LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em
meio eletrônico
Clara dos Anjos, de Lima Barreto
Edição de base:
Biblioteca Nacional – setor de obras
digitalizadas
I
O carteiro Joaquim dos Anjos não era homem de
serestas e serenatas; mas gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava
flauta, instrumento que já foi muito estimado em outras épocas, não o sendo
atualmente como outrora. Os velhos do Rio de Janeiro, ainda hoje, se lembram do
famoso Calado e das suas polcas, uma das quais
- "Cruzes, minha prima!" ¾ é uma lembrança emocionante para os
cariocas que estão a roçar pelos setenta. De uns tempos a esta parte, porém, a
flauta caiu de importância, e só um único flautista dos nossos dias conseguiu,
por instantes, reabilitar o mavioso instrumento - delícia, que foi, dos nossos
pais e avós. Quero falar do Patápio Silva. Com a morte dele a flauta voltou a
ocupar um lugar secundário como instrumento musical, a que os doutores em
música, quer executantes, quer os críticos eruditos, não dão nenhuma
importância. Voltou a ser novamente plebeu.
Apesar disso, na sua simplicidade de nascimento,
origem e condição, Joaquim dos Anjos acreditava-se músico de certa ordem, pois,
além de tocar flauta, compunha valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas.
Uma polca sua - "Siri sem unha" - e
uma valsa - "Mágoas do
coração"- tiveram algum sucesso, a ponto de vender ele a propriedade de
cada uma, por cinqüenta mil-réis, a uma casa de músicas e pianos da Rua do
Ouvidor.
O seu saber musical era fraco; adivinhava mais
do que empregava noções teóricas que tivesse estudado.
Aprendeu a "artinha" musical na terra
do seu nascimento, nos arredores de Diamantina, em cujas festas de igreja a sua
flauta brilhara, e era tido por muitos como o primeiro flautista do lugar.
Embora gozando desta fama animadora, nunca quis ampliar os seus conhecimentos
musicais. Ficara na "artinha" de Francisco Manuel, que sabia de cor;
mas não saíra dela, para ir além.
Pouco ambicioso em música, ele o era também nas
demais manifestações de sua vida. Desgostoso com a existência medíocre na sua
pequena cidade natal, um belo dia, aí pelos seus vinte e dois anos, aceitara o
convite de um engenheiro inglês que, por aquelas bandas, andava a explorar
terras e terrenos diamantíferos. Todos julgavam que o "seu" mister
andasse fazendo isso; a verdade, porém, é que o sábio inglês fazia estudos
desinteressados. Fazia puras e platônicas pesquisas geológicas e mineralógicas.
O diamante não era o fim dos seus trabalhos; mas o povo, que teimava em ver,
pelos arredores da cidade, o ventre da terra cheio de diamantes, não podia
supor que um inglês que levava a catar pedras, pela manhã e até à noite,
tomando notas e com uns instrumentos rebarbativos, não estivesse com tais gatimonhas
a caçar diamantes. Não havia meio do mister convencer à simplória gente do
lugar que ele não queria saber de diamantes; e dia não havia em que o súdito de
Sua Graciosa Majestade não recebesse uma proposta de venda de terrenos, em que
forçosamente havia de existir a preciosa pedra abundantemente, por tais ou
quais indícios, seguros aos olhos de "garimpeiro" experimentado.
Logo ao chegar o geólogo, Joaquim empregou-se
como seu pajem, guia, encaixotador, servente, etc., e tanto foi obediente e
serviu a contento o sábio, que este, ao dar por terminadas as suas pesquisas, o
convidou a vir ao Rio de Janeiro, encarregando-se de movimentar a sua
pedregulhenta ou pedregosa bagagem, até
que ela fosse posta a bordo. O sábio comprometeu-se a pagar-lhe a estadia no
Rio, o que fez, até embarcar-se para a Europa.
Deu-lhe dinheiro para voltar, um chapéu de
cortiça, umas perneiras, um cachimbo e
uma lata de fumo Navy Cut; Joaquim já se havia habituado ao Rio de Janeiro, no
mês e pouco em que estivera aqui, a serviço do Senhor John Herbert Brown, da
Real Sociedade de Londres; e resolveu não voltar para Diamantina. Vendeu as perneiras num
belchior e o chapéu de cortiça também; e pôs-se a fumar o saboroso fumo inglês
no cachimbo que lhe fora ofertado, passeando pelo Rio, enquanto teve dinheiro.
Quando acabou, procurou conhecidos que já tinha; e, em breve, entrou para o
serviço de empregado de escritório de um grande advogado, seu patrício, isto é,
mineiro.
- Não te darei coisa que valha a pena -
disse-lhe logo o doutor - mas aqui irás travando conhecimentos e podes arranjar
coisa melhor mais tarde.
Viu bem que o "doutor" lhe falava a
verdade, e toda sua ambição se cifrou em obter um pequeno emprego público que
lhe desse direito a aposentadoria e a montepio, para a família que ia fundar.
Conseguira, ao fim de dois anos de trabalho, aquele de carteiro, havia bem
quatro lustros, com o qual estava muito contente e satisfeito da vida, tanto
mais que mere- cera sucessivas promoções.
Casara meses depois de nomeado; e, tendo morrido
sua mãe, em Diamantina, como filho único, herdara-lhe a casa e umas poucas
terras em Inhaí, uma freguesia daquela cidade mineira. Vendeu a modesta herança
e tratou de adquirir aquela casita nos subúrbios em que ainda morava e era
dele. O seu preço fora módico, mas, mesmo assim, o dinheiro da herança não
chegara, e pagou o resto
Fora do corpo da casa, existia um barracão para banheiro,
tanque, etc., e o quintal era de superfície razoável, onde cresciam goiabeiras,
dois pés ou três de laranjeiras, um de limão-galego, mamoeiros e um grande
tamarineiro copado, bem aos fundos.
A rua em que estava situada a sua casa se
desenvolvia no plano e, quando chovia, encharcava e ficava que nem um pântano;
entretanto, era povoada e se fazia caminho obrigado das margens da Central para
a longínqua e habitada freguesia de Inhaúma.
Carroções, carros, autocaminhões que, quase diariamente, andam por
aquelas bandas a suprir os retalhistas de gêneros que os atacadistas lhes
fornecem, percorriam-na do começo ao fim, indicando que tal via pública devia
merecer mais atenção da edilidade.
Era uma rua sossegada e toda ela, ou quase toda,
edificada ao gosto antigo do subúrbio, ao gosto do chalet. Estava povoada e edificada quase
inteiramente, de um lado e de outro. Dela, descortinava-se um lindo panorama de
montanhas de cores cambiantes, conforme fosse a hora do dia e o estado da
atmosfera. Ficavam-lhe muito distantes, mas pareciam cercá- la, e ela, a rua,
ser o eixo daquele redondel de montes, em que, pelo dia em fora, pareciam ser
iluminados por projeções luminosas, revestindo-se de toda a gama do verde, de
tons azuis; e, pelo crepúsculo, ficavam cobertos de ouro e púrpura.
Além dos clássicos chalets suburbanos,
encontravam-se outros tipos de casas. Algumas relativamente recentes, uns
certos requififes e galanteios modernos, para lhes encobrir a estreiteza dos
cômodos e justificar o exagero dos aluguéis. Havia, porém, uma casa digna de
ser vista. Erguia-se quase ao centro de uma grande chácara e era a
característica das casas das velhas chácaras dos outros tempos; longa fachada,
pouco fundo, teto acaçapado, forrada de azulejos até a metade do pé direito. Um
tanto feia, é verdade, que ela era, sem garridice; mas casando-se perfeitamente
com as mangueiras, com as robustas jaqueiras e os coqueiros petulantes e com
todas aquelas grandes e pequenas árvores avelhantadas, que, talvez, os que as
plantaram não as tivessem visto frutificar. Por entre elas, onde se podiam ver
vestígios do antigo jardim, havia estatuetas de louça portuguesa, com letreiros
azuis. Uma era a "Primavera"; outra era a "Aurora"; quase
todas, porém, estavam mutiladas; umas, num braço; outras não tinham cabeça, e
ainda outras jaziam no chão, derrubadas dos seus toscos suportes.
Os muros que cercavam a casa, a razoável
distância, e mesmo aquele em que se apoiava o gradil de ferro da frente do
imóvel, estavam cobertos de hera, que os envolvia em todo ou em parte, não como
um sudário, mas como um severo, cerimonioso e vivo manto de outras épocas e de
outras gentes, a provocar saudades e evocações, animando a ruína. Hoje, é raro
ver-se, no Rio de Janeiro, um muro coberto de hera; entretanto, há trinta anos,
nas Laranjeiras, na Rua Conde de Bonfim, no Rio Comprido, no Andaraí, no
Engenho Novo, enfim, em todos os bairros que foram antigamente estações de
repouso e prazer, encontravam-se, a cada passo, longos muros cobertos de hera,
exalando melancolia e sugerindo recordações.
Joaquim dos Anjos ainda conhecera a
"chácara" habitada pelos proprietários respectivos; mas, ultimamente,
eles se tinham retirado para fora e alugado aos "bíblias". Os seus
cânticos, aos sábados (era o seu dia da semana de descanso sagrado), entoados
quase de hora em hora, enchiam a redondeza e punham na sua audiência uma
soturna sombra de misticismo. O povo não os via com hostilidade, mesmo alguns
humildes homens e pobres raparigas dos arredores freqüentavam-nos, já por encontrar
nisso um sinal de superioridade intelectual sobre os seus iguais, já por
procurarem, em outra casa religiosa que não a tradicional, lenitivo para suas
pobres almas alanceadas, além das dores que seguem toda e qualquer existência
humana.
Alguns, entre
os quais o João Pintor, justificavam freqüentar os "bíblias", porque
estes - dizia ele - não eram como os padres, que, para tudo, querem dinheiro.
Esse João Pintor trabalhava nas oficinas do
Engenho de Dentro, no ofício de que proviera o seu apelido. Era um preto
retinto, grossos lábios, malares proeminentes, testa curta, dentes muito bons e
muito claros, longos braços, manoplas enormes, longas pernas e uns tais pés,
que não havia calçado, nas sapatarias, que coubessem neles. Mandava-os fazer de
encomenda; mas assim mesmo, mal os punha hoje, no dia seguinte tinha que os
retalhar à navalha, se queria dar alguns passos e manquejar menos até o
"Mafuá".
Dizia o "Turuna", adepto do Padre
Sodré, capelão do Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, que João Pintor se
metera com os "bíblias", porque estes lhe haviam dado um quarto, na
chácara, para ele morar de graça, com certas obrigações pequenas a cumprir.
João Pintor contestava com veemência; o certo, porém, é que ele morava na
“chácara”.
Chefiava os protestantes um americano, Mr. Quick
Shays, homem tenaz e cheio de uma eloqüência bíblica, que devia ser magnífica
em inglês; mas que, no seu duvidoso português, se tornava simplesmente
pitoresca. Era Shays Quick ou Quick Shays daquela raça curiosa de yankees fundadores
de novas seitas cristãs. De quando em quando, um cidadão protestante dessa raça
que deseja a felicidade de nós outros, na terra e no céu, à luz de uma sua
interpretação de um ou mais versículos da Bíblia, funda uma novíssima seita,
põe-se a propagá-la e logo encontra dedicados adeptos, os quais não sabem muito
bem por que foram para tal novíssima religiãozinha e qual a diferença que há
entre esta e a de que vieram.
Lá, na sua terra, como aqui, esses pequenos
luteros fazem prosélitos; lá, mais do que aqui.
Mr. Shays obtinha, nas vizinhanças do carteiro Joaquim dos Anjos, não
prosélitos, mas muitos ouvintes, dos quais uma quinta parte afinal se
convertia. Quando se tratava de iniciar uma turma, os noviços dormiam em
barracas de campanha, erguidas ao redor da casa, nos vãos existentes entre as
velhas árvores da chácara, maltratada e desprezada.
As cerimônias preparatórias à iniciação, na
religião de Mr. Quick Shays, duravam uma semana, farta de jejuns e cânticos
religiosos, cheios de unção e apelos contritos a Deus, Nosso Pai; e a velha
propriedade de recreio, com as barracas militares e salmodias contínuas,
adquiria um aspecto esquisito e imprevisto, o de convento ao ar livre,
mascarado por uma rebarbativa carranca de acampamento guerreiro. Dir-se-ia um
destacamento de uma ordem de cavalaria monástico-guerreira, que se preparava
para combater o turco ou o mouro infiel, na Palestina ou em Marrocos.
Da redondeza, não eram muitos os adeptos
ortodoxos à doutrinação religiosa de Mr. Shays; entretanto, além das espécies
que já foram aludidas, havia as daqueles que assistiam às suas prédicas, por
mera curiosidade ou para deliciar-se com a oratória do pastor americano. O
templo estava sempre cheio, nos seus dias solenes.
Os freqüentadores dessa ou daquela natureza lá
iam sem nenhuma repugnância, pois é próprio do nosso pequeno povo fazer uma
extravagante amálgama de religiões e crenças de toda a sorte, e socorrer-se
desta ou daquela, conforme os transes e momentâneas agruras de sua existência.
Se se trata de afastar atrasos de vida, apela para a feitiçaria; se se trata de
curar uma moléstia tenaz e renitente, procura o espírita; mas não falem à nossa
gente humilde em deixar de batizar o filho pelo sacerdote católico, porque não
há, dentre ela, quem não se zangue: "Está doido! Meu filho ficar pagão!
Deus me defenda!
Joaquim dos Anjos não freqüentava Mr. Shays nem
o reverendo Padre Sodré, do Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, pois, apesar
de ter nascido numa cidade embalsamada de incenso e plena de ecos sonoros de
litanias e o contínuo repicar de sinos festivos, não era animado de grande
fervor religioso. Sua mulher, Dona Engrácia, porém, o era em extremo, embora
fosse pouco à igreja, devido às suas obrigações caseiras. Ambos, porém, estavam
de acordo num ponto religioso católico-romano: batizar quanto antes os filhos,
na Igreja Católica Apostólica Romana. Foi assim que procederam, não só com a
Clara, o único filho sobrevivente, como com os demais, que haviam morrido.
Eram casados há quase vinte anos, e esta Clara,
sua filha, sendo o segundo filho do casal, orçava pelos seus dezessete anos.
Era tratada pelos pais com muito desvelo, recato
e carinho; e, a não ser com a mãe ou pai, só saía com Dona Margarida, uma viúva
muito séria, que morava nas vizinhanças e ensinava a Clara bordados e costuras.
No mais, isto era raro e só acontecia aos
domingos, Clara deixava, às vezes, a casa paterna, para ir ao cinema do Méier
ou Engenho de Dentro, quando a sua professora de costuras se prestava a
acompanhá-la, porque Joaquim não se prestava, pois não gostava de sair aos
domingos, dia escolhido a fim de se
entregar ao seu prazer predileto de jogar o solo com os companheiros habituais;
e sua mulher não só não gostava de sair aos domingos, como em outro dia da
semana qualquer. Era sedentária e caseira.
Os companheiros habituais do solo com Joaquim
eram quase sempre estes dois: o Senhor Antônio da Silva Marramaque, seu
compadre, pois era padrinho de sua filha
única; e o Senhor Eduardo Lafões. Não variavam. Todos os domingos, aí pelas
nove horas, lá batiam à porteira da casa do "postal"; não entravam no
corpo da habitação e, pelo corredor que mediava
entre ela e a vizinha, dirigiam-se ao grande tamarineiro, aos fundos do
quintal, debaixo do qual estava armada a mesa, com os seus tentos, vermelhos e
pupilas negras, de grão de aroeira, o seu baralho, os seus pires, um cálice e
um litro de parati, ao centro, muito pimpão e arrogante, impondo um cínico desafio às conveniências protocolares.
Joaquim dos Anjos já esperava, lendo o jornal de
sua predileção. Mal chegavam, trocavam algumas palavras, sentavam-se,
"molhavam a palavra", no litro de cachaça, e punham-se a jogar. Ficha
a vintém.
Horas e horas, esperando o
"ajantarado", que quase sempre ia
para a mesa à hora do jantar habitual, deixavam-se ficar jogando,
bebericando aguardente, sem dar uma vista d'olhos sobre as montanhas
circundantes, nuas e pedroucentas, que recortavam o alto horizonte.
De quando em quando, mas sem grandes espaços,
Joaquim gritava para a cozinha:
- Clara! Engrácia! Café!
De lá, respondiam, com algum amuo na voz:
- Já vai!
É que as duas mulheres, para preparar o café,
tinham que retirar, de um dos dois fogareiros de carvão vegetal, uma panela do
"ajantarado" que aprontavam, a fim de aquecer o café reclamado; e
isto lhes atrasava o jantar.
Enquanto esperavam o café, os três suspendiam o
jogo e conversavam um pouco. Marramaque era e sempre havia sido mais ou menos
político, a seu modo.
Embora atualmente fosse um simples contínuo de
ministério, em que não fazia o serviço respectivo, nem outro qualquer, devido a
seu estado de invalidez, de semi-aleijado e semiparalítico do lado esquerdo,
tinha, entretanto, pertencido a uma modesta roda de boêmios literatos e poetas,
na qual, a par da poesia e de coisas de literatura, se discutia muita política,
hábito que lhe ficou. Quando veio a revolta de
A sua roda não tinha ninguém de destaque, mas alguns
eram estimáveis. Mesmo alguns de rodas mais cotadas procuravam a dele.
Quando narrava episódios dessa parte de sua
vida, tinha grande garbo e orgulho em dizer que havia conhecido Paula Nei e se
dava com Luís Murat. Não mentia, enquanto não confessasse a todos em que
qualidade fizera parte do grupo literário. Os que o conheciam, daquela época,
não ocultavam o título com que partilhava a honra de ser membro de um cenáculo
poético. Tendo tentado versejar, o seu bom senso e a integridade de seu caráter
fizeram-lhe ver logo que não dava para a coisa. Abandonou e cultivou as
charadas, os logogrifos, etc. Ficou sendo um hábil charadista e, como tal,
figurava quase sempre como redator ou colaborador dos jornais, que os seus
companheiros e amigos de boêmia literária, poetas e literatos, improvisavam do
pé para a mão, quase sempre sem dinheiro para um terno novo. Envelhecendo e
ficando semi-inutilizado, depois de dois ataques de apoplexia, foi obrigado a
aceitar aquele humilde lugar de contínuo, para ter com que viver. Os seus
méritos e saber, porém, não estavam muito acima do cargo. Aprendera muita coisa
de ouvido e, de ouvido, falava de muitas delas. Tivera, em moço, uma boa
convivência. Estava aí o segredo de sua ilustração. Marramaque, apesar de tudo,
do seu estado de saúde, da sua dificuldade de locomover-se, não deixava a mania
inócua da política e ia votar, com risco de se ver envolvido num barulho de
sufrágio universal, puxado a navalha, rabo-de-arraia, cabeçadas, tiros de
revólver e outras eloqüentes manifestações eleitorais, das quais, em razão do
seu precário estado de pernas, não poderia fugir com segurança e a necessária
rapidez.
Tendo vivido em rodas de gente fina - como já
vimos - não pela fortuna, mas pela educação e instrução; tendo sonhado outro
destino que não o que tivera; acrescendo a tudo isto o seu aleijamento -
Marramaque era naturalmente azedo e oposicionista. Naquele domingo, ele o
tirara para falar mal do doutor Saulo de Clapin.
- Vocês vão ver: o Clapin está aí, está morto na
política. Teve o topete de ir contra a corrente popular, espetou-se. Quem
ganhou foi o barbudo Melo Brandão, esse judeu mestiçado. É um safadão, mas é
mestre na política.
Joaquim se interessava mediocremente por essa
história de política: mas Lafões tinha as suas paixões no negócio e acudiu:
- Qual o quê! Então você pensa, Marramaque, que
um homem inteligente, tão superior, como o doutor Clapin, vai deixar-se
embrulhar por um trapaceiro de atas e coisas piores como o Melo Brandão! Qual o
quê! Demais, o operariado...
- O que é que ele tem feito pelo operariado? -
pergunta Marramaque.
- Muito.
Lafões não era operário, como se poderia pensar.
Era guarda das obras públicas. Português de nascimento, viera menino para o
Brasil, isto há mais de quarenta anos; entrara muito cedo para a repartição de
águas da cidade, chamara a atenção dos seus superiores pelo rigor de sua
conduta; e, aos poucos, fizeram-no chegar a seu generalato de guarda de enca-
namentos e de torneiras que vazassem nos tanques de lavagem das casas particulares.
Vivia muito contente com a sua posição, a sua portaria de nomeação, a sua carta
de naturalização, e, talvez, não estivesse tanto, se tivesse enriquecido de
centenas de contos de réis. Assim tudo fazia crer, pois era de ver a
importância ingênua do campônio que se faz qualquer coisa do Estado, e a
solenidade de maneiras com que ele atravessava aquelas virtuais ruas dos
subúrbios.
Trazia sempre a farda de cáqui e o boné com as
iniciais da repartição; um chapéu-de-sol de cabo, que, quando não o trazia
aberto, a protegê-lo contra os raios do sol, manejava como a bengala de um
vigário de aldeia portuguesa, furando o chão e levantando-o, para pousá-lo de
novo, à medida que executava as suas longas passadas.
Lafões respondeu assim a Marramaque:
- Muito. Em todas as comissões por que o doutor
Clapin tem passado, sempre procura dar trabalho ao maior número de operários.
- Grande serviço! Arrebenta as verbas; no fim de
dois ou três meses, despede mais da metade... Isto não se chama proteger;
chama-se engazopar.
- Seja, mas ele ainda faz isso, e os outros? Não
fazem nada. De resto, é um homem democrata. Desde muito que se bate pela
igualdade entre os servidores da nação. Não quer distinção entre funcionários
públicos e jornaleiros. Quem serve à nação, seja em que serviço for, é
funcionário público.
- Honrarias! Isto não enche barriga! Por que ele
não trabalha para diminuir a carestia da vida e dos aluguéis de casa?
- Homessa, Marramaque! Você não leu o projeto dele
sobre construção de casas para famílias pobres e modestas? Você não leu,
Joaquim?
O carteiro, que vinha ouvindo a conversa sem dar
opinião, à interpelação de Lafões, interveio:
- Li, de fato; mas li também que ele havia
aumentado os aluguéis de suas casas, que são inúmeras, de quarenta por cento.
- É isto! - acudiu com pressa Marramaque. -
Clapin é muito generoso com o dinheiro dos outros, do Estado. Com o dele, é de
uma sovinice de judeu e de uma ganância de agiota. Jesuíta!
Felizmente Clara chegava com o café. A conversa
apaixonada cessava, e os dois convivas de Joaquim recebiam os cumprimentos da
menina:
- A bênção, meu padrinho; bom-dia, Seu Lafões.
Eles respondiam e punham-se a pilheriar com
Clara.
Dizia Marramaque:
- Então, minha afilhada, quando se casa?
- Nem penso nisso - respondia ela, fazendo um
trejeito faceiro.
- Qual! - observa Lafões. - A menina já tem
algum de olho. Olhe, no dia dos seus anos... É verdade, Joaquim: uma coisa.
O carteiro descansou a xícara e perguntou:
- O que é?
- Queria pedir a você autorização para cá
trazer, no dia dos anos, aqui da menina, um mestre do violão e da modinha.
Clara não se conteve e perguntou apressada:
- Quem é?
Lafões respondeu:
- É o Cassi. A menina...
O guarda das obras públicas não pôde acabar a
frase. Marramaque interrompeu-o furioso:
- Você dá-se com semelhante pústula? É um
sujeito que não pode entrar em casa de família. Na minha, pelo menos...
- Por quê? - indagou o dono da casa.
- Eu direi, daqui a pouco; eu direi por quê -
fez Marramaque transtornado.
Acabaram de tomar café. Clara afastou-se com a
bandeja e as xícaras, cheia de uma forte, tenaz e malsã curiosidade:
- Quem seria esse Cassi?
II
Quem seria esse Cassi? Quem era Cassi?
Cassi Jones de Azevedo era filho legítimo de
Manuel Borges de Azevedo e Salustiana Baeta de Azevedo. O Jones é que ninguém
sabia onde ele o fora buscar, mas usava-o, desde os vinte e um anos, talvez,
conforme explicavam alguns, por achar bonito o apelido inglês. O certo, porém,
não era isso. A mãe, nas suas crises de vaidade, dizia-se descendente de um
fantástico Lord Jones, que fora cônsul da Inglaterra,
Era Cassi
um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento, insignificante, de
rosto e de corpo; e, conquanto fosse conhecido como consumado
"modinhoso", além de o ser também por outras façanhas verdadeiramente
ignóbeis, não tinha as melenas do virtuose do violão, nem outro qualquer traço
de capadócio. Vestia-se seriamente, segundo as modas da Rua do Ouvidor; mas,
pelo apuro forçado e o degagé suburbanos, as suas roupas chamavam a atenção dos
outros, que teimavam em descobrir aquele aperfeiçoadíssimo "Brandão",
das margens da Central, que lhe talhava as roupas. A única pelintragem,
adequada ao seu mister, que apresentava, consistia em trazer o cabelo ensopado
de óleo e repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente ao meio - a famosa
"pastinha". Não usava topete, nem bigode. O calçado era conforme a
moda, mas com os aperfeiçoamentos exigidos por um elegante dos subúrbios, que
encanta e seduz as damas com o seu irresistível violão.
Era bem misterioso esse seu violão; era bem um
elixir ou talismã de amor. Fosse ele ou fosse o violão, fossem ambos
conjuntamente, o certo é que, no seu ativo, o Senhor Cassi Jones, de tão pouca
idade, relativamente, contava perto de dez defloramentos e a sedução de muito
maior número de senhoras casadas.
Todas essas proezas eram quase sempre seguidas
de escândalo, nos jornais, nas delegacias, nas pretorias; mas ele, pela boca
dos seus advogados, injuriando as suas vítimas, empregando os mais ignóbeis
meios da prova de sua inocência, no ato incriminado, conseguia livrar-se do
casamento forçado ou de alguns anos na correção.
Quando a polícia ou os responsáveis pelas
vítimas, pais, irmãos, tutores, punham-se em campo para processá-lo
convenientemente, ele corria à mãe, Dona Salustiana, chorando e jurando a sua
inocência, asseverando que a tal fulana - qualquer das vítimas - já estava
perdida, por esse ou por aquele; que fora uma cilada que lhe armaram, para
encobrir um mal feito por outrem, e por o saberem de boa família, etc., etc.
Em geral, as moças que ele desonrava eram de
humilde condição e de todas as cores. Não escolhia. A questão é que não
houvesse ninguém, na parentela delas, capaz de vencer a influência do pai,
mediante solicitações maternas.
A mãe recebia-lhe a confissão, mas não
acreditava; entretanto, como tinha as suas presunções fidalgas, repugnava-lhe
ver o filho casado com uma criada preta, ou com uma pobre mulata costureira, ou
com uma moça branca lavadeira e analfabeta.
Graças a esses seus preconceitos de fidalguia e
alta estirpe, não trepidava em ir empenhar-se com o marido, a fim de livrar o
filho da cadeia ou do casamento pela polícia.
- Mas é a sexta moça, Salustiana!
- Qual o quê! Calunia-se muito...
- Qual calúnia, qual nada! Este rapaz é um
perverso, é sem-vergonha. Eu sei o nome das outras. Olhe: a Inês, aquela
crioulinha que foi nossa copeira e criada por nós; a Luísa, que era empregada
do doutor Camacho; a Santinha, que ajudava a mãe a costurar para fora e morava
na Rua Valentim; a Bernarda, que trabalhava no "Joie de Vivre"...
- Mas tudo isto já passou, Maneco. Você quer que
o seu filho vá para a cadeia? Porque, casar com essas biraias, ele não se casa.
Eu não quero.
- Era preferível que ele fosse para a cadeia, ao
menos não estava desmoralizando todo o dia a casa.
- Pois você faça o que quiser. Se você não der
os passos, eu dou. Vou procurar o meu irmão, o doutor Baeta Picanço - rematava
a mulher com orgulho.
O pai
desse Cassi era verdadeiramente um homem sério. Estreito de idéias,
familiarizado no emprego público, que, há cerca de trinta anos, exercia, ele
tinha profundos sentimentos morais, que lhe guiavam a conduta no seu comércio
com os filhos. Nunca fora afetuoso: evitava até todas as exibições e exageros
sentimentais; era, porém, capaz de estimá-los profundamente, amá-los, sem
abdicar, entretanto, do dever paterno de julgá-los lucidamente e puni-los
consoante a natureza das suas respectivas faltas.
Era homem de pouca altura, trazia a cabeça
sempre erguida, testa reta e alta, queixo forte e largo, olhar firme, debaixo
do seu pince-nez de aros de ouro. Conquanto alguma coisa obeso, era deveras um
velho simpático e respeitável; e, apesar da sua imponência de antigo burocrata,
dos seus modos um tanto ríspidos e secos, todos o estimavam na proporção em que
seu filho era desprezado e odiado. Tinham até pena dele, confrontando a
severidade de sua vida com a crapulice de Cassi.
Sua mulher não era lá muito querida, nem
prezada. Tinha fumaças de grande dama, de ser muito superior às pessoas de sua
vizinhança e mesmo às dos seus conhecimentos. O seu orgulho provinha de duas
fontes: a primeira, por ter um irmão médico do Exército, com o posto de
capitão; e a segunda, por ter andado no Colégio das Irmãs de Caridade.
Quando se lhe perguntava - seu pai, o que era? - Dona Salustiana
respondia: era do Exército; e torcia a conversa. Não era seu pai exatamente do
Exército. Fora simplesmente escriturário do Arsenal de Guerra. Com muito
sacrífício e graças a uma pequena fortuna que lhe viera ter por acaso às mãos,
pudera educar melhorzinho os dois únicos filhos que tivera.
A vaidade de Dona Salustiana não deixava que ela
confessasse isso; e tanto era contagioso esse seu sentimento, no que tocava a
seu pai, que as suas duas filhas, Catarina e Irene, sempre se referiam ao avô,
como se fosse de verdade um general do Paraguai. Eram menos vaidosas do que a
mãe; mas muito mais ambiciosas, em matéria de casamento. Dona Salustiana
casara-se com o Manuel, quando este ainda era praticante e revia provas, à
noite, nos jornais, para acudir às despesas da casa. Catarina e Irene sonhavam
casar com doutores, bem empregados ou ricos, porque elas se julgavam prestes a
se "formar", a primeira em música e piano, pelo trampolineiro
Instituto Nacional de Música; e a segunda, pela indigesta Escola Normal desta
Capital.
Escusado é dizer que ambas tinham um grande
desprezo pelo irmão, não só pela baixeza de sua conduta moral - o que era
merecido - mas, também, pela sua ignorância cavalar e absoluta falta de
maneiras e modos educados.
Em começo, o pai consentia, apesar de tudo, que
Cassi, o ínclito Cassi, tomasse parte na mesa familiar. Ninguém lhe dirigia a
palavra, a não ser a mãe. As moças conversavam com o pai ou com a mãe, ou entre
si; e, se ele se animava a dizer qualquer coisa, o velho Manuel olhava-o
severamente e as filhas calavam-se.
Houve um acontecimento doloroso, provocado pela
perversidade de Cassi, que fez o pai tomar a deliberação extrema de expulsá-lo
de casa e da mesa doméstica. Não foi expulso de todo, devido à intervenção de
Dona Salustiana; mas o foi em meio.
Entre as relações de suas irmãs, havia uma moça
muito pobre, que morava na redondeza. Sua mãe era viúva de um capitão do
Exército, e ela, a Nair, era filha única. Com auxílio de alguns parentes, a
viúva ia encaminhando a filha, nos estudos próprios de seu sexo. Ela tinha
tendência para música e procurou aproximar-se de Catarina, para explicar-lhe a
matéria. Contava dezoito anos, muito risonha, de um amorenado sombrio, cabelos
muito negros, pequenina e viva, com os seus olhinhos irrequietos e luminosos.
Cassi a viu e logo a teve como boa presa, apesar
de não ser totalmente sem apoio. Quis entabular namoro, na própria casa do pai,
quando Nair vinha receber lições da irmã dele. Esta, porém, percebendo a
manobra, proibiu-lhe, sob ameaça de contar ao pai, que ele viesse à sala,
quando estivesse dando lição a Nair. O nome do pai apavorava Cassi, não que o
estimasse e, por isso, o respeitasse deveras; mas porque "o velho",
severo como era, bem podia pô-lo de vez na rua. Se isso viesse a acontecer, não
teria para onde ir, e o pouco que ganhava, no jogo, em brigas de galos e em
comissões de agente de empréstimos, etc., seria absorvido para a casa e comida,
pouco ou quase nada sobrando para roupas, sapatos e gravatas. Ele, sem isto
tudo, estava perdido. Adeus amor! Se o quisesse, tinha que pagar...
Considerando tal hipótese, não relutou em
obedecer à irmã; mas começou a cercar Nair "por fora". Quando ela ia
sair, precedia-a, ficava na porta da padaria, cumprimentava. Afinal, pôde
conversar e declarar-se com a fatídica carta, que era a reprodução de um modelo
que lhe dera um companheiro de malandragem, o Ataliba do Timbó, o qual, por sua
vez, tinha obtido de um poeta "porrista" que morava na Piedade. Esse
poeta, a quem o "intruso" Ataliba qualificava tão superiormente e de
tal maneira, era o célebre Leonardo Flores, que o Brasil todo conhece e viveu
uma vida pura, inteiramente de sonhos.
Enfim, a pequena Nair, inexperiente, em plena
crise de confusos sentimentos, sem ninguém que lhe pudesse orientar, acreditou
nas lábias de Cassi e deu o passo errado. A mãe veio a descobrir-lhe a falta,
que se denunciava pelo estado do seu ventre. Correu ao Senhor Manuel, que não
estava. Falou a Dona Salustiana e esta, empertigando-se toda, disse secamente:
- Minha senhora, eu não posso fazer nada. Meu
filho é maior.
- Mas, se a senhora o aconselhasse como mãe que
é, e de filhas, talvez obtivesse alguma coisa. Tenha piedade de mim e da minha,
minha senhora.
E pôs-se a chorar e a soluçar.
Dona Salustiana respondeu amuada, sem demonstrar
o mínimo enternecimento por aquela dor inqualificável:
- Não posso fazer nada, no caso, minha senhora.
Já lhe disse. A senhora recorra à justiça, à polícia, se quiser. É o único
remédio.
A mãe de Nair acalmou-se um pouco e observou:
- Era o que eu queria evitar. Será uma vergonha
para mim e para a senhora e família.
- Nós nada temos com o que Cassi faz. Se fosse
nossa filha...
Não acabou a indireta injuriosa; levantou-se e
estendeu a mão à desolada mãe, como que a despedindo.
A viúva saiu cabisbaixa; e, dali, foi à
audiência do delegado distrital e expôs tudo. O delegado disse-lhe:
- Apesar de estar ainda não há seis meses neste
distrito, sei bem quem é esse patife de Cassi. O meu maior desejo era embrulhá-lo
num bom e sólido processo; mas não posso, no seu caso. A senhora não é
miserável, possui as suas pensões de montepio e meio soldo; e eu só posso tomar
a iniciativa do processo quando a vítima é filha de pais miseráveis, sem
recursos.
- Mas, não há remédio, doutor?
- Só a senhora constituindo advogado.
- Ah! Meu Deus! Onde vou buscar dinheiro para
isso? Minha filha, desgraçada, meu Deus!
E pôs-se a chorar copiosamente. Quando serenou,
o delegado mandou que um empregado da delegacia acompanhasse a senhora até em
casa e ficou a pensar nas baixezas, nas dores, nas misérias que as casas
encobrem e que, todo o dia, descobria, por dever de ofício.
No dia seguinte, a mãe de Nair suicidava-se com lisol.
Os jornais esgravataram o acontecimento e contaram as causas do suicídio com
todos os pormenores. Manuel de Azevedo, o pai de Cassi, quando leu no trem o
jornal, saltou na primeira estação, voltou e entrou pela casa adentro que nem
um furacão, transtornado de fisionomia, com ríctus de ódio que o fazia outro
homem muito diferente daquele reservado, bondoso e simpático burocrata que era.
- Quedê ele?
- Quem? - perguntou-lhe a mulher.
- Ele, esse Cassi - fez ele com os punhos
cerrados, a errar o olhar desvairado, pelos quatro cantos da sala.
- Mas que há, homem? - fez a mulher assustada.
- Lê isto.
Deu-lhe o jornal, apontando o local do suicídio.
- Mas que culpa tem...
Não acabou a frase, Dona Salustiana; o marido
logo a interrompeu:
- Culpa! Esse biltre sem senso moral algum; esse
assassino, esse desgraçado que leva a corromper todas as moças e senhoras que
lhe passam debaixo dos olhos, não o quero mais aqui, não o quero mais na minha
mesa. Diga-lhe isto, Salustiana; diga-lhe isto, enquanto não o mato.
As filhas tinham chegado e adivinharam a causa
daquela explosão de ódio e raiva, coisa rara no pai. Procuraram acalmá-lo:
- Sossegue, papai; sossegue.
Catarina, que passara os olhos pelo jornal,
muito sofreu com a desonra de Nair. Lamentou sinceramente o trágico desfecho da
mãe da sua discípula gratuita; e assim falou ao pai:
- Olhe, papai; eu me sinto em alguma coisa
culpada, porque trouxe Nair para aqui, a fim de estudar música comigo.
Depois de uma pausa acrescentou:
- Que se há de fazer? É a fatalidade.
- Não o quero mais aqui - repetiu o chefe da
família.
Os jornais não se deixaram ficar na simples
notícia do suicídio. Revolveram a vida de Cassi; contaram-lhe as proezas; e
ele, a conselho de sua mãe, foi passar uns tempos na casa do tio, o doutor, que
tinha uma fazendola
Em outra, mostrava-se interessado pela saúde de
Nair; e, depois de dar instruções como devia deixar a janela para que ele a
pulasse, contava: "tão de pressa soube que estavas de cama fui ao doutor
R. S. saber o que você tinha, ele disse-me que você tinha feito a loucura de
molhar os peis na água fria" etc., etc. Nessa altura, entrava em detalhes
secretos da vida feminina e aduzia: "foi uma grande tristeza em saber que
o doutor R. S. sabe de teus particulares moral" (sic).
No fim da missiva, ou quase, dizia: "enfim
que eu devo fazer ‘se você não quer ser inteiramente minha’ como eu
sou teu."
Não se demorou muito na casa do tio. O doutor,
orgulho de sua irmã Salustiana e protetor sempre por ela posto em foco para as
despudoradas aventuras do sobrinho, desconfiando que este tramava uma das suas,
nos arredores do seu sítio, sem mais detença, embarcou-o para a casa da irmã,
mãe de Cassi, dizendo-lhe que ficasse com o filho, porque sobrinho como aquele,
ele, doutor Baeta Picanço, desejava nunca tê-lo em casa.
Não foi logo diretamente para a casa paterna,
que era numa das primeiras estações de quem vem da Central. Ficou pelo Engenho
de Dentro, de onde mandou, por Ataliba do Timbó, um bilhete à mãe, pedindo
instruções. A mãe respondeu-lhe que viesse para casa; mas evitasse, por todos
os meios, encontrar-se com o pai. Tinha ela arranjado as coisas, e ele teria
sempre onde comer e dormir.
Foi-lhe reservado o porão, na parte dos fundos,
e a chácara, como recreio, onde raramente o pai ia. Jantava, almoçava e tomava
café, no compartimento do porão onde morava. Logo na primeira manhã que
despertou no seu humilhante aposento familiar, pensou logo em ir ver as suas gaiolas
de galos de briga - o bicho mais hediondo, mais antipático, mais
repugnantemente feroz que é dado a olhos humanos ver. Estavam em ordem; sua mãe
cuidara deles, como lhe pedira.
