benquisto até o fim de seus
dias; e, como não era mau, quando subiu ao trono por morte do rei seu sogro,
casou Manuel e João com duas de suas cunhadas.
Os rapazes mudaram de gênio, corrigiram-se,
tornaram-se bons, e foram sempre considerados.
Custódio era
sapateiro-remendão, vivendo exclusivamente do seu ofício.
Todavia, por mais que se
esforçasse, por mais que trabalhasse, nunca recebia justa recompensa do seu
insano labor. Por isso era pobre, paupérrimo.
Chegou uma ocasião em que se
viu quase na miséria. Haviam-lhe encomendado um par de botas de verniz. Com o
lucro desse trabalho, que ia ser muito bem pago, desde que ficasse bom e fosse
entregue no dia marcado, sem falta, contava comprar mais cabedal, e, assim,
aprontar alguns pares de botinas, que tencionava vender vantajosamente.
Contudo, no dia em que ia começar
o serviço, adoeceu. Foi uma fatalidade, porque não podia dar as botas no dia
designado, e, desse modo, ia perder o verniz, em que empatara o único dinheiro
que lhe restava.
À noite deitou-se, devorado
por violentíssima febre.
Pela manhã acordou ainda mais
doente. Assim mesmo, febril, tiritando de frio, e com terrível enxaqueca,
tentou trabalhar. Foi procurar o verniz, e soltou uma exclamação! Na véspera
apenas havia cortado o couro, e, no entanto, já estava feito o par de botas de
montar, um trabalho esplêndido, digno, de um hábil artista.
Foi grande a sua surpresa, e
nem sabia como explicar fato tão extraordinário.
Apanhou os sapatos,
examinado-os atentamente, virando-os de um lado e do outro; estavam muito
bem-feitos, e não tinham nem um ponto sequer fechado, sendo obra de causar
admiração.
Quando veio buscar a
encomenda, o freguês pagou mais do que havia tratado, tão satisfeito ficou.
Com o dinheiro dessa venda, o
sapateiro foi comprar couro para fazer dez pares de botinas.
Trouxe-o para casa, e à noite
cortou-o, deixando-o para fazer a obra pela manhã.
Mas, ao outro dia, quando se
dirigiu para a sua mesa de trabalho, encontrou tudo pronto, como na noite
anterior.
Dessa vez também, não
faltaram fregueses. Com o dinheiro que produziu a venda, ele pôde comprar couro
para outros pares.
No terceiro dia as botinas
estavam prontas. E assim sucedeu noites e noites seguidas, durante bastante
tempo. Todo o couro que Custódio cortava de noite, aparecia pronto, transformado
em pares de botinas, muito bem-feitas, de modo que o sapateiro foi melhorando,
a ponto de ficar quase rico.
— E se nós passássemos a noite em
claro, para ver quem nos ajuda dessa maneira?
Adelina concordou no que lhe
propunha o marido. Deixando uma lamparina acesa, ocultaram-se os dois dentro de
um guarda-vestidos, por trás da roupa, e esperaram.
Quando o relógio bateu meia-noite,
dois anõezinhos, completamente nus, sentaram-se na mesa do sapateiro, e
apanhando o couro cortado, com as suas mãozinhas começaram a coser, furar e
bater com tanta ligeireza e cuidado que não se ouvia barulho algum.
Trabalharam sem cessar, até que a
obra ficou pronta, desaparecendo então subitamente.
No dia seguinte, Adelina disse:
— Aqueles anõezinhos nos têem
enriquecido: é preciso que nos mostremos reconhecidos. Eles devem sentir muito
frio, andando assim nus, sem nada sobre o corpo. Sabes? Vou coser uma camisa
para cada um, um paletó, uma calça e um colete, e lhes fazer um par de meias de
tricô, e tu fazes para cada um, um par de botinas.
Custódio aprovou a idéia da
mulher; e, à noite, quando tudo estava pronto, colocaram os objetos sobre a
mesa em vez do couro cortado para os sapatos, e ocultaram-se de novo, para ver
de que modo os anões recebiam os presentes.
À meia-noite, os anões chegaram, e
iam começar o trabalho, quando em lugar do couro encontraram os vestidinhos. A
princípio mostraram grande espanto, que depressa se transformou em grande
alegria.
Vestiram imediatamente a roupinha,
e começaram a cantar e saltar:
— Nós somos uns lindos rapazes!...
Adeus, couro, sapatos e botinas!...
Depois começaram a dançar e saltar por cima das
cadeiras e bancos, e sempre dançando, ganharam a porta e desapareceram.
Desde aquele momento ninguém tornou a vê-los.
Custódio, porém, continuou a ser feliz o resto de seus dias, e tudo quanto
empreendia saía conforme os seus desejos.
Havia numa casa uma pobre criada
muito trabalhadora, chamada Isabel. Todo o dia que Deus dava, ela varria a
casa, e depois juntava o cisco, que colocava em frente à porta da rua.
Uma manhã, quando começava o trabalho, achou uma
carta no chão. Como não sabia ler, pôs o caixão de cisco no chão, e foi levá-la
aos patrões.
Era um convite da parte dos anões mágicos que lhe
pediam para ser madrinha de um dos seus filhos.
Isabel não sabia que resolver, mas depois de muitas
hesitações, como lhe disseram que era muito perigoso recusar, aceitou.
No dia marcado, três anões vieram buscá-la, e
levaram-na para uma caverna, na montanha onde moravam.
A mãe do anãozinho que nascera, estava num leito de
ébano incrustado de pérolas, com colchas bordadas a prata. O berço do
recém-nascido era de marfim, e a bacia de banho, de ouro maciço.
Depois do batismo, a criada quis voltar
imediatamente para casa. Os anões, porém, pediram-lhe muito para ficar mais
três dias com eles. Ela anuiu ao pedido, e passou esse tempo em festas, porque
os anõezinhos lhe faziam o mais agradável acolhimento.
No fim de três dias, como quisesse absolutamente
regressar, os anões encheram-lhe os bolsos de ouro, e conduziram-na até à saída
do subterrâneo.
Chegando à casa dos patrões, Isabel recomeçou o
trabalho de todo dia, e apanhou o caixão do cisco, o qual ainda estava no mesmo
lugar em que deixara, o que a admirou sobremaneira. Estava varrendo, quando
saíram da casa uns homens desconhecidos para ela, que lhe perguntaram quem era
e o que queria.
Foi só então que a criada soube que não estivera
com os anõezinhos apenas três dias, como julgara, mas sete anos inteiros, e que
durante esse tempo, seus patrões haviam morrido.
Um dia os anões roubaram a uma mulher o filhinho,
que estava no berço, e puseram em seu lugar um pequeno monstro, que tinha uma
cabeça muito grande e dois grandes olhos fixos, e era insaciável, esfomeado, querendo
comer e beber a todo o momento.
A pobre mãe foi pedir conselho a uma vizinha.
Esta aconselhou-a a levar o monstrengo para a
cozinha, e colocá-lo em cima do fogão, acender o fogo ao lado dele, e ferver
água em duas cascas de ovo. Isso faria rir o monstro, e se ele se risse uma
vez, seria obrigado a partir.
A mulher fez o que a vizinha lhe tinha ensinado.
Assim que viu as cascas de ovo cheias de água, sobre o fogo, o monstro
exclamou:
— Nunca vi, se bem que não seja novo, ferver água
em casca de ovo!E soltou uma gargalhada.
Apareceu imediatamente, um bando de anões, que
trouxeram o verdadeiro filho, colocando-o no berço, e levando o monstrengo em
sua companhia.
AVENTURAS DE UM JABUTI
Dom Jabuti seguia uma vez, distraído, preocupado
com os seus negócios, filosofando nas coisas desta vida, por um caminho no meio
do mato, quando esbarrou com uma velha e enorme anta, enforcada num laço que
caçadores haviam armado. Mais que depressa principiou a roer a corda que
prendia o pescoço do bicho, e depois de esconder a corda, num buraco, começou a
gritar:
—
Acode, gente!... acode depressa!...
Dona
Onça, que passava na ocasião, foi ver porque motivo tanto gritava o jabuti.
—
Que é isto? interrogou.
—
Estou chamando gente para vir comer a anta que acabei de caçar agora mesmo.
— Queres que eu parta a anta? propôs a comadre
onça.
— Quero sim. Dividirás a metade para mim e a outra para
ti, disse ele.
— Então, vai apanhar lenha, para assarmos a carne da
anta.
Quando o jabuti voltou apenas encontrou o couro da anta,
e disse:
— Deixa estar, onça velhaca, hás de me pagar algum dia
esse desaforo que me fizeste.
Saindo dali, andou por muitos dias seguidos. Ia pelo
caminho pensando como se vingar da onça, quando se encontrou com um bando de
macacos, em cima de uma bananeira, comendo bananas.
— Olá, compadre macaco, atira uma banana para mim, disse
o jabuti.
— Por que não sobes? Não és prosa, jabuti?
— Vim de muito longe e estou cansado.
— Pois o que posso fazer é ir buscar-te daí debaixo cá
para cima, disse um dos micos.
— Pois então, vem.
O macaco desceu, pôs em cima o jabuti, que ali ficou
dois dias, por não poder descer.
***
No terceiro apareceu uma onça, a mesma que tinha
encontrado com ele perto da anta.
— Olá, jabuti, como subiste nesta bananeira?
— Muito bem, onça.
A onça, que estava com fome, disse:
— Ó jabuti, desce cá para baixo.
— Só se me aparares na boca, onça. Não quero me
machucar, pulando daqui ao chão.
A onça abriu a boca e o jabuti deu um pulo, mesmo na
goela do bicho, que morreu imediatamente.
— Matei uma onça, meus parentes, vão ver debaixo das
bananeiras!...
— Ó jabuti, que estás dizendo?
— Não é nada, onça, é cá uma cantiga que eu sei.
E foi procurando um buraco para se esconder.
Assim que encontrou uma furna, parou e disse:
— Ó onça, sabes o que estava cantando? É isto: matei uma
onça. Vão ver debaixo das bananeiras.
A onça correu para pegá-lo, mas o jabuti meteu-se pelo
buraco, onde a onça também introduziu a pata, segurando-o por uma das pernas.
— Ó onça, pensas que apanhaste a minha perna, mas
engana-te: apenas seguraste numa raiz.
A onça largou a perna do jabuti, que tinha nas garras, e
retirou o braço do buraco.
— Ó sua tola, foi a minha perna que seguraste mesmo.
Agora vai ver a tua parenta que está embaixo das bananeiras.
A onça ainda cavou um bocado, para ver se apanhava o
Jabuti, mas este já estava longe, porque a furna onde entrara era muito funda.
Desde esse dia, a onça anda à procura do jabuti para se
vingar, mas até hoje ainda não o encontrou,
Existiu há séculos passados um rei
que tinha três filhos. Tendo medo que eles tivessem desejos de reinar antes de
sua morte, porque já corriam boatos que conspiravam contra ele, e não querendo
deixar um lugar que tão dignamente ocupava, pensou que o melhor meio de viver
em repouso era distraí-los com promessas, cujo resultado seria iludi-los.
Uma vez chamou-os ao quarto e
disse-lhes:
— Meus filhos, a minha avançada
idade já não permite que me dedique aos negócios do reino com tanto cuidado
como dantes, e quero que os seus vassalos não sofram. Por isso quero colocar a
minha coroa na cabeça de um de vós. Haveis, porém, de concordar comigo que,
para isso é preciso que façais uma ação digna de tão grande presente. Quero,
pois, que vós três procureis um cão, lindo e fiel, que me faça companhia no
resto dos meus dias. Aquele que me trouxer o animal mais bonito será o dono da
minha coroa, e portanto meu herdeiro.
Os moços ficaram admirados com o
desejo de seu velho pai, mas resolveram ir procurar o animal que lhes havia de
dar a sucessão do reino, prometendo que, no fim de um ano, àquela mesma hora,
estariam de volta dando o resultado da incumbência.
Partiram os moços, cada um para o
seu lado.
O príncipe Nestor, como era
chamado o mais jovem, seguiu viagem, e não havia dia em que não comprasse um
cachorrinho.
Mas, como não podia nadar
acompanhado de tantos animais, à proporção que comprava um mais bonito,
abandonava os outros.
Ia seguindo sempre à procura de um
animal lindo, quando uma noite foi surpreendido por uma tempestade no meio de uma
floresta.
Subiu a uma árvore muito grande,
que havia perto do lugar onde estava, para se abrigar da chuva, e poder passar
a noite, quando viu de longe uma luzinha.
Desceu imediatamente, e foi
caminhando na direção daquele farolzinho.
Chegou à porta de um castelo, o
mais soberbo que se pode imaginar, todo de ouro, com muros de porcelana
transparente, representando todas as histórias de fadas que há no mundo.
Aproximando-se da porta, bateu a campainha,
cujo som, repercutindo lá dentro, parecia ser de ouro ou de prata.
Passados poucos segundos abriu-se
a porta, sem que ele visse outra coisa senão uma dúzia de mãos no ar, segurando
archotes para alumiar sua passagem.
Ficou tão admirado que hesitava em
entrar, quando sentiu que o empurravam para a frente.
Começou a andar ao acaso, e sempre
maravilhado de ver salas, com mais de mil velas cada uma, e cada qual de uma
qualidade: de ouro, de prata, de marfim, de pérolas, de tudo quanto é precioso
neste mundo.
Depois de ter atravessado as
salas, as mãos que o conduziram até ali fizeram-no parar, e viu um sofá
encostado a um fogão.
Sentou-se, e sentiu mãos começarem
a despir-lhe a roupa molhada que trazia, substituindo-a por uma bela camisa bordada
a ouro com botões de pérolas.
Com este novo vestuário, as mesmas
mãos empurraram-no a um quarto contíguo, onde viu um lavatório, espelho,
perfumarias as mais esquisitas, enfim tudo quanto é necessário a um moço para
se vestir.
Sentou-se em uma cadeira de
marfim, e começaram a fazer-lhe a barba, penteá-lo, frisá-lo e mudar-lhe a
camisa por uma roupa mais própria e de riqueza nunca vista.
As mesmas mãos, de pois do
príncipe Nestor estar pronto, conduziram-no a uma sala, admirável pelos seus
enfeites.
A mesa estava posta com dois
talheres, o que intrigava em excesso o príncipe, ao ponto de se julgar no
inferno.
A sua admiração chegou ao auge,
quando, a um sinal dado, viu uma porção de gatos, de diversas raças e cores,
entrar cada um com um instrumento e seguidos de um gato de óculos, com um rolo
de papel debaixo do braço.
Subiram os bichinhos para um
estrado, e começaram a tocar, cada qual de sua maneira, de sorte que formavam a
orquestra mais engraçada que jamais se tem imaginado, pelas caretas que os
bichinhos faziam, o que provocaram ao príncipe gargalhadas estrepitosas.
Pensava Nestor em todas as coisas
que lhe haviam acontecido naquele castelo, quando viu entrar uma figurinha,
coberta com um véu de crepe, e com dois gatos fardados segurando na cauda do
seu vestido preto, também de luto e de espada à cinta.
Seguia-se um cortejo de gatos,
cada um trazendo ratoeiras cheias de ratos, camundongos e morcegos.
O príncipe não sabia como se ter
de tanta surpresa, quando a figura se aproximou dele, e viu uma bela gatinha
branca.
Tinha um ar triste, e começou a
miar tão docemente que quem a ouvisse se sentiria pesaroso.
Chegou-se ao moço, e falou-lhe:
— Filho de rei, sê benvindo; a
minha real majestade te recebe com gosto.
