LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
O Hóspede, de Pardal Mallet
Edição de base:
A Biblioteca Virtual Brasileira
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Capítulo I
biblioComo
no relógio da parede soassem quatro horas, Nenê, num movimento de desânimo,
deixou escorregar-lhe pelo corpo abaixo o jornal que estava a ler
distraidamente. Algum pensamento triste acabrunhava-a. Tanto que por sob as madeixas
sedosas da franja adivinham-se umas rugazinhas pequeninas a franzir-lhe a
testa, aproximando-lhe os sobrolhos levemente arqueados. Veio-lhe um gesto
grande de inquietação e com o pezinho delicado batia febrilmente no assoalho.
Depois o braço torneado e alvadio, nas curvaturas graciosas fortemente
desenhado pela manga estreita do casaco, apoiou-se ao encosto da cadeira de
balanço para suster mais comodamente a cabeça gentil dos traços finos numa
pureza ideal de Juno. E dali seus olhos verde-azulados - imensos lagos de
ternura a desafiar os pescadores do amor, volveram-se languidamente, absortos
na contemplação daquele quadro holandês todo feito com a mansuetude da vida
caseira.
biblioA
luz viva de um sol, que ao termo da viagem galopava ligeiro com pressas de
pernoitar na grande hospedaria do ocaso, entrava francamente pelas janelas
abertas clareando aquele salão de gosto antigo, de uma grande prodigalidade de
madeiras severas e embaciadas, sem o falso brilho dos vernizes. No fundo escuro
paredes forradas em imitação de grandes panos de carvalho embutidos em largos
caixilhos de mogno; e a harmonizar-se com elas uma pesada mobília Luís XIV de
altos espaldares cheios de obras de entalhe. Apenas como nota vibrante e alegre
- o refrangir dos cristais e dos serviços de eletro-prata a rebrilhar no grande
armário envidraçado; e no centro da casa a mesa elástica já convenientemente
preparada para o jantar com a toalha alvejante e o branco luzidio dos pratos
dentre os quais se erguia, a tocar quase no lustre bronzeado, a fruteira de
bacará - pirâmide alaranjada que se terminava floridamente num grande ramo de
crótons.
biblioNo
meio deste espetáculo, como a imagem da vida, sonolenta nas paixões,
petrificada em sua impassibilidade, o vulto nobre e altivo de d. Augusta.
Sentada junto à janela oposta, em uma cadeira baixa a contrastar com a
uniformidade da mobília, tendo junto a si uma pequena mesa de costura sobre a
qual repousava uma cestinha de vime, entretinha-se em alinhavar umas camisinhas
de criança que ia jogando no chão à medida que as aprontava. Suas mãos longas e
delicadas de aristocrata moviam-se em grande volubilidade. E por sobre tudo
isto a sua cabeça de velha que atravessou uma existência calma, nua de
desgostos, conservando a sua pele acetinada, tendo apenas branqueado os cabelos
ao suceder dos anos.
biblioUns
cabelos formosos e bastos que penteava em grandes bandos por cima das orelhas
às quais se suspendiam uns compridos brincos de charão.
biblioE
Nenê esquecia-se do tempo. Achava aquilo tão bonito. Vinha-lhe uma sensação boa
de felicidade a beijar-lhe o colo quase nu sob o rendilhado do casaco.
Encolhe-se toda na cadeira num gesto elegante de gata friorenta e deixou que o
seu olhar boiasse a flux do lago de mansidões. Para que incomodar-se? Ela sentia-se
tão bem naquele descanso do organismo inteiro. Demais não estava com fome. Não
valia a pena inquietar-se por tão pouco. O jantar podia muito bem ser demorado
um bocadinho. E deixou que a embalasse o oscilar da cadeira, seu pezinho
delicado surgindo de entre as saias a desenhar-lhe os contornos sensuais da
perna.
biblioVoltara-se
para as bandas de fora. Gostava do verde escuro das folhagens espessas, e
achava graça na voz do vento a sibilar pelas ramadas. Além, no branco arenoso
da alameda brincava o filhinho louro muito entretido em encher de terra os
vagões de um pequeno trem. Estava tão bonito com a sua roupa azul de marinheiro
e o rosto inteligente e rosado a enquadrar-se na moldura dourada de suas longas
madeixas! E Nenê sorria-lhe mostrando-lhe os dentes alvos, toda embebida nesse
espetáculo, com vontades de ir brincar também, de beijá-lo muito e muito, nuns
grandes pruridos de maternidade.