Galos de briga eram a força de suas indústrias e
do seu comércio equívocos. Às vezes, ganhava bom dinheiro nas apostas de
rinhadeiro, o que vinha ressarcir os prejuízos que, porventura, anteriormente
houvesse tido nos dados; e, assim, conseguia meios para saldar o alfaiate ou
comprar sapatos catitas e gravatas vistosas. Com os galos, fazia todas as
operações possíveis, a fim de ganhar dinheiro; barganhava-os, com
"volta", vendia-os, chocava as galinhas, para venda dos frangos a
criar e educar, presenteava pessoas importantes, das quais supusesse, algum
dia, precisar do auxílio e préstimos delas, contra a polícia e a justiça.
Incapaz de um trabalho continuado, causava pasmo
vê-lo cuidar todas as manhãs daqueles horripilantes galináceos, das ninhadas,
às quais dava milho moído, triguilho, examinando os pintainhos, um por um, a ver
se tinham bouba ou gosma.
Fosse se deitar a que hora fosse, pela manhã lá
estava ele atrapalhado com os galos malaios e a sua descendência de frangos e
pintos.
Nunca suportara um emprego, e a deficiência de
sua instrução impedia-o que obtivesse um de acordo com as pretensões de muita
coisa que herdara da mãe; além disso, devido à sua educação solta, era incapaz
para o trabalho assíduo, seguido, incapacidade que, agora, roçava pela
moléstia. A mórbida ternura da mãe por ele, a que não eram estranhas as suas
vaidades pessoais, junto à indiferença desdenhosa do pai, com o tempo, fizeram
de Cassi o tipo mais completo de vagabundo doméstico que se pode imaginar. É um
tipo bem brasileiro.
Se já era egoísta, triplicou de egoísmo. Na
vida, ele só via o seu prazer, se esse prazer era o mais imediato possível.
Nenhuma consideração de amizade, de respeito pela dor dos outros, pela desgraça
dos semelhantes, de ditame moral o detinha, quando procurava uma satisfação
qualquer. Só se detinha diante da força, da decisão de um revólver empunhado
com decisão. Então, sim...
Algumas boas lhe aconteceram. Tinha ele notado
que uma moçoila com livros e attirail de normalista, na viagem de trem, o
olhava muito.
Marcou-lhe a fisionomia e, ao dia seguinte, à mesma
hora, pôs-se, na estação, à espera dela; não veio. Esperou outro trem, não
veio. Assim, esperou diversos. No outro dia, após esse, foi mais feliz; ela
veio. Procurou lugar conveniente e pôs-se a fazer trejeitos. A moça não lhe deu
importância. Durante dias, insistiu. Um belo dia, ele vai muito calmo, à cata
da ingrata, quando ela apareceu acompanhada de um rapaz, que, pela intimidade
com que a tratava e pela idade que revelava à primeira vista, parecia ser irmão
ou marido da moça. Habituado a lidar com parentes dessa natureza, mas fracos,
não se intimidou. Os dois no banco, ao lado dele, seguem viagem, palestrando
calmamente. Cassi os olha insistentemente. Chegam à Central, e o rapaz
despede-se da moça, que segue para a sua escola. Volta- se o cavalheiro e
procura com o olhar o Senhor Cassi.
- É o senhor?
Cassi Jones responde:
- Sou eu.
- Desejava muito falar-lhe. Vamos à confeitaria;
é coisa particular, e nós lá estaremos à vontade tomando um vermouth.
Cassi fica com a pulga atrás da orelha e acompanha
o desconhecido, que, com ar risonho e caminhando, vai dizendo:
- O senhor talvez não me conheça. Porém eu, meu
caro senhor, o conheço muito bem. Nos subúrbios, todos conhecem as suas
habilidades, Senhor Cassi Jones; e, embora esteja lá morando há pouco, já tive
notícias do seu valimento.
Cassi assustava-se com a calma do rapaz e pôs-se
a medir-lhe os músculos. Não trouxera a navalha, porque tinha medo de ser
preso, por causa do negócio da Nair e do suicídio da mãe dela; e armado...
Mediu a musculatura do desconhecido. Era antes fraco do que forte, mas parecia
disposto. Chegaram à confeitaria e sentaram-se. O caixeiro serviu vermouth; e,
quando iam em meio, o outro disse ex-abrupto para Cassi:
- O senhor sabe quem é aquela moça que vinha a
meu lado?
Colhido de surpresa, não pôde tergiversar e
disse prontamente:
- Não sei absolutamente.
- É minha irmã - afirmou o desconhecido.
- Também não sabia - respondeu docilmente o
terrível Cassi.
- Não podia saber naturalmente - justificou o rapaz.
- Saio cedo de casa para o escritório e volto tarde, pois janto e almoço na
cidade. Agora, eu chamei o senhor para lhe dizer uma coisa: se o senhor
continua a perseguir minha irmã, meto-lhe cinco tiros na cabeça.
Ao dizer isto, foi tirando dos bolsos de dentro
do paletó um magnífico Smith & Wesson, muito reluzente e com um luxuoso
cabo de madrepérola.
Cassi redobrou o esforço para não denunciar o
susto e, simulando calma, disse:
- Mas, meu caro senhor, creio que nunca faltei
com o respeito devido à senhora sua irmã.
- É verdade; mas é preciso deixar de persegui-la
- confirmou o outro e logo acrescentou, como que dando por acabada a
entrevista:
- Quer tomar alguma coisa mais?
- Não; muito obrigado.
Despediram-se, sem se apertarem as mãos; e Cassi
foi para a sua roda de Ataliba do Timbó, Zezé Mateus, Franco Sousa e Arnaldo.
Um deles perguntou-lhe:
- O que queria aquele sujeito contigo?
- Nada. É meu vizinho e, sabendo que sou morador
antigo, pediu-me que lhe arranjasse um cavalo para vender, que ele me dava uma
comissão.
Cassi era assim e assim mantinha a sua fama de
valente. Não julguem que tinha estima e amizade por esses rapazes que andavam
sempre com ele. Ele não os amava, como não amava ninguém e com ninguém
simpatizava. Era uma coorte digna dele, que o iludia do vácuo feito em torno
dele, por todos os rapazes daquelas bandas.
Ataliba do Timbó era um mulato claro, faceiro,
bem-apessoado, mas antipático pela sua falsa arrogância e fatuidade. Havia sido
operário em uma oficina do Estado. Meteu-se com Cassi e, aos poucos, abandonou
o emprego, abandonou a mãe, de quem era único arrimo, e quis imitar o mestre
até o fim. Foi infeliz. Arranjou uma complicação policial e matrimonial de
donzelas, nas quais Cassi era useiro e vezeiro, e saiu-se mal. Obrigaram-no a
casar; mas teve a hombridade de ficar com a mulher, embora, resignadamente, ela
sofresse toda a espécie de privações, no horrível subúrbio de Dona Clara,
enquanto ele andava sempre muito suburbanamente elegante e tivesse vários
uniformes de football.
Tirava proventos do jogo de dados ou campista, e
também do football, em que era considerado bom jogador - "plêiel",
como dizem lá.
De vários clubes, havia sido expulso ou se havia
demitido voluntariamente, porque os companheiros suspeitavam-no ser peitado
pelos adversários, para facilitar estes fazer pontos. Ultimamente, era agente
de jogo de bicho, e sua mulher viera gozar de mais algum conforto.
Pobre Ernestina! Era tão alegre, tão tagarela,
era moça, e bonitinha, na sua fisionomia miúda e na sua tez pardo-clara, um
tanto baça, é verdade, mas não a ponto de enfeá-la, quando conheceu Ataliba; e
hoje? Estava escanzelada, cheia de filhos, a trair sofrimentos de toda a
espécie, sempre mal calçada, quando, nos tempos de solteira, o seu luxo eram os
sapatos! Quem te viu e quem te vê!
Zezé Mateus era um verdadeiro imbecil. Não
ligava duas idéias; não guardava coisa alguma dos acontecimentos que assistia.
A sua única mania era beber e dizer-se valente. Topava todos os ofícios;
capinava, vendia peixe e verdura, com cesto à cabeça; era servente de pedreiro,
apanhava e vendia passarinhos, como criança; e tinha outras habilidades desse
jaez.
Era branco, com uma fisionomia empastada, cheia
de rugas precoces, sem dentes, todo ele mole, bambo. A sua testa era deprimida,
e era longo e estreito o seu crânio, do feitio daqueles a que o povo chama
"cabeça de mamão-macho".
Totalmente inofensivo, quase inválido pela sua
imbecilidade nativa e pela bebida, uma família a quem ele prestava pequenos
serviços - ir às compras, ao açougue, lavar a casa - dava-lhe um barracão na
chácara, onde dormia, e comida, se estivesse presente às refeições.
Encontrava-se nessa ruína humana o melhor da turma e o único que não tinha
maldade no coração. Era um ex-homem e mais nada.
O Franco Sousa, este, era um malandro mais
apurado, que, uma vez ou outra, aderia ao grupo de Cassi. Intitulava-se
advogado e vivia de embrulhar os crédulos clientes que lhe caíam nas mãos.
Todos sabiam que ele não tratava de coisa alguma, pois não podia absolutamente
tratar, já por não saber coisa alguma das tricas forenses, já por não ser, de
verdade, advogado. Assim mesmo, sempre apareciam ingênuos roceiros, simplórias
viúvas, que, no pressuposto de que os seus serviços, na justiça, sobre a
demarcação de terras litigiosas ou despejos de inquilinos relapsos, fossem mais
baratos, procuravam-no. Ele recebia os adiantamentos e, em seguida, mais algum
dinheiro, conforme a ingenuidade e a falta de experiência do cliente, e não
fazia nada. Entretanto, vivia muito decentemente com a mulher, filhos e filhas.
Cassi não lhe pisava em casa, e, aos poucos, foi se afastando do violeiro, a
conselho da mulher, que zelava extremamente pela reputação das filhas, que se
faziam moças.
O último dos asseclas do modinheiro era um tal
Arnaldo, Arnaldo tout court. Nele, talvez houvesse tipo mais nojento do que
mesmo em Cassi. A sua profissão consistia em furtar, no trem, chapéus-de-sol,
bengalas, embrulhos dos passageiros que estivessem a dormitar ou distraídos. De
tarde, ele fazia a especialidade dos embrulhos; e, à noite, às vezes, a altas
horas, postava-se na beira da plataforma de estação pouco freqüentada e, quando
o trem tomava movimento e impulso, arrebatava rapidamente os chapéus dos
passageiros, através da portinhola, principalmente se de palha e novos.
Vendia-os, no dia seguinte, como vendia os chapéus-de-sol, as bengalas e o
conteúdo dos embrulhos, se fosse de coisa vendável; roupas de lã ou branca,
livros, louça, talheres, etc.
Se fossem, porém, doces, frutas, queijos,
biscoitos, grãos, ele levava para a casa e contava à mulher que só arranjara
dinheiro para comprar aquelas guloseimas para as crianças. Usava dos mais
imprevistos estratagemas, para não pagar a casa de sua moradia. Numa, tendo
ficado a dever oito meses, apresentando-se-lhe o cobrador com os recibos,
pediu-os para examiná-los e ficou com eles, alegando que ia consultar pessoa
competente em matéria de selo, porquanto as estampilhas não lhe pareciam legais.
Nunca mais os devolveu; e, apesar de todas as ameaças, ainda ficou morando na
casa quatro meses. Os seus vizinhos contavam que ele tinha também o hábito de
arrebatar as notas do Tesouro das mãos das crianças, quando as encontrava sós
também a caminho das vendas, onde iam fazer compras para as casas paternas,
levando-as à mostra, na imprevidência natural de crianças.
Inútil é repetir que Cassi não tinha nenhuma
espécie de amizade por esses rapazes, não pela baixeza de caráter e de moral
deles, no que ele sobrelevava a todos; mas pela razão muito simples de que a
sua natureza moral e sentimental era sáfara e estéril. A seus pais e às suas
irmãs, não o prendia nenhuma dose de afeição, por mais pequena que fosse. Mesmo
com sua mãe, que o tinha retirado muitas vezes dos xadrezes policiais, em
vésperas de seguir para a detenção, ele só tinha manifestações de ternura,
quando estava às voltas com a polícia ou com os juízes. O seu fundo e os seus
princípios explicavam de algum modo essa sua aridez moral e sentimental.
A sua educação e instrução foram deveras
descuradas. Primeiro nascido do casal, quando as exigências da manutenção da
família obrigavam seu pai a trabalhar dia e noite, não pôde este, pois poucas
horas passava em casa, vigiá-las convenientemente. Rebelde, desde tenra idade,
a doçura para com ele, por parte de sua mãe, e os prejuízos dela impediram-na
que o corrigisse convenientemente, assiduamente, no tempo próprio. Não ia ao
colégio; fazia "gazeta", correndo pelas matas das cercanias da
residência dos pais, então em Itapiru, com outros garotos. O que faziam,
pode-se bem adivinhar; mas a mãe fingia não perceber, passava a mão pela cabeça
do filho querido, nada dizia ao pai, que quase mourejava durante as vinte e
quatro horas do dia. Cresceu assim, sem nenhuma força moral que o comprimisse;
e o pai seria a única.
Ao melhorarem as suas condições financeiras, com
uma promoção a propósito e a compra daquela casa, na estação do Rocha, com o
produto de uma herança que tocara à mulher, Manuel de Azevedo veio encontrar,
aos treze anos, o filho completamente viciado, fumando às escâncaras, mal
lendo, aos gaguejos, e escrevendo ainda muito pior. Pô-lo nos
"Salesianos" de Niterói. As informações semanais eram péssimas; e, ao
fim de três ou quatro meses de colégio, não sabemos que torpeza cometeu no
colégio que, uma bela tarde, acompanhado de um padre magro, com uma cortante
figura angulosa de asceta, veio a ser entregue Cassi ao pai, em casa. Falou-lhe
o reverendo em particular, e Manuel de Azevedo, quase chorando, despediu-se do
reverendo, que insistia nas desculpas, e respondendo deste único feitio ao
eclesiástico:
- Os senhores têm razão, muita razão. Eu é que
me sinto infeliz por ter um filho bastante mau e vicioso com tão pouca idade.
Que castigo, meu Deus!
A mulher quis saber o motivo da expulsão, mas a
dignidade e a vergonha de pai fizeram que nem mesmo à sua mulher ele o
dissesse.
Propôs, dias depois, à sua esposa, que pusesse o
rapazola a aprender um ofício, a fim de discipliná-lo. Dona Salustiana revoltou-se
e esbravejou:
- Meu filho aprender um ofício, ser operário!
Qual! Ele é sobrinho de um doutor e neto de um homem que prestou muitos
serviços ao país.
Sempre lembrado dos seus duros começos em que ela
muito o ajudara e o animara, Manuel tinha, pela mulher, uma grande e sincera
afeição, evitando o quanto possível contrariá-la, e, por isso, não teimou dessa
feita. Meses depois, porém, logo que chegou em casa, a mulher e as filhas,
chorando, pedem que vá soltar Cassi, que estava preso em uma delegacia. O
menino já roçava pelos dezesseis anos e mostrava-se assim precoce na carreira
de falcatruas. Havia sido preso, pelo respectivo vigia, no interior de uma casa
vazia, quando procurava arrancar encanamentos de chumbo para vender.
O pai, então, voltou à idéia de pô-lo em uma
oficina, a ver se o trabalho manual, já pelo cansaço, já pela convivência com
pessoas honestas e de trabalho, desviava-o do mau caminho que ele estava
iniciando. A mãe acedeu com grande repugnância, e ele foi ser aprendiz de
tipógrafo.
No fim de um mês, porém, era despedido, porque,
tendo ido receber uma conta de cartões de visitas, uns cinco mil-réis ou pouco
mais do que isso, voltara sem dinheiro, dizendo que o tinha perdido. Revistado
convenientemente, foi-lhe o dinheiro encontrado quase intacto entre a botina e
a meia.
A fascinação pelo dinheiro e sua absorção nele
eram o seu fraco. Queria-o; mas sem trabalho e para ele só. As menores dívidas
que fazia, não pagava; não oferecia nada a ninguém. Houve quem o conhecendo e
sabendo dessa sua sovinice doentia explicasse os seus desvirginamentos seguidos
e as suas constantes seduções a raparigas casadas, como sendo a resultante da
aridez de dinheiro, que o encaminhava a amores gratuitos; e de uma atividade
sexual levada ao extremo, que a sua estupidez explicava.
Seja devido a esta ou aquela causa, a este ou
aquele motivo, o certo é que nele não havia nevrose ou qualquer psicopatia que
fosse. Não cedia a impulsos de doença; fazia tudo muito calculadamente e com
todo o vagar. Muito estúpido para tudo o mais, entretanto, ele traçava os
planos de sedução e desonra com a habilidade consumada dos scrocs de outras
naturezas. Tudo ele delineava lucidamente e previamente removia os obstáculos
que antevia.
Escolhia bem a vítima, simulava amor, escrevia
detestavelmente cartas langorosas, fingia sofrer, empregava, enfim, todo o
arsenal do amor antigo, que impressiona tanto a fraqueza de coração das pobres
moças daquelas paragens, nas quais a pobreza, a estreiteza de inteligência e a
reduzida instrução concentram a esperança de felicidade num Amor, num grande e
eterno Amor, na Paixão correspondida.
Sem ser psicólogo nem coisa parecida,
inconscientemente, Cassi Jones sabia aproveitar o terreno propício desse
mórbido estado d'alma de suas vítimas, para consumar os seus horripilantes e
covardes crimes; e, quase sempre, o violão e a modinha eram seus cúmplices...
III
Marramaque, apesar de sua instrução defeituosa,
senão rudimentar, tinha vivido em roda de pessoas de instrução desenvolvida e
educação, e convivido em todas as camadas. Era de uma cidadezinha do Estado do
Rio, nas proximidades da Corte, como se dizia então. Feito os seus estudos
primários, os pais empregaram-no num armazém da cidade. Estávamos em plena
escravatura, se bem que nos fins, mas a antiga Província do Rio de Janeiro era
próspera e rica, com as suas rumorosas fazendas de café, que a escravaria negra
povoava e penava sob os açoites e no suplício do tronco.
O armazém em que Marramaque era empregado havia
de tudo: ferragens, roupas feitas, isto é, camisas, calças, ceroulas
grosseiras, para trabalhadores; armas, louças, etc., etc. Comprava diretamente
nos atacadistas da Corte; além disso, o seu proprietário era intermediário
entre os pequenos lavradores e as grandes casas da Capital do Império, isto é,
comprava as mercadorias àqueles, por conta destas, com o que ganhava comissão.
Marramaque era contemplativo e melancólico, e
vivia, debruçado ao balcão do armazém, ouvindo os tropeiros e peões contar
histórias de todo o gênero: façanhas de valentia, maus encontros pelos caminhos
desertos, proezas de desafio à viola e de amor roceiro.
No gênio, não saía ao pai, que era um minhoto
ativo, trabalhador, reservado e econômico. Em poucos anos de Brasil, conseguiu
ajuntar dinheiro, comprar um sítio em que cultivava os chamados "gêneros
de pequena lavoura", aipim, batata-doce, abóboras, tomates, quiabos,
laranja, caju e melancia, dando-lhe esta última cultura, pelos fins do ano e
começo do seguinte, lucros razoáveis. Com o correr do tempo, comprara um bote;
e, duas vezes por semana, acompanhado de um companheiro a quem pagava, trazia
ele mesmo os produtos de sua lavoura, navegando por um pequeno rio, mais ou
menos canalizado, atravessando a Guanabara até o Mercado. Vinha com o
"terral" e voltava com a "viração".
O filho não seria capaz dessas proezas; mas,
como sua mãe, que, embora quase branca, tinha ainda evidentes traços de índio, seria
capaz de cantar o dia inteiro modinhas lânguidas e melancólicas.
Havia, quando rapazola, muitas névoas na sua
alma, um diluído desejo de vazar suas mágoas e os sonhos, no papel, em verso ou
fosse como fosse; e um forte sentimento de justiça. O espectro da escravidão,
com todo o seu cortejo de infâmias, causava-lhe secretas revoltas.
Certo dia, um viajante, que pousara no armazém,
deixara, por esquecimento, na mesa do quarto em que fora hospedado, um volume
das Primaveras, de Casimiro de Abreu.
Ele nunca havia lido versos seguidamente. Nos
jornais que lhe caíam à mão, mesmo nos retalhos deles e em páginas soltas de
revistas que vinham parar ao armazém para embrulho, é que lera alguns. Dessa
forma, encontrando, no seu natural melancólico, cheio de uma doce tristeza e de
um obscuro sentimento da mesquinhez do seu destino, terreno propício, o livro
de Casimiro de Abreu caiu-lhe n'alma como uma revelação de novas terras e novos
céus. Chorou e sonhou com os doridos queixumes do sabiá de São João da Barra e
não deixou de notar que, entre ele e o poeta das Primaveras, havia a semelhança
de começarem ambos sendo caixeiros de uma casa de negócio da roça. Cristalizada
a emoção profunda que lhe causara a leitura dos versos do gaturamo fluminense,
Marramaque resolveu agir, isto é, instruir-se, educar-se e... fazer versos
também. Para isso, precisava sair dali, ir para a Corte.
De quando em quando, pousavam no armazém, onde
dormia também, caixeiros-viajantes de grandes casas da Corte que tinham
negócios com o Senhor Vicente Aires, patrão de Marramaque. O seu natural bom,
prestativo, a sua irradiação simpática, provinda dos seus sonhos vagos e
amontoados, faziam-no estimado deles todos. Havia um, entretanto, que ele
estimava mais. Era um rapaz português, o Senhor Mendonça, Henrique de Mendonça
Souto. Em tudo, ele era o contrário do pobre Marramaque. Era alegre, folgazão,
palrador, bebia o seu bocado; mas sempre honesto, leal e franco.
Certa noite, estando ele hospedado nos fundos do
armazém do Senhor Vicente Aires, de volta de uma partida de
"manilha", na casa do sacristão da Matriz, o alegre
"cometa" veio a encontrar o caixeiro Marramaque lendo o volume de
Casimiro de Abreu. Era alta noite, passava da meia: e, como o caixeiro tinha
que se erguer às cinco da manhã, para abrir o armazém e atender a tropeiros e
viajantes em preparativos de partida, tal fato causou pasmo a "Seu"
Mendonça:
- Ainda lês, menino! E não te lembras que, daqui
a pouco, deves estar de pé, filho de Deus!
- Esperava o senhor.
- E mais esta! Então tu pensas que eu mesmo não
sabia despir-me e meter-me à cama? Que lês?
- Primaveras, de Casimiro de Abreu.
O caixeiro-viajante acabou de vestir-se e
deitou-se. Depois de cobrir- se, perguntou a Marramaque:
- Tu gostas de versos, rapaz?
Hesitou em responder, mas Mendonça fez
rispidamente:
- Dize lá, rapaz; porque nisto não vai crime
algum. Está a ver-se, rapaz! Dize!
- Gosto, sim senhor - fez o caixeiro
timidamente.
- Pois deves ir para o Rio - acudiu Mendonça com
pressa - estudar e... quem sabe lá?
- Se eu arranjasse um emprego na Corte...
Mendonça pensou um pouco e disse:
- Na casa, não te serve. Há muito serviço e tu
não te acostumas... És aprendiz de poeta, tens inclinação para essas coisas de
versos e te aborrecias. O que te serve, era trabalhar numa farmácia. Fala a teu
pai que eu te arranjo a coisa. Escrevo-te logo que chegar ao Rio.
Mendonça cumpriu a palavra, e o pai consentiu
que ele viesse para o Rio. Marramaque foi trabalhar numa farmácia; e, à noite,
ia completando a sua instrução, conforme podia, nas instituições filantrópicas
de instrução que existiam no tempo.
Logo, tratou de fazer versos; e, certa vez, foi
surpreendido por um dos habitués da farmácia, compondo uma poesia. As
farmácias, naquele tempo, eram o lugar de encontro de pessoas graves e sisudas
da vizinhança, que, à tarde, após o jantar, iam a elas espairecer e conversar.
Quem surpreendeu o jovem Marramaque, fazendo versos, foi o Senhor José Brito
Condeixa, segundo oficial da Secretaria de Estrangeiros, poeta também, mas, de
uns tempos para cá, somente festivo e comemorativo. Além de publicar, nos dias
de gala, sonetos e outras espécies de poesias alusivas à festa, não se esquecia
nunca de comemorar as datas domésticas da família imperial, em versos de um
lavor chinês. Esperava o hábito da Rosa; mas, só veio a ter no fim do Império,
quando retirou da Imprensa Nacional o terceiro volume da Sinópsis da Legislação
Nacional, na parte que se refere ao Ministério de Estrangeiros.
Lendo os versos do adolescente, Brito Condeixa
gostou e jurou que havia de proteger o caixeirozinho. Falou ao patrão, e ele
foi se empregar numa papelaria-livraria, na Rua da Quitanda. Freqüentada por
poetas e literatos que ensaiavam os primeiros passos, nos últimos quinze anos
do Império, com eles se relacionou e sempre era escolhido para secretário,
gerente, tesoureiro, de suas efêmeras publicações. Deixou o emprego da
papelaria, sem zanga; e atirou-se às refregas e às decepções da pequena
imprensa, com ardor e entusiasmo, sangue republicano e abolicionista, sobretudo
abolicionista.
Esse jornalismo contrário e efêmero pouco ou
quase nada lhe dava para a sua manutenção. Vivia uma vida de privações e
necessidades prementes. Sem deixar os companheiros poetas, escritores, parodistas,
artistas, ele se improvisou guarda-livros ambulante, fazendo escritas aqui e
ali, com o que ganhava para ter casa, comida, roupa e até, às vezes, socorrer
os camaradas. Manteve-se sempre absolutamente solteiro.
Guardava, da sua vida de acólito da boêmia
literária, recordações muito vivas, que gostava de contar, ensopando-as de
comovida saudade. Anedotas deste, casos com aquele, expedientes daquele outro,
ele narrava com chiste e firmeza de lembrança; mas, ao que parece, a figura de
seu tempo que mais o impressionou foi a de um pequeno poeta, que nunca teve seu
quarto de hora de celebridade e hoje está totalmente esquecido. A respeito
dele, Marramaque se referia com o sentimento profundo de quem se lembra de um
irmão muito amado:
- Ah! O Aquiles! Que alma! Que poeta! O senhor -
dirigindo ao interlocutor ocasional - não o conheceu?
- Não; não me recordo.
- Nem de nome? Ele deixou obras.
O outro com quem conversava, por delicadeza,
respondia:
- De nome, pois não, pois não!
- Que alma era esse Aquiles Varejão! Morreu há
pouco tempo, em 94 ou 95; e, se não me falha a memória, na Santa Casa. Morreu
na maior miséria; entretanto, tudo o que ganhava - ele era tipógrafo - estava
sempre disposto a distribuir com os amigos. Não pude ir vê-lo... Tinha tido o
primeiro ataque e estava em tratamento. Lembro-me, porém, do seu último soneto
que a Gazeta publicou. Que lindeza! Aquilo era um poeta que não forçava, nem
tinha compasso e régua. Ouça só!
E, com uma voz difícil, devido à semiparalisia
da parte esquerda da boca, esbugalhando os olhos, devido ao esforço para
pronunciar bem as palavras, recitava:
Prostrado nesta enxerga, sinto a vida
Ir, pouco e pouco, procurando o nada;
Pra mim não há mais sol de madrugada,
Mas sim tremor da luz amortecida.
Prazeres onde estais? Longa avenida
De amores, que trilhei nesta jornada?
Tudo acabou. É justa esta pousada,
Antes que dobre o sino da partida.
Feliz quem tem família! Tem carinho
De mãe, de esposa, e, em derredor do leito,
Não sofre o horror de achar-se tão sozinho.
Porém ao meu destino estou sujeito;
Devo, batendo as asas, sem ter ninho,
Buscar, quem sabe? um mundo mais perfeito?
O Marramaque, quase sempre, acabava de recitar
os versos do amigo com os olhos úmidos; e o ouvinte, não só pela dor
demonstrada pelo declamador, mas também pelo tom elegíaco do soneto, comovia-se
também e, antes de qualquer pergunta, comentava:
- É bonito! É mesmo lindo.
Marramaque, poeta raté, tinha uma grande
virtude, como tal: não denegrir os companheiros que subiram nem os que ganharam
celebridade. A todos gabava, sem que, por isso, não lhes notasse as falhas de
caráter.
Tendo vivido assim, em vários e diferentes
meios, ganhando experiência e conhecimento dos homens e das coisas da vida,
estava apto para julgar bem quem era Cassi Jones. Demais, devido à sua
convivência com literatos, poetas e escritores, adquirira o hábito tirânico de
ler diariamente todos os jornais que apanhava na repartição, e não fazia lá
outra coisa, devido a seu estado de saúde.
De quando em quando, ele encontrava notícias
mais que escabrosas, às vezes sangrentas mesmo, em que estava envolvido o nome
do famigerado violeiro. De umas delas, ele se lembrava perfeitamente, porque
lhe havia causado, na sua alma retardada de idealista e sonhador, de poeta que
quis ser amoroso e cavalheiresco, a maior revolta e um movimento de nojo
irreprimível. Joaquim dos Anjos não estava a par dela, pois não tinha hábito de
ler jornais e pouco tagarelava com as pessoas de suas bandas suburbanas.
Marramaque apoiou-se em contador e por alto.
Num dos subúrbios, na proximidade da casa de
Cassi, veio a residir um casal. A mulher era moça, fruída de carnes, alta,
louçã, grandes olhos negros, um tipo do Sul, ao que parece do Rio Grande. O marido,
que era oficial de Marinha, maquinista, era amorenado, tirando a mulato, baixo,
sempre triste, curvado e pensativo. Apesar da diferença de gênios, que se
percebia, e de idade, que estava à mostra, pareciam viver bem. Quase sempre
saíam à tarde, iam a festas, a teatros; aos domingos, procuravam visitar os
arrabaldes pitorescos e voltavam à noite. Tomavam comida fora e só tinham uma
rapariguita preta, de uns dezesseis anos, para os serviços leves da casa. Não
se sabe como, Cassi conseguiu conhecer a gaúcha e seduzi-la. Mal o marido saía,
ele se metia em casa da moça com violão e tudo. A vizinhança murmurava contra
aquela pouca-vergonha. Fosse de que fonte fosse, o marido veio a saber e um
dia, de revólver em punho, furioso, fora de si, louco, totalmente louco,
penetrava na casa e alvejou a mulher com dois tiros de revólver, de cujos
ferimentos veio a morrer horas depois. Após ter alvejado mortalmente a mulher,
correu em perseguição de Cassi, que, descalço, de calças e em mangas de camisa,
saltava cercas e muros, para se pôr fora do alcance do marido indignado.
Entregando-se à prisão, o oficial maquinista
contou toda a sua desdita e o causador dela. O delegado mandou procurar Cassi e
conseguiu pilhá-lo à noite. Os agentes deram uma batida nos matos, e o galã
fugitivo foi preso e recolhido à enxovia.
Por ocasião dessa prisão foi que ele veio a
conhecer Lafões. Tinha este sido detido e recolhido ao xadrez, por ter feito um
distúrbio, num botequim, onde tomara uma carraspana, em comemoração ao ter
acertado uma centena no bicho.
Quando Cassi foi recolhido, já Lafões estava no
xadrez, havia quatro horas.
Cassi, que fugira do revólver do oficial, sem
paletó e sem colete, em cujas algibeiras estava o seu dinheiro, não pudera
comprar cigarros; mas Lafões os tinha. O profissional da sedução pediu-lhe um,
que lhe foi dado. Disse, então, para Lafões:
- Vou te soltar, meu velho. Tu és uma bela alma.
- Por que vosmecê está preso, meu caro senhor?
Cassi respondeu com muita calma e indiferença,
como se tratasse de um acontecimento vulgar:
- Por nada. Coisas de mulheres, meu velho. É o
meu fraco.
Pela grade do xadrez, dirigiu-se a um soldado, a
quem conhecia, e falou-lhe baixo qualquer coisa. Em breve, foi a praça
substituída por outra. Vendo isso Cassi, disse para o velho Lafões:
- Estás aqui, estás na rua. Mandei o soldado
falar ao meu chefe político: e ele vai interessar-se para seres solto.
- E vosmecê?
- Não te importes comigo. Tenho que depor...
Na verdade, Lafões foi solto; não houve, porém,
qualquer intervenção do chefe político de Cassi. Libertou-o o próprio
comissário que o prendera e o conhecia como homem morigerado e qualificado.
Entretanto, o guarda das obras públicas sempre supôs
que a sua libertação tivesse sido obra de Cassi, por isso lhe era grato e o
defendia com todo o ardor.
Lafões era um homem simplório, que só tinha
agudeza de sentidos para o dinheiro que vencia. Vivendo sempre em círculos
limitados, habituado a ver o valor dos homens nas roupas e no parentesco, ele
não podia conceber que torvo indivíduo era o tal Cassi; que alma suja e má era
a dele, para se interessar generosamente por alguém.
Muito diferente do guarda era Marramaque, cujo
âmbito de vida sempre fora mais amplo e mais variado. Abraçava um maior
horizonte de existência humana...
Quando aquele lembrou que se convidasse o
celebrizado violeiro, o contínuo viu logo os perigos que a presença do
profissional da desonra das famílias podia trazer à paz e ao sossego que
reinavam na casa de Joaquim dos Anjos.
Além de compadre, Marramaque era profundamente
amigo do carteiro, que o auxiliava nos seus transes de toda a ordem: um pouco,
originados pelos hábitos boêmios que, de todo, não perdera; um pouco, pela exigüidade
de seus vencimentos, com os quais sustentava uma irmã viúva e dois filhos dela,
ainda menores, com os quais morava, nas proximidades de Joaquim.
Na sua vida, tão agitada e tão variada, ele
sempre observou a atmosfera de corrupção que cerca as raparigas do nascimento e
da cor de sua afilhada; e também o mau conceito em que se têm as suas virtudes
de mulher. A priori, estão condenadas; e tudo e todos pareciam condenar os seus
esforços e os dos seus para elevar a sua condição moral e social.
Se assim acontecia com as honestas, como não
pensaria sobre o mesmo tema um malandro, um valdevinos, um inconsciente, um
vagabundo cínico, como ele sabia ser o tal Cassi?
Durante o jantar, ainda se falou muito a
respeito, mas com as reservas que a assistência de uma moça pedia fossem
tomadas.
- Vamos experimentar, meu caro Marramaque.
"Ele" sabe com quem se mete...
- Eu cá, por mim, nada tenho a dizer dele.
Sempre me tratou muito bem e sou-lhe grato.
- É que você, Lafões, não lê os jornais.
- Qual jornais! Qual nada! Tudo que lá vem neles
é mentira.
Clara ouvia esse diálogo com muita atenção e
forte curiosidade. Num dado momento, não se conteve e perguntou:
- O que é que esse Cassi faz, padrinho?
A mãe acudiu ríspida, dizendo:
- Não é de tua conta, bisbilhoteira!
A única filha do carteiro, Clara, fora criada
com o recato e os mimos que, na sua condição, talvez lhe fossem prejudiciais.
Puxava a ambos os pais. O carteiro era pardo-claro, mas com cabelo ruim, como
se diz; a mulher, porém, apesar de mais escura, tinha o cabelo liso.
Na tez, a filha tirava ao pai; e no cabelo, à
mãe.
Joaquim era alto, bem alto, acima da média,
ombros quadrados e rija musculatura; a
mãe, não sendo muito baixa, escapava à média da altura de nossas mulheres em
geral. Tinha ela uma fisionomia medida, de traços breves, mas regular; o que
não acontecia com o marido, que era possuidor de um grosso nariz, quase chato,
e malares salientes. A filha, a Clara, havia ficado em tudo entre os dois;
média deles, dos seus pais, era bem exatamente a filha de ambos.
Habituada às musicatas do pai e dos amigos,
crescera cheia de vapores de modinhas e enfumaçara a sua pequena alma de
rapariga pobre e de cor com os dengues e o simplório sentimentalismo amoroso
dos descantes e cantarolas populares.
Raramente saía, a não ser para ir bem perto, à
casa de Dona Margarida, aprender a bordar e a costurar, ou com esta ir ao
cinema e a compras de fazendas e calçado. A casa dessa senhora ficava a quatro
passos de distância da do carteiro. Apesar de ser uso, nos subúrbios, irem as
senhoras e moças às vendas fazer compras, Dona Engrácia, sua mãe, nunca
consentiu que ela o fizesse, embora de sua casa se avistasse tudo o que se
passava, no armazém do "Seu" Nascimento, fornecedor da família.
Essa clausura mais alanceava sua alma para
sonhos vagos, cuja expansão ela encontrava nas modinhas e em certas poesias
populares.
Com esse estado de espírito, o seu anseio era
que o pai consentisse na visita do famoso violeiro, cuja má fama ela não
conhecia nem suspeitava, devido ao cerco desvelado que a mãe lhe punha à vida;
entretanto, supunha que ele tirava do violão sons mágicos e cantava coisas
celestiais.
Joaquim dos Anjos, afinal, tendo o assentimento
da mulher e também curioso de conhecer as habilidades de Cassi, no violão e na
trova popular, consentiu que Lafões o trouxesse em sua casa, no dia do
aniversário de Clara. Viria aquela vez e não viria mais...
Lafões acolheu a resposta com viva alegria e
tratou de entender-se com o tocador mal-afamado. Fez. Quando os seus
companheiros de vagabundagem souberam, comentaram cinicamente o convite:
- Conheço bem esse carteiro. Ele não trabalha
aqui; mas na cidade, na zona dos bancos. Deve ter dinheiro. Tem um pancadão de
filha, meu Deus! Que torrão de açúcar!
- Então estás feito, hein, Cassi? - fez
alvarmente Zezé Mateus, àquela tendenciosa observação de Ataliba do Timbó.
Cassi, o mestre suburbano do violão, o dedo da
modinha, fingiu-se aborrecido e retrucou com fingido desgosto:
- Vocês mesmo é que me desacreditam. Dizem
coisas que não fiz e não faço, e todo mundo me enche de desprezo, senão de
ódio. Não sou essas coisas que dizem de mim.
Timbó teve vontade de rir à vontade, mas, embora
mais forte do que Cassi, tinha este sobre ele um ascendente moral que não se
explicava. Zezé Mateus, porém, com o seu peculiar meio-riso de imbecil, fez:
- Estou brincando, meu "nego". Sou teu
amigo - tu sabes.
Eles conversavam sempre de pé, parados pelas
esquinas. Raramente, sentavam-se a uma mesa de café. Aquela intempestiva
observação do Ataliba, seguida do comentário de Zezé Mateus, arrefecera a
palestra da sociedade. Despediram-se, e cada um foi para o seu lado.
Cassi, que fingira aborrecer-se com a
tendenciosa notícia de Timbó e o comentário de Zezé, ficou, ao contrário, muito
contente com ela. Tinha resolvido não ir à tal festa; mas, pelo que informara
Ataliba, talvez não tivesse nada a perder. Experimentaria.
Mordeu os lábios e seguiu para o clube, com a
consciência leve e o coração alegre...
IV
Veio o dia da festa; a pequena casa regurgitava;
e - coisa curiosa - havia mais convidados de idade meã que moças e rapazes.