— Excelentíssima gatinha, disse o
príncipe, sois tão generosa em me receber com tanto agrado, que não me pareceis
uma gatinha qualquer; o dom da palavra, que possuis, e este castelo tão rico,
são provas bastante evidentes do que vos digo.
— Príncipe, respondeu a gatinha,
acaba com teus galanteios; sou simples, em meus discursos e em meus modos,
porém, tenho bom coração. Ordeno que sirvam ao nosso hóspede, e que os músicos
se calem, porque o príncipe não entende o que eles dizem.
— E eles dizem alguma coisa?
replicou o príncipe.
— Sem dúvida, continuou ela. Temos
aqui poetas de muito espírito; e se demorares aqui algum tempo, ficarás
convencido do que te digo.
Serviram o jantar, e o príncipe
viu dois pratos, com um ratinho assado, e outro com uma carne que ele não
conheceu.
Ficou com repugnância de comer tal
comida, porém a gata, adivinhando o que se passava no espírito do moço,
asseverou-lhe que o outro prato era feito de propósito para ele, e que por isso
não precisava ter escrúpulos.
O príncipe acreditou no que lhe
dizia a gatinha, e jantou muito bem, admirando somente um retrato que viu no
colar da gatinha, onde reconheceu a fotografia de um homem muito bonito, e que
se parecia um pouco com ele.
Perguntou de quem era aquele
retrato; a gatinha ficou mais triste e não respondeu.
Com medo de contrariá-la,
levantaram-se da mesa, sem mais o jovem moço se ocupar com a fotografia.
Depois do jantar, foi o príncipe
Nestor convidado para assistir a um espetáculo no teatro do palácio, e ficou
maravilhado de ver doze gatos e doze macacos dançarem como as mais afamadas
bailarinas.
Acabado o espetáculo, esteve o
príncipe a conversar com a gatinha, admirando cada vez mais como ela era
instruída em todas as histórias dos príncipes e reis do mundo.
Já era mais de meia-noite, quando
os dois se deram as boas-noites, e foram deitar-se.
No dia seguinte estava o príncipe
ainda deitado, quando lhe apareceram duas mãos que traziam numa bandeja de ouro
e brilhantes um cartão da gatinha, convidando-o para uma caçada.
O príncipe levantou-se, vestiu-se,
e foi ter com a gatinha, que já encontrou montada em um macaco, oferecendo-lhe
ela um cavalo-de-pau, que corria mais que o melhor animal deste mundo, e tanto
como o vento.
A caçada era feita pelos gatos aos
coelhos, e era de se admirar como podiam estes animais caçar aqueles.
***
Levava Nestor essa boa vida, e
havia esquecido o fim da sua viagem, entretido como estava pelos divertimentos
que a toda hora lhe proporcionava a gatinha, quando um dia esta lhe disse:
— Sabes que só tens três dias para
procurar o cãozinho que teu pai deseja, e que teus irmãos já encontraram dois,
lindos?
O príncipe, admirado de sua
negligência, exclamou:
— Porque encanto secreto esqueci a
coisa mais importante deste mundo, para mim? Onde poderei encontrar um cão como
desejo, e um cavalo bastante rápido para fazer tantas léguas em tão pouco
tempo?
A gatinha, vendo-o tão inquieto,
acalmou-o:
— Sossega; sou tua amiga; podes
ficar ainda um dia em meu palácio; e, conquanto daqui ao teu reino haja
quinhentas léguas, o meu cavalo-de-pau vai lá ter em menos de doze horas.
— Agradeço-vos muito, bela
gatinha, mas não é preciso somente chegar à casa de meu pai; é necessário
também encontrar um cão, e onde irei agora achá-lo?
— Pois toma esta amêndoa, disse a
gatinha; lá dentro está um cãozinho.
— Oh! disse o príncipe, vossa
majestade quer caçoar comigo?
— Não; e se não acreditas,
encosta-a ao ouvido, que escutarás o latido.
O príncipe obedeceu; e quando
ouviu o “au au” do cachorrinho, ficou maravilhado; e queria por força abrir a
amêndoa para ver o animalzinho.
A gatinha proibiu-lhe que assim
procedesse, dizendo que só devia abri-la em presença do rei seu pai.
Nestor despediu-se da bichinha,
dizendo que se sentia pesaroso de deixar uma gata tão gentil, e suplicou-lhe
ardentemente para que fosse a seu palácio, onde seria muito bem tratada.
A gatinha deu um suspiro triste, e
não respondeu.
O moço montou no cavalo-de-pau e
voou ao palácio do rei, onde encontrou os irmãos, que estavam chegando naquele
instante.
Quando os três príncipes chegaram
à presença do velho rei, este não sabia qual dos dois cães trazidos era o mais
bonito, tão lindos eram. Perguntou a Nestor onde estava o animal que devia
trazer.
— Está aqui, meu pai, e
mostrou-lhe a amêndoa.
O rei supôs que o filho queria
caçoar, e já estava disposto a mandar castigá-lo severamente pela falta de
respeito, quando o moço abriu a amêndoa, de onde saiu um cãozinho, do tamanho
de um caroço de feijão, a latir, a pular e a saltar que era um gosto.
Todos foram de acordo haver sido
Nestor quem trouxera o animal mais lindo. Mas o rei, que não se achava com
disposição de lhe ceder a coroa, disse:
— Na verdade, meu filho, foste tu
que ganhaste o prêmio. Mas, para não descontentar a teus irmãos, quero uma
segunda prova. Tragam-me, daqui a um ano, um pano que seja capaz de atravessar
o fundo da agulha mais fina que houver em todo o reino.
***
Partiram os príncipes à procura do
que lhes pedia seu pai pensando onde poderiam encontrar pano tão fino que
passasse pelo fundo de uma agulha, e desanimados de conseguir o que lhes fora
pedido.
Nestor montou no cavalo-de-pau, e
partiu para o palácio da gatinha, a quem foi pedir proteção e conselho.
As mãos, que da primeira vez o
tinham recebido, assim que ele chegou, levaram-no à presença da gatinha, que
lhe falou:
— Príncipe, senti muito a tua
partida, e não contava mais te ver, porque te estimo muito, e desejava a tua
volta. Infelizmente, do que desejo neste mundo, nada tenho conseguido. Falemos
sobre assunto que mais te interessa. Já sei a que vens; o que teu pai pede é
muito difícil de se conseguir, senão quase impossível. Como tenho, porém, aqui
no meu reino, tecelões admiráveis, vou fazer a tua encomenda e estou certa que
eles envidarão todos os esforços para me serem agradáveis.
Nestor começou a viver no palácio
da gatinha a mesma vida que dantes. Tendo sempre com que se distrair, – festas
de todas as espécies, – esqueceu-se do fim da sua segunda visita.
Uma tarde em que conversava com a
gatinha, cada vez mais admirado de tanto espírito do animalzinho, ela lhe
disse:
— Príncipe, é amanhã o dia em que
deves apresentar a teu pai o pano que ele te encomendou. Já te esqueceste?
— Palavra que tinha me esquecido,
minha formosa gatinha, do fim a que voltara a este palácio. A vossa companhia é
tão encantadora, que d bom gosto passaria o resto de minha vida, aqui. O único
sentimento que tenho é não serdes mulher, para eu viver de joelhos, vos
adorando. Mesmo assim, basta que me dês consentimento, que aqui ficarei, não
querendo mais saber do direito que tenho, sobre a coroa del-rei meu pai.
— Príncipe, o que me pedes é
impossível. Volta ao palácio de teu pai, a quem não deves abandonar por amor a
uma triste gata.
— Mas como voltarei eu, se de todo
me esqueci de procurar o pano, e de hoje até amanhã não o poderei haver, nem
que tenha o auxílio do cavalo-de-pau?
— Sossega, príncipe Nestor, disse
ela muito triste, eu me incumbi de arranjar o pano que teu pai deseja. Ei-lo
aqui. Vai, e lembra-te sempre da tua amiga, a gatinha.
Entregou-lhe uma caixinha do
tamanho de um dado.
O príncipe não poderia supor que
dentro de uma caixinha tão pequena houvesse uma peça de pano. Mas, como a
gatinha não gostava de caçoar, aceitou o microscópico embrulho, com
recomendação de só abri-lo em frente do rei.
Montou no cavalo-de-pau que lhe
dera a gatinha, e em dez horas viajou quinhentas léguas.
Assim que chegou ao palácio, viu
dois cavaleiros saltando de dois cavalos, e reconheceu os dois irmãos.
Estes indagaram do príncipe Nestor
se tinha arranjado a peça de pano, ao que lhes respondeu que não, porque o mais
fino pano que encontrara só passava pelo anel de uma criança.
Chegaram os dois príncipes à
presença do rei, que os julgou logo sem direito à coroa, por isso que a peça de
pano que levavam só passava pelo fundo de uma agulha de coser sacos.
Voltando-se para seu filho mais
moço:
— E tu, meu filho, foste tão feliz
como da outra vez?
— Suponho que sim, meu pai. Aqui
está a peça de pano que o senhor deseja. Tem cem metros de comprimento por
trinta de largura.
Apresentou a caixinha que lhe
havia dado a gatinha.
O rei não quis acreditar que uma
caixa do tamanho de um dado pudesse conter tanto pano, mas para se certificar
abriu-a.
Encontrou dentro uma caixa de
vidro.
Todos começaram a duvidar do jovem
príncipe, quando este pediu a seu pai que abrisse a segunda caixinha.
Este abriu-a, e encontrou um grão
de milho.
Aumentaram as zombarias ao
príncipe Nestor, dizendo que tinha sido enganado, e ele mesmo, um tanto
envergonhado, disse consigo mesmo:
— Será possível que a gatinha
branca me tenha ludibriado?
Nestor sentiu uma arranhadela na
mão. Compreendeu que era a gatinha, que não queria que ele duvidasse de sua
palavra; e, virando-se para todas as pessoas presentes, disse:
— Garanto a todos que encontrarão
cem metros de pano de comprimento por trinta de largura.
O rei já se via satisfeito, por
ver que a coroa não passaria a nenhum dos seus filhos, e, para contentar o
príncipe Nestor, mandou que ele quebrasse o grão de milho.
Este imediatamente partiu-o, e
encontrou um grão de ervilha, que também quebrou, tirando de dentro um pano
tendo em todo o comprimento e largura pintadas todas as qualidades de pássaros,
peixes e animais.
Todos se admiraram de ver um pano
assim, e foram de acordo que a coroa pertencia a Nestor.
Todavia, o rei desta vez ainda não
quis ceder, dizendo:
— Meus filhos, é a última
experiência que faço. De bom grado daria o meu reino a meu filho mais moço, que
é o que se tem saído melhor em suas aventuras, porém acho que um homem solteiro
não governa bem um reino tão importante como é o meu. Por isso dou-vos um ano
de prazo para trazer a mulher mais bonita que encontrardes. Aquele que trouxer
a que mais me agradar, será o rei meu substituto, e casar-se-á com a moça.
Quero gozar a minha velhice cercado de netinhos.
Os três príncipes saíram do
castelo, indo Nestor, no seu cavalo-de-pau, em direção ao palácio da gatinha.
Chegando ali contou-lhe qual a
incumbência que o pai lhe fazia, dizendo achar ser impossível consegui-lo.
— Não, príncipe, eu te ajudarei no
que puder. Talvez saiba de alguma moça formosa, que queira ir em tua companhia.
— Não, minha gatinha, estou
disposto a não voltar mais ao palácio; e peço-te o que já pedi uma vez: amo-te
muito, e o meu maior desespero é ficar sem tua companhia.
— Não penses nisso, príncipe.
Cuidemos do meio de fazer a vontade a teu pai, e, enquanto não o encontramos,
divirtamo-nos.
Passou o príncipe mais de um ano
no palácio da gatinha, e já estava esquecido do que viera ali fazer, quando um
dia lhe disse a sua amiga:
— Meu caro príncipe, é depois de
amanhã que deves ir ao palácio do rei, com a moça que levarás, e previno-te que
arranjei uma, linda como os amores.
— Pois eu, minha gatinha, desisto
de tudo, porque uma das condições que meu pai apresentou foi aquele que levar a
moça mais bonita casar-se com ela, e eu não quero deixar de gozar a tua
preciosa companhia.
— Não, príncipe Nestor, deves
fazer o que te digo, que é para teu bem, e talvez para o meu. Arranjei a moça
que procuras, mas é preciso um sacrifício de tua parte, para levá-la.
— Dize-me qual é, que o farei, uma
vez que é para meu benefício, e talvez para o teu, como dizes.
— Só terás a moça, que é de uma
beleza nunca vista, se me cortares a cabeça e a cauda, e as jogares no fogo.
— Isso não, gatinha: prefiro
morrer, abandonar todos os reinos da terra, a ter que fazer tal barbaridade.
— Mas olha que é preciso; e se me
tens a amizade que dizes, faze o que te peço de joelhos, que é para meu
benefício.
— Pois bem, fá-lo-ei, se jurares
que nada te acontecerá.
— Garanto-te que até serei mais
feliz.
Nestor fez o que lhe disse a
gatinha.
Com a mão trêmula pegou num facão,
que ali aparecera por encanto, e de olhos fechados cortou-lhe a cabeça e o
rabo.
Quando abriu os olhos, ficou
deslumbrado.
Em sua frente estava uma moça de
uma beleza extraordinária, que lhe disse:
— Obrigada, príncipe, pelo serviço
que acabas de me prestar. Estou às tuas ordens, para irmos ao palácio del-rei teu
pai. Sou uma princesa, transformada na gatinha que conheceste, por uma fada má,
inimiga da minha madrinha, a fada Beleza. Só me desencantaria quando um
príncipe me amasse no meu envólucro de gata, e me matasse. Salvaste-me, e hoje
sou a rainha Maroca, senhora de seis reinos. Vamos ter com teu pai que, estou
certa, não me recusará como nora.
O príncipe estava estupefato ante
um fato tão estranho, e em frente de um formosa mulher, tão linda como nunca
vira nem em sonhos.
Maroca mandou que seus vassalos,
que eram os antigos gatos, também desencantados, preparassem a carruagem que os
devia levar ao reino do pai do príncipe Nestor.
Era um lindo carrinho puxado por
dez mil casais de pombos brancos, atrelados por cordões de ouro, onde, de
espaço a espaço, havia um brilhante do tamanho de um grão de milho.
Quando os dois jovens chegaram ao
palácio do rei, foi uma surpresa geral.
Os dois irmãos de Nestor não
quiseram mostrar as suas noivas, envergonhados, embora fossem formosíssimas.
O rei, vendo aquela mulher com seu
filho, lhe disse:
— Agora, meu querido filho, tens o
direito à minha coroa, e estimo-o bem, vendo que vou ter uma nora como não há
igual. Só ela vale todos os reinos que existem.
— Real Mjestade, disse a rainha
Maroca, desculpai se não aceitamos a vossa coroa. Pretendemos somente o vosso
consentimento para nos casarmos. Podeis ficar com o vosso reino, e com mais um,
que vos ofereço. Os meus cunhados serão reis de dois reinos, também meus,
desanexos da minha coroa, porque nos bastam, a mim e ao príncipe Nestor, três
reinos que governaremos em boa harmonia.
O rei ficou contentíssimo com o
que acabava de ouvir.
Efetuaram-se os casamentos dos
três príncipes irmãos, no mesmo dia, com as maiores pompas que têm havido em
casamentos de príncipes.
Cada um dos três príncipes foi
tomar conta dos seus reinos, ficando satisfeitos e vivendo felizes por muito
tempo.
O DR.