biblioEntretanto
o relógio batera quatro e meia. D. Augusta levantara-se e reunia as costuras. A
coisa não podia ficar assim! Era preciso dar-lhe uma decisão, e já que o Pedro
não vinha, jantarem sem ele! Nenê protestava. Ainda poderiam esperar mais um
bocadinho. Pelo menos até cinco horas. E novamente umas rugazinhas pequeninas
franziram-lhe a fronte. Qual o motivo dessa desacostumada tardança? Ter-lhe-ia
acontecido algum contratempo? Repassava na memória todas as possíveis
eventualidades. Semelhantes perspectivas repugnavam-lhe. Em tais condições ela
sempre receberia muito cedo a triste notícia. Mas voltavam-lhe visões
fantásticas de desastres por mais que ideasse para afugentá-las uns pensamentos
alegres. Veio-lhe então um grande desânimo, um abandono de si mesma. Que
necessidade havia de preocuparem-na com estes assuntos! E forcejava em voltar
ao quietismo de idéias em que se lhe absorvia a existência inteira.
Capítulo II
biblioOuvira-se
porém o parar de um carro e os gritos alegres do menino que correra para o
portão. Nenê debruçara-se na janela, intimamente sobressaltada, presa ainda
daqueles pesadelos medonhos de suas cismas de havia pouco, querendo saber do
que se tratava, receosa ao mesmo tempo de conhecer a realidade que podia muito
bem não lhe deixar a zona vaga da esperança onde arquitetar um castelo de
felicidades. O ver o marido que caminhava alegre trazendo o filhinho ao colo
foi-lhe de um grande alívio. Respirou mais livremente, como se lhe tivessem
tirado de sobre o peito algum peso que a oprimia. Correu ao seu encontro,
desejosa de abraçá-lo logo e logo, de lhe fazer mil perguntas, de conhecer a
causa de semelhante demora, cheia de contentamentos, feliz até com as suas
primeiras apreensões que lhe faziam saborear com muito mais prazeres aquele
beijo afetuoso que ia receber. E foi com a fisionomia assim animada, numa
grande gentileza de movimentos, que ela se lhe ofereceu ao costumado ósculo
vespertino.
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biblioNo
afã de abraçar o Pedro não reparara que ele vinha acompanhado por um outro
homem; e ao vê-la - essa fisionomia estranha que divisava pela primeira vez -
ficou muito perplexa, levemente ruborizada, não sabendo o que devia fazer nem
como acolhê-la. Ao rápido relancear de olhos com que o examinara pareceu-lhe
achar-se em presença de um amigo e julgou prudente dar-lhe um desses sorrisos
benévolos de mulher bonita. De mais achou-o muito simpático, com a sua epiderme
fina, olhar azul e cabelos castanho-claros. E como o marido lhe pegasse no
rosto e a beijasse longamente nas duas covinhas da face fez-se de muito
escandalizada. Mas o Pedro gostou desse movimento arisco de pombinha branca que
limpa as penas e voltou-se para o companheiro com uma risada franca e jovial. A
mulher tinha dessas coisas! Também a culpa era dele que não começava pelo
princípio e estava de braços cruzados em vez de apresentá-lo!
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biblioE
para obviar o esquecimento foi logo dizendo à moça que aquele era o Marcondes -
o tal companheiro de colégio de que lhe falava tantas vezes. Então os dois
cumprimentaram-se quase como velhas relações, conhecendo-se um ao outro por
intermédio do Pedro, contentes de se verem, achando-se mais ou menos
semelhantes às pinturas que deles havia feito o amigo comum. Agora Nenê
examinava-o mais detidamente e agradou-se muito do seu aspecto correto com as
roupas elegantes e os bonitos bigodes cuidadosamente retorcidos; e o rapaz por
seu turno deixava-se prender pela atmosfera atraente de canduras que parecia
circundá-la em suas formas graciosas de mulher bem feita.
biblio
biblioNão
havia porém tempo a perder! Era preciso quanto antes aprontar o quarto lá de
cima do sótão porque as malas já estavam em caminho e chegariam de um momento
para outro! E o Pedro entrou em explicações. Estava na rua do Ouvidor quando se
encontrara com o amigo que naquele instante mesmo desembarcara de Pernambuco
onde acabava de se formar, e andava à procura de um hotel. Ele entendera de seu
dever não consentir em semelhante projeto, e trazê-lo para casa na qual se
acomodaria muito bem porque o sótão tinha uma entrada independente. Além disto
era questão de dias, apenas enquanto o Marcondes arranjava uma promessa de
promotoria!
biblio
biblioEsta
resolução do marido surpreendeu-a algum tanto, se bem que já estivesse
habituada a semelhantes inconsiderações de franqueza. Dentre todas as coisas
preocupava-a essencialmente a forma pela qual a mãe receberia a notícia.