Isto se explicava pela estreiteza de relações de Clara e dos seus pais, devido
à vida que levavam. Entre as moças, havia duas ou três colegas de Clara, a
filha de Lafões, uma sobrinha solteirona, Hermengarda, de Dona Engrácia, e
poucas mais. Entre os rapazes, havia dois jovens colegas de Joaquim, Sabino e
Honório; um irmão de Hermengarda e um afilhado de Lafões, que era vigia do cais
do porto. Em compensação, as senhoras, mães de família, eram inúmeras.
Destacava-se muito Dona Margarida Weber Pestana, pelo seu ar varonil, tendo
sempre ao lado o filho único, de quatorze anos, fardado com uma fardeta de
colegial. Tinha, essa senhora, um temperamento de heroína doméstica. Viera
muito cedo para o Brasil, com o pai, que era alemão; ela, porém, havia nascido
em Riga, russa portanto, como sua mãe o era. Antes dos dezesseis anos, ficara
órfã de mãe. Seu pai emigrara para o Brasil, contratado a trabalhar no
acabamento das obras da Candelária. Era estucador, marmorista, um pouco
escultor; enfim, um operário fino, para essas obras especiais de revestimento e
decoração interna de edifícios suntuosos.
Bem cedo, mostrou ela inclinação por um
tipógrafo que comia na "pensão" que havia montado, na Rua da
Alfândega, e dirigia ativamente. Casaram-se, e ele morreu dois anos depois,
após o casamento, de tuberculose pulmonar, deixando-lhe o filho, o Ezequiel,
que não a largava. Ano e meio depois, morreu-lhe o pai, de febre amarela.
Continuou com a "pensão"; mas bem cedo vendeu-a e comprou uma casita
nos subúrbios, aquela em que morava, quase junto de Joaquim. Costurava para
fora, bordava, criava galinhas, patos e perus, e mantinha-se serenamente honesta.
O Senhor Ataliba do Timbó deu em certa ocasião em persegui-la com ditinhos de
amor chulo. Certo dia, ela não teve dúvidas: meteu-lhe o guarda-chuva com
vigor. À noite, no intuito de defender as suas galinhas da sanha dos ladrões,
de quando em quando, abria um postigo, que abrira na janela da cozinha, e fazia
fogo de revólver. Era respeitada pela sua coragem, pela sua bondade e pelo
rigor de sua viuvez. O Ezequiel, seu filho, puxara muito ao pai, Florêncio
Pestana, que era mulato, mas tinha os olhos glaucos, translúcidos, de sua mãe
meio eslava, meio alemã, olhos tão estranhos - olhos tão estranhos a nós e,
sobretudo, ao sangue dominante no pequeno.
Afora Dona Margarida Pestana, notava-se Dona
Laurentina Jácome, uma velha, sempre metida com rezas e padres, pensionista do
ex-Imperador e empregada numa capelinha da vizinhança, de cuja limpeza era
encarregada, inclusive da lavagem das toalhas dos altares. Não podia conversar
outra coisa que não fossem acontecimentos eclesiásticos e, quase sempre, os de sua
igreja:
- A senhora não sabe, Dona Engrácia, de uma
coisa?
- O que é?
- O Padre Santos, este mês, disse mais de vinte
missas e só recebeu cinco. Pobre Padre Santos! É mesmo um santo!
E contraía a fisionomia enrugada e, erguendo-a um
pouco, apertava as mãos ao jeito de quem reza.
Além desta, havia uma digna de nota: era Dona
Vicência. Morava na vizinhança também e vivia de deitar cartas e cortar
"coisas-feitas". O seu procedimento era inatacável e exercia a sua
profissão de cartomante com toda a seriedade e convicção.
Havia outras sem nada de notável, como entre os
cavalheiros só havia um que se destacava. Convém não esquecer que Lafões e
Marramaque lá estavam a postos. O cavalheiro digno de nota era um preto baixo,
um tanto corcunda, com o ombro direito levantado, uma enorme cabeça, uma testa
proeminente e abaulada, a face estreitante até acabar num queixo formando,
queixo e face, um V monstruoso, na parte anterior da cabeça; e, na posterior,
no occipital desmedido, acaba o seu perfil monstruoso. Chamava-se Praxedes
Maria dos Santos; mas gostava de ser tratado por doutor Praxedes.
A monstruosidade de sua cabeça o pusera a
perder. Por tê-la assim, julgou-se uma inteligência, um grande advogado, e pôs
a freqüentar cartórios, servindo de testemunha, quando era preciso, indo
comprar estampilhas, etc., etc.
Com o tempo, tomou algumas luzes e atirou-se a
tratar de papéis de casamento e
organizou uma biblioteca particular de manuais jurídicos, de índices de
legislação, etc., etc. Vestia-se sempre de fraque, botinas de verniz ou
gaspeadas, e não dispensava a pasta indicadora de homens de leis. Quando foi
moda ser de rolo, ele a usou assim; quando veio a moda de ser em saco, como a
trazem agora os advogados, ele comprou uma luxuosa de marroquim com fechos de
prata.
Não falava senão em leis e decretos:
"porque - dizia ele - a Lei 1857, de 14 de outubro de 1879, diz que a
mulher casada, no regime do casamento, não pode dispor dos seus bens, ter
dinheiro em bancos, na Caixa Econômica; entretanto, o Decreto 4572, de 24 de
julho de 1899, determina..."
Afora o seu amor a esse embrulho legislativo,
gostava de versos; mas não de modinha.
Era este o cavalheiro mais notável que havia
vindo ao baile de anos de Clara. É que até àquele momento, com grande desgosto
para as moças, o trovador Cassi não havia ainda aparecido.
Clara não ocultava o seu desapontamento; e uma
de suas colegas lhe dizia em confidência:
- Clara, toma cuidado. Este homem não presta.
A moça não respondia, encaminhava-se para a sala
de jantar, a fim de disfarçar a emoção, simulando ir beber água.
Clara estava bem vestidinha. Era inteiramente de
crepom o seu vestido, com guarnição de renda de indústria caseira, mas bonita e
bem trabalhada; o pescoço saía-lhe nu e a gola do casaco terminava numa pala
debruada de rendas. Calçava sapatos de verniz e meias. Nas orelhas tinha
grandes africanas e penteara-se de bandós, rematando o penteado para trás, na
altura do pescoço, um coque, fixado por um grande pente de tartaruga ou coisa
parecida.
Quando ela foi beber água, seguiu-lhe a sua
amiga Etelvina, uma crioulinha espevitada, sua antiga colega do colégio.
Vestia-se esta com um mau gosto de aborrecer. Todo o vestido era azul-celeste,
com rendas pretas; os sapatos amarelos e as meias cor de abóbora. Ao redor da
cabeça, dividindo a testa ao meio, uma fita vermelha, de um vermelho muito
berrante. Os gregos chamavam este adorno feminino de stephané; e, ao que
parece, as portadoras não eram lá tidas como virtuosas.
Essa Etelvina era a primeira dançarina do baile,
não tinha até ali perdido uma contradança.
A orquestra era composta de flauta, cavaquinho e
violão - um "terno", como denominam os seresteiros.
O baile ia adiantado, quando a filha de Lafões
veio correndo do portão do mimoseado jardim que enfrentava a casa, anunciando
alegre:
- Ê vem aí, "Seu" Cassi.
Entrou. Houve um estremecimento que percorreu os
convivas, como um choque elétrico. Todas as moças, das mais diferentes cores,
que, ali, a pobreza e a humildade de condição esbatiam e harmonizavam, logo o
admiraram na sua insignificância geral, tão poderosa é a fascinação da
perversidade nas cabeças femininas. Nem César Bórgia, entrando mascarado, num
baile à fantasia, dado por seu pai, Alexandre VI, no Vaticano, causaria tanta
emoção. Se não disseram: "É César! É César!" - codilharam: "É
ele! É ele!"
Os rapazes, porém, não ficaram contentes,
pressentindo essa satisfação das damas; e, entre eles, puseram-se a contar a
biografia escabrosa do modinheiro.
Apresentado, por Lafões, aos donos da casa, e à
filha, ninguém lhe notou o olhar guloso de grosseiro sibarita sexual que deitou
para os seios empinados de Clara.
O baile continuou animado; Cassi, porém, não
dançava e foi reforçar o terno de cavaquinho, flauta e violão, com o seu
instrumento.
Dona Margarida, com o seu porte severo, olhava
as damas, sentada ao sofá austríaco, tendo ao lado o filho. A polca era a dança
preferida, e todos quase a dançavam com requebros próprios de samba. Os
convidados que não dançavam se haviam espalhado por várias partes da casa.
Joaquim, Lafões e Marramaque ouviam o doutor Praxedes explicar o que era um
habeas corpus preventivo.
- Exemplifico - dizia o doutor Praxedes,
erguendo a mão direita catedraticamente, com o indicador apontado para o teto.
- É uma medida perfeitamente jurídica de profilática, porque...
Nisto acode o "doutor" Meneses, um
velho hidrópico, com a mania de saber todas as ciências, vivendo na maior
miséria, apesar de exercer clandestinamente a profissão de dentista.
- Doutor Praxedes - acudia o doutor Meneses -
não julgo a comparação própria. Cada ciência tem seu campo próprio...
A discussão tomava vulto e Joaquim se levantou.
Sempre que ele fazia isto, Meneses seguia com os olhos o carteiro, a ver se ele
ia até a cozinha mandar pôr a ceia. O sábio dentista viera à última hora, na
esperança que a houvesse. Não lograra dinheiro para tomar um caldo. Joaquim,
porém, aborrecido com a discussão, fora simplesmente até à sala de visitas
convidar:
- Quem quiser tomar alguma coisa, comer
biscoitos, é só vir cá dentro. Não façam cerimônia.
Toda a vez que o anfitrião dizia isso, Meneses
comia duas empadas e quatro sandwiches e bebia uma boa "talagada" de
parati.
O dono da casa convidava Cassi especialmente; mas
este não bebia, não gostava. Não era esse o seu prazer...
De uma feita, indo à sala, Joaquim convidou-o:
- Por que não canta, "Seu" Cassi?
Até ali, não se falara nisso, e, repinicando as
cordas do violão, não deixava o famoso mestre violeiro de devorar
sorrateiramente com o olhar lascivo os bamboleios de quadris de Clara, quando
dançava.
Ninguém se atrevia a convidá-lo; todos esperavam
que o dono da casa o fizesse. Feito o convite, ele respondeu cheio de uma
cerimônia afetada:
- Estou sem voz: esfalfei-me muito ontem, no
baile do doutor Raposo e...
Vendo que seu pai o havia convidado, Clara
animou-se:
- Por que não canta, "Seu" Cassi?
Dizem que o senhor canta tão bem...
Esse - "tão bem" - foi alongado
maciamente. Cassi concertou, com apurada pelintragem e com ambas as mãos, a
pastinha oleosa; limpou, em seguida, os dedos no lenço e respondeu dengoso:
- Qual, minha senhora! São bondades dos
camaradas...
Clara insistiu:
- Cante, "Seu" Cassi! Vá!
Ele, então, torcendo a cabeça para o lado
esquerdo, cuja mão espalmada abria para o alto, e fingindo constrangimento,
respondeu:
- Já que a senhora manda, vou cantar.
Marramaque, que tinha ouvido tudo, ficou
espantado com o desembaraço da afilhada. Diabo! fez ele de si para si.
O violeiro, com todo o dengue, agarrou o violão,
fez estalar as cordas e avisou:
-- Vou cantar uma modinha velha, mas muito
gentil e literária -- "Na Roça".
Muitos circunstantes ficaram desapontados,
porque já a conheciam; mas outros gostavam muito da modinha e aprovaram a
escolha.
Cassi começou:
“Mostraram-me um dia
Na roça dançando
Mestiça formosa
De olhar azougado...”
Isto tudo era dito quase aos poucos, sem
modulação alguma, enquanto o violão repinicava as mesmas notas, numa indigência
musical, numa monotonia de sons, que dava sono. Quando chegava ao estribilho:
“Sorria a mulata
Por quem o feitor
Diziam que andava
Perdido de amor.”
Por aí ele empregava o seu tic invencível de tocador
de violão e cantor de modinha. Cantando, revirava os olhos e como que os
deixava morrer. O Cardeal de Retz diz, nas suas famosas Memórias, que Mme. de
Montayon, ou uma outra qualquer duquesa, ficava mais bela quando os seus olhos
morriam. Cassi talvez ficasse mais, se ele tivesse alguma beleza; entretanto,
esse seu tic impressionava as damas.
Clara, que sempre a modinha a transfigurava,
levando-a a regiões de perpétua felicidade, de amor, de satisfação, de alegria,
a ponto de quase ela suspender, quando as ouvia, a vida de relação, ficar num
êxtase místico, absorvida totalmente nas palavras sonoras da trova,
impressionou-se profundamente com aquele jogo de olhar, com que Cassi comentava
os versos da modinha. Ele sofria, por força, senão não punha tanta expressão de
mágoa, quando cantava - pensava ela.
Tão embevecida estava, tão longe pairava o seu
pensamento que, quando Cassi acabou, se esqueceu de aplaudir o troveiro que,
para o seu rudimentar gosto, lhe tinha proporcionado tão forte prazer artístico.
Comentava-se ainda a execução do maestro Cassi;
e ele ao lado percebia os gabos e críticas. Por esse tempo, como uma aparição
em alçapão de mágica, surgiu repentinamente, no centro da sala, o
"doutor" Praxedes, célebre advogado nos auditórios suburbanos.
Iniciou:
- Minhas senhoras e meus senhores. Peço-lhes a
devida vênia, para recitar uma mimosa poesia de um nosso patrício. É uma
obra-prima de chiquismo e de moralidade. O seu autor é o Major Urbano Duarte,
que morreu, se não me falha a memória, general-de-brigada. Vou recitá-la, se me
permitem. Chama-se "A Lágrima".
Dizendo isto, o seu todo grotesco ainda mais
grotesco ficava, com a gesticulação desordenada dos braços, que rodavam, duros
e hirtos, em torno dos ombros, de cima para baixo. Pareciam asas de um antigo
moinho de vento. Começou gritando a primeira estrofe e já se babando pelos
cantos dos seus lábios violáceos:
“Cismava à beira-mar, a linda Marieta,
Seguindo tristemente o sulco do vapor,
O qual, fugindo além, sumiu-se no horizonte,
Levando a longe terra o seu primeiro
amor.”
O seu gritar, o seu babujar, o seu gesticular
foram crescendo. Quando chegou ao primeiro terceto do soneto, quase não tinha
mais voz. Da assistência, apossara-se uma louca vontade de rir; muitos se
contiveram; outros, porém, se retiraram para gargalhar longe. O doutor Praxedes
nada via e continuava impertérrito; afinal acabou:
“Depois, quando o luar banhando a natureza
Em pálidos clarões de luz misteriosa,
Eu vi no arrebentar do mar embravecido
A lágrima a boiar na pétala de rosa.”
Ao terminar, recebeu palmas, e, sentando-se,
cansado de tão estúrdio esforço muscular, ainda disse:
- Essa lágrima é a da Marieta de que "o
verso" fala no começo. É preciso que os senhores e as senhoras não se
esqueçam desse pormenor.
Marramaque, que até ali, sem ser notado, seguira
a insistência com que o trovador Cassi olhava Clara, resolveu pregar-lhe uma
peça. Apoiado na sua bengala amiga, com a perna esquerda encolhida, devido aos
ataques, e o respectivo braço fixado em ângulo reto, conseqüência também dos
ataques - encaminhou-se para o centro da sala, capengando, a fim de recitar,
por sua vez. A parte esquerda da boca era defeituosa também, e isso
provocava-lhe muito esforço para pronunciar bem as palavras.
Não atendeu a nenhuma consideração e pôs-se em
pé para recitar.
Assim é que ia fazer; deu o título da poesia -
"Persistência" - e começou naturalmente, como quem já soubera recitar
com relativa perfeição, quando estava são. Recitando, olhava sempre para Cassi,
que, calado, numa reserva de moço bem-comportado, ficara de pé, encostado ao
vão da janela de frente.
Marramaque atacou os versos, saltitando na sala:
“Se às vezes contigo esbarro
e grito, esperneio e berro,
que me traz de há muito zarro
a paixão que aqui encerro,
Tu foges. E a ti me agarro,
cismando: (e nisto não erro)
Se eu tenho uma alma de barro,
tu mostras que a tens de ferro.
E se nada mais espirro
é porque, então, se não corro,
a coisa já cheira a esturro.
Que queres? Eu próprio embirro
com este amor por que morro,
mas é que sou muito burro.”
O final causou uma franca hilaridade na
assistência, e até Clara riu- se a perder; mas ninguém perguntou quem era o
autor; e, se lhe perguntassem, Marramaque não lhe sabia o nome. Era a poesia
sem assinatura, num jornal antigo, gostara dela e a decorara.
O povo é avesso a guardar os nomes dos autores,
mesmo os dos romances, folhetins que custam dias e dias de leitura. A obra é
tudo, para o pequeno povo; o autor, nada.
Cassi, que, logo, antipatizara com Marramaque,
percebeu que a coisa era com ele. Perceberia outro mais burro do que o gabado
artista da modinha, tanto era a teimosia com que o velho aleijado o olhava.
Cassi pensou, de si para si: "Este pobre-diabo me paga.”
O que espantava, na ação de Marramaque, era a
sua coragem. Ele, semi-aleijado, velho, pobre, lançava um solene desafio àquele
valdevinos forte, são, habituado a rolos e rixas.
Cassi não se demorou mais por muito tempo. Pediu
o chapéu, despediu-se dos donos da casa e da filha destes, fez um cumprimento
em roda e, quando deu com o rosto de Marramaque, com os olhos estranhamente
fixos nele, a boca semi-aberta, o braço esquerdo fixado em ângulo reto, pela
moléstia, arrastou-se. Parecia uma aparição... Deixara de ser o contínuo
aleijado que ele antes tinha visto; era outra coisa, mais do que o simples
Marramaque, que o espantava e o fazia tremer.
Com a atitude desassombrada daquele velho
aleijado em face dele e que havia adivinhado, não sabia ele como, os seus maus
propósitos em relação à Clara, Cassi sentiu, apesar do seu quase congênito
embotamento moral, que havia na vida, ou, por outra, nas relações entre os
homens, um guia silencioso e secreto, que pesava os nossos atos e pedia, para
dar- lhes apoio e encaminhar-nos para uma paz interior e um contentamento
conosco mesmos, o emprego, em todas as nossas ações, do Justo, do Leal, do
Verdadeiro e do Generoso; e esse guia - ele via agora com o caso de
Marramaque - dava forças aos fracos,
coragem aos tímidos e uma seráfica e íntima satisfação, quando cumpríamos o
nosso dever com honra e dignidade. Esse guia era a Consciência.
Confusamente, ele pensou isso; mas, ao passar o
terror, o pavor, que lhe causara o olhar fixo, vitrificado, sobrenatural do velho
Marramaque; olhar que o fizera um instante voltar-se para dentro de si mesmo e
examinar-se - tornou com pressa ao que era e, fazendo um desdenhoso - ora! -,
repetiu de si para si a ameaça que já fizera: "Aquele boneco de engonço me
paga.”
Depois da saída de Cassi, ainda se bailou até os
primeiros albores da aurora. Meneses, que tinha cochilado bastante, pôde,
afinal, pela madrugada, comer um pouco de galinha assada e porco, que havia
sobrado do jantar; mas não encetou discussão mais alguma com o doutor Praxedes;
mesmo porque este já se havia despedido, por ter de comparecer muito cedo à
audiência de um pretor, a fim de inquirir testemunhas num feito importante em
que funcionava como advogado.
Quando todos se foram e Clara recolheu-se a seu
quarto, que dava para a sala de jantar, Joaquim e a mulher ficaram nela,
comendo ainda alguma coisa que sobrara. Foi então que Engrácia disse para o
marido:
- Tudo foi muito bem. Todos se portaram
decentemente, com respeito; mas uma coisa não quero mais.
- O que é?
- É que esse Cassi venha mais aqui. Dona
Margarida me disse que ele é, é um devasso. Você não vê como ele canta
indecentemente, revirando os olhos... Não o quero mais aqui; se ele vier...
- Não é preciso você se zangar, Engrácia; não
gostei também dele e não porá mais os
pés na minha casa.
Clara, que, deitada, no quarto, havia ouvido
toda a conversa, pôs- se, em silêncio, a chorar.
V
Quem conhecesse intimamente Engrácia, havia de
ficar espantado com a atitude decisiva que tomou em relação à visita de Cassi.
O seu temperamento era completamente inerte, passivo. Muito boa, muito honesta,
ativa no desempenho dos trabalhos domésticos; entretanto, era incapaz de tomar
uma iniciativa em qualquer emergência. Entregava tudo ao marido, que, a bem
dizer, era quem dirigia a casa. Rol de compras a fazer na venda do
"Seu" Nascimento, diariamente, e também o de legumes e verduras, quem
os organizava era o marido, especificando tudo por escrito e deixando o
dinheiro para o quitandeiro, todas as manhãs, quando ia para o trabalho. De
caminho, deixava a lista de gêneros no "Seu" Nascimento, onde pagava
tudo por mês.
Qualquer acontecimento inesperado que lhe
surgisse no lar, punha-a tonta e desvairada. Quando ainda tinham a velha preta
Babá, que a criara na casa dos seus protetores e antigos senhores de sua avó,
talvez um deles, pai dela, ficou Engrácia quase doida, ao ser a velha Babá
acometida de um ataque súbito. Não sabia o que fazer. Foi preciso que Dona
Margarida interviesse, mandasse chamar o médico, fizesse aviar a receita,
tomasse, enfim, as providências que o caso exigia. A velha morreu daí a pouco,
de embolia cerebral. Muito Engrácia sofreu com essa morte, pois, não tendo
conhecido sua mãe, que lhe morrera aos sete anos, fora Babá que a criara. Os
seus protetores tinham sido abastados; eram descendentes de um alferes de
milícias, que tinha terras, para as bandas de São Gonçalo, em Cubandê. Pouco
depois da Maioridade, com a morte do chefe da casa, filhos e filhas se
transportaram para a Corte, procurando aqueles empregaram-se nas repartições do
governo. Um dos irmãos já habitava a capital do Império e era cirurgião do
Exército, tendo chegado a cirurgião-mor, gozando de grande fama. Para a cidade
não trouxeram nenhum escravo. Venderam a maioria e os de estimação libertaram.
Com eles, só vieram os libertos que eram como da família. Pelo tempo do
nascimento de Engrácia, havia poucos deles e delas em casa. Só a Babá, sua mãe
e um preto ainda estavam sob o teto patriarcal dos Teles de Carvalho.
Engrácia
foi criada com mimo de filha,
como os outros rapazes e raparigas, filhos de antigos escravos, nascidos em
casa dos Teles.
Por isso, corria, de boca em boca, serem filhos
dos varões da casa. O cochicho não era destituído de fundamento, naquela
família, composta de irmãs e irmãos, ainda abastada, que se comprazia, tanto
uns como as outras, em tratar filialmente aquela espécie de ingênuos, que viam
a luz do dia, pela primeira vez, em sua casa. As senhoras, então, eram de uma
meiguice de verdadeiras mães.
Engrácia recebeu boa instrução, para a sua
condição e sexo; mas, logo que se casou - como em geral acontece com as nossas
moças -, tratou de esquecer o que tinha estudado. O seu consórcio com Joaquim,
ela o efetuara na idade de dezoito anos.
Fosse a educação mimosa que recebera, fosse uma
fatalidade de sua compleição individual, o certo é que, a não ser para os
serviços domésticos, Engrácia evitava todo o esforço de qualquer natureza.
Não saía quase. Era regra que só o fizesse duas
vezes por ano: no dia 15 de agosto, em que subia o outeiro da Glória, a fim de
deixar uma espórtula à Nossa Senhora de sua íntima devoção; e, no dia de Nossa
Senhora da Conceição, em que se confessava. Levava sempre a filha e não a
largava de a vigiar. Tinha um enorme temor que sua filha errasse, se
perdesse... A não ser com ela, Clara,
muito a contragosto da mãe, saía de casa para ir ao cinema, no Méier e Engenho
de Dentro, e outras vezes - poucas - para
fazer compras nas lojas de fazendas, de sapatos e outras congêneres, acreditadas
nos subúrbios.
Essa reclusão e, mais do que isso, a constante
vigilância com que sua mãe seguia os seus passos, longe de fazê-la fugir aos
perigos a que estava exposta a sua honestidade de donzela, já pela sua
condição, já pela sua cor, fustigava-lhe a curiosidade em descobrir a razão do
procedimento de sua mãe.
Clara via todas as moças saírem com seus pais,
com suas mães, com suas amigas, passearem e divertirem-se, por que seria então
que ela não o podia fazer?
A pergunta ficava sempre sem resposta, porque
não havia meio, naquele isolamento em que vivia, de tudo e de todos, de
encontrar a que cabia.
Engrácia, cujos cuidados maternos eram louváveis
e meritórios, era incapaz do que é verdadeiramente educação. Ela não sabia
apontar, comentar exemplos e fatos, que iluminassem a consciência da filha e
reforçassem-lhe o caráter, de forma que ela mesma pudesse resistir aos perigos
que corria.
A mulher de Joaquim dos Anjos tinha a
superstição dos processos mecânicos, daí o seu proceder monástico em relação à
Clara.
Enganava-se com a eficiência dela; porque,
reclusa, sem convivência, sem relações, a filha não podia adquirir uma pequena
experiência da vida e notícia das abjeções de que está cheia, como também a sua
pequenina alma de mulher, por demais comprimida, havia de se extravasar em
sonhos, em sonhos de amor, de um amor extra-real, com estranhas reações físicas
e psíquicas.
Acresce, ainda, que era geral em sua casa o
gosto de modinhas. Sua mãe gostava, seu pai e seu padrinho também. Quase sempre
havia sessões de modinhas e violão na sua residência. Esse gosto é contagioso e
encontrava, no estado sentimental e moral de Clara, terreno propício para
propagar-se. As modinhas falam muito de amor, algumas delas são lúbricas até; e
ela, aos poucos, foi organizando uma teoria do amor, com os descantes do pai e
de seus amigos. O amor tudo pode, para ele não há obstáculos de raça, de
fortuna, de condição; ele vence, com ou sem pretor, zomba da Igreja e da
Fortuna, e o estado amoroso é a maior delícia da nossa existência, que se deve
procurar gozá-lo e sofrê-lo, seja como for. O martírio até dá-lhe mais
requinte...
As emolientes modinhas e as suas adequadas
reações mentais ao áspero proceder da mãe tiraram-lhe muito da firmeza de
caráter e de vontade que podia ter, tornando-a uma alma amolecida, capaz de
render-se às lábias de um qualquer perverso, mais ou menos ousado, farsante e
ignorante, que tivesse a animá-lo o conceito que os bordelengos fazem das
raparigas de sua cor.
Cassi era dessa laia: entretanto, Clara, na sua
justificável ignorância do mecanismo da nossa vida social, julgava que seus
pais eram com ele injustos e grosseiros.
Depois do baile de seu aniversário, quinze ou
vinte dias depois, num domingo, Cassi bateu à porta da casa de seus pais.
Engrácia estava justamente arrumando a sala de visitas; recebeu-o com visível
desgosto e gritou para a cozinha, onde estava Clara:
- Chama teu pai, que está aí "Seu"
Cassi.
A moça ia aproximar-se para falar ao modinheiro,
quando a mãe lhe disse rapidamente:
- Vá chamar seu pai! Ande!
Joaquim não custou a vir; e, após os
cumprimentos, dirigiu-se ao rapaz:
- Que é que manda nesta casa, meu caro senhor?
- Nada. Fui visitar um amigo e, passando pela
sua porta, resolvi cumprimentá-lo.
- Muito obrigado. A partida de solo está
fervendo e eu não me posso demorar.
Cassi olhou um instante, com seu olhar mau, o
velho mulato; mas a nada se atreveu. Estiveram calados dois ou três minutos um
diante do outro, até que o famoso violeiro tomou o alvitre de despedir-se. Clara
veio saber da cena, pela narração que seu pai fez à sua mãe, e ficou
aborrecida, cheia de desgostos com eles e com a situação em que estava, imposta
por eles, para o seu sofrimento.
Avaliou em algum ressaibo de revolta o
procedimento dos pais. O que queriam fazer dela? Deixá-la ficar para
"tia" ou fazê-la freira? E ela precisava casar-se? Era evidente; sua
mãe e seu pai tinham, pela força das coisas, que morrer antes dela; e, então,
ela ficaria pelo mundo desamparada? Cochichavam que Cassi era isto e era
aquilo. Dona Margarida e o padrinho eram os que mais mal falavam dele: que era
um devasso, um malvado, um desencaminhador de donzelas e senhoras casadas. Como
ele poderia ser tanta coisa ruim, se freqüentava casas de doutores, de
coronéis, de políticos? Naturalmente havia nisso muita inveja dos méritos do
rapaz, em que ela não via senão delicadeza e modéstia e, também, os suspiros e
os dengues de violeiro consumado.
Uma dúvida lhe veio; ele era branco; e ela,
mulata. Mas que tinha isso? Havia tantos casos... Lembra-se de alguns... E ela
estava tão convencida de haver uma paixão sincera no valdevinos, que, ao fazer
esse inquérito, já recolhida, ofegava, suspirava, chorava; e os seus seios
duros quase estouravam de virgindade e ansiedade de amar.
De resto, era preciso libertar-se, passear,
conhecer a cidade, teatros, cinemas... Ela não conhecia nada disso. Até ir de
um pulo à venda do "Seu" Nascimento não tinha licença. Um dia, por
inadvertência, faltou sal para preparar o jantar; pois, nem mesmo assim, teve
licença de ir à venda, e sua mãe não foi, para não deixá-la só. Tiveram que
esperar uma hora, até que o caixeiro passasse. Entretanto, o armazém do
"Seu" Nascimento não era mal freqüentado, e todos que lá paravam eram
pessoas de certa consideração e sem pecha alguma. Esta última observação de
Clara era inteiramente verdadeira.
Mesmo a Rosalina, mais conhecida pelo apelido
pejorativo de Mme. Bacamarte, apesar da vida má e desgraçada que levava, no
armazém se portava com todo o rigor. Era verdadeiramente infeliz, essa
rapariga. Seduzida em tenra idade, a polícia obrigou o sedutor a casar-se com
ela. Nos três primeiros anos, as coisas correram mais ou menos naturalmente. Ao
fim deles, devido a reveses, o marido começou a embirrar com ela, a
atribuir-lhe toda a sua desgraça, a espancá-la, mas dando alguma coisa com que
ela se sustentasse e aos filhos. Já bebia, o marido dela; e, por esse tempo,
fazia-o sem método nem medida. Bebia a mais não poder, em casa, nos botequins,
em toda a parte. Faltava à oficina para beber. Rosalina "pegou" o
vício do marido e, do pouco dinheiro que ele lhe dava ou com o seu trabalho
obtinha, comprava parati. O marido devia seis meses de casa - um modesto
barracão de madeira, com uma sala, um quarto e um pequeno adendo para a cozinha.
O senhorio perseguia-o; ele fugia e deixava com a mulher o encargo de explicar
os atrasos. Um belo dia, ela vê entrar o proprietário com dois homens. Nada
dizem. Encostam sua escada no telhado e destelham a choupana. Deixou tudo o que
tinha na mão dos desalmados. Pede a uma vizinha que fique com um filho; e uma
outra, que fique com o mais moço, e correu a atirar-se debaixo do primeiro trem
que passou. Sofreu escoriações e fraturas em um braço e uma perna; mas os
médicos da Santa Casa conseguiram salvá-la. Saiu renovada, e o seu rostinho de
mulatinha sapeca tinha recuperado um pouco o viço e a petulância que devia ter
pela puberdade.
Os filhos, a mãe - uma pobre lavadeira - os
tinha recolhido; e o marido nunca mais o vira. Em começo, portou-se bem; mas
bem depressa foi correndo de mão em mão, até que as moléstias venéreas a
tomaram de todo, obrigando-a a visitas constantes à Santa Casa, para levar
injeções e sofrer operações. Proibida de beber, não obedecia à prescrição
médica. Quando não tinha dinheiro, obtido de que maneira fosse, esperava
pacientemente que as suas galinhas ou as de sua mãe, com quem morava,
"pusessem", e logo corria à venda a trocá-los, por duzentos ou
trezentos réis de parati.
Ela, porém, não fazia "ponto" no
armazém do "Seu" Nascimento. Educado e criado na roça, tendo
negociado no interior do Estado do Rio, onde ainda tinha fazenda, ele gostava
que pessoas de certa ordem fossem ao seu negócio ler os jornais e conversar -
hábito do interior, como todos sabemos. A sua venda tinha até aqueles
tradicionais tamboretes de abrir e fechar das antigas vendas e ainda são
conservados nos armazéns roceiros. Demais, a sua casa de negócio ficava num
lugar pitoresco, calmo, pouco transitado, diante das velhas árvores da chácara
de Mr. Quick Shays e olhando para uns cumes caprichosos de montanhas distantes.
Compravam muitas pessoas, para as quais tinha freguesia certa.
Um deles era o Alípio, um tipo curioso de rapaz
que, conquanto pobre e ter amor à cachaça, não deixava de ser delicado e
conveniente de maneiras, gestos e palavras. Tinha um aspecto de galo de briga;
entretanto, estava longe de possuir a ferocidade repugnante desses galos
malaios de rinhadeiro, não possuindo - convém saber-se - nenhuma. Sem ser
instruído, não era ignorante; mas era inteligente e curioso de invenções e
aperfeiçoamentos mecânicos.
O velho Valentim era um outro freqüentador da
venda, muito curioso e pitoresco. Português, com muito mais de sessenta anos, não
deixava de trabalhar, chovesse ou fizesse sol. Era chacareiro e, devido talvez
ao ofício, que ele o devia exercer há bem perto de quarenta anos, tinha o corpo
curvado de modo interessante. Não se sabia se era para trás ou para diante;
fazia uma espécie de S, em que faltassem as extremidades.
Contava longos "casos" que não se
acabam mais, especialmente o João de Calais - como ele pronunciava -,
pontilhando a sua longa e enfadonha narração, com rifões portugueses de uma
graça saborosa e uma filosofia saloia. Era o que se aproveitava da sua
conversa.
Aparecia, também, em certas ocasiões, o Leonardo
Flores, poeta, um verdadeiro poeta, que tivera o seu momento de celebridade no
Brasil inteiro e cuja influência havia sido grande na geração de poetas que se
lhe seguiram. Naquela época, porém, devido ao álcool e desgostos íntimos, nos
quais predominava a loucura irremediável de um irmão, não era mais que uma
triste ruína de homem, amnésico, semi-imbecilizado, a ponto de não poder seguir
o fio da mais simples conversa. Havia publicado cerca de dez volumes, dez
sucessos, com os quais todos ganharam dinheiro, menos ele, tanto assim que,
muito pobremente, ele, mulher e filhos agora viviam com o produto de uma
mesquinha aposentadoria sua, do governo federal.
Raro era sair, porque a mulher punha todo o
esforço em que ele o não fizesse. Mandava buscar parati, comprava-lhe os
jornais de sua estimação, a fim de que ele permanecesse em casa. Às mais das
vezes, ele obedecia; mas, em algumas raras, recalcitrava, saía, com quinhentos
réis em cobre, na algibeira, bebia aqui, ali, dormia debaixo das árvores das
estradas e ruas pouco freqüentadas, e, mesmo, quando o delírio alcoólico o
tornava forte, despia-se todo e gritava heroicamente numa doentia e vaidosa
manifestação de personalidade:
- Eu sou Leonardo Flores.
O povo sabia vagamente que ele tinha
celebridade. Chamava-o - o poeta. No começo, caçoava com ele, mas ao saber de
sua reputação, deram em cercá-lo de uma piedosa curiosidade.
- Um homem desses acabar assim - que castigo! -
dizia um.
- É "cosa" feita! Foi inveja da
"inteligença" dele! - dizia uma preta velha -. Gentes da nossa
"cô" não pode "tê inteligença"! Chega logo os
"marvado" e lá vai reza e "fêtiço", "pa perdê" o
homem - rematava a preta velha.
Aparecia um circunstante mais prático na sua
piedade, vestia novamente o poeta e levava-o para a casa.
Era justamente a ele, Leonardo Flores, que o
doutor Meneses procurava, quando, naquela manhã de dia santo e não feriado,
entrou na venda de "Seu" Nascimento, mancando, devido à inchação das
pernas, e com as suas barbas brancas, abundantes, mas não cerradas, aparadas e
tratadas à imitação do nosso último Imperador.
O doutor Meneses galgou a soleira da porta com
esforço; parou um instante, logo que se viu no interior da venda, pôs as mãos
nas cadeiras e respirou com força.
Após os cumprimentos, perguntou:
- O Flores não tem aparecido?
- Há muito tempo que não vem aqui - fez o
"Seu" Nascimento do interior do balcão.
- Fui à casa dele, e disse-me a mulher que havia
saído... Preciso tanto dele...
Ao dizer isto, sentava-se no tamborete que o
caixeiro lhe abrira e o pusera onde ele estava, o dentista.
Descansou mais um pouco, sorveu mais uma forte
dose de ar e, dirigindo-se ao Alípio, perguntou:
- Como vai você, Alípio?
Só estavam na venda Alípio e o velho Valentim,
este em pé, encostado ao umbral de uma porta lateral; e aquele, sentado, lendo
um jornal.
Alípio respondeu:
- Vou bem; não tão bem como o senhor, que anda
agora em companhia de "almofadinhas" artistas.
- Como? - fez espantado o dentista particular.
- É o que dizem. Corre aqui que o senhor está
toda a noite com o mestre-violeiro Cassi e vários companheiros, num botequim do
Engenho Novo.
- É verdade. São todos rapazes decentes, que...
- Então, o Cassi, este é de colete?
- Dizem - interveio "Seu" Nascimento -
que esse rapaz...
- É um bandido - acudiu Alípio. - Ele merecia
mais do que cadeia; merecia ser queimado vivo. Tem desgraçado mais de dez moças
e não sei quantas senhoras casadas.
- Isto é calúnia! - protestou Meneses. - Fala-se
muito por aí...
- Que o quê! Os processos têm corrido, os
jornais têm publicado, e ele arranja meios e modos para livrar-se das
penalidades e lançar na desgraça moças e senhoras - confirmou Alípio.
- Como ele consegue isso? - indagou
"Seu" Nascimento.
- No começo, com a proteção do pai. Ao fim do
segundo ou terceiro caso que veio a público, o pai não lhe falou mais e nunca
mais se interessou pela sua liberdade. Sucederam-se outros, e, graças à intervenção
da mãe junto a um irmão, médico do Exército, ele pôde arranjar rábulas sem
escrúpulos, que, pelos meios mais nojentos, conseguiram retirá-lo das grades da
detenção. Caluniava as vítimas com justificações em que eram testemunhas Timbó,
Arnaldo e outros tais. Contou-me a Vicência - o senhor não a conhece, "Seu" Nascimento? -
perguntou Alípio.
- Quem é? - perguntou por sua vez o taberneiro.
- É aquela crioula velha que vem aqui, às vezes,
fazer compras, para a casa do Major Carvalho. Ela foi empregada na casa do pai
de Cassi muito tempo. Um dia - ela não sabe bem por quê - o pai expulsou-o de
casa. A mãe mandou-o para a casa do irmão em Guaratiba. Lá, ele fez ou
pretendeu fazer uma das suas, mas o tio não esteve pelos autos; despachou-o
para a irmã. A muito custo, a mãe conseguiu que ficasse num porão dos fundos,
que mal tem a altura dele. Nesse "socavão" é que ele mora e come.