GRILO
Filho de um simples operário, Carolino
lembrou-se um dia de se intitular adivinho. Era um moço esperto como poucos, e
viu que este mundo era dos espertalhões. Anunciou que curava todas as doenças e
que era capaz de adivinhar quanto segredo houvesse.
Lembrando-se, porém, que ninguém é
profeta em sua terra, Carolino mudou-se da cidade. Foi residir na capital do
reino, onde toda a gente o conhecia por dr. Grilo, em vista da sua imensa
altura e extraordinária magreza.
Em pouco tempo, o dr. Grilo
tornou-se célebre. Com charlatanice, conseguia coisas maravilhosas.
***
Sucedeu, entretanto, que o rei,
sabendo daquilo, mandou chamá-lo ao palácio.
O dr. Grilo para lá se dirigiu,
tremendo de susto, sabendo que o soberano era malvado, e que com ele ninguém
brincava.
Apresentando-lhe a mão fechada,
ordenou-lhe sua majestade que dissesse o que era que ali estava.
Vendo-se naqueles assados, o rapaz
exclamou:
— Ah! Grilo! em que mãos estás
metido?
— É verdade, disse o rei abrindo a
mão. É mesmo um grilo que tenho aqui.
***
Tempos depois, o monarca fê-lo
comparecer novamente à sua presença.
— De que bicho é este sangue?
indagou, apresentando um frasquinho.
O adivinho, desesperado, não tendo
outra coisa que fazer, disse:
— Aí é que a porca torce o rabo.
— É de porca mesmo. Adivinhaste,
disse o rei.
Passado um mês, como prosseguissem
o sucessos assombrosos do rapaz, o soberano mandou que o trouxessem, pela
terceira vez.
Ordenou-lhe sob pena de morte, que
descobrisse os ladrões de um tesouro real.
Os verdadeiros gatunos, que eram
três criados do paço, recendo que o dr. Grilo de fato adivinhasse, foram ter
com ele e suplicaram-lhe que os não deitasse a perder.
O rapaz, sem perda de tempo,
denunciou-os ao rei.
Grilo foi nomeado, então, médico do
hospital militar.
Havia nessa ocasião uma grande
epidemia que grassava entre os soldados, sem que médico algum soubesse
descobrir o que era.
Assim que foi nomeado, o falso
doutor dirigiu-se à enfermaria, e declarou que, no dia seguinte, iria autopsiar
todos os enfermos mesmo vivos.
Pela manhã estavam todos bons, e o
hospital inteiramente vazio, pois os soldados nada tinham, fingindo-se doentes,
a fim de não irem para a guerra.
O rei, acreditando na ciência de
Carolino deu-lhe carta de nobreza e grandes riquezas.
O GRANDE
ADVOGADO
Gustavo era um simples lavrador,
mal sabendo ler e escrever.
Desejando, porém, ter um doutor na
família, mandou Lucas, seu filho, para S. Paulo estudar Direito.
O rapaz, porém, meteu-se na
pândega, gastou todo o dinheiro que o velho lhe enviava, com grandes
sacrifícios, e, ao cabo de cinco anos, sabia tanto quanto ali chegara.
Forçoso foi no fim deste tempo,
voltar para a roça.
Aí chegando, quis aparentar que era
muito instruído, e vendo que os cães latiam, não o conhecendo, bradou-lhes:
— Ó canes de mi patri, non
conhecetis vostrum amum?
O pai, ouvindo aquilo, ficou cheio
de alegria e disse para a mulher:
— Ó Joana! que bem empregado foi o
nosso dinheiro. Olha que o doutor até fala latim com os cachorros!
***
O lavrador nessa ocasião estava a
braços com uma demanda, e mandou que o filho fosse advogá-la.
Vendo que os juízes, escrivães, e
mais gente do foro, eram tão lorpas como ele, o rapaz apresentou-se sem receio,
impando vaidade, de chapéu à cabeça, falando alto:
— Ed nabis in saqui! Quid
espigoide! Ego mettidum cum ladrones e burrorum. Pagavit cum lingue de pau!
Ouvindo aquele arrazoado os
demandistas acharam mais razoável desistir do processo, mesmo porque não tinham
razão, e o velho lavrador era o legítimo dono das terras.
E foi assim que o rapaz se viu
elevado a grandes alturas, considerado o primeiro advogado do mundo.
OS
ANÕEZINHOS FEITICEIROS
Honório Pereira e Leandro Pacheco
saíram um dia de casa, para correr mundo, até encontrarem onde pudessem ganhar
honradamente a vida.
Ao cabo de muitas semanas de
jornada, à hora do anoitecer, enquanto caminhavam, cansados de tanto andar,
ouviram imprevistamente os sons longínquos de uma deliciosa música, cada vez
mais distintos, à proporção que se iam aproximando.
Era uma harmonia estranha, mas tão
suave ao mesmo tempo, que esqueceram a fadiga sentida depois de tão longa e
penosa viagem, para se encaminharem à toda pressa em direção ao lugar de onde
pareciam vir aqueles dulcíssimos sons.
A lua brilhava majestosa e clara,
quando chegaram à encosta de um monte.
Aí viram numerosos grupos de
pequeninos dançando alegres, de mãos dadas, fazendo roda como na brincadeira da
“Sinhá viuvinha das bandas dalém”.
No centro achava-se um velhinho,
mais bem vestido que os outros, imponente, com a sua longa barba muito branca,
que lhe chegava quase até os joelhos.
Assim que o velho – naturalmente o
rei dos Anõezinhos – avistou os dois companheiros, fez-lhes amistosos sinais
com a mão, para que se aproximassem, e os dançarinos abriram a roda dando
passagem franca.
Leandro, que era um pouco corcunda
e ousado, como a maior parte das pessoas assim defeituosas, penetrou no
círculo, sem a menor hesitação. Pereira, mais acanhado e tímido, vendo a
resolução do camarada, resolveu-se a imitá-lo.
Fechou-se em seguida a roda dos
alegres foliões, que recomeçaram com as suas músicas, bailados e cantigas.
Os dois aventureiros estavam
admirados. Era a primeira vez que viam homens e mulheres, perfeito como todo o
mundo, com a única diferença que o mais alto não chegava a ter um metro de
altura.
Contemplavam com espanto aquela
cena, quando o anãozinho-chefe tirou do bolso um grande navalha, e dirigiu-se
para eles.
Ficaram transidos de medo, mais
mortos do que vivos, pensando que iam ser assassinados.
O velhote, sem pronunciar palavra,
agarrou os dois viajantes – primeiro um e depois o outro – e, num abrir e fechar
de olhos, raspou-lhes completamente as caras e as cabeças, dizendo depois:
— Vocês fizeram muito bem em
consentir que eu os barbeasse. Em paga vou dar-lhes um presente. Levem consigo
um bocado daquele coque que ali está.
Apontou para um monte de carvão,
que havia a um lado, e os dois, obedecendo, encheram os bolsos de pedras de
vários tamanhos, embora não pudessem saber para que lhes serviriam elas.
Saindo dali, caminharam para a
vila mais próxima. Na estalagem em que pernoitaram, de tão fatigados que
estavam, dormiram assim mesmo vestidos, esquecendo até de tirar os pedaços de
carvão de pedra que haviam guardado nas algibeiras.
Pela manhã, ao despertarem, quando
iam levantar-se, sentiram-se extraordinariamente pesados, quase sem poderem
mover-se. Lembraram-se então do presente dos anõezinhos e foram vê-los.
Em vez de pedaços de coque, feios
e pretos, foi com surpresa e contentamento que encontraram lindíssimos e
enormes diamantes de extraordinário brilho e fabuloso valor. Em lugar também das
cabeças peladas e caras lisas com que se tinham deitado, viram-se de novo com
bons cabelos e belas barbas.
Estavam ricos, mas o corcunda
Leandro Pacheco não se contentou com a sua sorte.
Não quis prosseguir a viagem
naquele mesmo dia, e mal anoiteceu, dirigiu-se sozinho – porque Pereira não o
quis acompanhar – para a montanha onde encontrara os anõezinhos.
Chegado aí, repetiu-se ponto por
ponto a cena da véspera. Depois que o chefe dos anões o barbeou, mandou-o
apanhar carvão. Pacheco, que se tinha prevenido, encheu dois grandes sacos,
transportou-os dificultosamente, arfando de cansaço, suando com abundância, até
a hospedaria.
Na manhã seguinte, despertou cheio
de curiosidade, pela madrugada ainda, e correu pressuroso a ver os sacos, mas
só encontrou as mesmas grosseiras pedras que tinha catado na véspera. Ficou
desesperado, mas lembrou-se que ainda era muito rico, possuidor dos brilhantes
da primeira noite.
Foi contemplá-los; ele, porém,
haviam tornado à sua primitiva forma e ele estava outra vez pobre, paupérrimo,
como saíra da sua aldeia.
Para cúmulo do caiporismo e
castigo de sua desmedida ambição, viu-se sem um só fio de barba e de cabelo, e
a sua corcunda crescera, muitíssimo desenvolvida.
Honório Pereira, porém,
consolou-o, pondo à sua disposição metade dos diamantes que possuía, depois de
aconselhá-lo que, para o futuro, não fosse ambicioso de riquezas, e se
contentasse com a sorte.
A CASA
MAL-ASSOMBRADA
Isolada de outras habitações havia
uma casa onde ninguém morava, porque se dizia que era mal-assombrada; à
meia-noite ouviam-se ruídos de correntes, gritos, gemidos e suspiros, e uma
luzinha brilhava, ora numa janela, ora noutra. O proprietário não achava
alugador, e mesmo não queria saber dela, que ia se arruinando pouco a pouco.
Um dia procuraram-no duas mulheres
– mãe e filha – muito pobres, que acabavam de ser expulsas da casinha em que
moravam. Pediam-lhe licença para ocupar a casa mal-assombrada.
O homem admirou-se daquele pedido,
e depois de avisá-las dos perigos que corriam, consentiu sem dificuldade.
As duas mulheres no mesmo dia
mudaram-se.
Eram onze horas da noite quando
foram se deitar, nada tendo visto nem ouvido de extraordinário. A mãe, como já
era velha, e se sentia cansada das arrumações, dormiu logo. A filha, porém,
ficou acordada, rolando na cama, sem conseguir adormecer.
Uma hora depois, ouviu o sino da
matriz bater meia-noite. No mesmo instante a moça escutou um ruído estranho,
enquanto uma voz gemia:
— Eu caio!... Eu caio!...
Ela olhou para cima, de onde
parecia vir a voz. Nada viu, mas disse:
— Pois caia, com Deus e a Virgem
Maria!
Do teto do quarto caíram duas
pernas.
A mesma voz assim falou mais três
vezes, e a rapariga dando sempre a mesma resposta, viu cair sucessivamente o
tronco, os braços e a cabeça de um homem.
Os quatro pedaços reuniram-se, e
apareceu uma criatura humana, tão pálida como um cadáver, que lhe falou:
— Se não tens medo, vem comigo.
Adelaide acompanhou-o atravessando
toda a casa, até chegarem ambos ao quintal.
Aí debaixo de um tamarindeiro, o
morto mandou-a cavar a terra, encontrando uma lata com dinheiro, que
transportaram para dentro.
Chegando ao quarto, disse-lhe o
defunto:
— Eu sou uma alma penada, que ando
sofrendo por causa deste dinheiro. Quando era vivo, roubei-o de uma pobre
viúva, desgraçando-a, bem como aos órfãos, seus filhos. Deste dinheiro, a
metade é para você e sua mãe, e a outra metade é para distribuir com os pobres,
e mandar dizer cem missas por minha alma.
Acabando de falar, a alma penada
desapareceu.
Adelaide fez tudo o que ele havia
mandado, e ficou rica para o resto de sua vida.
AS
AVENTURAS DO ZÉ GALINHA
José Joaquim de Souza e Silva veio
da terra e foi para Jacarepaguá, onde se estabeleceu, protegido pelo Manoel da
Venda, seu primo. Aí dedicou-se ao comércio de aves domésticas e ovos, que
comprava em porção, enviando-os em seguida à Praça do Mercado e outros pontos
da cidade. A sua lida com a criação, desde a manhã até a noite, durante anos,
sempre na mesma casa, eternamente no mesmo lugar, valeu-lhe a alcunha de Zé
Galinha, porque era conhecido, verdadeiramente popular em Jacarepaguá e terras
adjacentes. Ninguém sabia quem era o Souza e Silva, nem José Joaquim.
Perguntassem, porém, pelo Zé Galinha, que todo o mundo apontaria a sua casa.
E o Souza desesperava-se com
aquilo: ralava-o a antonomásia que lhe haviam posto, e daria bem um par de
contos se conseguisse ser chamado de outra forma. Nos primeiros tempos, quando
começara a vida, pouco se lhe dava que o chamassem assim ou assado: queria
ganhar dinheiro, fazer fortuna e volver à aldeia.
Mas, depois de vinte anos,
aclimado em Jacarepaguá, rico, já casado e com filhos, resolveu-se ficar.
Abraçou outro ramo de negócio, abriu um grande armazém de secos e molhados, e
acabou o negócio de galinhas, patos e perus.
A alcunha, porém, ficou. Ele era o
Zé Galinha. Parecia até que aquilo era proposital. Quanto mais se enfurecia, e
maiores esforços empregava para que a antonomásia fosse esquecida, toda a
agente se obstinava em chamá-lo assim.
Foi então que o Souza resolveu
comendadorizar-se. Veio ao Rio, e conversou com o barão de S. Caetano, chefe da
colônia, assinou dez contos para o Asilo dos Órfãos Lusitanos, recentemente
fundado, e esperou a comenda.
Durante uma semana passou ele na
cidade, divertindo-se à farta, para compensar um pouco a sua vida cheia de
trabalhos.
Havia chegado no domingo, e o João
Carne Seca, da rua das Violas, em cuja casa se hospedara, levou-o ao teatro,
que ele não conhecia.
A princípio o Zé Galinha não
queria ir, mas o outro influiu-o tanto, animou-o de tal forma, que se resolveu
finalmente.
Enfiada numa sobrecasaca de pano comprada
feita na rua do Hospício, encartolado, de calças brancas e botinas de verniz, o
futuro comendador ficou disfarçado. Nem ele mesmo se conheceu!
Ao entrar no Cascata, onde o João
ia tomar café, a sua figura exótica refletiu-se em um dos espelhos. E como
caminhasse em frente, vendo aquele cavalheiro que se dirigia para ele, sem
sentido oposto, recuou delicadamente para a direita, a fim de ceder o lugar. E
vai o “outro”, justamente na mesma ocasião, recua. O Zé tomou a esquerda; o
“outro” idem. O Zé parou; o outro imitou-o.
Vendo aquela contradança, o João,
que já estava sentado, perguntou-lhe:
— Que diabo estás a fazer aí, ó
Souza?
E o Souza, sorrindo-se,
medonhamente encalistrado:
— Estou dando lugar para aquele
cavalheiro passar.
O João rompeu numa gargalhada
colossal:
— Ó rapaz! pois não estás vendo
que quilo é a tua imagem no espelho?
Saindo do café, dirigiram-se os
dois para o teatro.
Deslumbrado, nunca tendo visto
daquilo, o nosso homem quase não podia caminhar. Foi com dificuldade que o João
o arrastou até as cadeiras, em uma das filas centrais.
Já havia começado o espetáculo, e
negociante permanecia de pé, não consentindo assim que os espectadores das
filas atrás vissem o que se representava.
Então, algumas pessoas, aborrecidas
com aquele estafermo, das torrinhas e da platéia, bradaram:
— Senta!... Senta!...