Sabia-a muito cheia de etiquetas e de severidades no tocante a certos assuntos
e de mais a mais de algum tempo para cá andava a evitar um choque entre a velha
senhora e o marido. No final das contas e apesar dessa aparência de
afabilidades em que viviam sentia haver de parte a parte um quer que fosse de
hostil. Mas o mal já estava feito, não havia mais possibilidade de dissuadir o
marido da idéia e a única obrigação pareceu-lhe o ajudá-lo na empresa.
biblio
biblioFoi
em tais disposições de espírito que ela dirigiu-se para o interior da casa a
fim de ordenar as arrumações necessárias. Manobrou porém de forma a achar-se
presente quando o Pedro apresentou o amigo a d. Augusta que, muito tem educada
e gostando pouco de escândalos, contentou-se em corresponder-lhe com uma grande
frieza. Mas tanto ele como o Marcondes, atarefados com as malas que acabavam de
chegar, não se aperceberam disto. Ambos tratavam de acondicionar tudo aquilo da
forma mais rápida possível, desejosos de se porem à fresca e com grande apetite
porque tinham apenas tomado uma xícara de café ali no beco das Cacelas. E era
então um desencontrado de opiniões, uma grande lufa-lufa que demorava ainda
mais o serviço. Só depois de meia hora de contínuos e intermináveis vaivéns
ficou tudo provisoriamente arrumado e eles puderam tirar as roupas que traziam
e vestir os paletós de palha de seda com que compareceram à sala de jantar.
Capítulo III
biblioO
jantar corria mansa e sossegadamente. D. Augusta, à cabeceira, continuava com
os seus modos glaciais, sem dirigir palavra ao genro e ao amigo,
descarregando-se de toda a bílis no Valentim, que não sabia servir a mesa, e na
cozinheira, que deixara a fumaça entrar nas panelas. E nem queria ouvir
explicações a respeito. Azedava-se quando lhe diziam que tudo isto devia ser atribuído
à demora inesperada. No final das contas essas desculpas avivavam-lhe mais no
pensamento aquilo que ela forcejava exatamente em esquecer. Também que idéia
extravagante tivera o genro de trazer para casa um companheiro de colégio que
ele não vira mais depois da sua formatura no Pedro II, e que não conhecia
absolutamente a família da mulher! Se o Pedro a tivesse ao menos previamente
consultado! Mas qual! Ele era incapaz dessas pequenas deferências! Supunha-se
dono da casa e queria fazer tudo conforme lhe vinha à cabeça! Por isso também
andava a meter os pés pelas mãos e a cometer quanta imprudência havia! Ele
porém que tomasse tento porque ela não estava disposta a prestar-se a
semelhantes desregramentos!
biblioNenê
observava-a. Assistia àquele monólogo tumultuário de idéias que a mãe estava
ali a ruminar no seu silêncio esfingético. E retraía-se absorta em uns tristes
pensamentos, previa umas grandes atrapalhações a perturbando-lhe o calmo da
existência e vinham-lhe umas sensações más de infelicidades. Ela sentia-se tão
boa, tão fácil de contentar no seu egoísmo de sossego! Para que procuravam
atormentá-la, lançá-la de repente, assim sem mais nem menos, numa questão entre
a mãe e o marido? Decididamente estava muito só no mundo, sem uma grande
afeição protetora a acolchoar-lhe as asperezas da vida. Revoltava-se. Se ao
menos eles pudessem brigar sem envolvê-la na questão! Não contava porém com
semelhante coisa, e a imagem dessa desavença evocava-se por si mesma como
encarnação pavorosa do futuro próximo, tornando-a apreensiva, cheia de
inquietações. Admirava sobretudo a atitude tranqüila do marido que ainda não
percebera a catástrofe iminente e continuava muito alegre a encher os
intervalos dos pratos, dando ele sozinho vazão às necessidades da conversa.