Nunca sobe nas dependências superiores da casa, com medo do pai. Se, por acaso,
este tiver notícia dessa sua ousadia, põe-no definitivamente na rua.
- Que diz a isso, doutor Meneses? - chasqueou
Nascimento.
- Não sei, porque pouco me preocupo com a vida
dos outros - tergiversou Meneses.
- Não é da vida dos outros - fez impetuosamente
Alípio; - é com a vida de um pirata como Cassi, que não respeita família, nem
amizades, nem a miséria, nem a pobreza, para fazer das suas porcarias. É por
isso que eu...
"Seu" Nascimento interveio
suasoriamente e pediu calma. Era um homem alto, claro, um tanto obeso, tipo do
antigo agricultor patriarcal, das nossas velhas fazendas. Ele assim disse:
- Não é necessário indignar-se, Alípio, fique
calmo. O monstro não tem mais protetores, como você já disse.
- Tem, "Seu" Nascimento - afirmou
Alípio. - Ele é esperto, "é manata escovado".
- Quem é, Alípio? - perguntou Nascimento, indo
servir de açúcar a um pequeno.
Os fregueses continuavam a chegar; em geral,
eram crianças e mulheres. As suas compras eram pobres: dois tostões disso,
quatrocentos réis daquilo - compras de gente pobre, em que raramente se via
nelas incluído meio quilo de carne-seca ou um de feijão. Tudo não excedia a
tostões. Mesmo atendendo aos fregueses, sozinho, pois os caixeiros tinham ido
correr a clientela fixa do armazém, "Seu" Nascimento não perdia o fio
da conversa, e ela continuava naturalmente.
Alípio, habituado a isso, não suspendeu a
narração e deu a resposta pedida.
- O protetor dele, agora, é um tal Capitão
Barcelos, chefe político na estação de***. Tem influência e foi por saber disso
que Cassi aderiu a ele. Já nessa última eleição para uma vaga de intendente,
ele funcionou com o seu rancho ao lado de Barcelos. Não houve desordens, porque
não apareceu outro candidato; mas ele queria fazer uma para ganhar prestígio.
Assim e aos poucos, vai ganhando a confiança de Barcelos, a ponto do Freitas,
que é o subcabo deste, sentir-se magoado e preterido.
- Quem é esse Barcelos? - fez Nascimento.
- É um português, já com os seus cinqüenta anos,
bom, bom mesmo; mas, tendo ido para a detenção, pronunciado que estava devido a
uns tiros que dera em um sujeito, por lhe ter insultado a mulher, produzindo no
meliante ferimentos graves, isto há vinte anos, ganhou lá o gosto pela política
e lá aprendeu as primeiras noções dessa difícil ciência. Foi na detenção que...
- Ué! - exclamou Nascimento.
- Também você, Alípio... - fez duvidoso Meneses.
Alípio continuou:
- Lá, ele encontrou um político daqui da
Capital, que estava na chácara, a responder processo, como mandante de um
assassínio. O homem aproximou-se de Barcelos, e puseram-se a conversar. Não
estavam no cubículo; estavam na enfermaria, ou na sala livre, ou em outro
compartimento especial. Barcelos narrou sua vida, que, apesar daquele
transtorno, não corria mal. Tinha uma venda em ***; vendia a dinheiro e a
crédito, para o operariado das fábricas lá existentes; mas era feliz, pois,
apesar de fazer muitos fiados, quase não os perdia. Era até estimado, pelo seu
gênio folgazão e prestativo. O político, que tinha um chefete adversário,
naquela estação, viu bem como, para desbancá-lo, podia aproveitar os serviços
de Barcelos. “Você por que não se mete na política?”, disse ele um
dia. O vendeiro de *** respondeu: “Mas
não sou brasileiro, doutor.” O seu alto companheiro de cárcere
retrucou-lhe: “Eu faço você brasileiro naturalizado, capitão da Guarda
Nacional, e você, nas eleições, trabalha
para mim e os meus. Trate logo de alistar o maior número de fregueses que você puder.” Barcelos
assentiu, trabalhou sempre para o tal político, por intermédio do qual arranjou
melhoramentos para o lugarejo, valorizando as
suas terras e prédios.
- Valeu a pena ir para a detenção!
- É verdade, “Seu” Nascimento. Daí,
data a pouca prosperidade de Barcelos, que possui perto de duzentos contos, em
casas, terrenos e apólices, afora o giro do negócio.
- Você, Alípio, se diz anarquista; mas o que
você é, é romancista. Isto é um romance - comentou Meneses.
- Qual, doutor! O senhor é que não sabe como as
coisas se fazem. Eu sei. O senhor, por exemplo, não sabe que Timbó levou uma
surra de uma senhora que mora aqui perto? - Não sei - respondeu Meneses.
Quase ao mesmo tempo, Nascimento perguntava:
- Quem é Timbó?
- É um mulatinho faceiro, jogador de
football e companheiro de Cassi,
testemunha sempre escolhida para depor em seu favor, caluniando as vítimas, nos
seus imundos processos.
- Foi ele quem levou a surra? - indagou
Nascimento.
- Sim; ele, na estação de Todos os Santos, após
uma perseguição ignóbil a Dona Margarida ...
- Que Dona Margarida? A do 74? - falou com surpresa
Nascimento.
- Essa mesma. Deu-lhe de rijo com o
guarda-chuva; e, quando ele a quis desarmar, apareceu um cabra morrudo, que o
pôs, pelas orelhas, para fora da plataforma, donde saiu debaixo de vaia. Dos
companheiros de Cassi, o único perdoável é o Zezé Mateus. Este não mexe com
moça alguma, com família de ninguém, não joga, não faz desordem. Quer beber e
bebe à sua custa, porque, quando quer trabalhar, abandona a tudo e salda as
suas dívidas. Os mais são uns piratas!
Alípio calou-se, e os seus interlocutores não
aventaram nenhuma observação, a não ser o velho Valetim, que havia ouvido toda
a conversa, encostado ao portal de pedra, fumando displicentemente o seu
cigarro São Lourenço. Ele perguntou, cheio da ingenuidade do campônio que fica
sempre na primeira aventura, das preferidas por Cassi:
- Mas, "Seu" Alípio, o senhor acredita
que haja gente tão malvada, como esse Cassi?
- Há, e não pouca. Sei de tudo que contei de
fonte limpa. É a pura verdade.
O doutor Meneses tinha ficado aborrecido com o
tom da conversa. Tinha ido à venda, procurar Leonardo Flores, para um negócio
particular; e encontrara o Alípio a par das suas relações com Cassi e inteirado
da vida deste. Diabo! Estaria se comprometendo? Havia já tomado quatro copitos de parati; mas, quando se despediu, tomou um
grande. Caminhando pôs- se a pensar:
- Que devia fazer?
Pegou diversas hipóteses e concluiu:
- Ir até ao fim.
A coisa não oferecia nenhum perigo para ele...
Isso não o contentou de todo. Procurou
distrair-se.
VI
A recepção que tivera Cassi, na sua segunda
visita, seca, hostil, quase sendo despedido à soleira da porta, ao contrário da
primeira vez que fora à casa de Joaquim dos Anjos, fizera-o meditar e
açulara-lhe o desejo de remover todos os obstáculos que se opunham à sua
aproximação de Clara. Por exclusão, ele só viu duas pessoas capazes de lhe
estarem atrasando seu "trabalho", começado com tanta rapidez e sem
esforço. Quem eram? Só podiam ser Dona Margarida, por causa do
"negócio" do Timbó; e o tal aleijado, que lhe lançara a indireta, em
verso, de chamá-lo de burro.
Se na sedução, propriamente, ele não empregava
absolutamente força, no que era o contrário dos conquistadores suburbanos, a
ponto dos jornais noticiarem, de quando em quando, o desespero das vítimas que
se fazem assassinas, para se defenderem de tão torpes sujeitos; Cassi,
entretanto, quando no decorrer de suas conquistas, encontrava obstáculos, fosse
mesmo da parte do próprio irmão da vítima em alvo, logo procurava empregar
violência, para arredá-lo.
É bem de ver que ele sabia com quem se metia;
mas, no caso, tratando-se de um quase inválido, a força a empregar seria
mínima; e, no que toca a Dona Margarida, ele saberia enganá-la e embaí-la.
A sua força de valente e navalhista era mais
fama do que realidade; mas tinha fama, e muitos se intimidavam. Dava-lhe isso
um ascendente sobre os que, de boa-fé e honestamente, podiam prevenir as moças
que ele cobiçava, não as prevenindo, não as avisando, não o desmascarando
totalmente. Cheios de temor, deixavam o caminho franco ao modinheiro.
A tal respeito, com o seu cinismo de sedutor de
quinta ordem, tinha uma oportuna teoria, condensada numa sentença: "Não se
pode contrariar dois corações que se amam com sincera paixão."
Colocando ao lado dessa teoria, bem sua, a
consideração de que não empregava violência nem ato de força de qualquer
natureza, ele, na sua singular moral de amoroso-modinheiro, não se sentia
absolutamente criminoso, por ter até ali seduzido cerca de dez donzelas e muito
maior número de senhoras casadas. Os suicídios, os assassínios, o povoamento de
bordéis de todo o gênero, que os seus torpes atos provocaram, no seu parecer,
eram acontecimentos estranhos à sua ação e se haviam de dar de qualquer forma.
Disso, ele não tinha culpa.
Para certificar-se quem era que, na casa do
"carteiro", fermentava o seu descrédito, Cassi resolveu ir sondar
Lafões, em sua casa.
Lafões morava bem próximo do reservatório do
Engenho de Dentro. Uma tarde, Cassi tomou o bonde de Piedade, que, para ir a
essa estação, logo após o Méier, se interna para os lados da serra, toma ruas
despovoadas e, por fim, a do Engenho de Dentro. O caminho era então pitoresco,
não só pelos restos de capoeira grossa que ainda havia, mas também pelas casas
roceiras de varanda e pequenas janelas de outros tempos. Caminho de
"tropa", talvez, os engenheiros da Light só se deram ao trabalho de
fazer sumários nivelamentos. Os altos e baixos, os atoleiros e atascadeiros,
consolidados com gravetos e varreduras de capinas, transformaram o caminho do
bonde, naquele trecho, numa montanha-russa, com a lembrança, de um lado e
outro, do espetáculo do que seriam ou do que são os caminhos do nosso interior,
pelos quais nos chegam os cereais e a carne que comemos.
Às vezes, o bonde cruzava com uma tropa de
carvoeiros de Jacarepaguá, da Serra do Mateus e outras localidades ainda com
florestas aproveitáveis; e tínhamos uma imagem mais viva. Os tropeiros eram
gente de sangue muito mesclado, ossudos, jarretes nervosos e finos, pés
espalmados, às vezes de feições regulares, mas sempre cobertos de barbas
maltratadas e de uma insondável tristeza. Não eram só homens feitos; havia
crianças também, a guiar os burros em fila.
Quando o bonde apontava a sacolejar as suas
ferragens, estourando que nem um besouro, avisando-os da sua presença próxima
com o zunido contínuo do tímpano, ou, senão, com um apito, ao grito de
locomotiva, aqueles homens, vivendo tão perto da terra e da natureza
espontânea, não deixavam de se assustar e tomar precauções, para sua segurança
e dos seus pacientes animalejos. Encostavam bem a tropa a uma ribanceira
lateral da rua, quando na encosta; ou afastavam-se para o lado, se havia
terreno baldio e sem cerca, quando ela era planície; e ficavam pasmos, diante
daquele monstro zunidor que se movia por intermédio de um grosso fio de arame.
Os burros, quer num, quer noutro caso, permaneciam indiferentes e punham-se a
roer a erva escassa do campo ou a pastar a folhagem que lhes dava sombra e
crescia no alto da chanfradura do corte.
Chegou Cassi Jones à casa de Lafões quase à
noite. Era uma pequena casa, mas bem tratada e limpa. O pequeno jardim na
frente merecia cuidados e, no quintal, aos fundos, cresciam couves e repolhos,
a dar saudades de um bom caldo à portuguesa.
Lafões, por aquelas horas, após o jantar, tinha
por hábito pôr-se em camisa de meia, tamancos e calça, e completar a leitura do
jornal que iniciara pela manhã. Sentava-se a uma cadeira de balanço, austríaca,
que a punha bem junto à janela, tendo, à esquerda, uma cadeira, em que
repousavam o isqueiro (não usava fósforos) e os cigarros
"Fuzileiros".
Estava assim, naquela postura, e enrolava melhor
um cigarro pacientemente, quando lhe bateram no portão de ripas de madeira. Ergueu
um tanto o busto e, pondo um pouco a cabeça à mostra, quase rente ao peitoril
da janela, perguntou:
- Quem é?
Reconheceu logo:
- É o Senhor Cassi.
Ergueu-se e foi ao encontro dele, abrindo a
porta de entrada. Tomou- lhe o chapéu pelintra, a bengala ultra-aperfeiçoada e
foi dizendo prazenteiramente:
- Por aqui? Sente-se, ora esta! Seja bem-vindo!
O rapaz sentou-se, respondendo:
- Muito obrigado, meu caro "Seu"
Lafões.
- Por que não aparece mais vezes, Senhor Cassi?
- continuou Lafões com amizade.
- Não tenho tido tempo. Nos dias da semana, são
os negócios; nos domingos, não dou para os convites. Eu vinha aqui...
- Para quê, Senhor Cassi?
- Pedir-lhe uma informação.
- Qual é, Senhor Cassi?
- Disseram-me que, no seu escritório, o inspetor
está admitindo escreventes, para não sei que serviço extraordinário. O senhor
não podia saber se isto é verdade?
- Pois não. Indago ao Braga, que é contínuo,
vivo que nem azougue, e sabe de tudo que lá se passa - explicou Lafões.
- Quando posso vir buscar a resposta?
- Olhe, Senhor Cassi: amanhã, à tarde, não,
porque tenho que ir à sessão da minha sociedade; mas, se tem pressa, pode vir
depois de amanhã, logo pelas sete ou oito horas.
- Bem - fez Cassi, simulando contentamento. -
Desde já agradecido. Como vão sua senhora e seus filhos?
- Bem. A mulher saiu mais o mais moço; foram a
não sei que ladainha por aí. É um inferno! Estes padres têm invadido estes
subúrbios com mais rapidez que os "turcos" de prestações. É dinheiro
para esse santo, é dinheiro para as obras da igreja... Não posso mais! Edméia,
porém, está lá no fundo do quintal. Quer tomar café, Senhor Cassi?
- É incômodo... Se a sua senhora estivesse, sim;
mas...
- Não há incômodo algum. Edméia o aquece no
espírito... Só se o Senhor Cassi não gosta aquecido?
- Gosto.
- Pois bem, vamos a ele - e gritou pela filha,
com possante voz de homem são - Edméia! Edméia!
Não tardou em aparecer a filha. Era uma gentil
menina de doze anos, risonha, com uma fisionomia redonda de traços firmes e
finos, cabelos tirando para o louro, cortados à inglesa. Entrando, exclamou
logo:
- Oh! Estava aqui “Seu” Cassi. Que
surpresa! Não sabia...
Falou ao rapaz e este lhe disse a esmo:
- Há muito que não a via.
- É verdade, desde o dia de anos de Clarinha...
Tem ido lá?
- Não tenho podido.
- Por quê? Parece que lá não gostam do senhor...
Principalmente aquele "pé-pé"...
- Menina - ralhou-lhe o pai. - Não te metas a
intrigar os outros... Vá aquecer o café e traze-nos duas xícaras. Vá.
Saindo a menina, Cassi julgou de bom alvitre,
para preencher o fim verdadeiro de sua visita, dizer:
- Podem não gostar de mim. Mas a implicância é
sem motivo. Nunca...
- Ora, Senhor Cassi, o senhor vai dar ouvido a
crianças. Elas não sabem o que dizem.
- Agora, meu caro “Seu” Lafões, eu
notei no dia da festa que o compadre do Senhor Joaquim dos Anjos não me tragava
- disse Cassi.
- Isto se explica. Ele foi ou é poeta e tem em
conta de coisa nenhuma os cantadores de modinhas. Lá na minha terra, os poetas
dos fidalgos e das fidalgas não tragam os fadistas do campo, aos quais chamam
de rústicos e outras coisas piores. Em cada ofício, há sempre disso. O senhor
não vê como os cocheiros desprezam os barbeiros? Cocheiro que não presta é
barbeiro. Marramaque, velho, doente, não sabe disfarçar o seu mau juízo pelos
que apreciam o violão e o tocam, cantando modinhas.
- Mas... o "Seu" Joaquim?
- É que eles são compadres e amigos, meu caro
Senhor Cassi. Está explicado.
Vieram as xícaras de café e a conversa tomou outro
rumo. Falaram sobre as festas próximas do centenário da Independência, sobre a
crise financeira, mas Cassi em nada disso pensava. Pensava em Marramaque, o
audacioso aleijado, que queria se intrometer no seu amor por Clara. Pagaria bem
caro. Despediu-se em breve e, lentamente, deixou-se ir a pé subúrbios abaixo.
Eram estranhos aquele ódio e aquela obstinação. Cassi não era absolutamente,
nem mesmo de forma elementar, um amoroso. A atração por uma qualquer mulher não
lhe desdobrava em sentimentos outros, às vezes contraditórios, em sonhos, em
anseios e depressões desta ou daquela natureza. O seu sentimento ficava
reduzido ao mais simples elemento do Amor - a posse. Obtida esta, bem cedo se
enfarava, desprezava a vítima, com a qual não sentia ter mais nenhuma ligação
especial; e procurava outra.
A sua instrução era mais que rudimentar; mas,
assim mesmo, talvez devido a uma necessidade íntima de desculpar-se, gostava de
ler versos líricos, principalmente os de amor. Não lia jornais, nem coisa
alguma; mas, num retalho apanhado aqui, num almanaque acolá, num livro que lhe
ia ter às mãos, sem saber como, conseguia ler alguns e os entender pela metade.
Deles, desses sonetos e mais poesias que, por acaso, iam parar em seu poder,
ele concluía, com a sua estupidez congênita, com a sua perversidade inata, que
tinha o direito de fazer o que fazia, porque os poetas proclamam o dever de
amar e dão ao Amor todos os direitos, e estava acima de tudo a Paixão. Vê-se
bem que ele não sentia nada do que, poetas medíocres que o guiavam nas suas
torpezas, falavam; e, sem querer apelar para grandes ou pequenos poetas,
percebia-se perfeitamente que nele não havia Amor de nenhuma natureza e em
nenhum grau. Era concupiscência aliada à sórdida economia, com uma falta de
senso moral digna de um criminoso nato - o que havia nele.
O verdadeiro estado amoroso supõe um estado de
semiloucura correspondente, de obsessão, determinando uma desordem emocional
que vai da mais intensa alegria até à mais cruciante dor, que dá entusiasmo e
abatimento, que encoraja e entibia; que faz esperar e desesperar, isto tudo,
quase a um tempo, sem que a causa mude de qualquer forma.
Em Cassi, nunca se dava disso. Escolhida a
vítima de sua concupiscência, se, de antemão, já não as sabia, procurava
inteirar-se da situação dos pais, das suas posses e das suas relações. Em
seguida, tratava de encontrar-se com ela num baile ou uma sala de festas e
impressioná-la com os seus dengues no violão. Se percebia que tinha obtido
algum sucesso, esforçava-se em reiterar os encontros nos cinemas, nos bondes,
nas estações, e, na ocasião propícia, pespegava-lhe a carta fatal. Isto tudo
era feito com muita calma e discernimento, pacientemente, sem ser perturbado em
nenhum movimento de impaciência ou arrebatamento. Se a moça ou a senhora
aceitava-lhe os galanteios e as cartas, ele tinha o final como certo; se não,
ele não perdia tempo, abandonava os esforços preliminares e esperava que outra
mais suasória aparecesse.
No caso de Clara, ele não estava disposto a acreditar
que se houvesse dado a primeira hipótese, porquanto lhe davam certeza disso o
embevecimento com que o ouvira cantar, na noite da festa dos anos dela, e a
insistência que mostrara em vir falar com ele, quando lhe foi à casa do pai
pela segunda e última vez. O que lhe parecia, por indícios aqui e ali, é que
alguém se havia interposto entre ele e ela, “entre dois corações que se
amam”, denunciando aos pais dela os seus maus precedentes de conquistador
contumaz, de forma a trancarem-lhe aqueles as portas de sua casa, a ele, Cassi.
Agora mesmo, tivera a confirmação dessa suspeita
com a ingênua denúncia de Edméia, a filha de Lafões, de que Marramaque,
padrinho de Clara, não gostava dele. Era, portanto, prevenir-se contra as
“intrigas” do aleijado e arredá-lo de vez. Cassi sabia que, quase
sempre, Marramaque parava na venda do “Seu” Nascimento, quando
vinha do trabalho. Lá ficava bebericando com outros, até que o negócio se
fechasse. A ele, Cassi, não convinha ir por todos os motivos; Timbó não podia
também, por ser muito conhecido na localidade, devido à surra que levara; Zezé
Mateus era um idiota. Quem iria, então, sondar aquele terreno? O Arnaldo, que
não era conhecido no local, nem sabidas eram as suas relações com ele. Muito a
contragosto, dirigiu-se para a casa dos pais. Não tinha dinheiro que prestasse,
para "escorvar" o jogo.
O seu "socavão" doméstico ficava bem
debaixo da sala de jantar da casa, que aí acabava o seu corpo principal. As
dependências restantes ocupavam um puxado longo. Quando ele entrou, percebeu
que na sala de jantar, além do pai, mãe e irmãs, havia alguém que não era de
hábito e dissera, ouvindo-lhe os passos:
- Há alguém aí?
- É Cassi - dissera a mãe.
- Ele não sobe aqui? - perguntou a visita.
Todos se calaram e se entreolharam, enquanto o
velho Manuel de Azevedo explicava o fato em quatro palavras:
- Você queria, Augusto, que eu, chefe de
família, que prezo a honra das filhas dos outros como a das minhas, deixasse
semelhante miserável sentar-se ao meu lado? Se não o pus de todo para a rua,
foi devido à mãe.
- Você tem razão, mano; mas tudo isto que se diz
dele, pode ser calúnia.
- É também o meu pensamento, Augusto - falou
Dona Salustiana.
As moças se haviam calado por pudor, mas o velho
Azevedo cortou de vez o argumento da mulher e do irmão:
- Você não leu esses papéis escritos à máquina,
que mandaram a você, dois dias após você chegar, para o hotel?
- Li.
- Leu as datas, a narração dos fatos, as cartas?
- Li, também, mas o tempo...
- Pois tudo é verdade; e ninguém mais do que eu,
infelizmente, pode assegurar isso. Em menos de dez anos, esse meu indigno filho
fez tudo isso. Não o posso negar em sã consciência. Se não posso...
Ao entrar, Cassi, tendo percebido que a conversa
ia versar sobre ele, colocou-se de ouvido atento, embaixo da janela, nada
perdendo e conseguindo ouvir esse trecho em que tomava parte o seu tio Augusto,
irmão de seu pai, que, havia muito tempo, andava destacado numa alfândega do
Norte. Quando o velho Manuel de Azevedo falou em papéis escritos à máquina,
trazendo indicações de datas e a narração dos fatos de suas complicações com a
polícia e a justiça, Cassi assustou-se. Quem estaria fazendo aquele trabalho
surdo? Não era a primeira vez que tivera notícia da existência desse caderno
misterioso e misteriosamente distribuído pelo correio. Dissera-lhe um
investigador de uma delegacia suburbana que, logo que havia mudança de delegado
ou de comissário, numa delas, o novo delegado ou o novo comissário recebia o
tal caderno. Apavorava-lhe essa perseguição nas trevas, talvez segura, que, aos
poucos, o ia minando. Tão indiferente era ele pela sorte de suas vítimas e tão
estúpido se mostrara sempre em não compreendê-las, que não podia encadear
raciocínios seguros, para ter a procedência, mais ou menos provável, da remessa
de tais cadernos.
Precisava fugir - era o que concluía; e ele se
sentia ameaçado, não por duendes, mas por alçapões, homens mascarados, cárceres
privados, suplícios, etc. - todo o arsenal do maravilhoso das fitas de cinema.
Entretanto, queria antes resolver o caso de
Clara, que, apesar de tudo, considerava em meio.
Deitou-se e dormiu regaladamente, até ao
alvorecer do dia. Logo que a luz do sol
ganhou uma relativa nitidez, ele foi passar revista nas suas gaiolas de galos
de briga. Estava tudo a postos, e foi lhes dando milho tirado de uma lata que
tinha em uma das mãos, e olhando todos aqueles bichos hediondos, com a ternura
de um honesto criador, que revê o seu trabalho nas travessas pesquisas ou na
doçura de olhar de seus cordeiros. Aos pintos, deu milho moído, triguilho, e só
não deu ovo picado porque não era dia. O seu embevecimento por aquelas
horrendas aves era sincero: elas lhe faziam ganhar dinheiro. Olhou-as e
perguntou de si para si:
- Quanto valeriam ao todo?
Alguns já lhe haviam oferecido quinhentos
mil-réis e ele estava disposto a vendê-las, por esse preço, depois que a
"coisa" estivesse acabada...
Veio tomar café no "socavão", onde a
velha Romualda lhe trazia todas as manhãs. Era velha, e a sua velhice a
defendia perfeitamente contra qualquer assalto de Cassi. Perguntou-lhe este:
- Meu tio ainda está aí?
- Quem é seu tio, nhonhô?
- Aquele moço que esteve ontem, à noite.
- Ah! Foi embora logo depois do chá.
Não trocaram mais palavras. Depois de servido o
café e comido o pão com manteiga, a velha Romualda levou a bandeja com a
xícara, e Cassi tratou de vestir-se e sair.
Quase nunca parava em casa. Temia encontrar-se
com o pai, que, por isto ou por aquilo, houvesse resolvido ficar no lar, e também
por não poder suportar o desdém de suas irmãs. A casa era-lhe mais penosa do
que os xadrezes, por onde passara dezenas de vezes.
Ia à procura de Arnaldo, que, morando na Estrada
Real, vinha no bonde de Cascadura, para tomar o trem no Méier. Arnaldo não
deixava de um só dia ir "lá embaixo". Esperava sempre fazer um
biscate e, quando não o fizesse, arranjar algum “magote” no trem.
Não se enganara. Às nove e pouco, Arnaldo, com o
seu nariz de tromba de tapir, os seus olhos arredios e catadores, chegara;
Cassi disse-lhe que dele precisava, às cinco horas, ali; e pagou-lhe o café.
- Pois não, Cassi; nas ocasiões é que se vêem os
amigos. Cá estarei.
Fazendo o sacrifício de perder uma tarde de
colheita, Arnaldo chegou na hora marcada, ao ponto ajustado.
Cassi explicou-lhe então que devia ir, naquela
tarde, à venda do Nascimento, cuja rua e cujo número lhe deu. Chegando lá,
simularia ter ido procurar por "Seu" Meneses, que ele conhecia.
- Se ele não estiver? - indagou Arnaldo.
- Você diz que fica à espera e ouve o que se
conversa lá. Nela, devem estar, entre outros, o aleijadinho que anda sempre
fardado. Ele não conhece você, como os outros, conforme espero. O que você
ouvir, guarda e me conta. Se Meneses aparecer, você diz que quero falar com
ele, negócio de interesse dele.
Cassi deu-lhe dois mil-réis e ele se pôs a
caminho, mas a pé, para poupar o tostão do bonde. Chegou à venda de
"Seu" Nascimento, teve duas decepções. Encontrara dois sujeitos, que
o conheciam perfeitamente: um era um engenheiro inglês, Mr. Persons, de quem
"abafara" uma capa de borracha, e o outro era o Alípio, que até o
sabia da roda de Cassi.
Não se deu por vencido e, atravessando por entre
Alípio e o velho Marramaque, que conversavam, foi direto ao balcão e perguntou
naturalmente:
- O senhor não conhece um velho dentista, por
nome Meneses?
E acrescentou:
- Ele tem vindo aqui?
O taverneiro respondeu:
- Há dias que não - e, dirigindo-se aos
circunstantes, por sua vez indagou: - vocês têm visto o doutor Meneses?
Todos, porém, responderam: não.
Arnaldo ia dizer obrigado, para retirar-se,
quando Mr. Persons perguntou-lhe:
- Sinhôr, vem cá!
Arnaldo fez-se jovial.
- Oh! "Seu" mister como vai?
- Não diga "Seu" mister, é
“error”. Bem... Onde está mia capa?
- Trago por esses dias, tenho me esquecido.
- Já é duas vezes que "sinhôr" diz
isso. Eu precisa da capa.
- Não me esquecerei.
E saiu apressado. O negócio da capa fora
simples. Persons não viera da cidade são de seu juízo e deixara a capa
descansando no banco, ao lado, recostando-se na parede do carro. Pouco antes de
certa estação, Arnaldo sentou-se a seu lado, no intento de carregar-lhe a capa.
Ao pôr em prática o seu propósito, Persons despertou, mas só pôde dar com o
furto, quando Arnaldo ia saindo do carro. Gritou: “minha capa”. Um
condutor ainda agarrou Arnaldo com a carga, mas, quando o Persons deu com o
lugar em que estavam ambos, já o
auxiliar o tinha largado e o trem se pusera em movimento. Guardara, porém, a
fisionomia do gatuno; e, vindo a encontrar-se com ele, perguntara-lhe por essa
peça de vestuário, e Arnaldo lhe dissera que a havia levado por engano.
Ele saiu corrido de vergonha; mas, vendo que
ninguém vinha até às portas da venda, ele voltou e se pôs a ouvir o que diziam.
O mister já acabara de contar a história da
capa, quando Alípio, em tom de comentário, dissera:
- Isto que saiu daí é uma peste. Não sabia dessa
história de furtos nos trens; mas basta ele ser do bando do tal Cassi, para não
prestar.
Marramaque acudiu:
- Eu ainda não conhecia este. Vou indicá-lo ao
compadre. O tal Trembó ou Tipó, como é?
- Timbó, fez Alípio.
- O tal de Timbó já conheço e já o apontei ao
compadre. Por falar nisto, o senhor sabe, "Seu" Nascimento e meus
senhores, o que recebi, há dias, pelo correio, na secretaria?
- Não - responderam todos, por sinais ou por
palavras.
- A vida desse Cassi.
- Impressa?
- Não. Copiada à máquina de escrever, com
fotografias dele, cópias de notícias dos jornais do tempo, indicação das datas
dos processos e dos juízes e delegados - tudo!
- Quem lhe mandou? - perguntou Alípio.
- Não sei. Recebi a coisa na secretaria, lá a li
e dei-a ao compadre, para se prevenir.
- Com uma boa garrucha - observou Nascimento.
- Ou revólver - obtemperou Marramaque.
Ouvindo tudo isto e percebendo que alguém se
dirigia à venda, cuja hora de fechar não tardaria, Arnaldo deixou o lugar em
que estava e correu ao encontro de Cassi, que devia estar no Engenho Novo.
Encontraram-se, e ele, no que não tinha o menor
hábito, contou-lhe toda a verdade vista e ouvida.
Cassi nem Arnaldo não eram dados à bebida; mas o
momento a pedia. Aquele convidou o seu dedicado companheiro a tomar uma garrafa
de cerveja, o que fizeram quase sem conversar.
Acabada, pagaram e levantaram-se. Arnaldo procurou
o seu rumo e Cassi meteu-se pela sombria Rua do Barão de Bom Retiro.
Embora não fosse tarde, já se ouviam os tiros
que os suburbanos dão, de quando em quando, para afugentar os ladrões dos seus
galinheiros.
Um estourou bem perto dele, e Cassi, fingindo-se
calmo e sem apreensões, disse à meia voz:
- Ainda não foi desta vez.
VII
O subúrbio propriamente dito é uma longa faixa
de terra que se alonga, desde o Rocha ou São Francisco Xavier, até Sapopemba,
tendo para eixo a linha férrea da Central.
Para os lados, não se aprofunda muito, sobretudo
quando encontra colinas e montanhas que tenham a sua expansão; mas, assim
mesmo, o subúrbio continua invadindo, com as suas azinhagas e trilhos,
charnecas e morrotes. Passa-se por um lugar que supomos deserto, e olhamos, por
acaso, o fundo de uma grota, donde brotam ainda árvores de capoeira, lá damos
com um casebre tosco, que, para ser alcançado, se torna preciso descer uma
ladeirota quase a prumo; andamos mais e levantamos o olhar para um canto do
horizonte e lá vemos, em cima de uma elevação, um ou mais barracões, para os
quais não topamos logo da primeira vista com a ladeira de acesso.
Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças,
por toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por
paredes duvidosas. Todo o material para essas construções serve: são latas de
fósforos distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das
paredes de taipa, o bambu, que não é barato.
Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas, nas
coroas dos morros, que as árvores e os bambuais escondem aos olhos dos
transeuntes. Nelas, há quase sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma
espécie de esgoto. Toda essa população, pobríssima, vive sob a ameaça constante
da varíola e, quando ela dá para aquelas bandas, é um verdadeiro flagelo.
Afastando-nos do eixo da zona suburbana, logo o
aspecto das ruas muda. Não há mais gradis de ferros, nem casas com tendências
aristocráticas: há o barracão, a choça e uma ou outra casa que tal. Tudo isto
muito espaçado e separado; entretanto, encontram-se, por vezes,
“correres” de pequenas casas, de duas janelas e porta ao centro,
formando o que chama- mos "avenida".
As ruas distantes da linha da Central vivem
cheias de tabuleiros de grama e de capim, que são aproveitados pelas famílias
para coradouro. De manhã até à noite, ficam povoadas de toda a espécie de
pequenos animais domésticos: galinhas, patos, marrecos, cabritos, carneiros e
porcos, sem esquecer os cães, que, com todos aqueles, fraternizam.
Quando chega a tardinha, de cada portão se ouve
o "toque de reunir": "Mimoso"! É um bode que a dona chama.
"Sereia"! É uma leitoa que uma criança faz entrar em casa; e assim
por diante.
Carneiros, cabritos, marrecos, galinhas, perus -
tudo entra pela porta principal, atravessa a casa toda e vai se recolher ao
quintalejo aos fundos.
Se acontece faltar um dos seus
"bichos", a dona da casa faz um barulho de todos os diabos, descompõe
os filhos e filhas, atribui o furto à vizinha tal. Esta vem a saber, e eis um
bate-boca formado, que às vezes desanda em pugilato entre os maridos.
A gente pobre é difícil de se suportar
mutuamente; por qualquer ninharia, encontrando ponto de honra, brigando,
especialmente as mulheres.
O estado de irritabilidade, provindo das
constantes dificuldades por que passam, a incapacidade de encontrar fora do seu
habitual campo de visão motivo para explicar o seu mal-estar, fazem-nas
descarregar as suas queixas, em forma de desaforos velados, nas vizinhas com
que antipatizam por lhes parecer mais felizes. Todas elas se têm na mais alta
conta, provindas da mais alta prosápia; mas são pobríssimas e necessitadas. Uma
diferença acidental de cor é causa para que se possa julgar superior à vizinha;
o fato do marido desta ganhar mais do que o daquela é outro. Um
"belchior" de mesquinharias açula-lhes a vaidade e alimenta-lhes o
despeito.
Em geral, essas brigas duram pouco. Lá vem uma
moléstia num dos pequenos desta, e logo aquela a socorre com os seus vidros de
homeopatia.
Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas
é que vive uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o governo
fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis
e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro.
Nem lhes facilita a morte, isto é, o acesso aos
cemitérios locais.
Para o de Inhaúma, procurado por uma vasta zona
suburbana, os caminhos são maus, e pior do que isto: dão voltas inúteis, que
poderiam ser evitadas sem grandes despesas. Os enterros da gente mais pobre são
feitos a pé, e é fácil imaginar como chegam, os que carregam o morto, no
campo-santo municipal. Quem passa por aqueles caminhos, quase sempre topa com
um. Os de "anjos" são carregados por moças e os destas também pelas
da sua idade. Não há, para elas, nenhuma toilette especial. Levam a mesma que
para os bailes e mafuás; e lá vão de rosa, de azul-celeste, de branco,
carregando a pobre amiga, debaixo de um sol inclemente, e respirando uma poeira
de sufocar; quando chove, ou choveu recentemente, carregam o caixão aos saltos,
para evitar atoleiros e poças d'água.
Os de adultos são carregados por adultos.
Nestes, porém, há sempre uma modificação do indumento dos que acompanham. Os
cavalheiros procuram roupas escuras, senão pretas; mas, às vezes, surge o
escândalo da sua calça branca. Vão muito pouco tristes e, em cada venda que
passam, "quebram o corpo", isto é, bebem uma boa dose de parati. Ao
chegarem ao cemitério, aquelas cabeças não regulam bem, mas o defunto é
enterrado.
Houve, porém, uma ocasião, que o corpo não
chegou a seu destino. Beberam tanto, que o esqueceram no caminho. Cada qual que
saía da venda, olhava o caixão e dizia: Eles que estão lá dentro, que o
carreguem. Chegaram ao cemitério e deram por falta do defunto. "Mas não
era você que o vinha carregando?" - perguntava um. "Era você" -
respondia o outro; e, assim, cada um empurrava a culpa para o outro. Estavam
cansadíssimos e semi-embriagados. Resolveram alugar uma carroça e ir buscar o
camarada falecido, que já tinha duas velas piedosas a arder-lhe à cabeceira. E
o pobre homem, que devia receber dos amigos aquela tocante homenagem, dos
camaradas levarem-no a pé ao cemitério, só a recebeu a meio, pois, o resto do
caminho para a última morada, ele a fez graças aos esforços de dois burros, que
estavam habituados a puxar carga bem diferente e muito menos respeitável.
Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza
e no abandono em que os poderes públicos o deixam. Pelas primeiras horas da
manhã, de todas aquelas bibocas, alforjas, trilhos, morros, travessas, grotas,
ruas, sai gente, que se encaminha para a estação mais próxima; alguns, morando
mais longe, em Inhaúma, em Cachambi, em Jacarepaguá, perdem amor a alguns
níqueis e tomam bondes que chegam cheios às estações. Esse movimento dura até
às dez horas da manhã e há toda uma população de certo ponto da cidade no
número dos que nele tomam parte. São operários, pequenos empregados, militares
de todas as patentes, inferiores de milícias prestantes, funcionários públicos
e gente que, apesar de honesta, vive de pequenas transações, do dia a dia, em
que ganham penosamente alguns mil-réis. O subúrbio é o refúgio dos infelizes.
Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim,
todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias,
bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes dêem
alguma coisa, para o sustento seu e dos filhos.
Nessas horas, as estações se enchem e os trens
descem cheios. Mais cheios, porém, descem os que vêm do limite do Distrito com
o Estado do Rio. Esses são os expressos. Há gente por toda a parte. O interior
dos carros está apinhado e os vãos entre eles como que trazem quase a metade da
lotação de um deles. Muitos viajam com um pé num carro e o outro no imediato,
agarrando-se com as mãos às grades das plataformas. Outros descem para a cidade
sentados na escada de acesso para o interior do vagão; e alguns, mais ousados,
dependurados no corrimão de ferro, com um único pé no estribo do veículo.
Toda essa gente que vai morar para as bandas de
Maxambomba e adjacências, só é levada a isso pela relativa modicidade do
aluguel de casa. Aquela zona não lhes oferece outra vantagem. Tudo é tão caro
como no subúrbio, propriamente. Não há água, ou, onde há, é ainda nos lugarejos
do Distrito Federal que o governo federal caridosamente supre em algumas bicas
públicas; não há esgotos; não há médicos, não há farmácias. Ainda dentro do Rio
de Janeiro, há algumas estradas construídas pela Prefeitura, que se podem
considerar como tal; mas, logo que se chega ao Estado, tudo falta, nem nada há
embrionário.