Zé Galinha, imperturbável,
voltou-se para trás, e no meio do silêncio que se fizera, respondeu:
— Não se incomodem, meus senhores;
estou bem de pé, muito obrigado.
Cessado o ligeiro incidente,
depois de alguns segundos de prolongada hilaridade, tendo João obrigado o
companheiro a sentar-se, o Souza e Silva, conhecido em Jacarepaguá por Zé
Galinha, assistiu calmamente à representação.
O primeiro ato correu sem
novidade, salvo uma ou outra asneira, que perguntava ao companheiro, em voz
baixa, para não fazer novo fiasco.
Representava-se a comédia Uma
hospedaria na roça. Quando o ator entra em cena e procura pela mulher, que
está escondida atrás da porta, volta-se para a platéia e interroga “Onde estará
ela? Onde estará a Chiquinha? Onde estará?” E leva alguns minutos a procurá-la
com açodamento, examinando o aposento.
Nessa ocasião, o ilustre
jacarepaguense não pôde resistir, e, querendo mostrar a sua perspicácia,
berrou:
— Está aí atrás da porta,
escondida para que o senhor não a veja.
Durante a semana em que Zé Galinha
passou no Rio de Janeiro, nem um só dia deixou de ir ao teatro. Ficara gostando
imensamente, e andava maníaco.
De volta para Jacarepaguá, levava
na mala uma enorme coleção de dramas, comédias, cenas cômicas e monólogos,
comprados na Livraria Quaresma, que principiou a ler com animação.
Estava à espera da comenda que o
barão de S. Caetano lhe prometera, e que havia de desaparecer para sempre a sua
terrível alcunha. Lembrou-se então de mandar edificar um teatrinho, onde
tencionava representar, fundando também uma sociedade dramática.
Em menos de um mês estava tudo
pronto, e inaugurava-se o Ginásio Dramático Beneficente Estrela de Ouro de
Jacarepaguá, sob a presidência do comendador José Joaquim de Souza e Silva.
O ilustre comerciante queria
realizar imponentes festas para comemorar dignamente a sua comenda. Seriam três
dias de pândega, havendo em todas essas noites espetáculos e bailes.
A primeira peça escolhida para a
estréia foi a tragédia em oito atos D. Nuno Álvares ou O poder
do lusitano.
O comendador Souza e Silva fazia o
papel de conde de Tomar.
Ao aparecer na primeira cena,
passeava lentamente, mudo, pensativo. A marcação da tragédia dizia: “O conde
entra, mas não fala...”
E vai o Zé avança, pelo palco, e
exclama com voz de trovão:
— E conde entra, mas não fala!
Como estava radiante o comendador
José Joaquim de Souza e Silva! Durante aqueles três dias nem uma só vez ouvira
pronunciar a terrível alcunha de Zé Galinha. Jacarepaguá em festas tinha
esquecido e agora só o chamava comendador.
Havia chegado a terceira noite, e
nova tragédia ia exibir-se: O punhal envenenado ou A nódoa de
sangue.
Logo no primeiro ato, ao erguer-se
o pano, o Souza aparecia disfarçado com longas barbas e longa cabeleira, de
capa e espada. A cena, quase às escuras, fingia um bosque.
D. Rufo, o chefe dos salteadores,
entrava, e dizia:
— Noite propícia; nem uma estrela
brilhando no firmamento!
Fez-se profundo silêncio quando
ele apareceu, e a frase foi bem lançada.
Mas de repente, no meio da
quietação sepulcral, ouviu-se uma voz de criança exclamar:
— Ó mamãe! Aquele não é o seu Zé
Galinha?
Escândalo nunca visto! Rebentou
uma gargalhada uníssona, colossal.
Então, o Souza, vendo perdido o
seu tempo, o trabalho que tivera, e o cobre com que comprara a comenda, ficou
desnorteado; e arrancando com gesto brusco as barbas e a cabeleira, exclamou
indignado:
— Zé Galinha é você, seu
malcriado! O culpado fui eu, metendo-me com essa gentinha! Arreia o pano!
E assim acabou-se o Ginásio
Dramático Beneficente Particular Estrela de Ouro de Jacarepaguá.
O CÁGADO E
O URUBU
O cágado e seu companheiro urubu
foram convidados para uma festa no céu. O urubu, querendo debicá-lo, disse:
— Então, compadre cágado, já sei
que vai à festa e eu quero ir em sua companhia.
— Pois não, respondeu o outro,
contanto que você leve a sua viola.
Separaram-se, ficando o urubu de
ir à casa do cágado, para irem juntos.
No dia seguinte, logo muito cedo,
o urubu apareceu. O cágado estava à janela, e assim que o viu voando,
escondeu-se.
O outro entrou, e foi a mulher
quem o recebeu. Convidou-o a passar para a sala de jantar.
— Venha cá para dentro tomar uma
xícara de café. Deixe aí a sua violinha, que ninguém a quebra.
O cágado, assim que o urubu
passou, meteu-se dentro da viola.
— E seu marido, comadre?
— Ora, mandou pedir mil desculpas,
mas já foi adiante.
O urubu, acabando o café, pegou na
viola sem nada desconfiar, abriu vôo e chegou ao céu.
Perguntaram-lhe pelo cágado,
sabendo que haviam combinado vir juntos.
— Qual! Pois vocês pensam que ele
vem? Quando lá embaixo ele nem sabe andar, quanto mais voar!
Pilhando-o distraído, o cágado
saiu da viola e apareceu no meio dos outros, que se admiraram muito ao vê-lo.
Dançaram e brincaram até tarde.
Acabada a festa, usando do mesmo
estratagema, o cágado meteu-se dentro da viola.
O urubu descia voando, quando o
cágado se mexeu sem querer.
— Ah! é assim que você sabe voar?
Pois voa mais depressa, exclamou o companheiro virando a caixa.
O cágado despenhou-se daquela
imensa altura, e, quando vinha cegando à terra, vendo que ia se esborrachar
sobre uma pedra, começou a berrar:
— Arreda, pedra, senão eu te
esborracho!
Quem caiu foi ele, que se achatou
completamente, ficando com a forma que ainda hoje conserva.
A PRINCESA
ADIVINHA
Luísa era uma princesa, que tinha tudo
quanto pode haver de mais formoso. Quem a via, ficava logo perdido de amores.
Pretendentes sem conta, todos os
reis da terra, apareceram, pedindo-a em casamento. Luísa recusou-os, declarando
que só se casaria com o homem, fosse quem fosse, capaz de fazer uma adivinhação
que ela não conseguisse decifrar.
Sabendo disso, um rapaz, conhecido
como Zé Tolinho, quis ver se obtinha aquele impossível. Filho de um viúvo que
se casara em segundas núpcias, a madrasta maltratava-o. Era um desgraçado, e
tanto lhe fazia viver como morrer.
Saiu de casa, em companhia de uma
cachorra chamada Pita, levando um pedaço de pão, que a madrasta lhe dera.
Ia reparando em tudo quanto via
pelo caminho.
Sentindo fome, estava para trincar
o pão, quando se lembrou que a madrasta podia tê-lo envenenado.
Para experimentar deu-o à
cadelinha, que caiu morta no mesmo instante.
Estava a enterrar o pobre
animalzinho, e ia pô-lo no buraco que cavara, mas não teve tempo: uma nuvem de
urubus desceu, e alguns, mais ousados, devoraram-na de pronto. Sete mais
esfomeados, morreram.
Tolinho caminhou adiante, levando
os urubus mortos.
Chegando a uma casa que havia à
beira da estrada, três bandidos tomaram-lhe à força os urubus. Havia muitos
dias que se achavam foragidos da polícia, e morriam de fome. Atiraram-se aos
urubus, julgando que eram galinhas, e morreram envenenados.
Vendo-os mortos, Tolinho escolheu
a melhor espingarda, e prosseguiu na jornada.
Um pouco mais longe avistou um
macaco trepado sobre uma árvore. Apontou a espingarda, fez fogo, mas errou o
tiro, indo porém matar uma pomba-rola que não vira. Depenou-a, assou-a, fazendo
fogo com a madeira conhecida como santa-cruz, e comeu-a. Sentia sede, e não
tendo água, aparou o suor que lhe escorria do rosto, e bebeu-o.
Terminado o frugal jantar, marchou
pelo caminho em fora, encontrando um cavalo morto, levado pela correnteza do
rio, enquanto os urubus o comiam.
Meia légua mais além, reparou que
um burro escavava o chão, até encontrar uma panela com dinheiro, ali enterrada.
Apanhou o dinheiro, montou no animal e chegou ao palácio.
Quando Luísa soube que um novo
pretendente se apresentava, marcou a hora para a audiência.
No salão principal do régio paço,
perante a corte, na presença dos maiores sábios, e mais ilustres literatos,
Tolinho compareceu, e propôs o enigma:
Eu saí com
massa e Pita:
A massa
matou a Pita;
E Pita
matou a sete,
Que também
a três mataram.
Das três a
melhor colhi,
E atirando
no que vi,
Fui matar
o que não vi...
Foi com a
madeira santa,
Que
cozinhei e comi;
Bebi água,
não do céu;
Um morto
vivos levava;
E o que os
homens não sabiam,
Sabia um
simples jumento...
Decifre,
pra seu tormento...
Em vão Luísa tentou adivinhar o
enigma.
Não o conseguindo, cumpriu a sua
palavra, desposando Tolinho.
OS TRÊS
MINISTROS
Miramil III, grande e poderoso
monarca, tinha três ministros que se gabavam de saber tudo quanto havia, quando
não passavam de homens vulgares.
Uma vez, saindo a passeio com
eles, encontrou um velho, que lhes tirou respeitosamente o chapéu.
— Quanta neve vai pela serra!
disse o rei.
— Já é tempo dela, real senhor,
respondeu o velho roceiro.
— Quantas vezes já queimaste a
casa?
— Duas, real senhor.
— Quantas vezes tens de queimá-la?
— Três, real senhor.
— Se eu te mandar três patos,
serás capaz de mos depenar?
— Quantos mandardes, real senhor.
Saindo dali o soberano ordenou que
os três ministros respondessem o que ele havia conversado com o velho, sob pena
de serem enforcados.
Os sabichões pediram uma semana de
espera. Leram quantos livros encontraram, mas não puderam entender o que queria
dizer o rei.
Resolveram, então, ir consultar o
velhote às escondidas.
O velho comprometeu-se a responder
com a condição de lhe darem eles a roupa que traziam consigo.
Os ministros aceitaram.
Despiram-se.
— Quanta neve vai pela serra, quer
dizer que já tenho a cabeça muito branca, e por isso respondi que já era tempo
dela, pois já era bem velho. Queimar a casa, é casar uma filha, porquanto quem
casa uma filha, gasta tanto, como se tivesse tido um incêndio. E os três patos
para depenar, são os senhores.
Quando o ancião acabou de falar, apareceu
o rei, que se achava escondido.
Os três ministros ficaram com
medo, mas o monarca sossegou-os. Não os mandou matar, condenou-os, porém, a dar
bons dotes às três filhas do velho que ainda estavam por casar.
O PAI E O
FILHO
Numa terra selvagem havia o
bárbaro costume de levarem os filhos os pais para o mato quando ficavam velhos
e já não podiam mais trabalhar, para os deixar morrer de fome.
Um dia, um rapaz, seguindo aquela
tradição, carregou com o pai às costas, e foi abandoná-lo no mato. Chegando aí,
como tinha bom coração, deixou-lhe uma capa, a fim de o resguardar do frio.
— Tens aí uma faca, rapaz?
perguntou-lhe o velho, quando o filho se ia retirando.
— Tenho, si, senhor. Para quê?
— É para cortar um pedaço desta
capa, a fim de servir para ti, quando teu filho te trouxer.
O rapaz ficou comovido,
reconsiderou o seu ato, e trouxe outra vez o pai, acabando assim com tão
malvado costume.
A RAINHA
DAS ÁGUAS
O reino da Pérsia foi há séculos
passados governado pelo rei Nebul.
Esse rei, que vivia muito feliz
governando o povo com sabedoria, um dia ficou cego.
Mandou chamar todos os médicos do
seu reino, todos os curandeiros, todas as feiticeiras, para lhe darem algum
remédio que o curasse.
Nada puderam conseguir.
Já estava Nebul desanimado, e
conformado com a sua triste vida, quando um dia, apareceu uma velhinha, pedindo
esmola.
Sabendo que o rei havia cegado,
pediu para lhe ensinar o remédio que o havia de curar.
O rei mandou entrar a velhinha,
que lhe disse:
— Saiba vossa real majestade que
no mundo só existe um remédio capaz de o fazer recobrar a vossa preciosa vista.
Existe num reino muitíssimo distante daqui, uma fonte chamada de rainha das
Águas. Se alguém conseguir um pouco dessa água, e colocá-la sobre os olhos,
imediatamente verá tão bem como um pássaro. Mas é muito difícil ir a esse
reino. Quem for buscar a água deve se entender com uma velhinha que mora perto
da fonte. Essa velhinha é quem há de informar se o dragão que vigia a entrada
da fonte está dormindo ou acordado, porque a fonte está situada atrás de umas
montanhas muito altas, e, se alguém for visto pelo terrível bicho, morrerá no
mesmo instante.
O rei Nebul deu à velhinha grande
quantia e retirou-se para os seus aposentos.
Mandou preparar uma grande
esquadra composta de duzentos navios, e enviou seu filho mais velho, o príncipe
Agar, para buscar a água, dizendo que lhe dava o prazo de um ano para estar de
volta, aconselhando-o que não saltasse em país algum, para não se distrair; e
que, se naquele prazo não voltasse, considerá-lo-ia morto pelo dragão.
O moço partiu: e depois de viajar
muito, foi aportar a um país estranho e mito rico.
Saltou em terra, e começou a se
divertir a ponto de gastar todo o dinheiro que levava, e a contrair dívidas,
pelo que ficou preso.
Passado o ano, Nebul, não o vendo
voltar, ficou triste, julgando-o morto.
Mandou preparar nova esquadra de
quinhentos navios, porque supunha que seu filho morrera na guerra que travara
no reino das Águas, em busca do remédio para a sua cegueira.
Enviou seu filho segundo, o
príncipe André.
Fez-lhe a mesma recomendação:
— Se no prazo de um ano, meu
filho, não estiveres de volta, terei que chorar a tua morte.
Partiu André e, depois de muito
viajar, aportou ao mesmo país que seu irmão Agar.
Aí, fascinado pelas festas, gastou
tudo quanto levara, contraiu grandes dívidas, e, como seu irmão, ficou preso.
Passado um ano, vendo o rei que o
seu outro filho não voltava, ficou desanimado, e sem esperanças de recuperar a
vista, pois supunha que André houvesse tido o mesmo fim que o primeiro.
Então, o mais moço, o jovem Oscar,
que ainda era menino, foi se oferecer para ir buscar o remédio.
— Agora, quero ir eu, meu pai; e
se for, garanto que lhe trarei a água.
O rei começou a brincar.
— Como queres tu ir, meu filho?
Não vês a sorte de teus irmãos mais velhos? Que é feito deles? Morreram. Como
posso eu deixar que faças semelhante viagem? Seria até um contra-senso.
O menino tanto insistiu, tanto
pediu, tanto rogou, que, afinal, o rei, para o contentar, lhe concedeu a
licença pedida.
Mandou preparar uma esquadra de
cem navios, menor que a dos outros dois príncipes, e disse a Oscar que partisse
quando quisesse.