biblioAo
Marcondes não passava porém desapercebido este ar de constrangimento com que o
tratavam. Sentia-se demais. Arrependia-se de ter aceitado o oferecimento do
Pedro. Mas ele tinha insistido tanto, mostrado tão veemente desejo de trazê-lo
para ali! E recapitulava a cena inteira. Aqueles grandes e cordiais abraços do
primeiro encontro, a conversa apressada e genérica que haviam tido no café, a
proposta repentina do amigo exatamente quando ele pedia-lhe informações sobre
os hotéis da Corte. No final das contas não devia ter acedido a semelhante
coisa; sua obrigação em tal caso era examinar bem as circunstâncias que o
rodeavam e não entrar assim às tontas por uma família adentro. Se tivesse
refletido, este seria o seu procedimento. Mas eles se haviam resolvido tão às
pressas! E intimamente parecia-lhe que o outro era o culpado de tudo isto.
Desde o colégio, naqueles bons tempos em que os dois saíam juntinhos das aulas
para darem os seus passeios, que ele notara no Pedro um certo estouvamento,
umas grandes imprudências e irreflexões, que então lhe pareciam muito
engraçadas e de que os dois já se tinham habituado em carregar com as
conseqüências.
biblioAgora
era novamente preciso que ele se metesse pelo negócio e acalmasse os ânimos
enquanto não arranjava um pretexto para se retirar. Tinha muita confiança em
si. Lembrava-se das dificuldades quase idênticas em que se achara por vezes e
que conseguira sempre resolver com a sua brandura e pacatez - inimigo como era
desses choques brutais de temperamentos e de individualidades. Para dar
princípio às suas resoluções, para entrar imediatamente nesta campanha à
conquista de paz, parece-lhe bem conveniente começar pela criança, por aquele
menino louro que estava ali a seu lado, na cadeirinha alta, muito sério, sem
dizer uma palavra, com modos de gente. Perguntou-lhe o nome. Chamavam-no
Pedroca para não confundi-lo com o pai. E desde então rodeou-o de cuidados e
atenções, procurando contentá-lo em todos os desejos, prestando-se às suas
pequenas exigências e ouvindo com um sorriso benévolo a narração dos seus
brinquedos. De mais encontrava nisto um grande prazer. Achava-o muito
engraçadinho a gaguejar umas palavras quase ininteligíveis. Oh! Ele gostava
tanto de crianças!
biblioE
o Pedro continuava muito alegre e satisfeito, banhando-se naquela atmosfera de
limpidez fictícia, completamente alheio a tudo quanto se passava, estranho a
esse drama da vida caseira que estava se preparando como uma nuvem borrascosa a
subir pelo firmamento acima, todo entregue aos vislumbres de felicidade que
pareciam rodeá-lo. Achava tão boa essa vida de mansidões que ia a viver pela
existência afora, entre a esposa e o filhinho! Vinham acariciar-lhe as faces
umas sensações agradáveis de felicidades. Fora até por um requinte de bazófia,
um desejo de mostrar ao amigo essas doçuras em que se reclinava como numa rede
macia e perfumada, embalando-se molemente às tépidas virações do amor, que ele
insistira tanto para que viesse, para que aceitasse aquela hospedagem oferecida
com toda a lhaneza de um velho amigo de colégio. E agora queria fazer
ostentação de todas as amenidades que o cercavam, dar-lhe a palpar esse mundo
inteiramente novo para o Marcondes, que andara sempre nessa boemia das
repúblicas - mundo onde pretendia pilotá-lo com a maestria de um consumado
conhecedor.
Capítulo IV
biblioO
jantar prolongara-se muito, tanto que quando o terminaram já começava a
anoitecer. Apesar disto porém o Pedro não quis que se alterasse o hábito
contraído de tomarem o café lá fora na calçada. Demais contava aproveitar-se da
ocasião para mostrar ao amigo o jardim que rodeava a casa e que lhe parecia
muito bonito. E como d. Augusta não quisesse acompanhá-los porque o sereno lhe
fazia dor de cabeça, Nenê teve ao princípio desejos de ficar junto dela, com
tenções de preparar-lhe o espírito e evitar qualquer incidente desastroso. Mas
a moça gostava tanto daquele pequeno passeio por sob as árvores, achava tão boa
a estada ali na calçada a ver quem passava, que mudou de idéia e resolveu
juntar-se ao grupo. O Pedroca, que começara a simpatizar muito com o Marcondes,
abria a marcha, com uns grandes transbordamentos de alegria, querendo mostrar
tudo ao seu novo amigo, falando-lhe principalmente do repuxo que espirrava água
para cima, e achando muita graça no barulho que os calçados faziam na areia dos
caminhos.