O viajante que se detém um pouco a olhar aqueles
campos de vegetação rala e amarelada, aqueles morros escalavrados, cobertos de
intrincados carrascais, onde pasta um gado magro e ossudo, fica confrangido e
triste. Não há nenhuma cultura; as árvores de porte são raras; nas casas, é
raro uma laranjeira virente, nem um mamoeiro semi-espontâneo desce-lhes à
entrada.
Os córregos são em geral vales de lama pútrida, que,
quando chegam as grandes chuvas, se transformam em torrentes, a carregar os
mais nauseabundos detritos. A tabatinga impermeável, o barro compacto e a falta
d'água não permitem a existência de hortas; e um repolho é lá mais raro que na
Avenida Central.
O Rio de Janeiro, que tem, na fronte, na parte
anterior, um tão lindo diadema de montanhas e árvores, não consegue fazê-lo
coroa a cingi-lo todo em roda. A parte posterior, como se vê, não chega a ser
um neobarbante que prenda dignamente o diadema que lhe cinge a testa
olímpica...
Cassi Jones, em pé, na estação do Méier, via
passar aqueles trens cheios de homens de trabalho, sem considerar que, quase
com trinta anos, até ali, na verdade, não havia nunca trabalhado. O seu
pensamento ia para outra parte.
Desde que Arnaldo lhe trouxera notícias do que
ouvira na venda, ele se sentia um pouco desanimado nos seus propósitos, em
relação à filha do carteiro. Ao mesmo tempo, porém, ele percebia que todas
aquelas precauções contra ele eram tomadas porque a rapariga não lhe era
indiferente. De modo que - concluía ele - precisava saber ao certo os
sentimentos de Clara, para então agir. Era necessário ouvir-lhe a palavra; mas
como? A ele, não convinha rondar a casa da filha do carteiro. Era conhecido,
seria denunciado ao pai, que, naturalmente, lhe tomaria satisfações. Qualquer
que fosse o desfecho do pugilato, ele só teria a perder. A sua fama, a sua má
fama, se tinha corporificado naquele fantástico caderno que ia ter a todas as
mãos. Não era mais formada de boquejos daqui e dali, em geral anônimos; agora,
vinha documentada, com todas as indicações e referências precisas.
Havia nele com o que se pudesse condenar um
santo: e, se ele agredisse o carteiro Joaquim, toda a simpatia iria para o pai,
que defendia até à última extremidade a honra de sua filha, e não para ele, um
contumaz e cínico sedutor. Até ali, ele contava com a benevolência secreta de
juízes e delegados, que, no íntimo, julgavam absurdo o casamento dele com as
suas vítimas, devido à diferença de educação, de nascimento, de cor, de
instrução. Quanto à segunda e terceira causa, embora nem sempre se verificasse
a segunda, podia-se admitir; mas, quanto às duas outras considerações, eram
errôneas, porque ele era tão ignorante e tão mal-educado como eram, em geral,
as humildes raparigas que ele desgraçava irremediavelmente.
De resto, ele já não contava com proteção
alguma.
No começo, foi seu pai; depois, seu tio, o
capitão-médico - ambos solicitados tenazmente por sua mãe; mas agora? Agora,
ele estava certo de que nenhum deles se abalaria e gastaria um ceitil por causa
dele. Restava o Capitão Barcelos. Neste, porém, ele não depositava grande
confiança. Fosse coisa pequena em que nada se gastasse, o capitão mover-se-ia;
no caso contrário, porém, fugiria com o corpo. Era preciso cautela, senão...
Cassi continuou a pesar os meios que podia
encontrar para entender-se com Clara. Com Lafões, ele já não contava. Vira, na
última visita que lhe fizera, que o velho português era matreiro. Com ele, não
levaria vantagem alguma. Como havia de ser?
Dos bondes continuava a descer gente aos
magotes, que se encaminhava apressadamente para a plataforma da estrada de
ferro. Alguns iam tomar um café, antes de se encaminharem, definitivamente,
para os "varais" da repartição; outros iam até às casas de
"bicho" e deixavam lá o jogo; mas todos iam afinal trabalhar, fazer
alguma coisa para ganhar dinheiro. Só o Senhor Cassi Jones de Azevedo ficava...
- Oh! "Seu" Cassi, como vai essa
força?
O menestrel suburbano da modinha lânguida e acompanhamento
luxurioso de olhares revirados voltou-se e reconheceu quem falava:
- Como vai você, Praxedes?
- Eu, "Seu" Cassi, vou bem. Mas esse
negócio de foro... Ontem, apresentei uma exceção de incompetência; pensei que
fosse julgada logo, mas o juiz transformou o julgamento em diligência...
Borrou-me a pintura... Hoje, vou ver se uns embargos meus são recebidos. Tenho
que ir lá embaixo... Às vezes, dá-se uma penada e lá vêm vinte, trinta e mesmo
cinqüenta...
Vendo que a conversa não interessava Cassi,
mudou-a de sentido e perguntou:
- Tem ido à casa do carteiro, lá na Rua
Teresina?
- Há muito tempo que não; e você?
- Eu só fui lá a convite de um dos músicos. Não
tenho relações particulares com a família. Por falar nisso: sabe quem saiu agora
mesmo daqui?
- Não.
- O doutor Meneses, aquele velho barbado, que
sabe muito - não conhece?
Correu alguma coisa na cabeça de Cassi, que o
fez perguntar com pressa, antes de responder:
- Para onde ele foi?
- Foi para a casa do carteiro. Está tratando dos
dentes da filha e almoça quase sempre lá. Ele precisava, coitado do doutor
Meneses! - um homem ilustrado, velho, doente - quase não comia; era só beber.
Isso lhe fazia mal, estava requeimando "ele" por dentro... Pode-se
beber; mas é preciso comer - não acha?
Praxedes não deixava, durante toda a conversa,
de mover com os braços, sem medida nem compasso, e esticar a medonha cabeça,
que teimava cada vez mais em se enterrar pelos ombros adentro.
- É um achado para ele - fez Cassi, reprimindo a
alegria. - Tenho também um trabalho para o Meneses... Se você o encontrar,
diga-lhe que eu quero falar com ele.
- Não me esquecerei; mas, caso o senhor tenha
pressa, pode procurá-lo à noite, ali, no botequim do Fagundes, perto do posto
de bombeiros. Até logo, que tenho que chegar cedo à cidade!
Cassi despediu-se também e encaminhou toda a sua
esperança de entender-se diretamente com Clara, por intermédio de Meneses. Ele
sabia-o velho, alquebrado, necessitado, viciado na bebida, sem dinheiro - seria
fácil vencer as suas repugnâncias. Pela primeira vez, pensou o modinheiro,
tinha que gastar algum...
Em parte ele se enganava, porquanto, embora
Meneses estivesse nas últimas extremidades, até agora não fizera ato menos liso
na sua vida. Podia-se classificá-lo de puro. Meneses, José Castanho de Meneses,
nascera de pais portugueses, numa cidade do litoral - sul do Estado do Rio de
Janeiro. Naqueles tempos, essas cidades eram prósperas; mas, atualmente, têm,
para demonstrar a sua irremediável decadência, o fato de não se ter notícia de
haver sido construída em quaisquer delas, de quarenta anos a esta parte, uma
única casa.
O pai tinha uma loja, um bazar, que ia próspero;
mas, com a decadência da localidade, de que foi um dos fatores a construção da
Central, o estabelecimento comercial foi decaindo. O pai viu-se obrigado a
suprimir despesas, uma das quais era a da educação e instrução dos filhos. O
José, que já tinha dezessete anos, veio para a loja e os outros foram colocados
aqui e ali, nas pescarias de "currais", que o pai tinha, e na salga
de peixe, levada a efeito muito rudimentarmente, também do velho Meneses.
Aos vinte e dois anos, José, que se aborrecia
com aquela vida, pôs o pé no mundo e correu, durante uns trinta, o interior das
antigas províncias do Rio, Minas e São Paulo. Tudo ele foi; tudo sofreu, mas
sempre inquebrantavelmente honesto. Aqui, foi guarda-livros de um armazém; numa
fazenda, administrador; num vilarejo, professor das primeiras letras; em certa
idade, encontrou um boticário simpático, que se fez seu amigo, lhe ensinou a
manipular drogas, também a obturar e limpar dentes, e a passar pequenas
receitas. Foi onde se demorou mais; mas isto se veio a dar já no fim da sua
carreira vagabunda, quando já não podia mudar de rumo. Na vizinhança da cidade,
construía-se um depósito e modestas oficinas de pequenos reparos, para as
máquinas de um ramal férreo que lá ia ter. José, que seguia as obras e via as
máquinas, ficou assombrado com aquelas maravilhas de caldeiras, fornalhas, bielas,
manivelas, alavancas, que se coordenavam para mover e parar aqueles hediondos
monstros de ferro - as locomotivas. Quis entrar no segredo de tudo aquilo e
fazia perguntas sobre perguntas. No começo, os operários explicavam; mas as
perguntas eram tais e tantas, que eles acabaram por se aborrecer com elas e com
o velho perguntador. Meneses não se aborreceu, pois se sentia com a vocação de
engenharia e de engenheiro. Ali, porém, não tinha onde estudar. Convinha descer
para o Rio de Janeiro, freqüentar aulas teóricas e aperfeiçoar-se em oficinas
adequadas. O dinheiro que tinha era pouco, mas o boticão sempre dava alguma
coisa, e a renda tinha aumentado, graças à afluência de operários para
acabamento da estradinha local. Demais, também receitava. Fazia alguma coisa: a
questão era economizar. Assim fez e, durante um ano, poupou o dinheiro
necessário para ir estabelecer-se no Rio e esperar uma colocação qualquer.
O seu amigo farmacêutico não o quis dissuadir,
mas disse-lhe:
- Se você fosse mais moço, aconselharia até,
porque se projetam grandes obras, no Rio; mas, já tendo passado dos cinqüenta,
é fazer o que parecer melhor a você. Em todo o caso, vou pedir ao Coronel
Carvalho uma recomendação.
Durante esse longo lapso de tempo que vivera
fora da família, recebera vagas notícias de seus pais e irmãos. Sabia que os
pais tinham morrido e quase todos os irmãos; e que o único que lhe restava era
remador da Capitania do Porto e mantinha a irmã solteira, a única que tivera.
Moravam lá para a Saúde.
Meneses embarcou contente; ia afinal realizar a
sua vocação. Até agora, não a tinha encontrado; mas, desde que vira aquelas
máquinas e maquinismos, sentira outra coisa dentro de si. Não deixou,
entretanto, de levar a mala dos ferros de dentista e a carta de recomendação.
No dia seguinte, depois de uma noite insípida no
hotel, foi, indagando daqui, informando-se dali, até à Capitania do Porto.
Perguntou pelo remador seu irmão e, sem
dificuldades, lhe informaram que, em breve, ele viria. Não esperou muito. Um
homenzarrão forte, tostado, com um vestuário de marinheiro, chegou-se ao
porteiro e perguntou:
- Quem é que me procura?
O porteiro apontou Meneses, sentado a um banco,
e disse:
- É aquele senhor ali.
O irmão não deu muitos passos em sua direção;
Meneses ergueu-se logo, correu-lhe ao encontro, perguntando:
- Você não me conhece mais?
- Não, senhor.
- Sou o seu irmão Juca.
Abraçaram-se muito, e o irmão Leopoldo foi dizer
ao porteiro quem era e o que havia.
- Há trinta anos! - exclamou o porteiro. - Você devia
ser muito criança - hein, Leopoldo?
O marinheiro respondeu:
- Devia ter cinco anos.
- É verdade - informou Meneses.
Leopoldo foi arranjar licença para acompanhar o
irmão que não via há trinta anos: e Meneses ficou a conversar com o porteiro
sobre coisas da roça.
- Ah! Então o senhor é engenheiro?
- Sim, mas mecânico. Trabalho, porém, com o
nível e com o trânsito.
- Agora, deve haver muito trabalho para
engenheiro; vão-se fazer grandes obras... Aproveite, doutor!
- Trago aqui uma carta para o Deputado
Sepúlveda. Tem influência?
- Muita! É o pensamento da política mineira...
Não lhe deixe a aba do fraque, doutor!
A conversa foi interrompida pela chegada de
Leopoldo, que obtivera a licença. Pelo caminho, porém, contou a Meneses como
todos morreram; como ele se empregara na Capitania e casara a irmã com um
colega, o Pedro Rocha, rapaz bom, bem-comportado, do qual tinha um sobrinho,
Edmundo, com seis anos, e com o qual morava, na Rua do Livramento.
Chegando à casa do cunhado e do irmão, a sua
irmã Etelvina, que ele deixara com sete ou oito anos, não o reconheceu; e, em
breve, tendo-lhe chegado o marido, foi uma festa de que só não participou o
sobrinho de seis anos, sempre de nariz sujo e vestes rotas, arredio e agarrado
às saias da mãe, mas sem querer tornar a bênção ao tio.
A irmã logo convidou o irmão mais velho a ficar
com eles. Havia um barracão no quintal, que, bem reparado, podia servir para
Leopoldo, e o quarto deste ficaria para o Juca. Enquanto não estivesse em
estado, ele teria a paciência de dormir com Leopoldo. Meneses aceitou o
alvitre, dizendo:
- Se eu tenho que gastar em outra parte...
Logo foi interrompido por todos:
- Oh! Não, não, Juca!
- Não é esse motivo! - fez o cunhado.
- Não seja essa a dúvida, mano Juca.
Meneses ficou muito agradecido e acrescentou:
- Mesmo porque quero que um de vocês consiga
meios e modos de falar ao doutor Sarmento Sepúlveda, na Câmara. Tenho uma carta
para ele.
O cunhado logo exclamou:
- O quê! É um bicho.
Combinado tudo isto, Meneses instalou-se na casa
dos parentes, com a sua mala e os seus ferros de dentista. Levou a carta do
Coronel Carvalho ao deputado, que o atendeu muito bem, perguntou-lhe pelas
pessoas gradas do lugar onde estivera e deu-lhe outra para o chefe da construção
da avenida. No dia seguinte, estava admitido. Ganhou dinheiro, não o guardou,
mas, se assim foi, motivo não houve em desperdício de sua parte. O irmão em
breve adoecia e morria; o cunhado seguia-se-lhe logo. Custeou o tratamento de
ambos; e, quando foi dispensado da comissão da avenida, pouco após a morte de
ambos, pouco ou nada tinha. A irmã ficara com uma pequena pensão mensal da
Caixa dos Remadores, cerca de trinta mil-réis, e um filho; e ele, com seus
ferros de dentista. É verdade que fizera uma pequena biblioteca de engenharia
mecânica: As Grandes Invenções, de Luís Figuier; As Maravilhas da Ciência, de
Tirrandier; manuais de toda a sorte de ofícios e recortes de jornais que
tratavam de coisas científicas ou parecidas, colados em cadernos encadernados. Dessa
biblioteca, nunca se separou; e, conquanto já bebesse, com o tempo, os
desgostos e a miséria atraíram-no mais para o álcool, e o furor de beber o
tomou inteiramente. A toda hora, naquele casebre dos subúrbios, onde morava com
a irmã e o palerma do sobrinho, ele esperava, adivinhava, construía uma
catástrofe que lhe devia cair sobre os ombros; e essa visão de uma próxima
catástrofe na sua vida entibiava-lhe o ânimo, descoroçoava-o e pedia-lhe para
afastar - a bebida. Na rua, se só, era a mesma coisa. Só a tinha longe dos
olhos, quando de súcia com outros.
Contudo, apesar das duras necessidades que
curtia, com a irmã e o filho desta, jamais ato algum de sua vida incidira na
censura de sua consciência. O pouco dinheiro que os ferros lhe davam ou os
amigos, era empregado no sustento deles, pois a casa era paga com a pensão de
Etelvina, a irmã.
Cassi, para vencê-lo, para ladeá-lo, tinha
imaginado o plano de, aos poucos, pô-lo a seu dispor, prendê-lo de pés e mãos,
como se diz, sem ele perceber.
Sabendo onde encontrá-lo à noite, nessa mesma do
dia em que soube, procurou-o. Meneses estava triste a um canto, lendo um
jornal, com um cálice vazio ao lado.
O homem das modinhas chegou-se e, sem dizer
palavra, foi-se abancando:
- Boa-noite, doutor!
- Boa-noite, "Seu" Cassi - fez
Meneses, erguendo a cabeça do periódico.
- Que há de novo, por aí? Trabalha-se muito?
- Alguma coisa. Agora, as coisas me correm
melhor. O Joaquim dos Anjos deu-me os dentes da filha a tratar, e ele, embora
pouco, sempre me paga pontualmente. É um alívio!
- O doutor é um sonhador. Tem sido explorado...
- Nem tanto. Quando fiz aquele trabalho para uma
de suas irmãs, fui muito bem pago. A minha dificuldade é não ser formado;
demais, não tenho roupas... Às vezes, "Seu" Cassi, para arranjar
esses sapatos de duraque que uso, por não poder usar outros, suo sangue e faço
das tripas coração...
- Paciência, doutor. Tome alguma coisa - fez
Cassi amável.
Meneses aceitou e disse amargamente:
- Estou com setenta anos e não sei o que fiz na
vida.
Cassi regozijava-se, intimamente pensando: o
homem está cheio de dificuldades.
- Não desanime. O Capitão Sebastião, aquele da
Prefeitura, há dias me disse que ia precisar de um dentista modesto para
consertar os dentes de um filho, que, na "muda", deixou acavalar. É
pouca coisa, mas, talvez, daí...
- Aceito tudo...
- Outra coisa, doutor Meneses.
- Que há?
- O senhor se dá muito com o Leonardo Flores, o
poeta?
- Muito. Por quê?
- É que eu queria uns versos...
Meneses não escondeu o espanto, que Cassi
percebeu, e, sem dissimular, procurou explicar-se melhor:
- É coisa séria. Não há compromisso nenhum para
os senhores... Eu daria alguma coisa até!...
- É que o senhor não sabe como o Flores é
orgulhoso. Dentro daquela sujeira toda, esfarrapado, alagado de cachaça, ele é
um deus; e não lhe toque em coisas de poesia, porque senão...
- Sei bem; mas sei também que o senhor tem
grande influência sobre ele. Veja se me arranja? Olhe, doutor, não é para
afrontar; tem aqui dez mil-réis para as primeiras despesas. Cinco são para o
senhor e cinco para ele.
- Não é preciso - disse Meneses, já um tanto
convertido.
A sua miséria lhe falava. Não havia quebra de
honestidade, tanto mais que não se tratava de injúrias e insultos a ninguém.
- Não, doutor; leve, leve! Tudo deve ser pago.
Não é preciso grande coisa; bastam uns versos amorosos, mas delicados e finos,
morais - está ouvindo, doutor?
Cassi foi-se, depois que Meneses prometeu
arranjar a versalhada. Já passavam das sete horas, e, logo que o violeiro
desapareceu, o dentista levantou, foi a um ângulo do balcão e disse para o
caixeiro, dando-lhe a nota de dez mil-réis que havia recebido das mãos de
Cassi:
- Paga aqueles seiscentos réis que estou devendo
e me dá mais outra "lambada".
Tomou-a e voltou a sentar-se na mesa. Comprou
num jornaleiro os jornais da noite e foi-se deixando ficar, levantando-se, de
quando em quando, para sorver às escondidas um "calisto". Aí, pelas
proximidades das dez horas, sobraçando um maço de jornais, encaminhou-se para
casa, no firme intuito de dar cumprimento à promessa que fizera a Cassi. A casa
era um tanto longe, pelos bons caminhos; mas, cortando-se caminhos desertos,
subindo e descendo morros, chegava-se a ela com mais presteza.
Não hesitou e tomou os atalhos, que conhecia
bem; e, quase por instinto, os seguia até à sua residência. Ficava esta numa
campina nua; e só era cercada na frente, toscamente, e, do lado direito, graças
ao vizinho. Tinha um cajueiro mofino, que disfarçava a casinha e dava uma
escassa sombra à torneira d'água, onde a irmã lavava roupa, de casa e de fora.
De onde em onde, Meneses cismava em plantar algumas árvores de rápido
crescimento, para sombra; mas lá vinham os cabritos da vizinhança e matavam-lhe
os brotos. A muito custo, conseguiu fazer um caramanchão tosco com que
ensombrasse a sala de jantar, onde dormia, e que se prestasse a cozinha, nos
dias normais. A casa só tinha dois aposentos iguais, que se comunicavam por uma
porta. Não fora a rua, não teria frente nem fundos, tão semelhantes eram essas
extremidades dela. A irmã habitava o aposento da frente, dividido por uma
cortina, que corria do portal da porta interior até ao da que dava para a rua.
Era de telha-vã e de chão.
Chegou em casa e comeu o feijão e arroz com
pirão de fubá de milho, que a irmã lhe guardava sempre. Fez isto à luz de um
"vagabundo", espécie de lanterna, de querosene, reduzida aos seus
últimos elementos. Bebeu dois ou três cálices de parati, pois sempre o tinha em
casa; e estirou-se num velho canapé, com um fundo de tábuas de caixões,
acolchoado com jornais. A roupa, ele a tinha tirado com todo o cuidado e com
todo o cuidado depositado na guarda de uma cadeira de pau, a única existente na
casa. A mesa de pinho, uma carcomida velha mesa de cozinha, tomava o resto do
aposento; e, nela, roncava o palerma do sobrinho. Cobriu-se com uma manta,
feita de metades de duas outras, e dormiu serenamente.
Logo pela manhã, no dia seguinte, a irmã
despertou-o assustada:
- Juca! Juca!
- Que é mulher? Não se pode dormir mais nesta
casa...
Depois, mudando de tom:
- Que há, Etelvina?
- Precisamos de açúcar, café, e já devemos ao
padeiro seiscentos réis.
- Você vai ao bolso do colete e tira de lá todas
as pratas e níqueis que encontrares. Deixa só quatrocentos réis. Julgo que deve
haver uns três mil e tantos a quatro mil-réis. Fica com tudo. Dá-me um cálice,
aí!
A irmã não parecia mais moça do que ele quinze
anos. Era velha, encarquilhada, magra, quase desdentada, cabelos completamente
brancos, toda ela respirando cansaço e desânimo.
Ela chamou o filho - Edmundo! - que logo
apareceu. Mole, bambo, a muito custo aprendera a ler e a rabiscar, a esforços
do tio; mas não ficava em lugar nenhum. Tal era a sua inércia e moleza, que
logo era despedido. O seu ofício era caçar preás, rãs, para vender aos
estrangeiros da "fábrica", apanhar passarinhos e, de onde em onde,
ajudar a fazer pescarias, no porto de Inhaúma.
A mãe, com o produto de suas pobres lavagens
para fora, era afinal quem o vestia, porque ele bebia tudo o que ganhava, mas
raramente tocava na garrafa que o tio tinha em casa e não trazia bebida para
casa, absolutamente.
Tendo Etelvina servido o irmão de parati, este
verificou que a garrafa continha pouco e, à nota das compras a fazer, mandou
que juntasse mais meia garrafa de aguardente. A que restava, passou-a para um
vidro de farmácia.
A irmã não se conteve, que não exclamasse:
- Ah! Santo Deus! Esse parati é uma desgraça...
- Não há dúvida, mana; mas, agora, não posso
mais parar, senão morro... Olha o jornal! - gritou ele para Edmundo.
- Sim, titio - respondeu-lhe o sobrinho, do meio
da rua.
Como também tivesse pressa em tomar café,
Edmundo fez prestamente as compras. A fogo de gravetos, em breve o café estava
pronto. Meneses, a irmã e o sobrinho tomaram-no em redor da mesa; ela, sentada
na cadeira, e eles, no velho canapé.
Bebericando e lendo o jornal, o velho dentista
deixou-se ficar deitado. Era dia santo, quase feriado, dia de ponto facultativo
- que iria fazer? Lembrou-se de procurar Leonardo Flores. Era a sua obrigação.
Almoçaria e iria até à casa dele. Assim fez. Encaminhou-se imediatamente para a
casa de Leonardo Flores, que não ficava muito longe, pela Estrada Real, em
cujas margens residiam ele e sua irmã Etelvina com o filho.
Em lá chegando, foi recebido pela mulher, Dona
Castorina, que o fez entrar. Estava avelhantada, gasta, já não pela idade, que
não podia ser ainda de cinqüenta anos, mas pelos trabalhos por que tinha
passado com o marido, mais do que com os próprios filhos. Nunca se lhe ouvia um
queixume, nunca articulou uma acusação contra Flores. Sofria todos os desmandos
do marido com resignação e longanimidade. Esse seu gênio, esse seu temperamento
de doçura e perdão em face da exaltação, da exacerbação, até quase delírio, do
marido, fizera que este produzisse o que produziu. Não fora ela, aquela pequena
mulata, magra, de olhos negros e tristes, rindo-se sempre com uma profunda
expressão de melancolia; não fora aquela humilde mulatinha, que estava ali
defronte de Meneses, talvez Flores não fizesse nada. Este sabia disso e a
amava, apesar de tudo o que pudesse depor contra eles, e ela tinha, no fundo
d'alma, apesar dos desregramentos do seu marido, um grande orgulho de sua
Glória.
Dona Castorina informou-o que Leonardo havia
saído, para visitar um amigo, em companhia de um filho; e talvez passasse o dia
em casa dele. Meneses ainda conversou um pouco, tomou dois cálices de parati de
Mangaratiba, que um filho seu, auxiliar de trem, trouxera para o pai.
Na hipótese - e muito plausível, consoante o
gênio de Leonardo - de que ele houvesse parado na venda do "Seu"
Nascimento, foi até lá. Não o encontrou e saiu com a consciência dolorida pelo
que ouvira da boca de Marramaque, de Alípio e demais.
Teve remorso e vergonha do que estava fazendo?
Para que iria ele, arranjando aqueles versos, contribuir? Dirigiu-se para o
Engenho de Dentro, a ver se encontrava alguém com quem conversar e disfarçar
aquele começo de acusação, que, à sua fraqueza, se debuxava na sua consciência.
Encontrou um grupo de rapazes da estrada de ferro, que eram sempre generosos
com ele. Estavam ruidosos e contentes. Meneses sentou-se na roda, mas não houve
meio de despregar a língua.
- Que é isto, Meneses? Bebe! - fez um.
Ele bebia, mas o espinho não saía. Conversava
afinal um pouco. Num dado momento, vendo que era demais na conversa com a sua
tristeza e o seu arrependimento reprimido, despediu-se. Um lhe perguntou:
- Vais para casa? Tens dinheiro?
Ele respondeu:
- Vou já para casa; mas dinheiro não tenho.
Os rapazes fizeram-lhe um rateio, que perfez
dois mil-réis; e, quando saía, um outro, levantando os braços, de um dos quais
pendia uma antiquada bengala de cerejeira, gritou para o caixeiro:
- Antunes, dá uma garrafa de "cachaça"
- "cachaça", estás ouvindo? - "cachaça"! - dá uma garrafa
de "cachaça" para o nosso querido Meneses espantar as suas mágoas.
Quando Meneses apareceu em casa, a irmã foi-lhe
logo dizendo:
- Juca, foi bom você aparecer. Estou sem
dinheiro para carvão, farinha e querosene. O que você deu não chegou... Fui
comprar carne-seca - lá se foi todo o dinheiro.
O velho Meneses, semi-embriagado, já sem decidir
perfeitamente, tirou os cinco mil-réis que estavam escondidos na algibeira e
destinados a Flores, juntou mais dez tostões e disse para a irmã:
- Tens aí seis mil-réis até segunda-feira. Mana,
você até lá não tem direito de me pedir mais dinheiro. Hoje é sexta-feira,
temos sábado e domingo garantidos.
Bebeu um cálice do parati que trouxera,
deitou-se e tentou ler os jornais que os rapazes lhe deram; mas não pôde. O
sono o tomou até à hora do jantar. Quando abriu os olhos e se lembrou de ter
dado os cinco mil-réis, destinados a Flores, em troca de versos, aborreceu-se
um pouco; mas pensou e fez de si para si: Eu me arranjo. Comeu bem e, enquanto
houve luz do sol, leu e releu os jornais que tinha; quando veio a noite,
continuou a lê-los, sempre bebericando aguardente.
No dia seguinte, logo que amanheceu, ainda não
se havia feito o dia totalmente, foi até à bica, lavou-se quase inteiramente,
aproveitando a escuridão, preparou o café, tomou uma xícara, seguida de alguns
cálices de parati, e pôs-se na rua antes das sete horas. Era ainda cedo para ir
à casa de Leonardo Flores. Foi à estação, comprou um jornal, leu-o e seguiu
para a residência do amigo. Flores já se encontrava de pé e quase todos de
casa. Recebeu-o vestido com uma calça velha e de camisa de meia. Estava
escrevendo. Ao se lhe deparar o amigo, olhou-o muito demoradamente; e, em
seguida, fazendo com os braços um gesto perfeitamente teatral, inclinando para
trás a cabeça e estufando o peito, conforme o consagrado na ribalta para
encontros sensacionais, falou com voz cava e solene:
- Tu, Meneses! És tu, Pítias da minha alma!
Notícias há muitos sóis que não hei recebido de ti. Entra neste solar amigo e
repousa a fadiga da jornada naquela credência de Córdova que o Abd-El-Málek,
caído do Atlas, me mandou de Marrocos e foi do último rei de Granada, Boabdil,
que chorou...
- Flores, estás discursivo demais... - disse
Meneses, sentado na tal credência de Córdova, que não era nada mais do que uma
vulgar cadeira austríaca de palhinha.
- Bebe tu agora o licor de boa amizade. É
produto genuíno das minhas terras solarengas e avoengas de Mangaratiba.
Tomaram o "licor de boa amizade"; e,
após, o poeta, falando em tom natural, perguntou ao amigo:
- Como vais, Meneses?
- Assim; e tu?
- Às vezes, bem; às vezes, mal - conforme a lua.
Já tomaste café?
Embora dissesse que sim, Flores teimou em
servir-lhe outra xícara, que foi buscar à cozinha. A sala de visitas era a
mesma de há vinte anos. Tinha resistido a todas as mudanças e todas as
despesas. Um sofá austríaco, velho, esburacado; duas cadeiras de braço da mesma
marca, um trio de cadeiras de todos os feitios. Pela parede, além de outros, um
magnífico retrato a óleo de pintor, feito por uma celebridade, quando nos seus
começos. Uma velha estante de ferro com brochuras espandongadas e uma mesa
furada com toalha de aniagem, bordada a lã de várias cores. Tinteiro, canetas e
o mais para escrever.
Flores voltou com as xícaras cheias, pão e
manteiga. Depositou tudo na mesa e sentou-se. Meneses notava com admiração que
o amigo não dava nenhum sinal de desequilíbrio, nem de embriaguez. Isso fez-lhe
prazer e, pondo-se a tomar café, perguntou-lhe:
- Flores, tu ainda fazes versos?
- Bárbaro que tu és! Pois então tu podes
imaginar que eu, Leonardo Flores, deixe de fazer versos? Eu vivo de versos e no
verso. Minha cabeça é um poema, interminável, que minh'alma ritma soberbamente.
Não sei outra língua, senão a divina das Musas... Contraria-me falar como estou
falando...
Calou-se um pouco e ambos sorveram o café a
grandes goles, mastigando grandes pedaços de pão com manteiga. Flores cessou de
mastigar e perguntou:
- Por que tu me perguntaste se eu ainda fazia
versos?
Ingenuamente, Meneses respondeu:
- Tinha encomenda deles a fazer-te.
- O quê? - fez indignado Flores, erguendo-se,
num só e rápido movimento, da cadeira, e deixando a xícara sobre a mesa. - Pois
tu não sabes quem sou eu, quem é Leonardo Flores? Pois tu não sabes que a
poesia para mim é a minha dor e é a minha alegria, é a minha própria vida? Pois
tu não sabes que tenho sofrido tudo, dores, humilhações, vexames, para atingir
o meu ideal? Pois tu não sabes que abandonei todas as honrarias da vida, não
dei o conforto que minha mulher merecia, não eduquei convenientemente meus
filhos, unicamente para não desviar dos meus propósitos artísticos? Nasci pobre,
nasci mulato, tive uma instrução rudimentar, sozinho completei-a conforme pude;
dia e noite lia e relia versos e autores; dia e noite procurava na rudeza
aparente das coisas achar a ordem oculta que as ligava, o pensamento que as
unia; o perfume à cor, o som aos anseios de mudez de minha alma; a luz à
alegoria dos pássaros pela manhã; o crepúsculo ao cicio melancólico das
cigarras - tudo isto eu fiz com sacrifício de coisas mais proveitosas, não
pensando em fortuna, em posição, em respeitabilidade. Humilharam-me,
ridicularizaram-me, e eu, que sou homem de combate, tudo sofri resignadamente.
Meu nome afinal soou, correu todo este Brasil ingrato e mesquinho; e eu fiquei
cada vez mais pobre, a viver de uma aposentadoria miserável, com a cabeça cheia
de imagens de ouro e a alma iluminada pela luz imaterial dos espaços celestes.
O fulgor do meu ideal me cegou; a vida, quando não me fosse traduzida em
poesia, aborrecia-me. Pairei sempre no ideal; e se este me rebaixou aos olhos
dos homens, por não compreender certos atos desarticulados da minha existência;
entretanto, elevou-me aos meus próprios, perante a minha consciência, porque
cumpri o meu dever, executei a minha missão: fui poeta! Para isto, fiz todo o
sacrifício. A Arte só ama a quem a ama inteiramente, só e unicamente; e eu
precisava amá-la, porque ela representava, não só a minha Redenção, mas toda a
dos meus irmãos, na mesma dor. Louco?! Haverá cabeça cujo maquinismo
impunemente possa resistir a tão inesperados embates, a tão fortes conflitos, a
colisões com o meio tão bruscas e imprevistas? Haverá?
Flores havia falado até agora de pé, no meio da
sala, sublinhando tudo com grandes e largos gestos e modulando a voz conforme a
paixão lhe tocava. Fatigou-se, calou-se um pouco, cruzou os braços adiante do
corpo, enterrou o queixo pontiagudo e barbado no peito e, assim, sempre calado,
ficou instantes a sacudir levemente a cabeça, um tanto virada para a esquerda,
olhando o amigo desoladamente. Era ele pardo-claro e cabelos negros e lisos,
com abundantes fios brancos; tinha malares salientes e a boca bem-feita. Altura
média. Diante da explosão do amigo, Meneses não encontrou nada que dizer.
Calou-se prudentemente e evitou o olhar de Flores, onde este lhe censurava e,
ao mesmo tempo, se apiedava pela incompreensão que não podia existir num velho
amigo, tal como Meneses, pela verdadeira natureza e poder do seu estro e pelo
seu ardor artístico.
Leonardo, com menos paixão e entusiasmo,
continuou:
- Sim, meu velho Meneses, fui poeta, só poeta!
Por isso, nada tenho e nada me deram. Se tivesse feito alambicados jeitosos,
colchas de retalhos de sedas da China ou do Japão, talvez fosse embaixador ou
ministro; mas fiz o que a dor me imaginou e a mágoa me ditou. A saudade
escreveu e eu translado, disse Camões; e eu transladei, nos meus versos, a dor,
a mágoa, o sonho que as muitas gerações que resumo escreveram com sangue e
lágrimas, no sangue que me corre nas veias. Quem sente isto, meu caro Meneses,
pode vender versos? Dize, Meneses!
- Não. Deve sempre assiná-los.
- Pois eu não vendo, passe por que passar.
Sofram, sonhem e bebam cachaça, se o quiserem fazer. Isto não será bastante -
disse ele com melancolia - é preciso ter nascido como eu, ter perdido todos os
seus irmãos na pobreza e ter um, há vinte anos, atacado da mais estúpida forma
de loucura, para os poder fazer. Isto, porém, ninguém pode obter por sua
própria vontade. Bendito seja Deus!
Sentou-se com os olhos úmidos, tomou uma
"talagada" do "Mangaratiba" e dispôs-se a escrever,
recomendando ao amigo:
- Deita-te no sofá e lê os jornais, enquanto
escrevo alguma coisa, até o "ajantarado".
Meneses assim fez. Veio a dormir e, quando
despertou, ficou admirado da amplitude da sala e ter as pernas livres. Sonhara
que estava preso e acorrentado...
VIII
Um dos traços mais simpáticos do caráter de
Joaquim dos Anjos era a confiança que depositava nos outros, e a boa-fé. Ele
não tinha, como diz o povo, malícia no coração. Não era inteligente, mas também
não era peco; não era sagaz, mas também não era tolo; entretanto, não podia
desconfiar de ninguém, porque isso lhe fazia mal à consciência. Não se diga
que, às vezes, não recebesse certos conhecimentos com reservas e cautelas; tal
coisa, porém, era rara, e gracioso era estar já prevenido de antemão com o sujeito.
Em geral, fosse quem fosse, ele acolhia com simpatia, de braços abertos. Na sua
simplicidade, a maldade, a má-fé, a perversidade, a duplicidade dos homens lhe
pareciam coisas tão raras, tão difíceis de medrar numa criatura de Deus, que só
topariam com elas os que lhes andassem à procura, para estudos e coleções.
A sua vida se havia desenvolvido até ali na
maior boa-fé e, como houvesse sido feliz, no seu ponto de vista, os seus
cinqüenta anos julgavam o mundo como um reino de paz, de concórdia, de honestidade
e lealdade, apesar das notícias de jornais.
Jamais lera jornais habitualmente. Se tomava um
e tentava ler qualquer coisa, logo lhe vinha o sono. Tudo que não viesse
ferir-lhe o ouvido, não suportava e não lhe ia à inteligência. Não compreendia
um desenho, uma caricatura, por mais grosseira e elementar que fosse. Para que
pudesse receber qualquer sensação duradoura e agradável, era-lhe preciso o
"som", o "ouvido".
Música, desde que fosse aquela a que estava
habituado, encantava-lhe; canto, mesmo acima da trivial modinha, arrebatava-o;
versos, quando recitados, apreciava muito; e um grande discurso, cujos
primeiros períodos ele não seria capaz de lê-los até ao fim, entusiasmava-o,
fosse qual fosse o assunto, desde que o dissesse grande orador. Era pobre de
visão e o funcionamento do seu aparelho visual era limitado às necessidades
rudimentares da vida.
Conquanto razoavelmente empregado, nunca deixara
a música. Não tocava em bandas nem em orquestras; mas tirava partes,
instrumentava, compunha de quando em quando, ganhando algum dinheiro com isso.
Todas as tardes, após o serviço, reunia-se com outros músicos militantes,
bebericavam, conversavam, falavam sobre a "Arte", as orquestras de
cinemas, a música de tal peça ou daquela outra, relembravam colegas mortos; e,
às seis horas, por aí assim, encaminhava-se para a casa, sempre com um rolo de
papel de música.
Trabalhava nas encomendas, após o jantar.
Punha-se de calças e camisa de meia, nos dias quentes, ou com um paletó velho,
nos frios, e enfronhava-se nos compassos, nos sustenidos, nos acordes, até alta
noite. Tinha ensinado à filha os rudimentos da arte musical e a caligrafia
respectiva. Não lhe ensinara um instrumento, porque só queria piano. Flauta não
era próprio, para uma moça; violino era agourento, e o violão era desmoralizado
e desmoralizava. Os outros que o tocassem, sem música ou com ela; sua filha,
não. Só piano, mas não tinha posses para comprar um. Podia alugar, mas tinha
que pagar professora para a filha. Eram duas despesas com que não poderia
arcar. O rendimento da música não era coisa certa; e os seus vencimentos tinham
emprego obrigado no vestuário seu, da mulher e da filha, no armazém, etc., etc.