O menino, antes de partir, foi
assistir à missa no palácio, e pediu com todo o fervor a Nossa Senhora que o
protegesse na empresa a que ia se arriscar.
Partiu no dia seguinte, e, depois
de muito navegar, foi aportar no mesmo país onde estavam seus irmãos presos por
causa das dívidas.
Pagou-as e soltou-os.
Os dois irmãos aconselharam-lhe
que não continuasse a viagem o que era tempo perdido, pois aquele país era
muito divertido, e que se deixasse ficar por ali.
O menino nada quis ouvir, e,
embarcando de novo, partiu em direção ao reino das Águas.
Chegando aí, desembarcou sozinho,
e foi procurar a velhinha, que morava perto da fonte, a qual, quando o viu,
ficou admirada e disse:
— Ó meu netinho, que veio cá
fazer? Olhe que você corre grande perigo. O dragão, guarda da fonte, que fica
por trás daquelas montanhas, é uma princesa encantada, que tudo devora. Procure
uma ocasião em que esteja dormindo, para entrar, e repare bem que, quando
estiver com os olhos abertos, é que está dormindo; mas, se estiver com os olhos
fechados, acautele-se, senão morre.
O menino tomou as suas precauções,
de modo que, ao chegar à fonte encontrou a fera com os olhos abertos.
Aproximou-se da fonte, e encheu a
garrafa que levava.
Já ia se retirando, quando o
dragão acordou, e avançou sobre ele.
— Que atrevimento é esse, menino
mortal, que faz com que tenhas a audácia de vir aos meus reinos?
O moço só teve tempo de
desembainhar a espada.
Em um dos botes a fera foi ferida,
e, com o sangue que gotejava, se desencantou numa formosa princesa.
— Devo casar-me com o homem que me
desencantou. Dou-te um ano, jovem príncipe, para me vires buscar. Leva a água a
teu pai, e volta. Se dentro deste prazo não estiveres aqui, irei buscar-te,
onde estiveres.
Com o sinal de ser reconhecido,
deu-lhe a princesa um anel com um brilhante enorme.
O príncipe Oscar voltou ao país,
passando pelo reino onde estavam seus irmãos, levou-os para bordo, com o fim de
os conduzir ao palácio do rei Nebul, seu pai.
Quando os dois irmãos mais velhos
souberam que o principezinho tinha se saído bem da empresa, ficaram invejosos e
planejaram roubar a garrafa que continha a preciosa água.
Essa garrafa estava na mala do
príncipe Oscar, que não a deixava um minuto sequer, guardando consigo a chave,
quando se ia deitar.
Propuseram ao irmãozinho dar um
grande banquete a bordo do navio, convidando para isso toda a oficialidade,
banquete esse em regozijo por se ter encontrado a água que havia de dar a vista
ao velho rei Nebul.
O príncipe Oscar consentiu, e os
irmãos, cujo fim era embebedá-lo, durante as saúdes que se fizessem, ficaram
contentes com a aquiescência do principezinho.
Fizeram a coisa tão bem-feita que
o jovem Oscar se excedeu nas saúdes, a ponto de ficar embriagado.
Os dois irmãos, assim que o viram
naquele estado, correram à mala, e trocaram a garrafa da fonte por uma de água
do mar.
Oscar, assim que ficou bom, tratou
de ver a sua mala, e, como a achou intacta, não desconfiou da troca.
Quando a esquadra se apresentou no
porto da cidade onde vivia o rei Nebul, houve satisfação geral, sendo o
principezinho recebido entre gerais aplausos.
Assim que deitou a água nos olhos
de seu pai, este ficou desesperado de dor. Então, os dois irmãos, chamando o
mais moço de impostor, trouxeram a garrafa que haviam roubado, e puseram a água
nos olhos do ei, que recuperou imediatamente a vista.
Começaram as festas em regozijo ao
grande acontecimento de haver Nebul recobrado a vista.
Agar e André recebiam aplausos de
todo o mundo, que admirava a sua intrepidez, arriscando a vida em uma viagem
tão perigosa.
O rei Nebul não quis que o
príncipe Oscar assistisse às festas. Mandou matá-lo, dizendo que um impostor
como ele, merecia ser queimado vivo.
No dia em que devia começar a
festa em homenagem a tão valentes príncipes, seguiu de manhã cedo, para uma
floresta muito longe do castelo, o príncipe Oscar, acompanhado de um batalhão
enorme que devia matá-lo.
Os soldados, assim que chegaram no
meio da floresta, tiveram pena do principezinho, e, em vez de matá-lo,
cortaram-lhe um dedo, que foram levar ao rei Nebul, como prova de sua morte.
Oscar, assim que se viu livre da
morte, começou a procurar a vida, porque naquele lugar, tão deserto, morreria
de fome ou nas garras de algum animal feroz, dos que ali havia em quantidade.
Depois de andar muito, foi ter à
casa de um lavrador, a quem ofereceu os seus serviços.
O lavrador, vendo aquele menino,
só, naquele lugar deserto, tomou-o para escravo, e o maltratava todos os dias.
Já havia passado um ano, e era
esse o tempo marcado pela rainha das Águas para o príncipe Oscar ir buscá-la, e
efetuarem o casamento.
Não aparecendo, resolveu ir
buscá-lo.
Mandou preparar uma esquadra de
cem navios, e partiu em direção ao reino do rei Nebul.
Aí chegando, mandou um de seus
generais avisar ao rei que lhe mandasse o príncipe que, um ano antes, havia ido
aos eu reino buscar água de uma fonte que lhe havia de restituir a vista, e que
tendo o príncipe lhe prometido casamento, e não voltando, ia à sua procura.
Mandava dizer ainda que se o
príncipe não viesse, arrasaria a cidade em meia hora, com os poderosos canhões
de sua esquadra.
Nebul, à vista da intimação, ficou
aflito, e mandou que o príncipe Agar fosse a bordo se apresentar à princesa.
Chegando a bordo, lhe disse ela:
— Homem atrevido, como tens
coragem de aparecer aqui? Onde está o sinal que te dei para o nosso
reconhecimento?
O príncipe, que não tinha ciência
de sinal algum, voltou para terra, envergonhado de ter feito figura tão triste
diante de uma formosa dama.
A princesa enviou nova intimação
ao rei Nebul, e este, cada vez mais aflito, fez ir seu filho André à presença
da princesa.
O segundo filho foi tão infeliz
como seu irmão. Não tendo o reconhecimento da princesa, voltou envergonhado
pelo fiasco que havia feito.
A princesa mandou nova intimação à
terra, dizendo que, se em vinte e quatro horas o príncipe que lhe prometera
casamento não lhe aparecesse, mandaria arrasar a cidade, e depois incendiá-la.
O rei ficou aflitíssimo, pois não
tendo mais nenhum outro filho, esperava com ânsia o prazo marcado para o
extermínio de seu povo.
Já estava arrependido de ter
mandado matar Oscar, quando um dos soldados do batalhão que acompanhou o menino
à floresta disse que eles não tinham tido coragem de matar o jovem moço, e só
lhe haviam cortado o dedo.
Quando o rei soube disso, teve um
raio de esperança. Mandou emissários por todo o seu grande reino, à procura do
jovem príncipe Oscar, dando a todo mundo os sinais do moço, e prometendo uma
grande fortuna a quem o trouxesse ao seu palácio.
Pediu à princesa que lhe desse
cinco dias de espera, dizendo que seu filho Oscar, que lhe tinha prometido
casamento, estava em viagem, mas que já o havia mandado chamar com urgência.
A princesa concedeu o prazo
pedido, dizendo que mais um segundo não concedia, e que se, contados os cinco
dias, o príncipe não chegasse, não responderia pela vida de ninguém daquela
cidade.
Havendo tanta gente a procurar o
príncipe Oscar, muito fácil foi encontrá-lo como escravo do lavrador, onde
trabalhava todo o dia, fazendo serões até alta noite.
Quando o lavrador soube que o seu
escravo era um príncipe, ficou mais morto do que vivo.
Carregou o mocinho nas costas, e
foi chorando levá-lo ao palácio do rei Nebul.
***
Estava terminado o prazo, e a
princesa já tinha mandado preparar os canhões para bombardear a cidade, quando
o príncipe lhe fez sinal que esperasse, porque ia ter com ela.
Assim que o jovem chegou a bordo
do navio onde estava a Rainha das Águas, colocou no dedo o anel de ouro.
Esta, reconhecendo o príncipe,
mandou o general avisar ao rei Nebul que era aquele o seu noivo, e que podia
ficar descansado porque não mais bombardearia a cidade, e que partiria no dia
seguinte, com o noivo para seu reino.
O rei convidou, então, a rainha
das Águas para vir visitá-lo, porque queria conhecer sua nora.
Estavam todos no palácio, quando
apareceu uma velhinha pedindo uma esmola.
Oscar, vendo que era a mesma que
lhe tinha ensinado o remédio para seu pai recuperar a vista, voltou-se para a
noiva, e disse:
— É esta a velhinha, formosa
princesa, a quem devo a felicidade de me casar e de ver meu pai com avista que
tinha perdido.
A rainha das Águas voltou para o
seu reino e casou-se com Oscar, que ficou sendo o rei que governava o país mais
rico e mais formoso do mundo.
A MOÇA DO
LIXO
Passavam um dia duas fadas por um
jardim formosíssimo e bem tratado, quando viram um monte de estrume que o
chacareiro havia deixado para estercar a terra.
— Que coisa nojenta! Disse uma
delas. Como é que se consente num jardim tão belo tamanha porcaria, ainda que
seja por um momento!...
— Tive uma idéia, disse a outra.
Eu fado para que essa esterqueira se transforme numa mulher tão linda como
Leona, a princesa adivinha, que é a mais formosa criatura do mundo.
— E eu fado, retorquiu a outra,
para que ela tenha um anel no dedo. Enquanto estiver com esse anel, só poderá
pronunciar a palavra “porcaria”, sem que nada mais possa dizer. Tirando-lhe o
anel, será uma moça instruída e espirituosa, ao passo que, quem o usar, ficará
com o mesmo defeito.
As duas fadas desapareceram, e, do
estrume, surgiu uma moça maravilhosamente formosa.
Era nos jardins reais. O príncipe,
passando por acaso, viu-a e ficou apaixonado. Perguntando-lhe quem era, de onde
vinha, como se chamava, só obteve em resposta:
— Porcaria! Porcaria!...
Admirado por ouvir aquela
grosseria, tão suja, em boca tão formosa, sua alteza insistiu. Em vão! A
deslumbrante moça respondia sempre:
— Porcaria!... Porcaria!...
O príncipe quis fazê-la sua
esposa, mas o rei, os ministros, os conselheiros da coroa e os grandes
dignatários não o consentiram.
Não podendo, entretanto, deixar de
vê-la a todos os instantes, o futuro soberano fê-la alojar no palácio.
Tempos depois teve de se casar,
como era obrigado por lei. Deram-lhe como noiva uma princesa, filha de um
imperador vizinho e aliado.
Preparando-se a toilette da
noiva, uma criada lembrou-se que Porcaria tinha um anel sem igual.
Tirou-o, e apresentou-o à sua nova
ama, que o enfiou no dedo
Quando o cortejo chegou à igreja,
na hora da celebração do casamento, perguntando o padre à noiva, se livremente
recebia o príncipe, ouviu-a dizer:
— Porcaria!... Porcaria!...
Não houve meios de se lhe arrancar
outra coisa:
— Porcaria!... Porcaria!... falava
sempre.
O príncipe, em vista daquilo,
exclamou:
— Não! Não me serve! Porcaria por porcaria,
tenho lá na palácio uma melhor.
Foram buscar a outra, que
encontraram falando e conversando com todo o espírito, e o casamento foi
celebrado.
A VELHA
FEITICEIRA
Tendo adoecido gravemente o
lavrador Bernardo, foi preciso que alguém fosse à cidade procurar um remédio
receitado pelo médico. Na única botica da vila não havia aquela droga, difícil
e cara, que só se encontrava nas mais importantes drogarias.
Bernardo morava na sua situação,
afastada da vila, e longe, muito longe da capital. Para se ir até lá, era
mister atravessar extensa floresta, onde costumavam reunir-se vários
salteadores, e povoada de animais ferozes.
Vendo que só o tal medicamento
poderia salvar o pobre velho, seu filho Heitor, que tinha apenas quinze anos,
resolveu buscá-lo.
Era cedo, escuro ainda, quando
saiu de casa, em companhia do seu cachorro Leão – um animal fiel e dedicado.
Caminhou o dia inteiro, sem parar.
Ia anoitecendo, mas ainda o dia não morrera de todo, quando avistou no meio da
floresta uma pequena choupana. Resolvido a passar a noite aí, bateu à porta.
Abriu-se uma janela, aparecendo uma velhinha, feia e magra, devendo ter mais de
oitenta anos.
Pediu-lhe hospitalidade, e ela
mandou-o entrar, recomendando primeiro:
— Amarre o seu cachorro, moço, que
parece um animal muito bravo, e eu tenho medo de cães.
— Nada receie, minha velha,
respondeu Heitor, porque Leão me obedece cegamente, e só ataca a quem me quiser
fazer mal.
— Pode ser que seja verdade, replicou
a velha, mas é que eu já fui mordida uma vez, e não o quero ser segunda.
Amarre-o, senão ficará de fora.
— Mas é que eu também não tenho
com que amarrá-lo.
— Isso não seja a dúvida. Basta
que lhe passe ao pescoço um fio de cabelo meu...
A velhinha arrancou um fio branco,
e deu-o ao moço, que se riu daquela corda de nova espécie.
Quando viu o cão amarrado, a dona
da choupana mais que depressa atirou-se a Heitor. Ninguém diria ao ver aquela
criatura já prestes a morrer, que tinha tanta força como qualquer ferreiro.
O mancebo, meio admirado, tentou
lutar com ela, e sentindo-se fraquejar, chamou o auxílio do cachorro, bradando:
— Avança! avança, meu Leão!...
— Engrossa bem, meu cabelão!...
gritou a velha.
O fio de cabelo que prendia o animal
engrossou àquelas palavras, tornando-se pesada e forte corrente de ferro.
Tendo subjugado Heitor, a
feiticeira amarrou-o solidamente, encerrando-o num quarto a fim de engordá-lo e
comê-lo mais tarde.
***
Passados três dias, vendo que Heitor
não regressava, Lauro, seu irmão, segundo filho do velho Bernardo, projetou ir
em busca do remédio, e ao mesmo tempo procurar saber o que sucedera ao outro.
Saiu de casa, levando por
companheiro único um valente cachorro que possuía, e ao qual denominara
Capitão.
Seguindo o mesmo trajeto de
Heitor, foi parar na mesma choupana, onde a velhinha o recebeu como recebera o
primeiro, recomendando que amarrasse o cão com o fio de cabelo.
Lauro, vendo-se ameaçado por ela,
chamou em seu auxílio o fiel companheiro, que por mais de uma vez
experimentara:
— Avança! avança! Capitão...
Do mesmo modo que procedera quando
prendeu Heitor, a megera berrou:
— Engrossa, engrossa, cabelão!...
O pobre animal, ligado por uma
corrente grossa, não pode desta vez socorrer seu amo.
A velha feiticeira prendeu Lauro
num quartinho escuro, até que chegasse a sua vez de ser comido.
***
Só restava no sítio do bom e digno
Bernardo sua mulher e seu terceiro filho Raul.
Não obstante ter somente onze
anos, Raul era um menino animoso e ousado.
Quis ir buscar o medicamento
receitado, que devia salvar o velho, e procurar os irmãos, e foi.
Pela madrugada saiu de casa,
despediu-se de seus pais, e partiu resolutamente.