biblioChegados
ao portão sentaram-se todos em umas cadeiras de ferro, que haviam trazido do
jardim, e houve uma pequena pausa, um momento de silêncio durante o qual
puseram-se a contemplar o espetáculo que se lhes oferecia. Lá longe, no
princípio da rua do Matoso começavam a acender os lampiões. As luzes surgiam
bruscamente do meio das trevas, enfileirando-se como soldados, naquele grande
paradoxo do ângulo nulo formado pelas paralelas que se encontram no infinito. O
calçamento claro e asseado ia tomando um aspecto elegante de bulevar. Era um
grande rio marginado de arvoredos por onde se escorria brandamente a linfa
humana. Com os seus vestidos brancos e as risadas argentinas, por entre frases
murmuradas aos ouvidos, subiam e desciam lentamente grupos de moças que, numa
grande familiaridade, convertida a rua em salão comum, trocavam cumprimentos de
uma para outra calçada e entravam em grandes permutas de beijos quando se
encontravam frente a frente.
biblioPor
detrás deles a atmosfera balsâmica dos jardins. Uma viração suave a farfalhar
molemente no verde-escuro das folhagens, impregnando-se de odores bons ao
passar pelas murtas e manacás floridos. Ouvia-se o ruído refrescante do repuxo.
E dentre aquela mole de árvores e arbustos erguia-se com as suas arestas vivas
e os cantos angulosos o vulto, esbranquiçado como um fantasma, da casa onde
residiam. Em paralelepípedos de luz a projetarem-se através do jardim, iam-se
uma a uma, clareando as janelas que, abertas todas inteiras em suas vidraças de
batentes, despejavam de lá de dentro um bafo animado e quente de vida. Uma
grande harmonia comunicativa se estabelecia entre quatro. Os estômagos cheios,
sem as preocupações da vida do dia a dia, absortos em seus pensares, a
refletirem sobre os sucessos do momento, calavam-se todos. Apenas o Pedroca
dava-se ao trabalho improfícuo de uns movimentos, forcejando por subir ao colo
do Marcondes, e como este o suspendesse e o pusesse a cavalo sobre a coxa, o
menino interrompeu o silêncio com uma gargalhada de criança que bota o corpo
para trás e deixa sair a alegria aos borbotões.
biblioEntretanto
o Valentim aparecera com a bandeja do café e o licoreiro, que foram colocados
sobre uma mesinha redonda de ferro. Os dois acenderam os charutos enquanto Nenê
servia o açúcar e passava-lhes as canequinhas. E quando concluíram os últimos
goles, veio-lhes espontaneamente um suspiro de satisfação. A vida assim era tão
boa! Mas a moça não concordava. Para os homens, talvez; mas para as mulheres,
não! Eles examinavam aquilo superficialmente, não entravam em minudências, não
sabiam quanto trabalho dava essa aparência de quietismo que os rodeava. E como
protestassem, entrou em explicações. Só as criadas bastavam para fazer a gente
criar cabelos brancos! Eram de uma má vontade e estupidez incalculáveis.
Ocasiões havia em que se tornava preciso repetir uma ordem três e quatro vezes,
e mesmo assim nunca saía coisa que prestasse! Se pudesse ver-se livre de toda
esta cambada de vadios! Mas qual! Infelizmente ninguém podia dispensá-los! E
além destas, muitas outras contrariedades! Só mesmo vendo era possível formar
opinião a respeito!
biblioOs
dois riam-se. Era ela quem não sabia ajuizar claramente os fatos e consideravas
falsamente em suas exterioridades! Com efeito devia-lhe parecer muito boa e
agradável aquela aparência de liberdade de que gozavam! Mas em troca disto
quantas obrigações! Se ela pudesse formar uma idéia a respeito veria que a
vida, para os homens, era muito mais atrapalhada e cheia de contrariedades, ao passo
que as mulheres tinham apenas para as atormentar aquelas ninharias domésticas
de que elas gostavam, no final das contas! Nenê, porém, teimava em suas
proposições e amontoava argumentos sobre argumentos para demonstrar que na
partilha do mundo o seu sexo tinha ficado com todos os dissabores, enquanto ao
outro havia cabido o lado brilhante e fácil. E que não a atrapalhassem nem lhe
quisessem fazer acreditar no contrário! Não admitia réplicas! Era força
concordar com as realidades! Os homens que deixassem de se adornar com penas de
pavões e dessem o seu ao seu dono! Não pedia nada demais!