Por isso, não levou avante os estudos musicais
da filha, os quais, por falta de convivência e tempo, não passaram da pouca
coisa que ele podia ensinar. Mesmo ela não tinha nenhum ardor musical, nem de
repetir, de reproduzir, nem de criar; aprazia-lhe ouvir, e era o bastante para
a sua natureza elementar. Nem a relativa independência que o ensino da música e
piano lhe poderia fornecer, animava-a a aperfeiçoar os seus estudos. O seu
ideal na vida não era adquirir uma personalidade, não era ser ela, mesmo ao
lado do pai ou do futuro marido. Era constituir função do pai, enquanto
solteira, e do marido, quando casada. Não imaginava as catástrofes imprevistas
da vida, que nos empurram, às vezes, para onde nunca sonhamos ter de parar. Não
via que, adquirida uma pequena profissão honesta e digna do seu sexo,
auxiliaria seus pais e seu marido, quando casada fosse. Ela tinha bem perto o
exemplo de Dona Margarida Pestana, que, enviuvando, sem ceitil, adquirira casa,
fizera-se respeitada e ia criando e educando o filho, de progresso em
progresso, fazendo tudo prever que chegaria à formatura ou a coisa parecida.
A muito custo, devido às insistências de Dona
Margarida, consentira em ajudá-la nos bordados, trabalhados para fora, com o
que ia ganhando algum dinheiro. Não que ela fosse vadia, ao contrário; mas tinha
um tolo escrúpulo de ganhar dinheiro por suas próprias mãos. Parecia feio a uma
moça ou a uma mulher.
Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que
precisava mãos fortes que a modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes
disso. A mãe não tinha caráter, no bom sentido, para o fazer; limitava-se a
vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do
tempo longe dela. E ela vivia toda entregue a um sonho lânguido de modinhas e
descantes, entoadas por sestrosos cantores, como o tal Cassi e outros
exploradores da morbidez do violão. O mundo se lhe representava como povoado de
suas dúvidas, de queixumes de viola, a suspirar amor. Na sua cabeça, não
entrava que a nossa vida tem muito de sério, de responsabilidade, qualquer que
seja a nossa condição e o nosso sexo. Cada um de nós, por mais humilde que
seja, tem que meditar, durante a sua vida, sobre o angustioso mistério da
Morte, para poder responder cabalmente, se o tivermos que o fazer, sobre o
emprego que demos a nossa existência. Não havia, em Clara, a representação, já
não exata, mas aproximada, de sua individualidade social; e, concomitantemente,
nenhum desejo de elevar-se, de reagir contra essa representação. A filha do
carteiro, sem ser leviana, era, entretanto, de um poder reduzido de pensar, que
não lhe permitia meditar um instante sobre o destino, observar os fatos e tirar
ilações e conclusões. A idade, o sexo e a falsa educação que recebera tinham
muita culpa nisso tudo; mas a sua falta de individualidade não corrigia a sua
obliquada visão da vida. Para ela, a oposição que, em casa, se fazia a Cassi,
era sem base. Ele tinha feito isto e aquilo; mas - interrogava ela - quem diria
que ele fizesse o mesmo em casa de seu pai?
Seu pai - pensava ela - estava bem empregado, relacionado,
respeitado; ele, portanto, não seria tão tolo, que fosse desrespeitar uma
família honesta, que tinha por chefe tal homem. De resto, esses rapazes não são
culpados do que fazem; as moças são muito oferecidas...
Com raciocínios desse jaez e semelhantes, Clara,
na ingenuidade de sua idade e com as pretensões que a sua falta de contacto com
o mundo e capacidade mental de observar e comparar justificavam, concluía que
Cassi era um rapaz digno e podia bem amá-la sinceramente.
O padrinho, Marramaque, parecia-lhe seu inimigo.
Sempre que podia, contava mais uma proeza, mais uma falcatrua de Cassi. Não lhe
cansava o assunto.
Clara até tinha, às vezes, vontade de dizer a
seu padrinho: "Padrinho, esse Cassi deve ser muito rico, porque compra a
polícia, a justiça, para não ser preso. Olhe: se ele fosse condenado pela
metade dos crimes que o senhor lhe atribui, estaria já na cadeia, por mais de
trinta anos."
Ela se enganava, porque não conhecia a vida.
Para se escapar aos crimes de Cassi, basta um pouco de proteção e que o acusado
seja bastante cínico e ousado.
Vivia assim ansiosa e ofegante, querendo e não
querendo ver o modinheiro; ora, convencendo-se de tudo que diziam dele; ora,
não acreditando e apresentando ao seu próprio espírito dúvidas e objeções, quando
Meneses veio tratar dos seus dentes, após umas fortes dores que a prostraram de
cama.
Um certo dia, o pai lhe havia dado, ao sair,
pela manhã, um trabalho de música, para copiar, de forma que, à tarde,
estivesse pronto. Não era longo, mas exigia atenção. Depois do almoço, aí pelas
onze horas, pôs-se a copiar, mas, subitamente, deu-lhe uma dor de dentes que a
fez gemer e até chorar.
Engrácia, sua mãe, correu a acudi-la. Como
sempre, porém, ficou estonteada, sem saber o que fazer, que paliativo dar; Clara,
mal falando, disse-lhe que mandasse chamar Dona Margarida.
Em vindo esta, aplicou remédios caseiros, mandou
buscar malva, pela criada que tinha em sua casa; fez Clara bochechar e foi-se
para a casa tratar dos seus bordados e costuras.
Engrácia, porém, não se acomodava, andava de um
lado para outro, impaciente que o marido chegasse. Todas as moléstias
existentes, que a natureza cria, e os médicos, por desfastio, inventam, ela
supunha poder ter sua filha.
Não havia nenhuma lucidez nos seus raciocínios,
quando um acontecimento de aparência grave lhe tocava, e pior ficava, quando se
tratava da filha.
O seu amor à Clara era um sentimento doentio,
absorvente e mudo. Queria a filha sempre junto a si, mas quase não conversava
com ela, não a elucidava sobre as coisas da vida, sobre os seus deveres de
mulher e de moça. A não ser no caso de Cassi, que o seu instinto de mãe falara
mais alto do que a sua inércia natural, nunca punha em prática uma medida
eficaz que traduzisse amparo e direção de mãe na conduta da filha. Pensava, mas
não chegava ao ato.
O dia inteiro, quase, passavam as duas mulheres
metidas cada uma consigo mesma.
A mãe lavava a roupa no tanque, ao lado da casa;
e a filha se encarregava dos arranjos domésticos. A cozinha era feita por ambas
ou só por Clara, quando não tinha músicas do pai a copiar ou sua mãe tinha
muita roupa na lavagem.
Joaquim, o Quincas, como o chamava a mulher,
saía, nas primeiras horas da manhã, passava pela venda, fazia as encomendas,
tomava um "calisto" e conversava um pouco com o "Seu"
Nascimento.
- Não acredito que "ele" venha, nem
também que o outro se repimpe no Catete.
- Seria bom para o senhor... - dizia Nascimento.
- O quê? Nem o conheço... Qual! Nada tenho com
um nem com outro...
- Mas é seu patrício...
- Como o senhor é, como o outro é também. Somos
todos brasileiros... Eu, "Seu" Nascimento, só cuido da mulher e da
filha e, um pouco, da música.
- Por falar em música: que tal aquele Cassi?
- Quer que lhe diga uma coisa? Como músico, não
vale nada. Dá cada cincada...
- Mas tem fama...
- A fama dele vem do dengoso, do meloso que ele
põe no cantar, chegando a ser até uma indecência. Ele canta que parece estar
num café-concerto, no meio de mulheres de vida airada...
- Por aí, apreciam-no muito.
- São essas meninas bobas, que não têm quem lhes
abra os olhos... Olhe, "Seu" Nascimento, na minha casa ele não me põe
mais os pés.
- Marramaque, seu compadre, já me tinha dito
isto e...
- O compadre exagera muito. O compadre tem o seu
ponto de honra de poeta... O senhor sabe; ele já figurou, escreveu em jornais e
revistas, teve roda e convivência de certa ordem, não pode admitir que um quase
analfabeto, como Cassi, tenha fama de artista... A culpa não é deste; é do
nosso meio, que não tem instrução nem preparo.
- "Seu" Joaquim, o senhor já viu o
caderno que mandaram a seu compadre sobre o tal Cassi?
- Já.
- Que pensa daquilo tudo?
- Se é verdade, ele merece a forca.
- Pois dizem que é. O senhor não sabe quem é a
tia Vicência, que mora por aqui, na Rua da Redenção?
- Não.
- Conheço-a eu. Ela é pessoa da casa de Cassi e
diz que tudo aquilo é verdade. Conta até mais detalhes.
- E quem é que espalha o tal caderno?
- É um oficial do Exército, homem preparado,
parece que engenheiro, cuja mulher atual é aquela moça que Cassi desonrou, e a
mãe matou-se por isso, há cinco anos.
- Quem lhe disse isso?
- Vicência. Ela conhece não só a família do
violeiro, como muitas das vítimas. Diz que o marido dessa moça só lhe não dá
cabo do canastro, para não fazer escândalo; mas, na primeira em que se meter,
toma a peito a causa da vítima, seja quem for.
Joaquim dos Anjos ouviu isso, calou-se um pouco
e, sem nada responder, recomendou:
- Não se esqueça de mandar, principalmente a lenha,
que é precisa para o almoço. Estou na hora... Até logo!
Saiu, pensando nesse tal Cassi, que, por mais
que quisesse esquecê-lo, sempre estava presente à sua memória, sempre estavam a
relembrá-lo, como se fosse uma grande coisa, um homem notável e de posição. Que
é que queriam dizer com isso? Preveni-lo? O carteiro sorriu intimamente:
“Ele não ousará”! E pensou na sua garrucha de dois canos, com as
quais se viaja em Minas, presente ainda
do inglês, seu primeiro patrão.
Homem forte, leal, direito, Joaquim tanto tinha
nos outros como em si uma confiança ilimitada. Não desconfiava, nem admitia que
se desconfiasse; mas esse tal Cassi...
Estendia essa sua confiança à sua mulher, no que
tinha razão; mas não à filha, como fazia, porque, no tocante a esta, precisava
contar com a crise da idade, a estreiteza de sua educação doméstica e a
atmosfera de corrupção com que o meio a envolvia, admitindo tacitamente que ela
estava fadada ao destino das "outras". Joaquim dos Anjos não tinha
capacidade intelectual para tanto...
Cessou de pensar em Cassi e pôs-se a cogitar no
trabalho, nas gratificações e nos aumentos. Chegou à repartição, assinou o
ponto, cumprimentou os colegas e chefes; e, à hora certa, tomou a
correspondência a distribuir e lá correu para escritórios, casas de comércio,
entregando cartas e pacotes.
Vinha tudo isto com nomes arrevesados:
franceses, ingleses, alemães, italianos, etc.; mas, como eram sempre os mesmos,
acabara decorando-os e pronunciando-os mais ou menos corretamente. Gostava de
lidar com aqueles homens louros, rubicundos, robustos, de olhos cor do mar,
entre os quais ele não distinguia os chefes e os subalternos. Quando havia
brasileiros, no meio deles, logo adivinhava que não eram chefes. Almoçava
frugalmente e até às cinco executava o serviço, isto é, as várias distribuições
de correspondência.
Terminado o trabalho, procurava os seus colegas
de arte e, aí pelas cinco, cinco e meia, metia-se no trem para a casa.
Naquele dia, conforme o seu costume, preencheu-o
todo assim, sem nenhuma discrepância ou variante, como se obedecesse a um
programa. Quando chegou em casa, já se fazia escuro, e os lampiões da
iluminação pública estavam acesos e prontos a suceder, consoante o seu poder, à
soberba luz do sol, que ia morrendo, num crepúsculo cambiante e lento, por
detrás das montanhas, que se destacavam num fundo de prata, de ouro e de
púrpura, na parte do horizonte em que ele se escondia.
Veio-lhe abrir a porta a mulher, que, antes de
mais nada, lhe foi dizendo:
- Ah! Quincas! Você não sabe como me vi
atrapalhada, hoje, aqui... Se não fosse Dona Margarida...
- Mas o que houve, Engrácia?
- Clara ficou doente de repente, pôs-se a gemer,
e eu, sem ninguém, não sabia o que fazer. Felizmente, gritei por Dona
Margarida, que acudiu.
- Que é que ela teve, mulher?
- Dentes, Quincas; mas uma dor muito forte.
- Ora, você mesmo! Você é uma pamonha. Então dor
de dentes é moléstia que assuste ninguém?
- É que você não viu.
- Vamos ver o que há?
Dirigiu-se para o quarto da filha, que tinha o queixo
amarrado num lenço dobrado, e perguntou:
- Que houve, Clarinha?
- Nada. Tenho aqui um dente furado, que me dói
de quando em quando. Hoje doeu-me mais fortemente, gemi e tive que me deitar.
Felizmente o remédio que Dona Margarida me deu, fez passar a dor, mas tenho o
queixo inchado...
- Não é nada?
- Penso que sim - disse Clara, e acrescentou: -
olhe, papai, não pude passar a limpo a música.
- Não faz mal, eu mesmo passo.
Depois ajuntou, voltando-se para a mulher:
- É preciso levar essa menina ao dentista,
Engrácia, enquanto está no começo.
- Dentistas! Deus me livre!
- Por que, mulher de Deus?
- Porque é casa de perdição, Quincas.
- Qual perdição, qual nada. Perde-se quem quer
ou quem já está perdido.
- Você que a leve, Quincas. Não posso sair todo
o dia... Você sabe que não posso andar muito...
- Eu não posso, pois tenho de ir para o serviço.
Pôs-se a pensar, olhando a filha deitada, com os
doces olhos negros a interrogar o pai, quando lhe surgiu um pensamento:
- Vou chamar o Meneses. Ele não é formado, mas
tem prática e pode certamente fazer o que se trata. Que acha, Engrácia?
- Acho bom, se ele vier em casa.
- Ele virá, pela manhã. Almoçará com vocês e
dar-lhe-ei alguma coisa.
- Você quer, Clara? - perguntou o pai.
- Aceito e acho bom. Não é preciso sair e mamãe
não se incomoda.
Foi assim que Meneses entrou a tratar dos dentes
de Clara, fato de que tão oportunamente Cassi tivera notícias pelo doutor
Praxedes, no Méier. Para o velho doutor Meneses foi uma salvação, porquanto,
embora trabalhasse, não era pago ou o era mal e irregularmente. Com o carteiro,
as coisas se passavam de outra forma; e, além disso, almoçaria todo o dia -
vantagem que não era de desprezar.
Sabendo que Meneses estava todos os dias com
Clara, Cassi, que havia resolvido pôr cerco à rapariga, tratou de aproveitar o
estado de miséria, de abatimento moral em que estava o velho dentista, para
realizar os seus inconfessáveis fins. Encomendou-lhe aqueles versos que deviam
ser feitos por Flores e deu-lhe dinheiro, já prevendo que Meneses gastá-lo-ia e
não obteria os versos. Tudo isto aconteceu; mas Meneses, quando, no dia
seguinte, se lembrou da recusa de Flores e de ter gasto o dinheiro, não achou
outro alvitre senão ele mesmo fazer os versos. Ficou o dia inteiro a martelar,
a riscar, a emendar e, ao fim do domingo, tinha feito algumas quadras com mais
ou menos sentido. Nunca, a bem dizer, fizera versos; mas, tendo corrido montes
e vales, lidara com poetas e tinha o ouvido educado. De resto, escolhera o
metro popular, a quadra de sete sílabas; e tanto fez que, pela tardinha, a
poesia estava pronta, e o pobre velho ficou muito contente consigo mesmo, como
se tivesse feito obra de vulto. Bebeu bastante e dormiu satisfeito. Havia cumprido
a sua palavra de qualquer forma. Se os versos não eram de Leonardo Flores, eram
dele. Não seriam tão bons; mas, pelo menos, desculpariam o gasto dos cinco
mil-réis, que lhe remordia a consciência.
Na segunda-feira, à noite, depois de ter andado
por toda a parte, com a sua velha mala de ferros de cirurgião-dentista, Meneses
foi-se postar no botequim do Fagundes. Sentou-se, como de hábito, na última
mesa, aos fundos, encostada à parede, com um jornal debaixo dos olhos e um
cálice de parati na frente. Ele bebia aos goles, à vista de todos, sem vexame
algum. Fazia-lhe mal, como mal faz a todo mundo; mas era solicitado a beber
para se atordoar, para não se recordar, para não estar só com o seu passado,
para afugentar o terror que a vida lhe inspirava, na miséria, quase indigência
em que se achava, naquela idade avançada de mais de setenta anos, alquebrado,
doente, sem uma amizade forte, sem um parente que o amparasse, sem uma pensão
qualquer.
Cassi foi encontrá-lo engolfado na leitura do
jornal:
- Pensei - disse ao sentar-se - que o doutor se
havia esquecido.
Meneses, descansando o modesto pince-nez em cima
da mesa, onde já havia posto o jornal, respondeu:
- Qual o quê! Sou homem de palavra... Demais, o senhor
me havia dado o dinheiro, e, assim, o trato ficava mais sagrado.
Cassi tinha uma grande dificuldade em ser
amável, tomar a entonação de voz conveniente, adaptar o olhar a ela, ajeitar
adrede os músculos da face...
Não era capaz disso quando sincero, que fará
quando falso! Todo ele era rude, metálico, grosseiro e áspero. Enfim, fez o que
pôde e disse:
- Por isso, não, doutor! Eu não me lembrava de
tal fato! Aquilo foi para uns beberiques... Arranjou?
- Arranjei; mas não com o Leonardo.
- Ele não quis ou...
- Não; estava bom. Como já lhe disse em certa
ocasião, Flores é por demais orgulhoso, quando se trata de versos dele; e, ao
falar-lhe no "negócio", deitou-me um discurso enorme, dizendo que era
isto e aquilo, tinha feito tais e quais coisas e, por fim, que não vendia
versos.
- Nem dados?
- Não lhe propus; mas estou certo que não daria.
Pelo que disse, os versos que lhe saíam da cachola eram dele e só dele.
- E com quem arranjou?
- Fi-los, eu mesmo. Não serão...
- Vamos ver, doutor.
Meneses puxou, de dentro da algibeira do
interior do fraque cinzento, um volumoso embrulho de papéis sebosos, procurou o
que continha os versos, pôs o pince-nez e disse:
- Vou lê-los, para o senhor compreender melhor.
A minha letra é muito ruim.
- Leia, doutor.
Meneses concertou os óculos, experimentou uma
melhor posição para receber a luz e começou:
A minha Querida pena
Nas grades de uma prisão,
Mas o Amor lhe ordena
Sossego no coração.
O velho dentista ambulante, afinal, acabou e
olhou interrogativamente o menestrel. Tinha este tomado um ar grotesco de
entendido e olhava vago, simulando que ajustava pensamentos. Após ter Meneses
perguntado o que achava dos versos, o manhoso violeiro disse:
- Não era bem isto que eu queria. Os versos,
porém, não estão maus, antes são bons. Serve até para modinha... O doutor não
sabe quem faça música para modinhas?
- Conheço o Joaquim dos Anjos.
- Ah! É verdade! Como há de ser? - perguntou
Cassi, simulando embaraço.
- O senhor não se dá com ele?
- Dou-me; mas não tenho muita intimidade. Se
fosse por intermédio da filha? Por que o doutor não pede?
- Posso pedir a ela; mas o padrinho - não sei
por quê - não gosta do senhor. Se ele sabe...
Meneses arrependeu-se de ter avançado tanto, mas
a sua vontade já era tão fraca que não soube, nem procurou meios e modos de
fugir às conseqüências de sua confidência. Cassi aproveitou-se das aberturas do
velho e disse:
- Sei; mas escrevo uma carta à Dona Clara a fim
de que ela evite a má vontade do padrinho e que se saiba ser a modinha...
Meneses não pôde reprimir um movimento de
espanto.
- Não tenha susto, doutor; absolutamente não
malicie no que vou fazer. A carta será lida pelo senhor.
Meneses ficou mais seguro de si e continuou a
beber com vontade, enquanto Cassi contava-lhe os seus ganhos extraordinários no
cangueiro, jogo suburbano.
- Olhe, doutor - rematou ele -, quando precisar
de algum, é só pedir.
O dentista já estava muito adiantado na
embriaguez; e, ao ouvir aquilo, olhou, desejoso e mendicante, para o violeiro,
que se apressou em ir ao seu encontro:
- Quanto precisa, doutor?
- Dois mil-réis, só.
- Não - disse Cassi, tirando um maço de notas da
carteira -, leve cinco; e não se esqueça de estar aqui, amanhã, às sete horas.
Preciso da música para breve.
Meneses foi para a casa, sem pensar no que havia
prometido; e, como guiado por instinto, subiu e desceu morros, tomou atalhos e
acabou se deitando muito naturalmente no seu miserável canapé. Não quis comer;
a embriaguez lhe havia tomado inteiramente. Despertou, no dia seguinte, sem
saber o que tinha feito nas últimas horas em que estivera fora. Lembrava-se
vagamente que parara no botequim habitual. Tendo saído para fora de casa, a fim
de lavar o rosto e satisfazer as exigências do organismo, quando voltou, já
encontrou sua irmã de pé a lhe dizer, como quase todas as manhãs:
- Não temos nada em casa, Juca.
Meneses não sabia se tinha ou deixava de ter
dinheiro. Por desencargo de consciência, foi esgravatar as algibeiras.
Encontrou um níquel de cruzado e pensou: "Bem! Para o café e o açúcar, já
temos.” Continuou a procurar, achou, dobradinha, no fundo de um bolso,
uma nota de cinco mil-réis. Espantou-se. Quem lha teria dado? Cogitou, forçou a
memória, enquanto a irmã resmungava:
- Juca, você não ouviu o que eu disse?
- Ouvi; espera, que estou procurando o
"cobre".
Tanto forçou a memória, tanto combinou as vagas
recordações, que toda a sua entrevista com Cassi foi recordada. Teve vontade de
rasgar a nota, de dizer que não faria o prometido; mas já estava sem força
moral, temia tudo, temia o menor sopro, o mais inocente farfalhar de uma
árvore. Toda a criação estava contra ele, conjugava-se para perdê-lo - que
podia fazer contra tudo e contra todos? E a miséria? E a fome? Se se revoltasse,
que seria dele, sem futuro, sem emprego, sem amigos, sem parentes, doente? Era
bem triste o seu destino... Onde estava a sua mecânica? Onde estava a sua
engenharia? Amontoara livros e notas pueris, e nada fizera. Levara bem
cinqüenta anos, isto é, desde que saíra da casa dos pais, a viver uma vida
vagabunda de ciganos, sem nunca se entregar seriamente a uma única profissão,
experimentando hoje esta, amanhã aquela. De que lhe valera isto? De nada.
Estava ali, no fim da vida, obrigado a prestar-se a papéis que, aos dezesseis
anos, talvez não se sujeitasse, para disfarçadamente esmolar o que comer com os
seus parentes. Teve vontade de chorar, mas a irmã gritou-lhe do quintal:
- Achaste o dinheiro?
- Achei.
Respondeu assim, numa palavra, e deitou bem meio
copo da aguardente, que sorveu toda quase de um só trago.
Meneses pensou ainda nos seus setenta anos
desamparados, estéreis, e teve infinita dor de si mesmo, da miséria do seu fim.
Que resolver sobre o caso de Cassi e da carta? Sacudiu os ombros e pensou de si
para si: Que hei de fazer? As coisas me levaram a isso e...
Cassi veio ao botequim, munido da carta, que
leu, conforme prometera a Meneses. Desgostoso, com aquele mau travo na
consciência, o pobre dentista ambulante procurava, durante o dia, beber a mais
não poder. Tinha chegado cedo em casa de Joaquim e, tendo-o ainda encontrado,
pedira-lhe dinheiro. Almoçou, saiu e foi bebendo daí em diante em todo o
botequim por que passava. Ao chegar à casa do Fagundes, tinha lá uma carta de
um cliente. Abriu-a; mandava-lhe dez mil-réis, por conta de cinqüenta que lhe
devia. Deu cinco mil-réis ao caixeiro, para guardar, e foi para a cidade. Aí
não teve medida. Todos lhe pagavam, de forma que, ao se encontrar com o Cassi,
não dava mostras, mas estava completamente sem discernimento.
O
violeiro leu o que quis, fechou a carta e deu-a ao pobre velho. A sua resolução
já estava tomada. Havia forçosamente de se entregar à sorte, aos caprichos da
corrente da miséria, de dor, de humilhação que o arrastava. Ela o havia levado
até ali; era inútil resistir. Entregou a carta a Clara. No dia seguinte,
recebeu a resposta. Entregou-a a Cassi. Assim, durante um mês e tanto, ele foi
o intermediário da correspondência dos dois. Já não tinha um movimento de
revolta; resignara-se àquele ignóbil papel como a uma fatalidade que o destino
lhe impusesse. Contra a força não há resistência, pensou ele; o mais sábio era
submeter-se. Não esperava mais que Cassi lhe oferecesse dinheiro, pedia-o. No
começo, o violeiro foi satisfazendo inteiramente os pedidos; depois, fazia-o
pela metade; por fim, dizia que não tinha dinheiro e não lhe dava nada.
Meneses, porém, continuava passivamente a
desempenhar o seu indigno papel. Se não o achava decente, conformava-se diante
da sua atroz e irremediável miséria. Não
se julgava mais um homem...
Clara recebia aquelas cartas com uma emoção de
quem recebe mensagens divinas. Entretanto, eram pessimamente escritas, a ponto
de não serem, às vezes, entendidas, tão caprichosa era a ortografia delas. A
filha do carteiro não via nada disso; esquecera-se até das más ausências que
faziam do namorado. Para ela, ele era o modelo do cavalheirismo e da lealdade.
Estava sempre a sonhar com ele, com aquele Cassi da viola. Passava da alegria
para o choro. A mãe notava-lhe essas alternativas de humor e fazia-lhe
perguntas. Ela as respondia, malcriadamente, desabridamente. Relaxava o serviço
ou não o fazia. Quase sempre, esquecia-se disso ou daquilo. Engrácia comunicou
isto tudo ao marido. Joaquim disse então:
- É verdade, Engrácia. Essa menina tem alguma
coisa... Antigamente, as suas cópias de música eram limpas e certas; agora,
não. Vêm cheias de raspagens, erradas, borradas... Que terá ela? Vou levá-la a
um médico - que achas?
- Talvez faça bem.
Daí a dias, Joaquim faltou à repartição e levou
a filha ao doutor. Este a examinou e disse ao pai:
- Sua filha nada tem. São coisas da idade e do
sexo... De distrações, passeios, convivência - é o que ela precisa... Em todo o
caso, vou receitar...
Joaquim fez a necessária comunicação à mulher,
que ficou de se entender com Dona Margarida, para fazer-se acompanhar da filha,
sempre que tivesse de sair, ir a lojas, etc. Ele mesmo, Joaquim, levou-a no
próximo domingo, a passear em Niterói.
O mar não fez bem à menina. Se a sua alma estava
cheia de vago e de impalpável, com a vista do mar ficou absorta no infinito, no
ilimitado do Universo.
De volta, chorou toda a noite sem saber por quê.
Amanheceu de olheiras roxas, corpo mole, aborrecida de tudo e de todos. A vida
lhe sabia a amargo. Ela não via como se a podia adoçar. Ao mesmo tempo,
lembrava-se de Cassi e enchia-se de esperanças. Saiu com Dona Margarida. A
alemã, muito mais sagaz que seus pais, adivinhou o seu mal e pô-la em confissão
com habilidade. Tanto fez, que Clara lhe disse francamente a origem dos seus
males.
- Mas este sujeito é um tipo indigno.
- Não, para mim. Estou crente que...
- Dizem tão mal dele...
- É porque ele se deixou apanhar, enquanto
outros há por aí que... Ele confessa que está arrependido do que fez, e agora
quer se empregar e casar-se comigo.
Dona Margarida olhou firmemente para a moça,
cravou bem os seus olhos perquiridores nos da rapariga; e fez de si para si:
- Será possível?
Apressou-se a contar a confissão de Clara à mãe.
Engrácia odiava Cassi. Se, algum dia, tinha tido um sentimento forte, era esse
de ódio ao violeiro. Não sabia bem como justificá-lo; mas tinha-lhe uma raiva,
uma gana de morte. Quando Dona Margarida lhe narrou a confidência da filha, ela
teve uma crise surda de rancor. Já não era só contra ele, mas contra a filha,
que ela criara com tantos carinhos, tantos cuidados, para, afinal, vir a se
"embeiçar" por aquele borra-botas, amaldiçoado por todos, até pelo
próprio pai. Serenou e tomou a resolução de contar o fato, por sua vez, a
Joaquim, antes que aquele perverso de modinheiro não lhes pespegasse alguma das
dele.
Joaquim recebeu a notícia sem demonstrar
espanto. Não gostava também de Cassi. Era, para ele, homem morigerado e
trabalhador, um capadócio, um desclassificado, réu de polícia, muitas vezes, de
quem tanto mal se dizia; mas, se ele quisesse casar com a filha, apesar de
todos os seus maus precedentes, não se oporia. Iria falar-lhe? Ou chamá-lo-ia
em casa? Não seria melhor esperar?
Pensou e tomou o alvitre de pedir a opinião do
compadre Marramaque. O antigo contínuo tinha um grande ascendente moral e
intelectual sobre o ânimo do carteiro, que o obedecia cegamente. Tratou,
portanto, de pedir-lhe conselho.
Naquele domingo, a partida de solo tinha se adiantado
pela noite afora. Deviam ser onze horas quando resolveram a "dar com o
basta". Jogavam na sala de jantar, onde se encontravam, além dele,
Joaquim, Marramaque, Lafões e Dona Engrácia também. Clara já se recolhera ao
quarto. Parecendo-lhe que a filha dormia, Joaquim resolveu decidir a coisa.
Expôs primeiramente o estado nervoso da filha, os passos que tinha dado para
tratá-la e chegou ao ponto agudo da questão. Por aí, Marramaque ergueu-se
furioso:
- Pois, então, você, compadre, quer meter semelhante
pústula dentro de sua casa? Você não sabe quem é este Cassi? Se o pai não quer
saber dele, é porque boa coisa ele não é. Ele não só desonra a família dos
outros, como envergonha a própria. As irmãs, que são moças distintas, já podiam
estar bem casadas; mas ninguém quer ser cunhado de Cassi. Ele se diz sempre
correspondido, que se quer casar, etc., para dar o bote. Quando fica
satisfeito, escorrega pelas malhas da justiça e da polícia, e ri-se das
pobrezinhas que atirou à desgraça. Você não vê que, se ele se quisesse casar,
não escolheria Clara, uma mulatinha pobre, filha de um simples carteiro? Sou
teu amigo, Joaquim...
- É o que eu penso também - fez Dona Engrácia. -
Ele pode achar muitas em melhores condições...
Clara, que ouvia tudo, chorando em silêncio,
quis protestar e citar exemplos em contrário, que conhecia, mas se conteve.
Joaquim, que escutara calado a fala apaixonada
do compadre, observou:
- Acho que você tem razão; mas, qual o remédio?
- É continuar... Como é que minha afilhada recebeu
recados dele, comadre? - perguntou Marramaque a Dona Engrácia.
- Ela diz que foi uma amiga que lhe trouxe -
respondeu a mulher do carteiro.
- Fresca amiga! - comentou rindo-se Marramaque.
- O que há a fazer, Joaquim, é continuar no que está e fazer que ele saiba que
você não vê com bons olhos a insistência dele junto à filha.
- Se ele teimar? - perguntou Engrácia.
- Publica-se nos jornais aquele folheto que
recebi, vai-se à polícia, desmoraliza-se o tipo de uma vez; e ele que faça o
que quiser.
Todos calaram-se. Lafões não precisou fazer
isto, porque se havia mantido até então calado. O carteiro voltou-se para ele e
perguntou-lhe:
- Que diz a isto, Lafões?
- Isso... isso é matéria delicada. Não sou da
família e, por isso, não me julgo com o direito...
- Eu também não sou - acudiu Marramaque. - Estou
só dando com franqueza uma opinião que me pediram; mas certo de que, Joaquim,
se você permitir que esse tal sujeito entre aqui, eu, apesar do muito que devo
a você, não ponho mais os meus pés na sua casa.
Levantou-se, tomou a bengala e saiu mergulhado
na treva da noite, que estava bem escura, quase sem estrelas, caminhando
devagar, no seu passo de capenga, até à sua modesta casa, onde chegou sem temor
e tranqüilo de consciência.
Clara não pôde conciliar o sono. As idéias mais
absurdas lhe passavam pela cabeça. Pensou em fugir, em ir ter com Cassi, em
matar-se... Enchia-se de raiva contra o padrinho. Por fim, resolveu relatar,
por carta, tudo o que se passou ao namorado. Saiu do quarto, logo que percebeu
que o pai já tinha ido para a repartição; tomou naturalmente a bênção à mãe,
lavou-se e serviu-se do café matinal. Como não tivessem vindo as
"compras", disse à mãe que ia copiar música, enquanto as esperava.
Era um pretexto. O que ela escreveu, foi uma longa carta, narrando o que ouvira
naquela noite a respeito dela e dele. Antes de Meneses começar a cuidar dos
dentes, ela lhe fizera entrega da missiva, que o pobre velho, cheio de
amargura, logo meteu na algibeira. Para que viver tanto? pensou ele, limpando
os ferros numa toalha de alvura imaculada.
Inteirado do que acontecera, vendo os seus
planos fracassarem por causa daquele "João Minhoca" e, ainda mais,
com a ameaça de ver toda a sua escandalosa vida publicada nos jornais - Cassi
encheu-se de fúria má e, na maior fúria, tomou a firme resolução de remover
aquele trambolho de "aleijado", que estava sempre estragando os seus
planos, com os quais até já tinha gasto bastante dinheiro. Não subiam as
despesas a mais de cinqüenta mil-réis...
O seu
furor foi grande; tanto que, ao ler, em voz baixa, a carta, ao lado de Meneses,
no botequim, este lhe notou a profunda alteração de fisionomia que,
subitamente, a leitura lhe havia produzido. Os seus olhos chamejavam, os dentes
estavam rilhados e toda a sua natureza baixa, feroz e grosseira se revelava,
num ríctus horrível.
Pagou alguma coisa que beber a Meneses e
despediu-se, sem dizer mais nada.
Meneses continuou a sorver os seus consoladores
"calistos" e a perguntar de si para si:
- Que há? Que haverá? Que haveria?
O que havia, era simples: Cassi premeditava
simplesmente, friamente, cruelmente, o assassinato de Marramaque. Quando ele
falou a respeito a Arnaldo, limitou-se a dizer: "Vamos dar-lhe uma
surra." "Por quê?"
perguntou o outro. Ele respondeu: "Esse velho está abusando de ser
aleijado, para me insultar. Merece uma surra." Não iam sová-lo, sabiam os
dois desalmados; iam matá-lo...
Era sábado, dia em que Marramaque se demorava
mais na venda do "Seu" Nascimento. Chovia e a noite viera logo
fechada e escura. Grossas nuvens negras pairavam baixo. As luzernas de gás,
tangidas pelo vento, mal iluminavam aquelas torvas ruas dos subúrbios, cheias
de árvores aos lados e moitas intrincadas de arbustos. Marramaque, vindo da
repartição, deixara-se ficar até às oito, na venda. Por essa hora, despediu-se
e tomou o caminho de casa. Para se ir ter a ela, por ali, preconiza-se, entre
outras, uma rua já quase completamente edificada, que terminava numa ladeira
deserta. De um lado, o esquerdo, havia um terreno baldio, cheio de moitas
altas; do direito, grandes árvores dos fundos de uma chácara, cuja frente era
na rua paralela. Além de deserto, esse trecho era por demais sombrio, sobretudo
em noites como aquela.
Marramaque, debaixo de chuviscos teimosos,
embrulhado numa capa de borracha, subiu a ladeira, para depois descer o
barranco e, finalmente, chegar à casa. Quando estava no alto da pequena
elevação, dois sujeitos tomaram-lhe a frente e disseram-lhe: "Capenga,
você vai apanhar, para não se meter onde não é chamado." Não teve tempo de
dizer coisa alguma. Os dois descarregaram-lhe os cacetes em cima, pela cabeça,
por todo o corpo; e o pobre Marramaque, logo à primeira paulada, caiu sobre um
lado, arfando, mas já sem fala. Malharam-no ainda com toda a força e raiva, sem
dó nem piedade; e fugiram, quando lhes pareceu momento azado.
No dia seguinte, ao passarem os primeiros
transeuntes, ele estava morto. E, assim, morreu o pobre e corajoso Antônio da
Silva Marramaque, que aos dezoito anos, no fundo de um "armazém" da
roça, sonhara as glórias de Casimiro de Abreu e acabara contínuo de secretaria,
e assassinado, devido à grandeza do seu caráter e à sua coragem moral. Não fez
versos ou os fez maus; mas, ao seu jeito, foi um herói e um poeta... Que Deus o
recompense!
IX
Um crime, revestido das circunstâncias
misteriosas e da atrocidade de que se revestiu o assassinato de Marramaque, faz
sempre trabalhar todas as imaginações de uma cidade. Um homicídio banal em que se
conheceu a causa, o autor, capturado ou não, e outros pormenores, deixa de
oferecer interesse, para ser um acontecimento banal da vida urbana, fatal a
ela, como os nascimentos, os desastres e os enterros; mas o assassinato de um
pobre velho, aleijado, inofensivo, pobre, a pauladas, faz parecer a toda a
gente que há, soltos e esbarrando conosco nas ruas, nas praças, nos bondes, nas
lojas, nos trens, matadores, que só o são por prazer de matar, sem nenhum
interesse e sem nenhuma causa. Então, todos acrescentam, aos inúmeros e
insidiosos inimigos que tem a nossa vida, mais este do assassínio por
divertimento, por passatempo, por esporte.
Um ou muitos, seja em que número forem, é sempre
uma ameaça que paira sobre cada um de nós, zombando da mais ostensiva pobreza e
não tendo em consideração a pacatez mais pusilânime.
Marramaque não era rico nem andava com jóias,
sendo certo que não podia trazer consigo muito dinheiro. O móvel do crime,
portanto, não seria o roubo. Ao contrário, o exame minucioso nos bolsos das
vestes, com que fora encontrado o seu cadáver, não denunciou nenhuma tentativa
de saque. O pouco dinheiro que tinha - três mil e tanto - estava intacto; uma
carteira, encontrada numa das algibeiras interiores do dólmã, continha
unicamente papéis. Quando foi assassinado, vestia a farda de contínuo: dólmã
azul-marinho e calças da mesma cor. Tinha, por baixo do dólmã, um comum colete
preto, onde trazia um relógio de prata, preso numa antiga corrente de ouro,
feita de diversos trancelins de ouro, reunidos por argolas também desse metal,
com um remate, em forma de estribo, cujo pedal era uma pedra negra. Pois bem:
nem mesmo esta peça, de algum valor, foi-lhe roubada. Posta de lado a hipótese
de roubo, qual poderia ter sido o móvel do crime? Amores, conquistas? O estado
de saúde, a sua semi-invalidez logo afastavam tal hipótese. Política, questões
de família - nada disso explicava o crime. Só na perversidade, na vontade de
matar, por parte de alguém extremamente mau e sedento de sangue,
encontrar-se-ia a causa. Seria isso? - perguntavam todos.