Também ele chegou à cabana da velhinha,
e pediu pousada naquela noite.
Ao ouvir a recomendação para
prender o cachorro que levava, disse consigo mesmo:
— Para que quererá esta mulher ver
o meu fiel Plutão amarrado? Um fio de cabelo não é corda, e se ela na verdade
tem tanto medo dos cães, como diz, dar-me-ia outra corda. Aqui há algum
mistério.
Fingiu, todavia, que amarrava o
animal, mas apenas pousou o cabelo no pescoço, sem dar nó.
A feiticeira, julgando o cão
preso, segurou Raul pelo braço, e disse:
— Tu ainda és muito pequeno para
eu estar com cerimônias. Vamos para o quarto escuro, até que chegue a vez de te
comer ensopado.
— Não, minha velhinha, disse-lhe
Raul, dando-lhe um sopapo.
A bruxa correu para pegá-lo, e o
menino gritou:
— Avança! avança! bom Plutão!
— Engrossa bem, meu cabelão!...
bradou a velha.
O cabelo transformou-se em uma
corrente, mas como não se achava amarrado, caiu no chão.
O fiel cachorro de um salto
atirou-se ao pescoço da velhinha, e estrangulou-a.
Raul percorreu a cabana, e encontrou
seus irmãos, bem como muitos outros viajantes, que haviam caído sob as garras
da miserável feiticeira.
Soltou toda a gente, e ateou fogo
à choupana.
Os presos, agradecidos, deram-lhe
dinheiro, e os três irmãos tiveram tempo de ir à cidade e comprar a droga que
salvou o velho Bernardo.
A SAPA
CASADA
Reinaldo era um moço estimadíssimo
pelas excelentes qualidades, sobretudo por ser honrado e sério. Tinha dois
irmãos, e todos três eram filhos de um rico fidalgo.
Os irmãos casaram-se com moças da
sua sociedade e posição. Vivia cada um em sua casa, tendo por costume irem
jantar o primeiro domingo de cada mês no palacete do velho, onde se reunia toda
a família.
Reinaldo gostava
extraordinariamente de música. Qualquer que fosse o instrumento, apreciava, e
seria capaz de ficar um dia inteiro a ouvi-lo.
Uma tarde passeava à margem de uma
lagoa. Era ao pôr-do-sol. De súbito, ouviu uma voz deliciosa, cantando uma romanza
que ele desconhecia, de extraordinária harmonia e suavidade.
O moço parou, e deixou-se ficar
enlevado a escutar. A voz parecia vir de perto, mas debalde procurou a moça que
cantava.
Foi-se entusiasmando cada vez
mais, até que, cessando a cantiga, ele exclamou:
— Palavra de honra que me casaria
com a dona de tão linda voz, se pudesse vê-la, ainda que fosse uma sapa desta
lagoa!
Acabando de dizer isso, Reinaldo
viu saltar da água para terra uma sapa enormíssima e horrendamente feia.
— Pois é uma sapa que estava
cantando, falou ela. O senhor é um moço sério, e tem de cumprir a sua
palavra...
— Fui leviano em pronunciar tal
frase, replicou Reinaldo. Entretanto, como só tenho uma palavra, cumpri-la-ei.
Vou apenas avisar meu pai, e amanhã aqui estarei.
Saiu e chegou à casa, tristíssimo,
narrando o que lhe sucedera. O velho fidalgo concordou que ele devia cumprir a
promessa, feita sob palavra de honra.
No dia seguinte, o jovem foi à
lagoa. A sapa, assim que o viu, falou:
— Entre dentro da água sem receio,
e mergulhe.
O rapaz executou à risca aquela
recomendação, e viu-se de súbito num deslumbrante palácio, edificado embaixo do
lago.
Aí estava tudo preparado para o
casamento. Passou-se o mesmo que ocorre em nossas cerimônias, com a diferença
que a única criatura humana era Reinaldo. O mais: padre, sacristão,
testemunhas, convidados, lacaios, eram sapas e rãs que coaxavam
desagradavelmente.
Durante quinze dias o moço viveu
satisfeitíssimo. Habitando um palácio real, nada lhe faltava, melhor do que no
palacete de seu pai, e tendo ainda por cima, concertos divinos, em que tomavam
parte sapos músicos e sapos cantores inexcedíveis, tocando toda a sorte de
instrumentos.
Ia se aproximando o primeiro
domingo em que sua família – segundo antiqüíssima tradição – devia reunir-se no
solar paterno.
Reinaldo entristeceu-se,
lembrando-se que tinha que ir forçosamente em companhia de sua horrenda mulher.
Que não diriam seus irmãos/? Como não haviam de zombar dele suas cunhadas e
sobrinhos?
***
Chegou o dia marcado. Eram onze
horas da manhã quando ele e a sapa se puseram a caminho, seguidos de uma
infinidade de sapos, sapas, sapões.
Iam em ordem, enfileirados, como
se se tratasse de um cortejo real.
No palacete, a família reunida
esperava a chegada de Reinaldo, zombando dele, cheia de escárnio e ironia.
Avistaram de longe a multidão dos
habitantes da lagoa.
Todo o mundo se ria.
Quando o séquito chegou ao grande
pátio do palacete, bateu a primeira badalada do meio-dia.
Nesse instante os sapos, sapas,
sapões e sapinhos viraram fidalgos, fidalgas, lacaios, pajens, soldados e
cavaleiros, escoltando Reinaldo e uma lindíssima jovem.
A sapa era uma princesa. Encantada
por uma feiticeira, só devia volver à forma humana, bem como os seus súditos,
se encontrasse um homem que a desposasse.
Reinaldo ficou louco de
contentamento, ao passo que seus irmãos e cunhadas desapontaram.
No lugar onde era a lagoa pareceu
um palácio sem igual em todo o país – o palácio que estava no fundo da água, e
fora submergido pela fada má.
A ONÇA E A
RAPOSA
Sendo inseparáveis amigas, a raposa e a onça
brigaram um dia. Aquela, por ser ladina e esperta, conseguia fugir e evitar a
sua inimiga, todas as vezes que se encontravam.
Por mais estratagemas que empregasse, a onça nunca
pôde agarrá-la. Lembrou-se, então, de se fingir de morta.
A notícia correu pelo mato, e os bichos foram ver o
cadáver, deitado de barriga para o ar. Sabendo que a sua adversária morrera, a
raposa quis certificar-se se era verdade. Dirigiu-se com muita cautela para o
lugar onde o corpo se achava, e, chegando perto, perguntou:
— Então a onça está morta de verdade?
— Está, respondeu o macaco.
— Ela já arrotou? perguntou a raposa.
— Ainda não, disse o lagarto. Por
quê? Quando a gente morre, costuma arrotar?
— Pois você não sabia? O meu
defunto avô, quando faleceu, arrotou três vezes, respondeu a raposa.
A onça ouvindo aquilo, arrotou.
— Os mortos não arrotam, exclamou a raposa,
correndo.
Desesperada por ver que o seu plano falhara, a onça
levantou-se, e desistiu da vingança.
Tão dócil, meigo e de melhor índole, ninguém havia
como o Carlito, e por isso toda a gente o estimava. Os próprios bichos
queriam-lhe muito, porque ele lhes não fazia mal algum, de modo que tinha
amigos em toda a parte.
Crescendo, ficando mocinho, Carlito nem por isso
perdeu as suas qualidades e o seu excelente coração.
Uma vez, estava ele à porta de casa, quando viu
passar um velhinho, tão velho e parecendo tão enfermo, que mal podia caminhar.
O rapaz saiu à rua, deu o braço ao velho, e trouxe-o para dentro, servindo-lhe
de jantar, até que, restabelecido, criou forças e pôde caminhar.
— Já que és
tão bom moço, dou-te este anel de condão. Com ele conseguirás tudo quanto
quiserdes, bastando enfiá-lo no dedo, e formular o desejo.
Carlito, achou-se possuidor de tão precioso objeto,
vendo que nada mais tinha a recear, foi correr mundo.
***
Durante muitos anos viajou por terra e por mar, em
quase todos os países do mundo, chegando finalmente à Arábia.
Aí, passeando em uma das cidades, teve o ensejo de
ver Ercília, formosa filha de um importante chefe de tribo.
Loucamente apaixonado, foi pedi-la, em casamento.
O velho árabe naquela ocasião estava em guerra com
o rei de um país limítrofe. Declarou-lhe que só o aceitaria por genro, se ele
mostrasse grande valor no combate que iam travar.
Carlito pôs o anel no dedo, e preparou-se para a
luta. Armado apenas com uma espada, desprezando quaisquer outras armas,
empenhou-se na batalha.
Ao primeiro embate, a tribo árabe viu-o, com
espanto, abandonar as fileiras, e avançar sozinho de encontro ao exército
inimigo, duas vezes mais numeroso.
Nunca se viu tamanha bravura! Jamais houve denodo
assim! A cada golpe de sua espada, um combatente caía para jamais se erguer!
Por onde passava, ia deixando um claro aberto. Começou a dizimar o inimigo, a
tal ponto, que todos fugiram em debandada. Voltando para as fileiras da tribo
árabe, não tinha um arranhão sequer.
O rei inimigo, consultando os mágicos do reino, no
mesmo dia da derrota, soube que o poder estranho de Carlito lhe era dado pelo
anel encantado. Resolveu roubá-lo.
Sabendo quanto o moço era caritativo, mandou um
espião, disfarçado em mendigo, pedir-lhe esmola.
O falso pobre chegou à tenda, fingindo-se doente,
sem poder caminhar, e pediu hospedagem por uma noite. Carlito concedeu-a de boa
vontade.
Durante a noite, aproveitando-se do sono do
generoso mancebo, o fingido mendigo roubou-lhe o anel.
Ao despertar, o mocinho sentiu-se roubado.
Soaram as cornetas, e novo combates se travou,
tendo os árabes toda a confiança, lembrando-se do sucesso da véspera, ignorando
o que se passara.
Carlito a ninguém confiou o seu segredo. No momento
da peleja foi bravo, mas nada pôde fazer. As tropas inimigas, duas vezes mais
numerosas, em pouco tempo desbarataram a tribo.
O pai de Ercília, desesperado, expulsou Carlito,
não mandando matá-lo, por se recordar das incríveis façanhas do dia anterior.
O jovem saiu do acampamento, muito triste, por ter
perdido as esperanças de desposar Ercília. Sentou-se à beira do caminho, e
chorava, quando lhe apareceu o rei dos Camundongos, que lhe disse:
— Não te desoles, Carlito. Vou mandar dois dos meus
vassalos buscar o anel que te furtaram, e amanhã pela manhã te-lo-ás.
O chefe inimigo, desde que teve o anel em seu
poder, encerrou-o numa caixa de madeira muito forte, postando junto uma guarda
de vinte soldados para vigiá-lo. Ninguém podia se aproximar daí.
Os guardas, por mais atentos que estivessem, não
podiam ver dois camundonguinhos miudinhos, que começaram a roer a caixa.
Trabalharam sem cessar a noite inteira, sem fazer
ruído, até que roeram um pedaço de madeira por onde um deles entrou.
De posse do anel, foram levá-lo ao seu rei, que por
ser turno o entregou ao moço.
Carlito voltou ao campo árabe, e fez com que o
velho chefe empreendesse novo combate.
Como no primeiro dia, fez extraordinários prodígios
de bravura. Abriu caminho por entre as cerradas fileiras inimigas, até que,
encontrando-se com o rei, o matou. Estava terminada a guerra.
O chefe da tribo árabe, encantado com Carlito, não
demorou o seu casamento com Ercília.
Uma formosa manhã de maio, limpa, alegre, fresca,
perfumada, é um dos maiores encantos da natureza.
Em uma dessas lindas manhãs de primavera, bem cedo,
ainda à hora em que o sol se faz anunciar pelos seus primeiros raios, Helena,
ainda dormia! Como sorri em algum sonho alegre! Ainda ninguém entrou no quarto
dela, e apesar disto, a Heleninha já hoje recebeu um beijo. Quem foi então, que
lho deu? Algum passarinho que entrasse pela janela? Não; a janela está fechada.
Foi um raio de sol que, penetrando por uma fenda, passou nos lábios de Helena,
e ficou todo espantado por encontrar uma menina ainda a dormir. Mas, de
repente, Helena acorda, esfrega os olhos, relanceia a vista por todos os lados
para ver quem a acordou, e dá com o raio de sol.
— Raiozinho brilhante, disse-lhe ela, tiveste muito
juízo em me vires visitar. Aposto que estás levantado há muito tempo; quem sabe
mesmo se já trabalhaste muito esta manhã?
— É verdade que sim, respondeu o raio, já hoje
trabalhei muito. Quando meu pai me despede não dá licença que me divirta, e tem
razão, porque eu, quando estou mais contente, é quando trabalho.
— Teu pai? Mas quem é teu pai?
— É o sol. Mora lá em cima, muito alto, no céu. É
tão grande, tão grande, que não poderia vir à terra; por isso manda os filhos
em seu lugar. Os filhos são os raios do sol meus irmãos, que à minha
semelhança, alumiam e aquecem a terra.
— Mas, tornou Helena, teus irmãos poderiam entrar
contigo no quarto?
— De modo nenhum; a fenda era estreitíssima. Só eu
pude passar. Os outros raios ficaram lá fora, estão alumiando a fachada da
casa. Agora, se tu quiseres abrir a janela, entrarão contentíssimos no teu
quarto.
— Ainda
não, disse Helena, eu queria que tu, antes disso, me contasses tudo o que tens
feito e o que viste no teu passeio esta manhã.
— Oh! já vi muitas coisas. Não tas
posso contar todas; mas, se gostas dir-te-ei algumas. Quanto rompi da montanha,
entrei numa floresta, e dei claridade a uma família de cotias que se recolhiam
à toca, e pareciam alegríssimas; naturalmente tinham dançado toda a noite
nalgum gramado. Na mesma floresta alumiei um ninho de sabiás negros. A mãe, mal
me viu, acordou o marido, depois os filhinhos, e todos a um tempo, principiaram
a cantar. Interei aluminar também um besouro muito velho, mas escondeu-se logo
debaixo de uma folha, por me não querer ver. Por volta das cinco horas
entranhei-me numa sebe à borda da estrada e fiz desabrochar uma formosa
trepadeira, cor-de-rosa e branca. Quando cheguei, ainda estava toda fechada,
mas apenas a aqueci, logo se abriu, eu fiquei alegríssimo ao observá-la. Na
mesma sebe alumiei uma aranha que estava a tecer a teia; espero que ninguém lha
destrua, porque levou muito tempo, e teve muito trabalho, em a tecer. Mesmo ao
pé, fiz brilhar as gotas de orvalho suspensas nas vergônteas das ervas, ajudei
uma pitanga amadurecer e aqueci uma mosca. Ainda fiz muitas mais coisas; amanhã
tas contarei. Agora, já é tarde, é mais que tempo de te levantares.
— Oh! por quem és, conta-me ainda mais alguma
coisa, disse a pequenina. Não vistes crianças esta manhã?
— Ora, se vi! e muitas! Levantaram-se bem cedo. A
Luizinha, ainda não eram seis horas, já estava a dar de comer às galinhas, ao
mesmo tempo que a leiteira saía para a cidade. O Joãozinho levava as cabras
para o pasto, em companhia do pai, que ia ceifar erva! Ah! já me esquecia
dizer-te que muitas vezes trabalho ajudado pelos meus irmãos; sozinho não
poderia muito. Agora, uns com os outros, amadurecemos os trigos e as frutas
todas, de que tu gostas tanto; aquecemos as costas da avó da Luizinha, que
estava assentada no pátio, e secamos uma camisa e uma touca, que estão
penduradas na corda. Ai! Ai! Que tenho falado muito! é tempo e retempo, de te
vestires e de te pores a trabalhar mas sempre te confessarei com franqueza que,
se os raios do sol se devem dar por felizes por prestarem luz aos
trabalhadores, não gostam muito de aluminar os preguiçosos.