A notícia do crime logo se espalhou pelo
subúrbio inteiro, apesar de ser domingo o dia em que foi descoberto. A
deformidade de Marramaque fazia-o notado e conhecido, de forma que, por toda a
parte, se comentava o assassínio. A polícia tomou as providências de hábito;
mas só iniciou as pesquisas no dia seguinte. Todos que estiveram na venda foram
ouvidos; mas pouco, nada adiantaram. Nem o podiam fazer. Marramaque, em lá
chegando, a chuva tinha cessado. Era sábado, e todos os habitués do armazém do "Seu" Nascimento lá
estavam, inclusive Meneses, que se mostrava palrador e prazenteiro. Discutia-se
despreocupadamente, e até Meneses causou grande hilaridade, quando explicou a
sua teoria transcendente sobre o "ovo de Colombo". No correr da
discussão, alguém dissera:
- Isto é ovo de Colombo.
Parece que foi Marramaque a dizer, e Alípio
aproveitou o ensejo, para perguntar:
- Que diabo quer dizer esta história de
"ovo de Colombo", na qual todo o mundo fala e não sei o que é?
Entre os circunstantes estava o Senhor Monção,
caixeiro-vendedor da grande casa de cereais Belmiro, Bernardes & Cia., que
tinha suas luzes e gostava de palestrar, para descansar da afanosa lida de
estar a "tocar realejo" aos varejistas, oferecendo-lhes feijão, arroz,
milho, e por bom preço.
Era um moço português, simpático, de bom porte e
bem-educado. Tinha grande liberdade na roda e não houve nenhum espanto quando
interveio:
- Pois não sabes, Alípio, o que é o "ovo de
Colombo"?
- Não, "Seu" Mindela.
- É simples. No meio dos sábios espanhóis,
depois da primeira viagem à América, Colombo, vendo o seu trabalho criticado e
tido como fácil pelos sabichões de Castela, desafiou-os a pôr um ovo em pé.
- Eles puseram? - perguntou Alípio.
Meneses apressou-se:
- Não puseram; mas Colombo pôs.
- Como? - indagou Alípio.
Meneses explicou, tomando a palavra de Mindela,
com todo o seu açodamento de sábio:
- Colombo, dando um movimento de rotação
conveniente e um de translação adequado, dissolveu a gema do centro do ovo,
para a base, trazendo, para a parte inferior do ovo, o centro de gravidade, de
forma que o pôde pôr em pé.
Todos se entreolharam e viram o absurdo da
explicação de Meneses. Ninguém se animava a contestar, mas Marramaque, tomando
a dianteira de Mindela, que ia falar, saltou logo, em tom de gracejo:
- Qual, "Seu" Meneses! Esta história
de translação, de rotação, de centro de gravidade, é bobagem; o que...
- Bobagem, Marramaque? Isto é mecânica
transcendente, como é a questão do gato cair sempre sobre as patas, atirado que
seja, do alto para baixo, em qualquer posição.
Marramaque foi-lhe ao encontro, sem pestanejar:
- Nós não temos nada com gato. Ovo se parece
tanto com gato como um espeto. Bolas, "Seu" Meneses!
Todos os circunstantes riram-se a mais não
poder; Meneses pôs-se a cofiar a longa e abundante barba branca, lamentando-se
da sua derrota em mecânica e tudo. De repente, cobrou coragem e desafiou o
contínuo:
- Quero ver, Marramaque, como é que você explica
ter Colombo posto o ovo de pé?
- Muito simplesmente, Meneses. Vou contar a
história como a li: “Num banquete, procuravam os nobres de Espanha
rebaixar o mérito da descoberta de Colombo, e dizia um: `As Índias já lá
estavam e, se o senhor não as descobrisse, qualquer um outro as descobriria`.
Colombo, sem responder, pediu um ovo; trouxeram-lhe e ele desafiou a que alguém
o pusesse de pé. 'Impossível!' - bradaram. Então, o navegador tomou o ovo,
bateu com ele, quebrando ligeiramente a mais rombuda das extremidades, e fê-lo
ficar de pé. 'Ora, isto também eu faria!...' replicaram. 'Sim, depois que me
viram fazer. É simples, mas é preciso pensar no caso, e achar o meio'. Está aí
como foi a coisa. Não tem nada de gravidade, nem de rotação, nem de translação,
nem de constelação, nem de repulsão - nada tem em "ão", Meneses!
De novo a gargalhada foi geral e prolongada; e
Meneses, muito encafifado, limitou-se a dizer:
- Isto não é científico; é uma explicação jocosa
de anedota de almanaque. Podia demonstrar a minha interpretação com auxílio do
cálculo, mas não é conveniente aqui... fica para outra ocasião.
Assim, sem outra preocupação, naquela tarde
tempestuosa, conversaram na venda, enquanto Marramaque estivera e mesmo depois da
sua saída. É óbvio que nenhuma das pessoas que lá estavam, poderia adivinhar o
que lhe ia acontecer pelo caminho. Chuviscava teimosamente, mas não havia o que
se chama de chuva torrencial, quando o pobre contínuo se despediu. É verdade
que a noite estava pavorosa de escuridão, e ameaçadoras nuvens pairavam baixo,
ainda mais carregando de treva a atmosfera e ofuscando os lampiões, cuja luz
oscilava sob o açoite de um vento constante e cortante. Não se via, como é
costume dizer-se, um palmo diante do nariz. À polícia, pareceu que aquele
misterioso assassínio, sem causa presumível, nascera de um segredo que só ele,
Marramaque, podia revelar e, talvez, os seus papéis íntimos o revelassem.
Resolveram, então, as autoridades perquiri-los, à cata de uma pista.
Morava Marramaque com uma tia materna, pouco
mais moça que ele, tendo dois filhos homens, de doze e dez anos. Após ter
enviuvado na roça, com alguma coisa, tomou o alvitre de comprar aquela casa e
convidar o sobrinho, para lhe fazer companhia e encaminhar a educação e a
instrução dos filhos, e ajudá-la também.
A sua casa era inteiramente o contrário da de
Meneses. Estava sempre limpa, móveis em ordem, completamente cercada, o
jardinzinho da frente bem tratado. Helena, a tia de Marramaque, era muito
metódica e econômica, de forma que a vida doméstica do sobrinho era regular e
plácida. Ela costurava para os arsenais do governo e, com o que Marramaque lhe
dava dos seus exíguos vencimentos, a vida deles corria sem contratempos. Não
eram difíceis as suas comunicações com as estações da Central, quando feitas
pelo bonde de Inhaúma, que passava na esquina; e, se o contínuo, na noite
fatídica do assassínio, tomava aqueles atalhos e subidas, sempre que passava
pela venda do Nascimento ou ia à casa do Joaquim, procurava aquele caminho mais
curto. Helena vivia para os filhos; raras vezes, a não ser para regularizar as
suas costuras, saia, indo uma ou outra vez à casa do carteiro, onde se
aborrecia com o gênio taciturno de Engrácia. Foi ela quem assistiu desenterrar,
do fundo de baús e gavetas, as recordações do seu pobre sobrinho.
As autoridades policiais pediram delicadamente
autorização; e o delegado em pessoa foi examinar os papéis do infeliz contínuo.
Não encontrou coisa de valia. Havia no seu arquivo cartas de família, bilhetes
de amigos, rascunhos de versos, entre os quais um de Raul Braga, de quem
Marramaque fora amigo, e o célebre caderno sobre Cassi, que o delegado tinha
também um exemplar. A não ser esses papéis sem importância, encontraram um
caderno de versos, pronto a ir para o prelo, de autoria de Marramaque,
intitulado - Boninas e Sensitivas -
versos ingênuos de um homem bom e honesto que não é poeta. Deram também com um
retrato de mulher feita, numa pose popular, com o braço esquerdo descansando
sobre uma coluna e tendo um leque enorme, pendente do direito, caindo ao longo
do corpo. Era uma mulher bonita, de trinta anos, sadia e forte. Nas costas
havia esta dedicatória: "Ao meu Antônio, a Eponina. 25-12-92." Mais
abaixo, com letra de Marramaque, existiam estas observações: "Amor tudo
vence; não pode vencer as obrigações de lealdade que devem sempre existir nas
amizades perfeitas. Adeus!"
Quem seria? Os policiais indagaram; mas Dona
Helena não lhes pôde explicar. Naquela data, ela nem casada era ainda; seu sobrinho
já tinha vindo para o Rio. Quem seria?
Enfim, nada encontraram, e o crime foi sendo
esquecido. Só duas pessoas podiam pôr as autoridades na pista verdadeira; eram
Clara e Meneses.
Clara, logo que soube do assassínio do padrinho,
ficou fora de si. Lembrou-se das ameaças veladas que Cassi fazia ao padrinho,
nas cartas que lhe escrevia; lembrou-se também da carta em que ela narrava ao
namorado a atitude de Marramaque, quando o pai falou ao compadre na necessidade
de ter um franco entendimento com o violeiro. Por aí e por outras pequenas
circunstâncias, atribuía a Cassi o assassinato do padrinho e como que se
julgava também sua cúmplice. Veio-lhe um medo daquele cantador meloso, dengoso,
apesar de seu mau olhar de folhas-de-flandres; e, num relâmpago, viu bem quanto
de fingido e falso podiam conter as suas cartas ternas e cheias de protestos de
boas intenções e de amor sincero e honesto.
Imediatamente, porém, explicou esse seu ato de
desvario criminoso como um esporádico ato de loucura, provocado pelo amor que
tinha a ela. Era um obstáculo e... Agradava-lhe a interpretação. Não tardariam,
entretanto, a se explicar de viva voz por que ela havia consentido afinal em
conversar com ele na grade de casa, depois que seus pais se recolhessem. Então,
nessa ocasião, ela avaliaria o grau de certeza de suas suspeitas. Meneses tinha
levado uma carta dela nesse sentido; mas, tendo ficado atrapalhada por sentir a
aproximação da mãe, não pôde, Clara, fechar a missiva convenientemente. Aberta,
a moça, para não ser pilhada, passou-a precipitadamente ao velho, que assim a
guardou jubilosamente. Quando se lhe ofereceu momento azado, leu-a.
Como toda a mulher sem instrução, Clara pegou na
pena e não tinha vontade de a largar. Contava detalhes, repisava juras e pedia
juramentos. Um destes era o de que ele a respeitaria sempre; e, se não fizesse
isso, romperia as relações com ele. Estava disposta a esperá-lo, às dez horas,
na grade, daí a oito dias, e isso o fazia, porque "Seu" Meneses tinha
dado o serviço dos dentes por terminado.
De fato, Meneses, aborrecido com aquele negócio
de cartas e com o desdém com que Cassi o tratava, ademais da ignóbil farsa que
se prestava, resolveu dar por findo o trabalho. A leitura da carta não lhe
causou nenhuma estranheza; ele já esperava por este fim. Estava forrado de uma
indiferença de vencido. Sentiu-se de mãos e pés atados, para ter qualquer
movimento de censura ou de conselho. É que ainda não lhe tinha chegado aos
ouvidos a notícia do bárbaro assassínio de Marramaque. Quando, porém, veio a
saber, teve uma forte vergonha do seu procedimento, da sua covardia.
Compreendeu que aquelas meias palavras de Cassi sobre Marramaque, aquele ríctus
horrendo que vira certa vez, ao se falar do contínuo, lhe desfigurar a face,
eram os pródromos do assassínio do bondoso velho que o violeiro premeditava. O
infeliz Meneses passou o dia todo e a noite inteira voltado para dentro de si
mesmo. Não sabia mais chorar, mas o seu remorso era intenso. Ele se julgava
também cúmplice daquele desalmado. Por que calara o que sabia? Por que se
acovardara a ponto de servir de medianeiro? Oh! Ele não era mais homem, não
tinha mais dignidade!
Cassi, entretanto, não demonstrou o menor abalo.
Leu as notícias dos jornais, as objurgatórias contra os assassinos de que
estavam cheios; ouviu as maldições de todos, nos cafés, nos bondes, em todas as
conversas e por toda a parte; mas nenhum arrependimento sentia. Só lhe faltava
o orgulho íntimo de ter efetuado tão rara proeza, para ser completa a sua
inumanidade e o seu abjeto sossego íntimo. Não tinha orgulho, mas havia nele
como que alívio de se ver livre daquela espécie de duende, de fantasma, que
vivia a persegui-lo.
Com Arnaldo, já não acontecia o mesmo. Passado o
fato, com a leitura dos jornais, com as censuras amargas que via em todas as
bocas, até nas daqueles afeitos ao crime, o sócio de Cassi, se não viu
remorsos, começou a ter susto. Não pôde reprimir o impulso que o levou a ver o
cadáver. Estavam os restos de Marramaque quase tal e qual como foram
encontrados. Os médicos ainda não haviam praticado a autópsia. A cabeça
partida, os olhos fora das órbitas, todo o rosto coberto de uma lama sangrenta,
o braço semiparalítico, partido, as roupas, ensopadas de lama e sangue... Era
horrível! No necrotério, acotovelava-se uma multidão, e todos, em voz baixa,
cobriam de baldões, de injúrias, de pragas, os malvados que tinham levado a
efeito tão estranho e inconcebível crime... Um crioulo, muito negro, forte, com
grandes "peitorais" salientes, dizia bem alto do lado de fora:
- Eu não sou santo... Já fiz das minhas...
Conheço a "chac'ra"; mas Deus me castigue, me ponha um raio em cima,
e faça apodrecer em vida, se eu fosse capaz de fazer tão porco
"trabalho"... Os que o fizeram, nem esfolados vivos pagariam... Para
que mataram esse pobre velho?
Arnaldo voltou do depósito fúnebre apreensivo.
Não havia nele, a bem dizer, arrependimento. O que ele sentia era medo de ser
descoberto, de pegar cadeia trinta anos a fio, porque não podia ser mais.
Chegou aos subúrbios apavorado; e, quando topou com Cassi, disse, com olhar
desvairado:
- Chi, Cassi! O "homem" estava
horrível...
O violeiro virou-se para ele, olhou-o firme com
seu olhar fosco e falou-lhe com energia e fogo nos olhos:
- Cala-te, miserável! Queres pôr tudo a
perder...
Conquanto temesse as fúrias do seu companheiro e
cúmplice, não lhe passava o terror de ser descoberto pela polícia. Deu em
beber; Cassi vigiava-o com medo que ele "desse com a língua nos
dentes". Não o deixava só, quando estava em “rodas”.
Nos botequins, não entrava um freguês, que
Arnaldo não examinasse meticulosamente, cautelosamente, com o rabo dos olhos.
Às vezes, não se continha e apontava:
- Cassi, aquele é agente do décimo oitavo...
O modinheiro, em voz baixa, mas com autoridade,
repreendia-o:
- Estás doido! Queres nos pôr no
“x”, pelo resto da vida.
No começo, Cassi teve medo que a embriaguez o
fizesse denunciá-los; mas, bem cedo, percebeu que a sua bebedeira tomava uma
feição choramingas, efusiva, dava para abraçar todos e, com voz de mágoa íntima,
repetia de onde em onde, sem nada entender do que se dizia ao redor: "Eu
não sou mau..." "Eu sou um bom
rapaz..." "Nunca fiz mal a
ninguém", etc.
Então, Zezé Mateus, também já muito bêbedo,
derreado completamente na cadeira, com os olhos divergentes e vidrados,
babando-se todo e gaguejando, retrucava: “Meu querido Arn... ar... ar...
Arnaldo, você é uma... pomba sem... sem fel.” Em seguida, depois de
limpar a baba com o lenço: "Quem foi que... que disse que... você é... é
mau?" E acrescentava: "Traga... Traga este su... su... sujeito aqui
que... que eu parto a cara dele.”
Arnaldo, por aí, levantava-se comovido e
abraçava Zezé Mateus, que se mantinha na cadeira, e, com dificuldade, erguia os
braços, a fim de cingir o camarada.
Repetiam daí a pouco a cena, com pequenas
variantes, debaixo dos motejos forçados de Cassi, a quem tais espetáculos não
deixavam de fazer mal. Os outros companheiros riam-se a bom rir, sem nada
suspeitar.
Entretanto, o violeiro não se fiava muito que
Arnaldo sempre procedesse assim. A embriaguez - ele sabia - é caprichosa, ora
dá para isto, ora dá para aquilo, podia aparecer qualquer coisa a respeito do
crime e era preciso que ele, Cassi, tomasse as suas precauções. A entrevista
com Clara estava marcada para o fim da semana. Tinha de ir; tinha que dar fim
"naquilo", que tanto trabalho lhe dera e estava dando. Antes de tudo,
porém, era preciso estar preparado para o que desse e viesse. Não contava mais
com a proteção; Barcelos não valia nada e só prestava pequenos serviços em vésperas
de eleição. Quando elas estavam distantes, fiava com má cara um cálice de
cachaça... Era preciso ter tudo pronto para fugir do Rio de Janeiro, ao
primeiro sinal de alarme, tanto mais que sabia, por indiscrições de Meneses,
que as ouvira na venda do "Seu" Nascimento, que o marido de Nair -
aquela moça que ele desencaminhara e a mãe, por isso, se suicidara - estava
disposto a persegui-lo, como já o perseguia, com os famosos cadernos, mas mais
eficazmente, desde que se metesse em "alguma". Considerou bem que as
coisas agora seriam mais difíceis; e as pedras que semeara no caminho,
começavam a erguer-se para lapidá-lo.
Tomou a extrema resolução de vender os galos de
briga. O dinheiro que apurasse, depositaria na Caixa Econômica, para tê-lo
sempre à mão, quando fosse necessário fugir. A mãe, vendo carroças chegarem à
porta e as gaiolas e capoeiras saírem, a fim de tomarem lugar nos transportes,
foi indagar-lhe o que havia:
- Nada, mamãe. Vou para fora, trabalhar...
- Para onde, Cassi?
- Vou para Mato Grosso, empregar-me na
construção de uma estrada de ferro.
- Como trabalhador de picareta, meu filho?
- Não, mamãe, vou ser chefe de turma e praticar
nos instrumentos, até conseguir ser seccionista.
Dona Salustiana assim mesmo não ficou contente.
Ela conhecia a ignorância do filho, a sua inferioridade mental e a sua
incapacidade para aplicar-se a alguma coisa que demandasse o menor esforço
intelectual; viu bem, portanto, que, numa construção de estrada de ferro, ele
só podia ser simples trabalhador braçal, pegar na foice e roçar, no machado e
derrubar, na picareta e cavar, mais nada! Voltou chorando para onde estavam as
filhas:
- Você não sabe, Catarina? Você não sabe, Irene,
de uma coisa? Ai! Meu Deus!
- Que é, mamãe? - perguntou Catarina.
- Que há, mamãe? - indagou Irene.
- Minhas filhas, vocês não sabem que desgraça
para a família, Cassi...
- O que houve? - assustou-se Catarina.
- Cassi está doido e quer envergonhar-nos a
todos nós, o meu avô que foi cônsul da Inglaterra... Ah! Se ele ressuscitasse -
que vexame não passaria!
- Que é que Cassi vai fazer? - fez Irene com
calma.
- Vai ser trabalhador de enxada, numa estrada de
ferro de Mato Grosso.
Irene, que era severa e nunca perdoaria ao irmão
as maliciosas perguntas que as colegas da escola lhe faziam, vexando-a
bastante, quando acontecia aparecer o nome dele nos jornais, nas suas habituais
cavalarias - observou:
- Que tem isso, mamãe! Ele tem saúde, ao invés
de andar por aí a fazer das suas, a nos envergonhar por toda a parte, é melhor
que ele trabalhe para ver se toma caminho.
Dona Salustiana olhou espantada para a filha e
disse cheia de mágoa:
- É que você não é mãe; mas, em breve, você
será, então...
Catarina obtemperou:
- Mamãe, eu não acho motivo para lástima. O que
é de todo reprovável, é que ele leve toda a vida a que está levando... O melhor
é aventurar...
O pai veio a saber da resolução do filho, sobre
quem não punha os olhos, havia dois anos. Não conteve a sua alegria e exclamou:
- Que se vá! Que vá para o diabo! Já é tempo!
Depois acrescentou:
- Vocês vão ver que ele fez uma das suas; vai
fugir e deixar-nos vexados, senão atrapalhados. Seja tudo pelo amor de Deus!
Que se vá e nos deixe em paz.
Vendidos os galos, galinhas, frangos e pintos,
apurou quinhentos mil-réis, que se dispôs a depositar na Caixa Econômica, logo
no dia seguinte ao do recebimento.
Nesse dia, despertou cedo, banhou-se
cuidadosamente, escolheu bem a roupa branca, viu bem se a meia não estava
furada, escovou o terno cintado e, cuidadosamente, meteu mão à obra de
vestir-se com apuro, para vir à "cidade". Raramente, vinha ao centro.
Quando muito, descia até o Campo de Sant'Ana e daí não passava. Não gostava
mesmo do centro. Implicava com aqueles elegantes que se postavam nas esquinas e
nas calçadas. Achava-os ridículos, exibindo luxo de bengalas, anéis e pulseiras
de relógio. É verdade, pensava consigo, que ele usava tudo aquilo; mas era com
modéstia, não se exibia. Recordava que não tinha poses, mas, mesmo que as
tivesse, não se daria a tal ridículo... Essa sua filosofia sobre a elegância,
de elegante suburbano, ele aplicava às moças. Quanto dengue! Para que aqueles
passos estudados? Aqueles modos de dizer adeus?
Achava tudo ridículo, exagerado, copiado, mas não
sabia bem de que modelo. O que, de fato, sentia não era isso que expunha aos
amigos ou às belezas suburbanas que, porventura, requestasse. O que ele sentia
diante daquilo tudo, daquelas maneiras, daqueles ademanes, daquelas conversas
que não entendia, era a sua ignorância, a sua grosseria nativa, a sua falta de
educação e de gosto. O seu ódio, então, ia forte para os poetas e jornalistas,
sobretudo, para estes. Não perdoava as descalçadeiras, os deboches que lhe
passavam, quando tinham de denunciar alguma das suas ignóbeis proezas. Uns
sujos! - dizia - ; uns malandros! - continuava - que querem ditar moral. O seu
primeiro ímpeto, quando lia notícias a seu respeito, era atirar-se contra um
deles, naturalmente o que lhe parecesse mais fraco; e desancá-lo de pancadas.
Sustinha, porém, o ímpeto, porque sabia, se tal fizesse, estaria perdido. A
guerra seria sem tréguas, e “novos e velhos” da sua interminável
conta sairiam à luz. Secretamente, tinha um respeito pela cidade, respeito de
suburbano genuíno que ele era, mal-educado, bronco e analfabeto.
Mal tomou o café matinal, concertou ainda a
gravata e pôs-se na rua. Era cedo, mas temia pelo dinheiro que tinha na
algibeira. Não queria que ninguém soubesse da existência de avultada quantia em
seu poder e, muito menos, que premeditava fugir. Embarcou no primeiro trem; e,
esgueirando-se pela Central, conseguiu não encontrar conhecido que lhe fizesse
perguntas indiscretas.
Cassi Jones, sem mais percalços, se viu lançado em
pleno Campo de Sant'Ana, no meio da multidão que jorrava das portas da Central,
cheia da honesta pressa de quem vai trabalhar. A sua sensação era que estava
numa cidade estranha. No subúrbio tinha os seus ódios e os seus amores; no
subúrbio tinha os seus companheiros, e a sua fama de violeiro percorria todo
ele, e, em qualquer parte, era apontado; no subúrbio, enfim, ele tinha
personalidade, era bem Cassi Jones de Azevedo; mas, ali, sobretudo do Campo de
Sant'Ana para baixo, o que era ele? Não era nada. Onde acabavam os trilhos da
Central, acabava a sua fama e o seu valimento; a sua fanfarronice evaporava-se,
e representava-se a si mesmo como esmagado por aqueles "caras" todos,
que nem o olhavam. Fosse no Riachuelo, fosse na Piedade, fosse em Rio das Pedras,
sempre encontrava um conhecido, pelo menos, simplesmente de vista; mas, no meio
da cidade, se topava com uma cara já vista, num grupo da Rua do Ouvidor ou da
avenida, era de um suburbano que não lhe merecia nenhuma importância. Como é
que ali, naquelas ruas elegantes, tal tipo, tão mal-vestido, era festejado,
enquanto ele, Cassi, passava despercebido? Atinava com a resposta, mas não
queria responder a si mesmo. Mal a formulava, apressava-se em pensar noutra
coisa.
Na "cidade", como se diz, ele percebia
toda a sua inferioridade de inteligência, de educação; a sua rusticidade,
diante daqueles rapazes a conversar sobre coisas de que ele não entendia e a
trocar pilhérias; em face da sofreguidão com que liam os placards dos jornais,
tratando de assuntos cuja importância ele não avaliava, Cassi vexava-se de não
suportar a leitura; comparando o desembaraço com que os fregueses pediam
bebidas variadas e esquisitas, lembrava-se que nem mesmo o nome delas sabia
pronunciar; olhando aquelas senhoras e moças que lhe pareciam rainhas e
princesas, tal e qual o bárbaro que viu, no Senado de Roma, só reis, sentia-se
humilde; enfim, todo aquele conjunto de coisas finas, de atitudes apuradas, de hábitos de polidez e
urbanidade, de franqueza no gastar, reduziam-lhe a personalidade de medíocre
suburbano, de vagabundo doméstico, a quase coisa alguma.
Saltando na Central, não procurou bonde.
Engolfou-se num filete de multidão que se alastrava em direitura à Prefeitura e
marchou a pé até o "centro". Desde o Largo do Rossio, foi parando
diante das montras. Demorava-se a ver jóias através de fortes vidros que as
protegiam contra a cobiça alheia. Mirava anéis e relógios, braceletes e
brincos, mais àqueles do que a estes, porquanto não lhe brotava no coração
nenhuma necessidade de dar presentes às amadas. Tão caros, não valia a pena!...
Uma bengala de junco, esquinada, com castão de ouro, tentou-o. Os quinhentos
mil-réis que tinha na algibeira murmuraram-lhe alguma coisa ao ouvido.
Prontamente repudia a tentação; precisava estar seguro...
Entrou pela Rua Sete de Setembro e, daí em
diante, foi admirando as roupas feitas - por toda a longa fachada do Parc
Royal, foi parando diante das vitrines, onde havia roupas e outras peças de
vestuário, para homens. Viu fraques, viu suspensórios, viu ligas, viu
colarinhos, viu camisas... Que coisas lindas!
Tomou a Rua do Ouvidor e foi descendo, sempre
parando em frente das casas que tinham artigos para homens. Por desfastio,
desviou-se a olhar as vitrines de uma livraria. Olhou-lhe também o interior.
Livros de alto a baixo. Para que tantos livros? Aquilo tudo só seria para fazer
doidos. Ele tinha livros, na verdade; mas eram alguns, livros de amor... Que
livros, meu Deus! Teve vontade de tomar café; hesitou um pouco! Mas, afinal,
animou-se. Estava quase na hora. A Caixa Econômica não tardaria em abrir-se. Lá
chegando, teve que aguardar a abertura da porta. Já havia gente à espera.
Olhou-a de relance. Fisionomias diferentes de trato e de cor: velhas de
mantilha, moças de peito deprimido, barbudos portugueses de duros trabalhos,
rostos de caixeiros, de condutores de bonde, de garçons de hotel e de botequim,
mãos queimadas de cozinheiras de todas as cores, dedos engelhados de humildes
lavadeiras - todo um mundo de gente pobre ia ali depositar as economias que
tanto lhes devia ter custado a realizar, ou retirá-las, para acorrer a qualquer
drama das suas necessitadas vidas. Aborreceu-se com aquele contacto...
Penetrando no saguão, pôs-se a ler os cartazes
onde estavam as disposições legais que interessavam ao público. Diabo! A
providência não lhe servia... Para confirmar, dirigiu-se a um empregado num
guichet, que tinha ao alto este letreiro: "Informações." Não lhe
servia absolutamente. Para retirar mais de duzentos mil-réis, tinha que avisar
previamente. Não; não depositaria. O dinheiro devia estar sempre ao alcance da
mão... Saiu e, a fim de não ser visto por algum conhecido, procurou alcançar o
Largo de São Francisco, atravessando aqueles velhos becos imundos que se
originam da Rua da Misericórdia e vão morrer na rua Dom Manuel e Largo do
Moura. Penetrou naquela vetusta parte da cidade, hoje povoada de lôbregas
hospedarias, mas que já passou por sua época de relativo realce e brilho. Os
botequins e tascas estavam povoados do que há de mais sórdido na nossa
população. Aqueles becos escuros, guarnecidos, de um e outro lado, por altos
sobrados, de cujas janelas pendiam peças de roupa a enxugar, mal varridos,
pouco transitados, formavam uma estranha cidade à parte, onde se iam refugiar
homens e mulheres que haviam caído na mais baixa degradação e jaziam no último
degrau da sociedade. Escondiam, na sombra daquelas betesgas coloniais, nas
alcovas sem luz daqueles sobrados, nos fundos caliginosos das sórdidas tavernas
daquele tristonho quarteirão, a sua miséria, o seu opróbrio, a sua infinita
infelicidade de deserdados de tudo deste mundo. Entre os homens, porém, ainda
havia alguns com ocupação definida; marítimos, carregadores, soldados; mas as
mulheres que ali se viam, haviam caído irremissivelmente na última degradação.
Sujas, cabelos por pentear, descalças, umas, de chinelos e tamancos, outras.
Todas metiam mais pena que desejo. Como em toda e qualquer seção da nossa
sociedade, aquele agrupamento de miseráveis era bem um índice dela. Havia
negras, brancas, mulatas, caboclas, todas niveladas pelo mesmo relaxamento e
pelo seu triste fado.
Cassi Jones ia atravessando aquele bairro
singular e escuro, quando, do fundo de uma tasca, lhe gritaram:
- Olá! Olá! "Seu" Cassi! Ó
"Seu" Cassi!
Insensivelmente, ele parou para verificar quem o
chamava. De dentro da taverna, com passo apressado, veio ao seu encontro uma
negra suja, carapinha desgrenhada, com um caco de pente atravessado no alto da
cabeça, calçando umas remendadas chinelas de tapete. Estava meio embriagada.
Cassi espantou-se com aquele conhecimento; fazendo um ar de contrariedade,
perguntou amuado:
- Que é que você quer?
A negra, bamboleando, pôs as mãos nas cadeiras e
fez com olhar de desafio:
- Então, você não me conhece mais, “seu
canaia”? Então você não “si” lembra da Inês, aquela
crioulinha que sua mãe criou e você...
Lembrou-se, então, Cassi, de quem se tratava.
Era a sua primeira vítima, que sua mãe, sem nenhuma consideração, tinha
expulsado de casa em adiantado estado de gravidez. Reconhecendo-a e se lembrando
disso, Cassi quis fugir. A rapariga pegou-o pelo braço:
- Não fuja, não, "seu" patife! Você
tem que "ouvi" uma "pouca" mas de "sustança".
A esse tempo, já os freqüentadores habituais do lugar
tinham acorrido das tascas e hospedarias e formavam roda, em torno dos dois.
Havia homens e mulheres, que perguntavam:
- O que há, Inês?
- O que te fez esse moço?
Cassi estava atarantado no meio daquelas caras
antipáticas de sujeitos afeitos a brigas e assassinatos. Quis falar:
- Eu não conheço essa mulher. Juro...
- "Muié", não! - fez a tal Inês,
gingando. - Quando você "mi" fazia "festa", "mi"
beijava e "mi" abraçava, eu não era "muié", era outra
coisa, seu "cosa" ruim!
Um negro esguio, de olhar afoito, com um ar
decidido de capoeira, interveio:
- Mas, Inês, quem é afinal esse moço?
- É o "home qui mi" fez mal; que
"mi" desonrou, "mi pois" nesta "disgraça".
- Eu! - exclamou Cassi.
- Sim! Você "memo", "seu"
caradura! "Mi alembro" bem... Foi até no quarto de sua mãe... Estava
arrumando a casa.
Uma outra mulher, mas esta branca, com uns
lindos cabelos castanhos, em que se viam lêndeas, comentou:
- É sempre assim. Esses "nhonhôs
gostosos" desgraçam a gente, deixam a gente com o filho e vão-se. A mulher
que se fomente... Malvados!
Cassi ouvia tudo isso sem saber que alvitre
tornar. Estava amarelo e olhava, por baixo das pálpebras, todas as faces
daquele ajuntamento. Esperava a polícia, um socorro qualquer. A preta
continuava:
- Você sabe onde "tá" teu
"fio"? "Tá" na detenção, fique você sabendo. "Si"
meteu com ladrão, é "pivete" e foi “pra chacr’a".
Eis aí que você fez, "seu marvado", "home mardiçoado". Pior
do que você só aquela galinha-d'angola de "tua" mãe, "seu"
sem-vergonha!
Cassi fez um movimento de repulsa e que a
rapariga não perdeu.
- "Oie" - disse ela, para os
circunstantes -; ele diz que não é o tal. Agora "memo se acusou-se",
quando chamei a ratazana da mãe dele de galinha-d'angola... É uma
"marvada", essa mãe dele - uma "véia" cheia de
"imposão" de inglês. Inglês, que inglês...
Soltou uma inconveniência, acompanhada de um
gesto despudorado, provocando uma gargalhada geral. Cassi continuava mudo,
transido de medo; e a pobre desclassificada emendava:
- "Tu" é "mao", mas tua mãe
é pior. Quando ela descobriu "qui" eu "tava" com
"fio" na barriga, "mi pois" pela porta afora, sem pena, sem
dó "di" eu não "tê pronde í". E o "fio" era neto
dela e ela "mi" tinha criado... Vim da roça... Ah! Meu Deus! Se não
fosse uma amiga, tinha posto o "fio" fora, na rua, que era serviço...
Deus perdoe a "tua" mãe o que "mi" fez "i" a meu
"fio", "fio" deste "qui tá i", também, Deus lhe
perdoe!
E a pobre negra abaixou-se para apanhar a barra
da saia enlameada, a fim de enxugar as lágrimas com que chorava o seu triste
destino, talvez mais que o dela, o do seu miserável filho, que, antes dos dez
anos, já travara conhecimento com a Casa de Detenção...
Graças à intervenção do dono da tasca, que tinha
com o guarda de ronda o compromisso de manter a ordem no "reduto", o
ajuntamento se desfez, e Cassi pôde continuar seu caminho. Por despedida,
porém, ainda levou uma surriada das mulheres, que o descompunham em baixo
calão, enquanto Inês imprecava:
- "Marvado"! Desgraçado! Caradura! Hás
de "mi pagá", “seu canaia!”
Logo que se viu livre do perigo, Cassi respirou,
compôs a fisionomia, apalpou o dinheiro na algibeira e fez de si para si:
- Acontece cada uma! Para que havia de dar esta
negra... Felizmente, foi em lugar que ninguém me conhece; se fosse em outro
qualquer - que escândalo! Os jornais noticiariam e... Não passo mais por ali e
ela que fosse para o diabo!... Fico com o dinheiro em casa.
Nenhum pensamento lhe atravessou a cabeça,
considerando que um seu filho, o primeiro, já conhecia a detenção...
X
Clara dos Anjos, meio debruçada na janela do seu
quarto, olhava as árvores imotas, mergulhadas na sombra da noite, e contemplava
o céu profundamente estrelado. Esperava.
Fazia uma linda noite sem luar; era silenciosa e
augusta. As árvores erguiam-se hirtas e se recortavam na sombra, como
desenhadas. Nem uma aragem corria; mas estava fresco. Não se ouvia a mínima
bulha natural. Nem o estridular de um grilo; nem o piar de uma coruja. A noite
quieta e misteriosa parecia aguardar quem a interrogasse e fosse buscar no seu
sossego paz para o coração.
Clara contemplava o céu negro, picado de
estrelas, que palpitavam. A treva não era total, por causa da poeira luminosa
que peneirava das alturas. Ela, daquela janela, que dava para os fundos de sua
casa, abrangia uma grande parte da abóbada celeste. Não conhecia o nome
daquelas jóias do céu, das quais só distinguia o Cruzeiro do Sul. Correu com o
pensamento errante toda a extensão da parte do céu que avistava. Voltou ao
Cruzeiro, em cujas proximidades, pela primeira vez, reparou que havia uma
mancha negra, de um negro profundo e homogêneo de carvão vegetal. Perguntou de
si para si:
- Então, no céu, também se encontram manchas?
Essa descoberta, ela a combinou com o transe por
que passara. Não lhe tardaram a vir lágrimas; e, suspirando, pensou de si para
si:
- Que será de mim, meu Deus?
Se "ele" a abandonasse, ela estava
completamente desmoralizada, sem esperança de remissão, de salvação, de
resgate... Moça, na flor da idade, cheia de vida, seria como aquele céu belo,
sedutoramente iluminado pelas estrelas, que também tinha ao lado de tanta
beleza, de tanta luz, de não sabia que sublime poesia, aquela mancha negra como
carvão. Cassi a teria de fato abandonado? Ela não podia crer, embora há quase
dez dias não a viesse ver. Se ele a abandonasse - o que seria dela? Veio-lhe
então perguntar a si mesma como se entregou. Como foi que ela se deixou perder
definitivamente?
Clara não podia bem apanhar todas as fases dessa
queda; ela se lembrava de poucas e sem nitidez apreciável. Tudo foi num galope
para a desgraça... Em começo, a primeira impressão simpática, os gemidos do
violão, os seus repinicados, seguidos dos requebros dos olhares do tocador, que
os exagerava e punha neles não sei que chama estranha, doce e, ao mesmo tempo,
quente. Impressionara-se muito com isso, tão preparada já estava para os
efeitos do instrumento. Depois, aquela oposição de todos, aquele falar contínuo
nele, para dizer mal, tanto da parte do padrinho, como da parte da mãe e de
Dona Margarida. Essa insistência em denegri-lo fizeram que ela representasse,
dentro de si mesma, Cassi, como um homem excepcional, que causava inveja a
todos, pelas suas qualidades de bravura, pela sua habilidade no canto e na
viola. Não acreditava no que diziam dele... Pareceu-lhe, na primeira vez que o
viu, tão modesto, tão reservado de modos, tão delicado, que não podia ser o que
diziam. Quando conversou com ele, meses depois, pela primeira vez, no gradil de
sua casa, mais esse retrato se firmou; as suas conversas eram tão inocentes e
honestas, falando sempre em empregar-se e casar-se com ela; removendo as
objeções e dúvidas que ela punha quanto à viabilidade do casamento deles, com
segurança e franqueza; contrapondo, para mostrar a sua possibilidade, à cor
dela, além da grande paixão que nutria, a sua pobreza, a oposição dos pais, a
sua falta de posição, de saber - o que não permitia a ele aspirar a grandes
casamentos vistosos, com mulher mais bem-educada do que ele, mais instruída...
O seu ideal era Clara, pobre, meiga, simples,
modesta, boa dona-de-casa, econômica que seria, para o pouco que ele poderia
vir a ganhar...
De dia para dia, ele ganhava mais fortemente a
confiança da rapariga. Ela se convencia e sonhava a toda hora com aquela
"casa branca da serra", onde iria aninhar o seu amor por Cassi.
Indagava, em todas as entrevistas, dos passos que ele dava para obter emprego,
colocação; e ele, com blandícia, com afagos, dizia-lhe com açúcar nas palavras:
- Sossega, filhinha querida! Roma não se fez num
dia... É preciso esperar... Falei ao doutor Brotero, que me deu uma
recomendação para o Senador Carvalhais. Procurei este e ele me disse que, para
o Cais do Porto, não podia arranjar... Tinha pedido muito e muito; estava
"queimado", como se diz.
Ouvindo tudo isto, Clara sentia-se desfazer, ao
calor, à meiguice, ao entono amoroso daquela voz. Era mesmo um bom, um sincero,
um namorado, mais que isto, um noivo - esse Cassi.