—Lindo raio, obrigada por tantas
coisas boas que hoje me ensinaste. Se voltares amanhã, à mesma hora, eu te prometo
que não me hás de encontrar na cama; aproveitarei a tua formosa luz para
continuar a minha tarefa.
Dizendo isto, Helena levantou-se e foi abrir a
janela de par em par. Os raios de sol entraram todos ao mesmo no quarto, e
encheram-no de luz. Helena, preparou-se, almoçou, e deu princípio ao seu dia,
com a firme tenção de se tornar numa boa trabalhadorazinha.
Vicente já está de volta da escola, sossegado, sim,
mas a deitar sua olhadela para as vistosas lojas. De repente pára. Que estará
ele a ver com tanta curiosidade? Um açafate cheio de faquinhas brancas,
lindíssimas. Ah! como devem cortar bem! Que lâminas tão polidas e brilhantes! E
não são caras: – a oito vinténs. Vão-se-lhe os olhos, mas falta-lhe o melhor;
oito vinténs é uma quantia demasiada para as suas finanças. A mãe, uma mulher
pobre, apesar de trabalhar muito, pode-lhe lá ar dinheiro para comprar uma
faquinha!
— Oh! diz o Vicente de si para si; que poderia eu
fazer para ganhar aquele dinheiro?
Saía da loja um sujeito carregado de compras.
— Oh! rapazinho, ajudas-me a levar estas encomendas
para minha casa?
— De muito boa vontade, respondeu-lhe o Vicente, se
não for muito longe, porque minha mãe se zanga quando quando venho tarde da
escola.
— É muito perto daqui, não te demoras nada.
O Vicente pegou em dois pacotes, e
foram ambos andando até a rua onde morava o homem.
— Está bem, rapazinho, aqui tens pelo teu trabalho,
– e deu-lhe dois vinténs.
— Muito obrigado, meu senhor, mas eu não quero
receber dinheiro por um serviço tão pequeno.
— Pois então guarda-os para te lembrares de mim,
tornou-lhe o sujeito, entrando em casa.
Para a rua correu Vicente, pulando de contente.
— Ó mãe!! ó mãe! Olhe o que me deram quando eu
voltava da escola: dois vinténs, ambos novinhos (e pôs-se a contar o caso à
mãe).
— Se eu pudesse ganhar mais seis vinténs,
chegava-me exatamente para comprar uma faquinha. Ah! se a mãe soubesse como são
bonitas!
— E para que precisas tu de uma faquinha?
— Ó! mãe! Com uma faquinha posso fazer muitas
coisas: aparar os meus lápis e os dos meus condiscípulos; cortar ramos na
alameda para chicotes e flautinhas; arranjar um barquinho; e até ajudá-la a
descascar as batatas para o jantar, porque as nossas facas são muito grandes.
Parece-me que já a estou a ouvir dizer: – Então, ainda não viste a faquinha do
Vicente? É tão bonita! E a mãe, quando eu tiver os oitos vinténs, dá-me licença
para comprar uma?
— Dou sim, filho. O que eu não sei é como tu os hás
de ter.
Vicente passou o serão a imaginar
como poderia ganhar alguns vinténs, mas, por mais que batesse na testa, foi-se
deitar sem nada ter descoberto.
Um dia, às sete horas da manhã, havia apenas alguns
instantes em que se levantara. Tirou a lama da porta. De repente, ergueu
casualmente a cabeça, e deu com o tio Martinho à janela. É um dos vizinhos.
— Oh! pensa o Vicente; o tio Martinho está já tão
velho para tirar a neve que lhe caiu à porta; depressa, depressa, para ele não
escorregar quando for sair.
Dito e feito. Quando Vicente voltava para casa,
abriu Martinho a janela e pôs-se a chamá-lo.
— Fizeste
bem, meu rapazinho, em me evitar alguma queda. Se repetires isto quando tornar
a chover, dou-te um vintém.
Vicente pensou nas faquinhas, e aceitou
contentíssimo a proposta. Infelizmente a chuva não cai todos os dias a
cântaros, e decorreu muito tempo antes de ter o dinheiro necessário.
E assim passaram-se semanas e semanas. Trabalhando
daqui e dali, mesmo assim o menino apenas consegui arranjar sete vinténs.
Só lhe faltava um, para completar a quantia com que
poderia comprar a ambiciosa faquinha.
— Ah! se chovesse muito esta noite. Era o
pensamento fixo do rapazinho, em cada serão, quando se ia deitar.
***
Uma manhã levantou-se, correu à janela para
espreitar o tempo, e a mãe viu-o andar aos saltos, e bater palmas.
Não sabia o que isso queria dizer, mas adivinhou-o
quando viu o Vicente, depois de lhe ter vindo pedir a benção, e de lhe dar um
beijo, pegar na pá e na vassoura, e sair de casa.
A mãe pôs-se a espreitá-lo. Que azáfama! que
desembaraço! As mãos roxas da friagem, mas a vassoura num corrupio.
Acabou. O Martinho abre a porta, sai, tira a bolsa,
e o oitavo ambicionado vintém passa da mão do vizinho para a de Vicente. Correr
a ir buscar os outros sete vinténs, guardados com tanto carinho numa caixinha,
almoçar e partir para a escola, foi obra de um momento.
Como ele salta pela rua fora! Que leva fechado na
mão? Um tesouro que tem medo de perder: oito vintenzinhos em que se vai
revendo, contando-os e tornando-os a contar.
Lá está já na rua do loja sedutora. Um instante
mais e a faquinha é dele.
***
Do outro lado da rua vai uma menina, vestida
pobremente, e andando com muita cautela para não escorregar. Parece transida de
frio; as mãozinhas, roxas de todo. Leva uma bilha de leite. O Vicente ia já a
entrar na loja, quando, de repente, vê a menina escorregar e cair ao atravessar
a rua. A bilha quebrou-se-lhe! O leite que ia ser o almoço da avó, todo
entornado!
Quando a vê cair, corre para a ajudar a
levantar-se. Já em pé, a menina, lavada em lágrimas, conta-lhe que não leva nem
um real, e que a avó ainda não almoçou. Vicente olha para os seus oito vinténs,
depois para a loja onde estão penduradas as faquinhas, depois para a pequenina,
que ainda continuava a chorar. Reflete um momento.
— Vem comigo,
diz-lhe ele pegando-lhe na mão; ambas haveis de ter que almoçar.
Levou-a a outra loja em que não se viam faquinhas,
mas uma grande quantidade de pratos, xícaras, bilhas de todos os tamanhos e de
todas as cores. O rapazinho escolheu uma bilha azul e branca, muito bonita,
pagou um tostão à dona da loja, e ato contínuo foi à leiteria, onde a mandou
encher de leite. De todo o seu dinheiro, nada lhe sobrou.
A menina, doida de contente por ter uma bilha nova,
sorriu-se e consolou-se. Retomou o caminho de casa, levando ao lado o seu novo
conhecido, mas sempre com mil precauções para não tornar a cair.
E, ao separar-se dele, perguntou-lhe:
— Como te chamas?
— Vicente.
— E eu, Maria. A minha avó diz que
ainda sou pequenina para guardar dinheiro; mas, quando crescer, hei de ter
muito, e hei de te comprar um brinquedo, porque hoje foste um anjinho para mim.
As duas crianças ainda conversaram alguns
instantes. Depois separaram-se, prometendo que haviam de ser amigos para
sempre. Maria correu para avó, mostrou-lhe alvoroçada a sua bilhinha nova e
contou-lhe tudo o que lhe aconteceu. Vicente seguiu para a escola,
resplandescente de alegria, pela boa ação cometida.
Xairelada deu à luz a um elegante burrinho, quando
o sol principiava a aluminar as casinhas da aldeia de São Pedro. Ainda muitos
habitantes se estavam espreguiçando, e já na cavalariça, no extremo da terra,
acordava tudo, havia imenso tempo. Ali está, Xairelada, a burra benquista, a
deitar a cabeça pela janela. “Hi! Han! Hi han!” cantarola, mostrando a dentuça. “Hi han! Hi han!” repete, cada vez que ouve passar
alguém pela rua.
Que prazenteira que está! brilham-lhe os olhos; até
se pode dizer que sorri! Que lhe sucedeu? Venham ver. Além, em cima de um molho
de palha, está a dormir o seu recém-nascido, um formoso burrinho, com cada
olho! A mãe acha-lhe as orelhas tão bonitas e tão compridas, que nem um
instante deixa de lhas admirar e lamber, e, revendo-se, nele, assim lhe diz:
— Filhinho
querido! O sol alumia-te o primeiro dia de vida. Oxalá que seja para tua
felicidade.
— E decerto que há de vir a ser um burro famoso,
interrompe de lá a Parda, a burra mais velha da cavalariça. Ainda há pouco se sustinha
ele já nas pernas. Queres um conselho, Xairelada? Dá-lhe de mamar seis meses,
pelo menos; tenhamos fé em que o nosso dono há de dar licença.
— Eu cá por mim, diz dali um burro, só desejo que
ele seja menos tagarela que sua mãe. Desde o arrebol da manhã, ou ainda antes,
que não faz senão zurrar. Não há meio de pregar o olho. Não estarás calada,
Xairelada? Tens o dia todo para anunciar aos quatro ventos da terra o
nascimento de teu filho.
— Meu querido amor, interrompe Xairelada, não me
querem ver feliz!
Depois, deitando-se-lhe ao lado e ajeitando-se,
continua:
— Aqui tens um leite soberbo. Ninguém to poderia
dar melhor. Quantos doentes o não desejariam beber! Não, minhas senhoras, este
não há de ser para vossas excelências, já lhes dei muito no ano passado: este,
agora, reservo eu para o meu filho.
Cresceu o burrinho, e já acompanha a mãe ao prado.
Enquanto ela vai roendo as folhas, anda ele a saltar, a pular, a rolar-se todo
pela erva; às vezes dá saltos tão grandes, que Xairelada chega a ter medo de
lhe ver quebrar alguma perna.
Ao filho estremecido, puseram o nome de Grizão.
Uma vez Grizão descobriu um riacho no fim do prado.
Por mais voltas que desse ao miolo, Xairelada não chegava a adivinhar porque ia
ele sempre para aquele lado: para tomar banho, não podia ser, porque ela lho
proibira, e, de mais a mais, não é lá muito próprio de um burro estar a ensopar
os pés na água. Fora o caso; Grizão, indo uma vez beber água, descobriu no
riacho o seu rosto burrical, e nunca mais deixou de ir ali dia nenhum para ver
se lhe cresciam as orelhas, se a pontinha da cauda ia crescendo também, numa
palavra, se no focinho se estampava o ar burricalmente característico. Porque o
seu desejo mais ardente era ver-se burro.
— Quando chegar a ser grande, dizia ele a cada
passo, hei de me pôr a comer cardos, como faz a minha mãe, hei de puxar as
carroças, hei de trazer sobre o espinhaço todos aqueles senhores e senhoras e
meninos que vão a passeio. A mamãe fica estafada, mas eu cá, se visse uma
senhora montada, em mim, havia de lhe mostrar que sou forte, que lhe poderia
fazer isto e mais isto...
Grizão tem um gênio, muito alegre, caráter franco,
e por isso adquiriu muitos amigos na aldeia. Mais que todos, um potrozinho,
preto, da idade dele, depois uma cabra velha e o filho, um cabritinho. Andam
muitas vezes juntos no prado. À sombra de uma mangueira, falam de uma
infinidade de coisas, em favor dos animais de sua espécie. Chegam-se a zangar,
e quase a engalfinhar, mas fazem logo as pazes.
Um dia, o potro, voltando-se para Grizão,
perguntou-lhe:
— Ó meu amiguinho, não me dirás onde foste
desencantar essas orelhas tão grandes, e de que te podem elas servir? Quando as
deixas cair, ficas com um ar tão esquisito, que , por mais que eu faça, não me
posso suster com o riso.
— Que queres tu? respondeu Grizão,
se eu sou um burro, como hei de ter orelhas de cavalo? Ora, toma sentido! Não
digas mal de minhas orelhas, olha que eu já percebi que elas ouvem melhor que
as tuas.
— Talvez, diz o potro.
Depois, dirigindo-se à cabra:
— Ó Negrinha, haverá quem apresente
um pé mais esquisito do que o teu. Parece partido ao meio. Aposto que o da tua
avó era mais bem-feito. Repara no de Grizão e no meu. Duas belezas! Bem se vê
que ainda somos primos!
— Somos, somos, interrompeu Grizão, primos
pelos pés, mas não pelas orelhas.
— Muito obrigado pelo presente dos
teus pés bonitos, disse Negrinha, mas não aceito. Vão vocês com os seus
pezinhos delicados trepar e soltar por sobre os rochedos, comer a erva e as
florinhas que só crescem no cimo dos montes, e depois venham-me mostrar em que
estado lhes ficaram os joelhos e os dentes. Sou uma sua criada! Ainda tem mais
outra vantagem os meus pés: é não os ferrarem nunca; e, ou estou muito
enganada, ou é vantagem que nenhum de vocês apetece.”
— Tens sempre boas respostas, disfarçou o
potro, não falemos mais nisto.
— Falemos, sim senhor, continuou Negrinha, porque é
que os cavalos e os burros não têm nenhuma arma para se defenderem, nem mesmo
um chavelho, enquanto as cabras possuem dois?
— É porque nós nos defendemos com os pés,
tornou-lhe o potro.
— Olhe que defesa!
Nisso o cabrito saltou sobre Grizão, o que na
linguagem deles queria dizer: “Vem brincar comigo”. Grizão espojou-se nas
ervas; Negrinha entrou aos saltos de outro lado com o potro. E assim passavam
vida regalada os três amigos.
Grizão completou o seu segundo ano, e é já um burro
feito. Xairelada gloria-se do filho que tem. Afirma que é o burro mais bonito
do sítio. O dono mandou-lhe fazer uma sela, depois montou nele para lhe ensinar
a comportar-se com juízo, quando levasse cavalheiros e senhoras, mas o pobre
dono regressou ferido na cara. Grizão estreara tão contente, que saltou para a
direita, saltou para a esquerda, acabando por ferrar com o dono em terra.
— Meu querido filho, disse-lhe, quando o viu
chegar; por quem és, anda mais passo, olha que te há de acontecer alguma!
— Eu faço as diligências, mas não sei que
formigueiro sinto nas pernas; é-me forçoso saltar: um homem para mim é peso
muito leve. Se eu pudesse falar, dir-lhe-ia que montassem em mim ao mesmo tempo
ele e a mulher.
— Que força! exclamou a burra toda vangloriosa;
como a mocidade é feliz!
Sucedeu que uma manhã chegassem à aldeia um passageiro,
os filhos pequenos e outros rapazinhos amigos. Uma passeata.
— Burros! burros! gritavam todos eles ao mesmo
tempo, ao ver a cabeça de Grizão à janela. Ó papá, aluga-os para passearmos!
— Se houver para todos, respondeu o pai. Olá, tio
dono dos burros, pode-nos alugar oito?
— São os que tenho; mas, por um, não respondo: a
poucos passos deitará pelo pescoço fora o que montar nele.
— Quero esse! quero esse! gritou Eduardo, o rapaz
mais velho; eu sei me suster.
— Olha que não te quero ver chegar com alguma perna
quebrada.
— Não há de suceder mal, continuou Eduardo: não é
primeira vez que monto em burros.
— Está bem, disse o pai, como não há mais nenhum,
monta nele, e eu vou ao pé de ti, para não te suceder alguma.
Dali a momentos, largava a caravana. Grizão
caminhava ao lado da mãe, que não cessava de lhe fazer advertências,
aconselhando-o, sobretudo, a ir sossegado.
Os rapazes vão gritando todos ao mesmo tempo, em
algazarra própria: – “Eh! Grizão! Eh! Xairelada! Eh! Branquinha”. E a burricada
toda a trote por ali afora, ficando para trás o pai e o burriqueiro.
— Eh! Grizão! disse Eduardo.
Grizão deu um saltinho, mas, de repente,
lembrando-se da recomendação da mãe, conteve-se, e continuou a trotar com
juízo.
— Eh lá Grizão! repetiu Eduardo, dando-lhe uma
palmada no pescoço. Desta vez Grizão esquecendo-se da camaradagem em que ia,
partiu a toda a brida, sem se importar com as subidas nem descidas.
— Pára! Grizão, pára gritava Eduardo. Mas, Grizão,
cada vez a correr mais, até que o pobre rapaz, perdendo o freio, foi pela
cabeça do burro fora, e de rolo por um montículo abaixo.
Levantou-se todo aturdido, sacudiu os joelhos e os
cotovelos. O pai, assustado, chegou correndo, mas, ao ver que lhe não sucedeu
mal algum exclamou:
— És um cavaleiro às direitas! Agora, olha para o
teu burro.
Grizão, tendo-se empoleirado numa altura, estava
vendo passar a cavalgada, entoando a sua cantiga do “hi han, hi han, hi han”,
como quem bradava a Eduardo:
— Ora apanha, meu menino; agarra-me, se és capaz;
não viste como eu me livrei de ti?
Grizão não quis tornar a ajuntar à alegre companhia
e voltou para a cavalariça por outro caminho.
— Ah! Grizão, exclamou a dona, quando o viu chegar
sozinho. Aposto que fizeste alguma das tuas!
O dono, desenganado de que Grizão se tornava de dia
para dia mais turbulento, e antevendo mais quedas aos fregueses, vendeu-o a uma
leiteira, que morava ao sopé da montanha. Uma manhã foi levá-lo à nova dona. O
mísero ia cabisbaixo e de orelhas caídas, todo tristonho, por se separar da sua
querida mãe. Xairelada não fazia senão chorar, e tinha-se conservado à janela
da cavalariça todo o tempo que pôde ver o filho pelo caminho afora. Já ia muito
longe, e ainda ela cá a bradar-lhe: “Hi han, hi han, hi han, adeus, adeus!...”
A leiteira era uma mulher velha que havia muitos
anos levava todas as manhãs à cidade o leite das suas vacas. Acabara de lhe
morrer o burro mais velho, de quinze anos, que apesar da idade conservou-se à
carroça até o último dia. Agora é dado a Grizão o encargo de o substituir
naquele penoso labor. Pois está satisfeito, porque se acha com forças, e, mal a
dona o vem buscar para o pôr à carroça, logo dá um salto de contente.
Chegou o dia próprio. A carroça levava além do
leite algumas canastras de legumes.
— Muito bem, sr. Grizão, disse-lhe a velha
fazendo-lhe uma festa: Continue assim e seremos amiguinhos.
Grizão tem de esperar enquanto a dona vai tratar da
vida. Vem à capital pela primeira vez, e por isso está todo maravilhado do que
tem visto. Muitos outros burros esperam também pela chegada dos donos. Grizão,
parecendo-lhe que eles tem um ar triste, perguntou ao vizinho o que significava
toda aquela melancolia.
— Bem se vê que ainda estás novo e forte,
respondeu-lhe o interrogado; formosa se te afigura a vida, mas, para nós
outros, velhos, cujas forças vamos perdendo todos dias, a carroça é pesada,
duras as arrochadas e o sustento pouco de cobiçar. Eu só tinha um amigo neste
mundo: era um rapazinho que me levava todas as manhãs um pedaço de pão e me
fazia festas, mas há duas semanas que desapareceu e receio que lhe tenha
acontecido alguma desgraça.
Nesse momento ouviu-se um rufar de tambor. O burro
ancião estremeceu todo.
— Que tens? perguntou Grizão.
— Não é nada. O ruído do tambor incomoda-me sempre;
não me posso esquecer de que seja em cima da pele de minha mãe que eles batam.
— Em cima da pele de tua mãe?
— Decerto, acrescentou o burro velho; da nossa pele
é que se fazem os tambores; é nosso destino o sermos espancados não só em vida,
mas também depois de mortos.
Esse pensamento entristeceu profundamente Grizão no
resto do dia, e, à volta para casa, vinha menos alegre do que fora para a cidade,
a passo e de cabeça baixa.
— Eh! lá, dizia-lhe a leiteira, dando-lhe uma
chicotada.
— Ah! ela tem o atrevimento de me dar? pensou
Grizão continuando muito a passo.
— Eh! eh! chegando-lhe outra vez.
De repente, Grizão estacou.
— Olá! Este é tão cabeçudo como os outros, murmurou
a velha, tornando a mimoseá-lo com o chicote.
— Bonito! disse Grizão de si para si; começa a
minha vida de tambor.
E não deu mais nem um passo.
A leiteira apeou-se para o puxar pela rédea; mas
ele, vendo-a pôr os pés em terra, deitou a todo galope, e chegou à casa muito
antes dela. Como estava cansado, queria ir beber água, mas a da fonte não lhe
agradava muito, e Grizão, como todos os animais da sua família, não bebia senão
água claríssima.
A dona, ao chegar, a pé, e banhada em suor, quis
ajustar as contas com ele, mas refletiu que ainda era novo, e que, a falar
verdade, para a primeira vez, não tinha sido demasiadamente caritativa.
Desaparelhou-o, foi-lhe dar de beber (Grizão tem todo o cuidado de não meter o
focinho na água) e levou-o para o pasto. Vendo-se à rédea solta, espojou-se
pelas ervas. É um modo de dizer à dona:
— Ah! já que me não limpas, limpo-me eu, assim!
À noite reentrou na cavalariça, adormeceu pensando
na mãe, e projetando ir um dia visitá-la.
Ivone por que virá hoje tão triste da escola? Faria
por lá alguma maldade? Não. A mestra ficou muito satisfeita com ela.
Foi isto: quando ela se levantou do banco, rasgou o
vestido, sem querer.
E que buraco! Dar-se-á o caso que o saiba
consertar, sem se ficar conhecendo?
Bem pode ser, porque a mãe (uma pobre lavadeira),
quando chega à casa, vem mortinha de cansaço. Como estava escuro, Ivone acendeu
o candeeiro, e foi procurar a caixa em que a mãe costuma guardar todos os
retalhos.
— Aqui está um azul, da cor do meu vestido, pensou
Ivone, estendendo o retalho. Se eu lhe puder meter uma tira!
Despiu o vestido, deitou um
chalinho pelos ombros, e pôs mãos à obra, com tanto afã, que nem deu pela
chegada da mãe.
— Aconteceu-te alguma coisa? perguntou-lhe,
chegando ao pé da filhinha. Estás a consertar o vestido? Rasgaste-o? Olha que
seria uma desgraça, porque não tens outro, nem há mais nenhum bocado de pano
azul.
— Há sim, minha mãe, respondeu a pequenina,
mostrando-lhe o vestido.
— Pois eu julgava que não havia; mas está me
parecendo que sabes fazer muito bem um conserto.
— Já sei, já, espondeu Ivone, brilhando-lhe os
olhos.
Naquela noite foi se deitar contentíssima.
De manhã levantou-se, vestiu-se, levou-se, olhou
para o vestido, e chegou ao pé da janela para o examinar de mais perto.
— Olhe! minha mãe! minha mãe! gritou ele em choro;
venha cá ver. Pois não pus uma tira verde no meu vestido azul? Que hei de eu
fazer agora? Não posso ir à escola com esse vestido assim!
— Então, como foi isso? Não sabes que muitas vezes,
à luz do candeeiro, o azul se confunde com o verde, e o verde com o azul? Mas,
por causa disso, não hás de faltar à escola. Talvez que o avental te esconda a
tira.
Ivone vestiu o vestido, e pôs o avental. Qual
história! O avental é pequeno demais, e a tira continuava a ser vista.
— Lembra-me uma coisa, disse Ivone: é pôr a pasta
dos papéis mais para trás, e assim parece-me que não se verá.
Lá foi para a escola, e empregou tanto cuidado todo
o dia, que ninguém reparou.
À saída, porém, esqueceu-se da tira. Foi pôr a
pasta a um canto do pátio, e começou a brincar com as condiscípulas. Não
brincou por muito tempo, porque dali a pouco reparou em duas meninas, que
olhavam para ela a rir-se. De repente, lembrou-se do vestido, fez-se muito
corada, e sentiu duas lágrimas rolarem-lhe pelas faces. Pegou na pasta, e saiu.
***
Eugênia, uma das meninas que tinha feito escárnio
do vestido de Ivone, não voltou muito contente da escola, nem a mãe a ouvia
cantarolar, como costumava, pela escada acima. Não fez senão pensar na colega,
que viu sair da escola tão triste.
— Eu é que fui culpada, pensava. Faz-me tanta pena
ter-me rido. Mas também para que foi ela deitar uma tira verde num vestido
azul? A falar verdade, era muito esquisito.
Eugênia pegou na boneca para brincar, mas a boneca
não a distraía. Por mais que fizessem, tinha defronte dos olhos o rosto
melancólico de Ivone.
— Foi decerto por ela não ter outra fazenda da cor
do vestido; se eu a tivesse, dar-lha-ia.
Correu, então, a casa toda, a ver se a achava.
Perguntou à mãe. Tudo debalde. Pôr mais voltas que deu, não encontrou fazenda
alguma azul, senão a do vestido da boneca. Então pegou nesta, abraçou-a, olhou
muito para ela e parecia refletir.
— Minha adorada Ida, disse de
repente: bem começo o teu bom coraçãozinho, por isso te vou pedir uma fineza.
Não te lembras da Ivone, que no outro dia vistes em nossa casa? Hás de
acreditar que deitou uma tira verde no vestido azul! Por mais que imagines, não
podes fazer idéia da fealdade que ficou. Tenho a certeza de que não quererias
para ti um vestido consertado daquela maneira. Foi decerto por não ter outra
fazenda. O vestido é da cor do teu. Farias tu o sacrifício de lhe dar este,
para mudar a tira? Bem sei que não tens outro para o inverno, mas a nossa casa
é quentinha. Não te parece que, vestindo o teu vestido de verão, e pondo o teu
chalinho de lã escarlate, ficarás ainda uma boneca senhoril?
Ida olhou para a dona, com o
sorriso do costume. Pareceu a Eugênia que ela fazia o sinal de consentir.
Despiu-lhe, então, o vestido do corpo, separou a saia, e pegando nesta, correu
à casa de Ivone.
Quando chegou, a porta estava
entreaberta.
Antes de entrar, parou um
instante, e ouviu Ivone dizer para a mãe:
— Olha! mamãe! Eu não posso tornar
à escola com esse vestido!
— Hás de tornar, bradou-lhe
Eugênia (abrindo de repente a porta), olha, aqui tens um bocado de fazenda para
consertares. Só Deus sabe o que me afligi por ter sido a causa de te ver
chorar. Não penses mais nisso, não?
***
Diz a vizinhança que Ivone ficou
tão contente, que de tudo se esqueceu daquele desgosto.
Deitou tira nova no vestido, e no
outro dia entrou alegríssima na escola. Eugênia, pulando de contentamento,
voltou para a boneca, encontrando-a a sorrir como sempre. E desde aquela
ocasião, as duas meninas, Ivone e Eugênia, ficaram amicíssimas.
A
ALMA DO OUTRO MUNDO
Zeneida tinha um namorado com quem
queria a todo o transe casar-se. Sendo ele, porém, um homem do povo, conquanto
honrado e trabalhador, a família dela, orgulhosa, com fumaças de fidalguia, e
rica, não o consentiu, e tratou de lhe arranjar outro casamento.
Apresentando-se como pretendente
um velho, que enriquecera no comércio, o pai obrigou-a a aceitá-lo por noivo. A
moça obedeceu, a seu pesar, não gostando daquele marido que lhe ofereceriam, e
não se tendo esquecido do seu apaixonado.
Realizadas as bodas, os noivos
partiram para uma longa viagem que devia durar três meses.
***
Uma vez estavam jornadeando,
e tiveram que passar um rio, largo e fundo, sobre uma estreita ponte de
madeira. Zeneida, alegando muito medo, fez o marido passar adiante, e, quando
se viram em meio, atirou-o à água.
Na ocasião em que estava
prestes a se afogar, o velho ricaço, antes de desaparecer submergindo,
exclamou:
— Deixe estar malvada, que
minha alma te há de perseguir!...
Desde esse dia, uma voz
invisível acompanhou-a sem cessar, noite e dia repetindo todas as palavras que
ela pronunciava.
A rapariga
foi obrigada a se fingir muda, receosa que viessem a descobrir o seu crime.
***
Continuando a viagem sozinha,
Zeneida foi ter a um grande país, a cuja capital chegou.
Aí, passeando pelos
arredores, foi vista por um príncipe, que dela se apaixonou, dirigindo-lhe
declarações de amor, e terminando por pedi-la em casamento.
Por meio de gestos mímicos,
ela fez compreender que aceitava, mas que não podia falar por ser muda.
O príncipe ficou
sentidíssimo, porque a lei vedava-o casar com qualquer moça que não fosse
absolutamente perfeita. Todavia mandou levá-la para o paço, confiando-a aos
cuidados dos mais notáveis médicos do reino, que a examinaram, desenganando-se
de curá-la.
Quando se achava a sós,
Zeneida tentava falar. Mas, à menor palavra, que pronunciasse, a alma do seu
marido a repetia, e mesmo conversavam.
Um dia soube que o príncipe
ia casar-se, vendo que ela não ficava boa.
A noiva devia chegar nessa
manhã, e todos os criados do palácio tinham ido ver o seu desembarque.
Zeneida, ficando sozinha,
dirigiu-se à cozinha real, também abandonada, onde se preparava o banquete.
Destampou uma panela, e provando o guisado, exclamou:
— Oh! como está gostoso!
— Oh! como está gostoso,
repetiu a alma.
— Queres um bocadinho?
— Quero.
— Então, chega-te aqui, para
a ponta de meu dedo!
A alma chegou-se, e, assim que a sentiu
bem na extremidade do indicador, Zeneida estalou o dedo no fogão.
Ouviu-se um grande estrondo,
e ela disse com um suspiro de alívio:
— Uff! Felizmente estou
livre!
Falou,
cantou, recitou, e não ouviu mais a voz da alma que a importunava.
Foi se vestir deslumbrantemente.
O cortejo da nova princesa já
havia chegado ao palácio.
Zeneida dirigiu-se para o salão,
onde viu a noiva sentada num trono, junto ao príncipe.
Ao avistá-la, a noiva, querendo
fazer espírito, perguntou:
— Esta é muda mudona?
A outra retorquiu:
— E esta é a noiva noivona, que já
está tão sabichona?
Admirado de ouvi-la falar, o
príncipe desmanchou o casamento com a primeira, vindo a se casar com Zeneida.
FIM
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