- Por que você não me “pede” a
papai? - perguntou-lhe um dia.
Cassi, sem hesitação, com o mais convincente tom
de franqueza, respondeu:
- Não posso ainda, meu bem. Seus pais... É
verdade que seu padrinho não existe mais...
A estas palavras, Clara estremeceu e olhou-o
medrosa; ele, porém, não percebeu o movimento da rapariga, como ainda não tinha
notado as suspeitas que ela tinha, de quando em quando, da intervenção dele no
assassinato do padrinho. No começo, Clara quase ficara certa de que ele estava
metido no crime; mas, quando, daí a dias, conversou com ele, fosse a emoção da
primeira entrevista, fosse a ternura com que a cobria e se expandia por ele
todo, ela afastou a convicção e perdeu o terror que ele começara a lhe
inspirar. A sua débil inteligência, a sua falta de experiência e conhecimento
da vida, aliado tudo isto à forte inclinação que tinha e não sopitava pelo
violeiro, agiram sobre a sua consciência, de forma a inocentar, a seus olhos, o
tocador de violão, no caso da morte misteriosa do padrinho. Entretanto, de
quando em quando, lá lhe vinha uma suspeita, mas ele era tão bom...
Cassi, sem hesitação, respondeu-lhe à pergunta,
no mais persuasivo tom de franqueza:
- Não posso ainda, meu bem. Seus pais... É
verdade que seu padrinho não existe mais; mas Dona Engrácia não me suporta.
Além disso, essa Dona Margarida também não me traga... Que estranho o que se
passou com ela e Timbó...
- Você por que anda com ele, Cassi?
- Que hei de fazer? Ele não me faz e não me fez
mal; procura-me e não posso correr com ele. É por isso.
- Mas é só por isso que você não me pede? Por
causa da implicância que têm com você? Por isso só, não!
- Não é só por isso. É porque estou ainda
desempregado. Se eu estivesse empregado, desarmava todos; e - fique você certa
- logo que me empregue, peço-te em casamento.
Recordando-se disso, Clara, mais uma vez,
contemplou o céu profusamente estrelado; mas, logo, deu com a mancha de
alcatrão e ficou triste.
Rememorando conversas e fatos, ela punha todo o
esforço em analisar o sentimento, sem compreender o ato seu que permitiu Cassi
penetrar no seu quarto, alta noite, sob o pretexto de que precisava se abrigar
da chuva torrencial prestes a cair. Ela não sabia decompô-lo, não sabia
compreendê-lo. Lembrando-se, parecia-lhe que, no momento, lhe dera não sei que
torpor de vontade, de ânimo, como que ela deixou de ser ela mesma, para ser uma
coisa, uma boneca nas mãos dele. Cerrou-se-lhe uma neblina nos olhos, veio-lhe
um esquecimento de tudo, agruparam-se-lhe as lembranças e as recordações e toda
ela se sentiu sair fora de si, ficar mais leve, aligeirada não sabia de quê; e,
insensivelmente, sem brutalidade, nem violência de espécie alguma, ele a tomou
para si, tomou a sua única riqueza, perdendo-a para toda a vida e vexando-a,
daí em diante, perante todos, sem esperança de reabilitação.
Pôs-se a chorar silenciosamente. No seio da
noite, um apito de locomotiva ecoou como um gemido; as árvores como que
estremeceram; por sobre um capinzal próximo, um pirilampo emitia a sua luz de
prata azulada; por cima da casa, morcegos silenciosos esvoaçavam; ao longe, as
montanhas tinham aspectos sinistros, de gigantes negros que montavam sentinela;
tudo era silêncio, e, em vão, ela apurava o ouvido e reforçava o seu poder de
visão, para ver se daquele mistério todo saía qualquer resposta sobre o seu
destino - ou se via o caminho para a sua salvação...
Olhou ainda o céu, recamado de estrelas, que não
se cansavam de brilhar. Procurou o Cruzeiro, rogou um instante a Deus que a
perdoasse e a salvasse. Andou com o olhar no céu, um pouco além; lá estava a
indelével mancha de carvão...
“Ele” não vinha; os galos começavam
a cantar. Fechou a janela chorando e chorando foi-se deitar. Custou a conciliar
o sono; e a visão ameaçadora da descoberta, por parte dos seus, da sua falta,
passou-lhe pelos olhos e aterrou-a como um duende, um fantasma.
Em casa e fora, ainda ninguém suspeitava. Os
sintomas de gravidez, por ora, não se faziam sentir. É verdade que tinha
náuseas, enjôos, sem causa nem motivo; mas ela dissimulava-os tão bem, que sua
mãe nada percebia.
Dona Engrácia mesmo era de seu natural pouco sagaz
e tinha grande confiança na vigilância que exercia sobre a filha. Joaquim, nos
dias úteis, mal via a filha, pela manhã, ao sair, e à noite, quando voltava do
serviço.
A morte desgraçada do seu compadre Marramaque o
fizera triste, verdadeiramente triste e acabrunhado. A sua amizade era velha, e
ele devia favores inolvidáveis ao pobre contínuo. Fora ele quem aperfeiçoara o
pouco que ele, Joaquim, sabia, para ser carteiro. Devia-lhe esse serviço
espontâneo. Mais de uma vez, arranjara-lhe recomendações para promoções, de
modo que o que era, devia de alguma sorte a Marramaque. As partidas de solo,
aos domingos, não se realizavam mais. Lafões tinha sido transferido para os
mananciais. O sagaz minhoto farejava que aquele negócio de Cassi desandaria em
desgraça. Ele não a podia impedir, mas não a queria assistir, tanto mais que se
sentia arrependido de ter apresentado o modinheiro em casa do carteiro.
Enganou-o, o malandro! Fizera-o de boa-fé...
O único que aparecia ainda, era Meneses. Estava,
porém, amalucado, monomaníaco. Fugia de todas as conversas e teimava em expor o
seu sistema de carro motor, sem rodas, absolutamente sem rodas. Uma grande
descoberta! - arrematava ele.
- A roda, meu caro Joaquim, é um atraso das
nossas máquinas. No seu acionamento, devido ao atrito dos eixos nos mancais e
outros meios de transmissão da força, perde-se muito do efeito útil desta,
proveniente das resistências passivas. Se nós, para nos movermos; se um cavalo,
um elefante e todos os animais empregassem rodas para se deslocarem de um ponto
para outro, a força que despenderiam seria muitas vezes maior do que a de que
efetivamente dispõem. Suprimo as rodas da minha "Andotiva" (é assim
que o meu aparelho se chama) e imito o meio de locomover-se dos animais
terrestres. Tenho hesitado entre os reptis e os mamíferos; mas vou tomar por
modelo estes. Com juntas, jogos combinados de cadeias de distensão e contração,
como as nossas cadeiras de molas, obterei uma máquina que, com o mesmo custo de
força e combustível que uma locomotiva comum, produzirá o dobro do rendimento
útil que esta produz.
Joaquim, ouvindo tudo isto, bocejava; Meneses,
inteiramente engolfado no seu sonho mecânico, não percebia que estava enfadando
o amigo. Falava, falava sobre a sua sonhada - "Andotiva" - e bebia parati.
Às vezes, jantava com o carteiro e família; mas,
na mesa, pouco se dirigia à Clara. Tinha medo que, conversando, traísse o
segredo que existia entre ambos.
O velho dentista, mesmo, havia deixado de ver
Cassi, e este, por sua vez, evitava-o, temendo que Meneses percebesse os seus
propósitos de fuga e contasse a todos, levantando suspeitas em Clara.
Outras vezes, o velho dentista ia procurar
Leonardo Flores, para conversar e mesmo jantar com ele. Flores não passava
verdadeiramente necessidade. Com a sua aposentadoria e o auxílio que os filhos
lhe prestavam, sempre tinha o que comer sem se queixar da fome.
A sua casa, graças à dedicação da mulher, vivia
em ordem. Ele não se intrometia em nada da economia do lar. Os seus próprios
vencimentos de aposentado, ele ia recebê-los, ou ela, e os entregava intactos.
Roupa, jornais, fumo, parati - tudo ela comprava e lhe dava. Em começo, a boa
da Dona Castorina quis ver se suprimia a cachaça; mas viu que era pior. Ele
caía num abatimento, numa apatia de coisa morta. Resolveu fazer mais este
sacrifício ao seu triste casamento: dar cachaça ao marido. Quando ele queria
sair, ela lhe dava níqueis para a sua predileta bebida.
As visitas de Meneses eram particularmente
agradáveis à mulher de Flores, porque não só distraía o marido, como lhe tirava
a vontade de sair.
Flores tinha épocas em que não se movia de casa,
senão a muito custo, para ir ao Tesouro receber a sua pensão; mas tinha outra
em que se lhe tomava inteiramente o delírio ambulatório. Dona Castorina, embora
compreendendo que o marido não podia ficar sempre retido em casa, procurava evitar que ele saísse, devido
aos desatinos que praticava. Lá vinha, porém, um dia que...
Quando Meneses ia, aos domingos, procurá-lo,
Flores recebia-o com um grandiloqüente palavreado heráldico e fidalgo; mas ele
dizia com grande melancolia, com uma mágoa que bem sabia não ter remédio:
- Só tu me procuras, Meneses! Os outros me
abandonaram... Ah! A Poesia! Ela me tem dado bons momentos, mas me fez ir longe
demais no meu grande serviço...
Punham-se a bebericar e, quando já estavam um
tanto "esquentados", cada um dava para a sua mania. Meneses explicava
a mecânica sutil da sua "Andotiva"; e Leonardo Flores recitava o seu
último soneto, que, embora desconexo, ainda tinha música, uma imponderável
nostalgia de coisas entrevistas em sonho, uma obsessão de perfume, que
constituíam os característicos de sua poética.
De repente, Meneses punha-se a roncar no sofá, e
Leonardo, saindo do seu mundo sonoro de versos e rimas, punha-se de pé e,
contemplando o camarada, com os braços cruzados, limitava-se a dizer:
- Imbecil! Dorme imbecil! Filisteu! Burguês!
E voltava a fazer versos, a que era como que
forçado até à hora do jantar. Por essa ocasião, despertava Meneses aos berros e
debaixo de descomposturas e injúrias poéticas.
O jantar, conforme o hábito das nossas pequenas
famílias, nos domingos, era posto à mesa, mais cedo, constituindo o que se
chama o "ajantarado". Assim se usava na casa de Flores; mas, em
geral, era servido tarde, quase à hora do jantar habitual. A refeição não
corria alegre. Meneses tinha a sua mania; Flores a dele; e ambos, durante ela,
entregavam-se às suas extravagâncias, falando de coisas que os outros não
entendiam. Meneses era calmo; mas o seu amigo comia fazendo esgares, soltando
rugidos, cofiando a barba, ainda negra, que terminava num cavaignac pontiagudo.
Dona Castorina, a mulher de Flores, de vez em
vez, repreendia-o como a um filho menor:
- Come com modos, Flores! Você parece uma
criança.
Raramente acontecia estar presente um dos
filhos. Andavam pelo football e a mãe lhes reservava o jantar. Se acontecia o
contrário, o rebento do poeta olhava o pai sem nenhuma expressão, sem ânimo de
aconselhá-lo e sem insensibilidade para rir. A loucura de Flores era curiosa.
Não só ela se manifestava com intermitências de grandes intervalos, como também
as havia num curto espaço de um dia. O álcool tinha contribuído para ela; mas,
sem ele, a sua alienação mental ter-se-ia manifestado, cedo ou tarde. Todos os
que o conheceram moço, sabiam-no de sobra possuidor de diátese da loucura. Os
seus tics, os seus caprichos, a sua exaltação e outros sintomas confusamente
percebidos levavam os seus íntimos a temerem sempre pela sua integridade
mental. A tudo isso, ele juntava, ainda por cima, álcoois fortes, que sempre
tomou; whisky, genebra, gim, rum, parati - para se compreender a natureza da
insânia de Flores.
Certa vez, após o jantar, tomando café no
jardinzinho de sua casa, que ele mesmo cuidava com rara dedicação, de
surpreender no seu estado - Leonardo olhou o céu e gritou para Meneses,
descansando a xícara sobre uma cadeira ao lado:
- Meneses! Vê só tu como esta tarde está linda!
Não é só o ouro e a púrpura do crepúsculo que vêm; não é só o azul-ferrete dos
morros que, com o aproximar-se a noite, se vai enegrecendo aos poucos... Há
mais, caro Meneses; há verde no céu, um verde imaterial que não é o do mar, que
não é o das árvores, que não é o da esmeralda, que não é o dos olhos de Minerva
- é um verde celestial, diferente de todos aqueles que nós habitualmente
vemos... Vamos sair, vamos gozar a natureza!
- Deixa-te disso, Flores. Daqui mesmo, nós
vemos...
- Idiota! Não és um artista... Se não me
acompanhas, saio só!...
Dona Castorina interveio naturalmente:
- Para que vais sair, Leonardo? Estás tão bem
aqui com o "Seu" Meneses... Precisas de repouso, descanso...
- Mulher! Sabes quem eu sou? - fez Flores, com o
seu modo habitual de cruzar os braços e enterrar o queixo no peito, quando
falava com solenidade.
- Sei muito bem. És Leonardo Flores, meu marido
- respondeu-lhe a mulher, sorrindo.
- Não sou só isso. Sou mais! - insistiu Flores,
carrancudo.
- O que és, então? - perguntou-lhe Dona
Castorina.
- Sou um poeta!
Dizendo isto, entrou pela sala adentro e
encaminhou-se para o quarto de dormir.
- Onde vais? - indagou-lhe a mulher.
- Vou me vestir; quero ver este crepúsculo de
pedraria, de metais caros, de sonhos e de quimeras. Sou um poeta, mulher!
Dona Castorina já sabia que, quando lhe dava
essa fúria de sair, era pior contrariá-lo. Nada disse ao marido e foi pedir a
Meneses que o acompanhasse. O velho dentista não se sentia bem; o seu desejo
era descansar; mas, à vista do pedido de Dona Castorina, não teve outro remédio
senão acompanhar o camarada. Andaram a pé por toda a parte, bebendo sempre onde
encontravam lugar propício; Meneses, arrastando o passo; e Flores, dilatando as
narinas, fazendo horríveis contrações com o rosto, alisando o cavaignac e
dizendo:
- Que beleza! Que beleza! Quero respirar,
cheirar, absorver todo o perfume desse divino crepúsculo... Não fora a
natureza, os céus, os pássaros, as águas múrmuras, como poderíamos viver?
Depois de uma pausa, acrescentou desolado:
- A vida é tão banal, tão chata... Nós somos
também natureza; mas do que nos vale isto? Há os burgueses e os regulamentos
que nos abafam...
Já tinha anoitecido de todo. Leonardo Flores não
dava mostras de querer voltar para casa; Meneses arrastava o passo a muito custo.
Iam atravessando um trecho deserto de rua, quando o velho dentista disse para o
amigo:
- Leonardo, estou com as pernas que não posso.
Vamos descansar um pouco.
- Onde?
- Sentados na relva, um pouco longe da estrada, ali,
atrás daquela moita... Estou que não posso, meu caro.
Os dois abandonaram o caminho público e
procuraram a tal moita. Meneses, com muita dificuldade, sentou-se; mas Leonardo
foi logo se deitando. Tinham bebido muito, e a embriaguez lhes chegava. Leonardo
ainda pôde dizer, olhando as estrelas que começavam a brilhar:
- Como é belo o céu! Lá não haverá por certo
ministros, nem congresso, nem presidentes... Que bom será!
O dentista não se demorou muito tempo sentado;
deitou-se logo; e Leonardo, mal dissera aquelas palavras, ferrou no sono.
Dormiram afinal, na relva, com os olhos voltados para o céu estrelado...
* * *
Leonardo, já dia adiantado, veio a despertar
naquele capinzal, atordoado, zonzo; e, ao dar com Meneses ao lado, procurou
acordá-lo. Foi em vão; o velho estava morto. Um colapso cardíaco o tinha
levado. Percebendo que o amigo tinha morrido, Leonardo ergueu-se, tirou-lhe o
chapéu de perto da cabeça, pôs-lhe o rosto bem à mostra, com as suas brancas
barbas veneráveis, e começou a exclamar:
- Sol! Sol glorioso das auroras e das
ressurreições! Sol divino que conténs todos nós, homens e plantas, bestas e
gênios, insetos e vampiros, lesmas e belezas! Sol que tudo fecundas e
transformas! Vem tu - ó Sol! - beijar esta augusta cabeça de imperador
(apontava para Meneses hirto) que vai para sempre mergulhar na treva e só te
verá de novo, quando for árvore, quando for arbusto, quando for pássaro e
quando de novo voltar a ser homem. Beija-o ainda mais uma vez! Beija-o, porque
ele te amou e muitas vezes voou para os espaços sidéreos, desejoso de ver o teu
fulgor e morrer por tê-lo visto.
Não dera fé, Leonardo, que alguns transeuntes
haviam parado, para ouvir as suas palavras e ver os seus estranhos trejeitos.
Os mais curiosos se aproximaram e deram com aquele estranho e bizarro
espetáculo de um homem, que parecia louco ou bêbedo, a pronunciar coisas
incompreensíveis e a gesticular, diante de um pobre velho morto. Chamaram a
polícia; e lá foi Leonardo, gesticulando e falando só, para a delegacia. Meneses
tomou o caminho do necrotério, após fotografias e outras precauções policiais.
O primeiro movimento do policial que recebeu
Leonardo, foi removê-lo incontinenti para o hospício ou lugar equivalente. Na
verdade, o poeta não dizia coisa com coisa; nem mesmo quem era, informava.
Muitos o conheciam de vista, mas, para essas pessoas, era simplesmente -
"o poeta". Em chegando Praxedes, as coisas mudaram. Tinha ele o
hábito de ir de manhã às delegacias, ver se pegava algum biscate, alguma coisa.
Indo, naquele dia, topou com Leonardo lá e soube que um velho, que bebia muito
e costumava estar com ele, havia sido encontrado morto junto a Flores e fora
removido para a morgue. Viu logo que se tratava de Meneses. Muito prestável,
obsequioso de gênio, Praxedes, para quem a polícia não tinha segredos, informou
ao comissário quem era Leonardo e quem era Meneses. A autoridade policial
encarregou-o de prevenir os parentes e amigos de ambos do que havia acontecido.
Praxedes correu à casa de Joaquim dos Anjos, para desobrigar-se da missão. Foi
recebido pela mulher e a filha.
- Quincas não está aí - disse-lhe Dona Engrácia.
- Ele saiu cedo...
- O senhor pode telefonar para a Repartição dos
Correios - lembrou Clara.
- Lembrei-me disso, mas não sabia a seção.
A filha disse-lhe e o doutor Praxedes, muito
diplomaticamente, ergueu-se todo e, ao despedir-se das senhoras, desculpou-se:
- Vossas Excelências hão de me perdoar. Não
podia deixar de vir até aqui. Sabia de dois amigos íntimos do doutor Meneses;
um era o Senhor Cassi, mas este está fora...
Clara espantou-se:
- Está fora!
- Ué, Clara! - fez Dona Engrácia, - Que espanto!
- Não, porque ainda há dias "Seu"
Meneses disse a papai que estivera com ele - fez Clara disfarçando.
- Deve ser há algum tempo, minha senhora -- aventou
Praxedes, com toda a delicadeza de voz; -- porque há bem quinze dias que
embarcou para São Paulo, em Cascadura. Eu até me despedi dele...
Praxedes saía e Clara, logo que pôde, correu ao
quarto para chorar. Estava irremediavelmente perdida; ele a abandonava de vez.
Como havia de ser? Como havia de esconder a gravidez, que se ia mostrando aos
poucos? Que fariam dela os seus pais? Era atroz o seu destino!
Todas essas perguntas, ela formulava e não lhes
dava resposta. Cassi partira, fugira... Agora, é que percebia bem quem era o
tal Cassi. O que os outros diziam dele era a pura verdade. A inocência dela, a
sua simplicidade de vida, a sua boa-fé, e o seu ardor juvenil tinham-na
completamente cegado. Era mesmo o que diziam... Por que a escolhera? Porque era
pobre e, além de pobre, mulata. Seu desgraçado padrinho tinha razão... Fora
Cassi quem o matara.
Ele contava, já não se dirá com o apoio, mas com
a indiferença de todos pela sorte de uma pobre rapariga como ela. Devia ser
assim, era a regra. Nessa indiferença, nessa frouxidão de persegui-lo, de
castigá-lo convenientemente, é que ele adquiria coragem para fazer o que fazia.
Além de tudo, era covarde. Não cedia ao impulso do seu desejo, de seu capricho,
por uma moça qualquer. Catava com cuidado as vítimas entre as pobres raparigas
que pouco ou nenhum mal lhe poderiam fazer, não só no que toca à ação das
autoridades, como da dos pais e responsáveis.
Estava aí o seu forte; o mais eram acessórios de
modinhas, de tocatas de violão, de cartas, de suspiros - todo um arsenal de
simulação amorosa, que ele, sem caráter e, por demais, cínico, sabia empregar,
como ninguém.
Que havia de ser dela, agora, desonrada, vexada
diante de todos, com aquela nódoa indelével na vida?
Sentia-se só, isolada, única na vida. Seus pais
não a olhariam mais como a olhavam; seus conhecidos, quando soubessem,
escarneceriam dela; e não haveria devasso por aí que a não perseguisse, na
persuasão de que quem faz um cesto, faz um cento. Exposta a tudo,
desconsiderada por todos, a sua vontade era de fugir, esconder-se. Mas, para
onde? Com a sua inexperiência, com a sua mocidade, com a sua pobreza, ela iria
atirar-se à voracidade sexual de uma porção de Cassis ou piores que ele, para
acabar como aquela pobre rapariga, a quem chamavam de Mme. Bacamarte, suja,
bebendo parati e roída por toda a sorte de moléstias vergonhosas.
Pensou em morrer; pensou em se matar; mas, por
fim, chorou e rogou a Nossa Senhora que lhe desse coragem. Se pudesse
esconder?... - acudiu-lhe repentinamente este pensamento. Se pudesse
"desfazê-lo"? Seria um crime, havia perigo de sua vida; mas era bom
tentar. Quem lhe ensinaria o remédio? Correu o rol de suas poucas amigas; e só
encontrou uma: Dona Margarida.
Nisto, sua mãe gritou-lhe do fundo da casa:
- Clara, estás dormindo? Olha que estão batendo
na porta.
- Já vou, mamãe.
Era o estafeta dos telégrafos, que trazia um
despacho do pai, comunicando que, devido a ter de fazer o enterro de Meneses,
chegaria mais tarde, mas viria jantar.
Ela e a mãe não esperaram; jantaram antes.
Clara, muito preocupada com o "remédio" que ia ver se Dona Margarida
lhe arranjava; e Dona Engrácia, aborrecida com a morte de Meneses.
- Pobre Meneses! - dizia ela. - Morrer assim, no
mato! Por que ele não foi pra casa? Era bem velho, não era, Clara?
- Devia ter mais de setenta anos.
- Isto não quer dizer nada. Há quem dure mais...
Você tem reparado, Clara, que, de uns tempos para cá, está nos acontecendo uma
porção de coisas más?
- Nem tantas! Duas só: a morte do padrinho e...
- Você acha pouco e, ainda por cima, da forma
que elas nos chegam! Deus nos proteja! Tenho para mim que alguma está para nos
acontecer...
- Qual, mamãe! Tudo isto é doloroso, mas são
fatos que se dão...
- Felizmente, esse azar de Cassi se foi. Que vá
pro diabo que o carregue!
Clara teve vontade de chorar; mas conteve-se.
Estava resolvida: amanhã, pediria um "abortivo" a Dona Margarida.
Joaquim dos Anjos chegou e narrou tudo o que
acontecera com Meneses e Leonardo. Aquele, por não ter ninguém que lhe fizesse
o enterro, ele o fizera; e Leonardo, logo que foi afastada a hipótese de crime
e ficou sabido o seu estado mental, entregaram-no à mulher. Ao chegar em casa,
acompanhado de Dona Castorina, foi que Flores caiu em si e teve consciência
perfeita do fim do amigo. Estava lúcido, bom; estava o verdadeiro Leonardo, que
chorou o falecimento do camarada, sem mescla de delírio, pressentindo que,
nele, havia aviso do seu próximo fim.
Engrácia ouviu a narração de Quincas e,
ingenuamente, perguntou-lhe:
- Esse Leonardo é mesmo homem de inteligência,
Quincas?
- É, Engrácia. Por quê?
- Por que ele então bebe tanto?
- Quem sabe lá? Vício, hábito, capricho da sua
natureza, desgostos, ninguém sabe! - observou o marido.
- Eu vejo tanto doutor por aí que não bebe.
- Você pensa que todo doutor é inteligente,
Engrácia?
- Pensei.
Clara ficou admirada de que a opinião da mãe não
fosse exata. Ela também, muito popular e estreita de idéia, admitia que toda a
espécie de doutor fosse de sábios e inteligentes.
Joaquim, dizendo-se cansado, fora logo
deitar-se; e, em seguida, a sua mulher e filha.
Em breve, tudo era silêncio na casa e na rua.
Clara não esperava mais, com a janela semi-aberta, a visita do sedutor.
Havia-se fatigado de aguardá-lo muitas noites seguidas; e, agora então, depois
da informação de Praxedes, tinha perdido toda a esperança. Ele fugira, e ela
ficara com o filho a gerar-se no ventre, para a sua vergonha e para tortura de
seus pais. Imediatamente, o seu pensamento se encaminhou para o
"remédio" que devia "desmanchá-lo", antes que lhe
descobrissem a falta. Tinha medo e tinha remorsos. Tinha medo de morrer e tinha
remorsos de "assassinar" assim, friamente, um inocente. Mas... era preciso.
Pôs-se a examinar o que lhe podia responder Dona Margarida. Pesou os prós e os
contras; analisou bem o caráter da amiga russa-alemã; e, na calma do quarto,
percebeu bem que não lhe daria nem indicaria o "remédio" criminoso.
Margarida era uma mulher séria, rigorosa de vontade, visceralmente honesta,
corajosa, e não haveria rogos nem choro que a fizessem contribuir para um crime
de qualquer natureza. Então, como havia de ser? Examinou a lista das
conhecidas, a ver se encontrava uma que lhe prestasse esse
"serviço"... Não encontrou, e também eram tão poucas... Se tivesse
dinheiro, com auxílio de Mme. Bacamarte... Acudiu-lhe então uma idéia. Ela
ajudava Dona Margarida nos bordados e nas costuras, com o que já ganhava algum
dinheiro. Não tinha nada a haver da amiga; mas bem lhe podia pedir emprestado,
sob qualquer pretexto, uns vinte ou trinta mil-réis e pagá-los com trabalho.
Qual seria o pretexto? Pensou, combinou mentiras; e, afinal, encontrou-o. Diria
que era para comprar um presente destinado à mãe, cujo aniversário natalício
estava a chegar. Sorriu de contentamento, quando organizou toda aquela
mentiralhada. Julgava-se salva; mas, com o que ela não contava, era com a
sagacidade da alemã.
Dona Margarida era mulher alta, forte, carnuda,
com uma grande cabeça de traços enérgicos, olhos azuis e cabelos castanhos
tirando para louro. Toda a sua vida era marcada pelo heroísmo e pela bondade.
Embora nascida em outros climas e cercada de outra gente, o seu inconsciente
misticismo humanitário, herança dos avós maternos, que andavam sempre às voltas
com a polícia dos czares, fê-la logo se identificar com a estranha gente que
aqui veio encontrar. Aprendeu-lhe a linguagem, com seus vícios e idiotismos,
tomou-lhe os hábitos, apreciou-lhe as comidas, mas sem perder nada da
tenacidade, do esprit de suite, da decidida coragem da sua origem. Gostava
muito da família do carteiro; mas, no seu íntimo, julgava-os dóceis demais,
como que passivos, mal armados para a luta entre os maus e contra as insídias
da vida.
Quando Clara lhe falou no empréstimo ou adiantamento,
ela se espantou. Nunca a filha do "correio" lhe havia feito
semelhante pedido - o que queria dizer aquilo? Não respondeu logo à solicitação
e encarou firmemente, com o seu olhar translúcido e, no momento, duro, a filha
do carteiro; e, por sua vez, indagou:
- Para que você quer esse dinheiro, Clarinha?
A moça, não podendo suportar a mirada da alemã,
abaixara os olhos; e, com voz sumida, explicou o suposto destino que ia dar à
quantia pedida. Dona Margarida não acreditou; e, continuando com o olhar a
sondar inquisitorialmente Clara, observou com energia maternal:
- Clara, você não fala a verdade; você está
escondendo alguma coisa.
A moça quis negar; mas Dona Margarida, pressentindo
que ela ocultava alguma coisa de grave, cercou-a de perguntas; e Clara não teve
outro remédio senão confessar tudo. Ela chorou, mas Dona Margarida, sem se
deixar comover, durante toda a confissão, mais arrancada aos poucos do que
mesmo narrada espontaneamente, foi pensando como agir. Encheu-se, Dona
Margarida, de uma infinita pena daquela desgraçada rapariga, dos seus pais, e
mais profunda se tornava a pena, quando antevia o horrível destino da pobre
Clara; entretanto, não deu qualquer demonstração do que lhe ia n'alma.
Num dado momento, sem dar-lhe a mínima
explicação, Dona Margarida ergueu-se e, dirigindo-se à Clara, ordenou
imperiosamente:
- Vamos falar à sua mãe.
A filha do carteiro, sem fazer a mínima objeção,
obedeceu. Ao chegar à casa de Joaquim, Dona Engrácia estava no interior,
inocentemente entregue aos seus afazeres domésticos. Entretanto, Dona Margarida
chamou de parte a mãe de Clara e começou a narrar-lhe o que havia acontecido
com a filha. Dona Engrácia não se pôde conter. Logo que compreendeu a gravidade
do fato, pôs-se a chorar copiosamente, a lastimar-se, a soluçar, dizendo entre
um acesso de choro e outro:
- Mas, Clara!... Clara, minha filha!... Meu
Deus, meu Deus!
A filha aproximou-se chorando; ajoelhou-se,
ajuntou as mãos, em postura de oração, aos pés da mãe e, soluçando, repetiu:
- "Me perdoe", mamãe! "Me
perdoe", pelo amor de Deus!
Dona Margarida, de pé, nada dizia e olhava com
profunda e desmedida tristeza, que não se adivinhava na sua calma e na
segurança do seu olhar, aquele quadro desolador do enxovalhamento de um pobre
lar honesto.
Afinal, quando lhe pareceu que ambas estavam
mais calmas, interveio:
- Você sabe, Clara, onde mora a família desse
sujeito?
Clara, ainda soluçando, respondeu:
- Sei.
Dona Engrácia indagou:
- Para quê?
Dona Margarida explicou que, antes de qualquer
procedimento e mesmo de comunicar o fato a "Seu" Joaquim, era
conveniente entender-se com a família de Cassi. Ela, Dona Margarida, iria imediatamente
à casa dele, acompanhada de Clara. Mãe e filha concordaram; e Clara vestiu-se.
A residência dos pais de Cassi ficava num
subúrbio tido como elegante, porque lá também há estas distinções. Certas
estações são assim consideradas, e certas partes de determinadas estações
gozam, às vezes, dessa consideração, embora em si não o sejam. O Méier, por
exemplo, em si mesmo não é tido como chique; mas a Boca do Mato é ou foi;
Cascadura não goza de grande reputação de fidalguia, nem de outra qualquer prosápia
distinta; mas Jacarepaguá, a que ele serve, desfruta da mais subida
consideração.
A casa da família do famoso violeiro não ficava
nas ruas fronteiras à gare da Central; mas, numa transversal, cuidada, limpa e
calçada a paralelepípedos. Nos subúrbios, há disso: ao lado de uma rua, quase
oculta em seu cerrado matagal, topa-se uma catita, de ar urbano inteiramente.
Indaga-se por que tal via pública mereceu tantos cuidados da edilidade, e os
historiógrafos locais explicam: é porque nela, há anos, morou o deputado tal ou
o ministro sicrano ou o intendente fulano.
Tinha boa aparência a residência da família do
Senhor Azevedo; mas quem a observasse com cuidado, concluiria que a parte
imponente dela, a parte da cimalha, sacadas gradeadas e compoteiras ao alto,
era nova. De fato, quando o pai de Cassi a comprou, a casa era um simples e
modesto chalet, mas, com o tempo, e com ser sua vagarosa, mas segura,
prosperidade, pôde ir, também devagar, aumentando o imóvel, dando um aspecto de
boa burguesia remediada. Na frente, não era alto; o terreno, porém,
inclinava-se rapidamente para os fundos, de forma que, nessa parte, havia um
porão razoável, onde, ultimamente, habitava Cassi. O puxado, na traseira da
casa, também tinha porão, porém, com maus quartos, que eram ocupados pelas
galinhas do filho e por coisas velhas ou sem préstimo, que a família refugava,
sem querer pôr fora de todo.
Dona Margarida tocou a campainha com decisão e
subiu a pequena escada que dava acesso à casa. Disse à criada que desejava
falar à dona da casa. Dona Salustiana, que esperava tudo, menos aquela visita
portadora de semelhante mensagem, não tardou em mandar entrar as duas mulheres.
Ambas estavam bem-vestidas e nada denunciava o que as trazia ali. Só Clara
tinha os olhos vermelhos de chorar, mas passava despercebido. Chegou Dona
Salustiana e cumprimentou-as com grandes mostras de si mesma. Dona Margarida,
sem hesitação, contou o que havia. A mãe de Cassi, depois de ouvi-la, pensou um
pouco e disse com ar um tanto irônico:
- Que é que a senhora quer que eu faça?
Até ali, Clara não dissera palavra; e Dona
Salustiana, mesmo antes de saber que aquela moça era mais uma vítima da
libidinagem do filho, quase não a olhava; e, se o fazia, era com evidente
desdém. A moça foi notando isso e encheu-se de raiva, de rancor por aquela
humilhação por que passava, além de tudo que sofria e havia ainda de sofrer.
Ao ouvir a pergunta de Dona Salustiana, não se
pôde conter e respondeu como fora de si:
- Que se case comigo.
Dona Salustiana ficou lívida; a intervenção da
mulatinha a exasperou. Olhou-a cheia de malvadez e indignação, demorando o
olhar propositadamente. Por fim, expectorou:
- Que é que você diz, sua negra?
Dona Margarida, não dando tempo a que Clara
repelisse o insulto, imediatamente, erguendo a voz, falou com energia
sobranceira:
- Clara tem razão. O que ela pede é justo; e
fique a senhora sabendo que nós aqui estamos para pedir justiça e não para
ouvir desaforos.
Dona Salustiana voltou-se para Dona Margarida e
perguntou, pronunciando, devagar, as palavras, como para se dar importância:
- Quem é a senhora, para falar alto em minha
casa?
Dona Margarida não se intimidou:
- Sou eu mesma, minha senhora; que, quando se
decide a fazer alguma coisa de justo, nada a atemoriza.
Foi calmamente que Dona Margarida falou; e, à
vista dessa atitude, Dona Salustiana resolveu mudar de tática. Gritou para as
filhas:
- Catarina! Irene! Venham cá que esta mulher
está me insultando.
As moças acudiram e, contemplando o ar enérgico
da teuto-eslava e a figura lastimosa de Clara, compreenderam que Cassi estava
no meio. Acalmaram a mãe e indagaram do sucedido; Dona Margarida explicou; mas,
quando se falou em casamento de Cassi, Dona Salustiana prorrompeu:
- Ora, vejam vocês, só! É possível? É possível
admitir-se meu filho casado com esta...
As filhas intervieram:
- Que é isto, mamãe?
A velha continuou:
- Casado com gente dessa laia... Qual!... Que
diria meu avô, Lord Jones, que foi cônsul da Inglaterra em Santa Catarina - que
diria ele, se visse tal vergonha? Qual!
Parou um pouco de falar; e, após instantes,
aduziu:
- Engraçado, essas sujeitas! Queixam-se de que
abusaram delas... É sempre a mesma cantiga... Por acaso, meu filho as amarra,
as amordaça, as ameaça com faca e revólver? Não. A culpa é delas, só delas...
Dona Margarida ia perguntar: "Que decide,
então?" - quando se ouviram passos na escada. Era o dono da casa. Entrando
e deparando-se-lhe aquele quadro, suspendeu os passos e parou no meio da sala.
Olhou tudo e todos e perguntou:
- Que há?
"Papai" - ia dizendo uma das filhas; -
mas sabendo, por aí, quem era aquele homem, Clara correu para ele, ajoelhou-se
e implorou:
- Tenha pena de mim, "Seu" Azevedo!
Tenha pena de uma infeliz! Seu filho me desgraçou!
O velho Azevedo descansou os embrulhos, levantou
a moça, fê-la sentar-se; e ele, sentando-se por sua vez, pôs-se a olhar, cheio
de pena, o dorido rosto da rapariga. Todos os olhos se fixaram nele; ninguém
respirava. Afinal, Azevedo falou:
- Minha filha, eu não te posso fazer nada. Não
tenho nenhuma espécie de autoridade sobre "ele"... Já o amaldiçoei...
Demais, "ele" fugiu e eu já esperava que essa fuga fosse para
esconder mais alguma das suas ignóbeis perversidades... Tu, minha filha, te
ajoelhaste diante de mim ainda agora. Era eu que devia ajoelhar-me diante de
ti, para te pedir perdão por ter dado vida a esse bandido - que é o meu
filho... Eu, como pai, não o perdôo; mas peço que Deus me perdoe o crime de ser
pai de tão horrível homem... Minha filha, tem dó de mim, deste pobre velho,
deste amargurado pai, que há dez anos sofre as ignomínias que meu filho espalha
por aí, mais do que ele... Não te posso fazer nada... Perdoa-me, minha filha!
Cria teu filho e me procura se...
Não acabou a frase. A voz sumiu-se; ele descaiu
o corpo sobre a cadeira e os olhos se foram tornando inchados.
As filhas acudiram, a mulher também; e uma
daquelas, chorando, pediu à Clara e à Dona Margarida:
- É favor, minhas senhoras; retirem-se, sim?
Na rua, Clara pensou em tudo aquilo, naquela
dolorosa cena que tinha presenciado e no vexame que sofrera. Agora é que tinha
a noção exata da sua situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida
irremediavelmente nos seus melindres de solteira, ouvir os desaforos da mãe do
seu algoz, para se convencer de que ela não era uma moça como as outras; era
muito menos no conceito de todos. Bem fazia adivinhar isso, seu padrinho!
Coitado!...
A educação que recebera, de mimos e vigilâncias,
era errônea. Ela devia ter aprendido da boca dos seus pais que a sua
honestidade de moça e de mulher tinha todos por inimigos, mas isto ao vivo, com
exemplos, claramente... O bonde vinha cheio. Olhou todos aqueles homens e
mulheres... Não haveria um talvez, entre toda aquela gente de ambos os sexos,
que não fosse indiferente à sua desgraça... Ora, uma mulatinha, filha de um
carteiro! O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o
caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil Dona Margarida, para
se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra todos os que se
opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e
moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a
covardia com que elas o admitiam...
Chegaram em casa; Joaquim ainda não tinha vindo.
Dona Margarida relatou a entrevista, por entre o choro e os soluços da filha e
da mãe.
Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em
que se sentara e abraçou muito fortemente sua mãe, dizendo, com um grande
acento de desespero:
- Mamãe! Mamãe!
- Que é minha filha?
- Nós não somos nada nesta vida.
Todos os Santos (Rio de
Janeiro),
dezembro de 1921 - janeiro de
1922
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