Capítulo V
biblioEntretanto
o sereno fazia-se forte e o Pedroca podia se constipar. Era prudente não
ficarem mais ali e irem todos para dentro. Demais, d. Augusta estava sozinha e
era preciso não abandoná-la assim sem mais nem menos. A velha senhora era muito
boa, mas cheia de nicas, de forma que às vezes zangava-se por uma qualquer
coisa onde enxergasse falta de consideração. E levantaram-se todos, cada qual
tratando de repor as cadeiras de ferro no lugar em que as havia achado, sem
interromper porém a discussão em que estavam empenhados. Nenê continuava ainda
a defender a sua tese. Não queria admitir que lha contestassem. E a volta para
casa fez-se em grandes alegrias e rumores de vozes a dialogarem. Apenas o
Pedroca, que não entendia nada daquilo em que se ocupavam, conservava-se
calado, muito unido ao corpo do Marcondes, que o trouxera ao colo, com medo da
escuridão das árvores, não achando mais graça no barulho dos calçados a
remexerem a areia dos caminhos que destacavam-se como faixas brancas no fundo
negro do quadro.
biblioFoi
a sala de visitas o ponto escolhido para a reunião. Além de ser ela muito clara
e confortável, era aí que se achava o piano e Nenê poderia distraí-los
executando diversos trechos clássicos de que gostava muito. E, como Marcondes
aproveitasse o ensejo para fazer um paralelo entre a música alemã e a italiana,
que lhe agradava muito mais a moça engajou uma nova discussão, apreciadora como
era de Beethoven e Mozart. Cada qual forcejava em produzir argumentos em seu
favor, cantarolando trechos; os dois sozinhos, junto ao piano, porque D.
Augusta conservava-se do lado oposto, sem dizer uma palavra, com o seu ar
severo de vestal ofendida, e o Pedro não entendia nada de música e nas suas
horas de pilhérias chegava mesmo a dizer que o piano fazia um barulho infernal
a incomodar-lhe os ouvidos. Mas nesse momento ele estava com boas disposições,
tanto que quis intrometer-se na conversa e concluiu no meio de gargalhadas que
a música mais harmoniosa era a dos sinos de igreja quando dobravam por causa de
algum defunto.
biblioNenê
não gostava porém dessas caçoadas. Quem não entendia do negócio devia
conservar-se calado! E o Pedro fez-se muito sério. Em toda a sua vida aquela
história do piano fora sempre para ele motivo de contrariedades, porque a
mulher acabava sempre por debochá-lo, meio amuada, não podendo compreender bem
que houvesse gente com tanta aversão à música. Ao menos para não ficar calado
quis dirigir a conversa para outro terreno e lembrou ao amigo as aulas do
Matias. Como a moça desejasse explicações sobre as risadas com que foi acolhido
este nome, entraram em detalhes. O Matias era o professor de música lá do
externato d. Pedro II. Um bom homem, coitado, mas muito tolo e que se deixava
ridicularizar pelos rapazes! E cada qual queria contar uma história a respeito.
Falaram dos solfejos no meio dos quais se desentoava com uns grandes guinchos
que revolucionavam em gargalhadas a aula inteira. Enfim, como não se fizesse
exame da cadeira, só aprendia quem tinha vontade! E o Pedro disse então à
mulher que o Marcondes era exatamente um daqueles que, no tempo, mais vocação
havia mostrado.
biblioO
rapaz desculpava-se, fazia-se de modesto. Era verdade que tinha algum gosto
para a coisa e que chegara mesmo a aprender um bocadinho de flauta! Mas não
passava de um curioso! Nenê queria porém ouvi-lo e, como ele dissesse que
trouxera uma, pediram-lhe muito para que a fosse buscar. Exatamente ela tinha
uma música com acompanhamento e que lhe parecia muito fácil. Rápida em seus
desejos, revolveu logo a estante e mostrou-lhe a partitura, que os dois
examinaram enquanto o Pedro insistia e dizia ao amigo que não se fizesse de
tolo e se deixasse de cerimônias. E tais foram os rogos e os pedidos que lhe
dirigiram que o Marcondes viu-se obrigado a fazer-lhes a vontade. Começaram
então de parte a parte os ensaios, cada qual trabalhando por acertar o
compasso, e no fim de alguns instantes tiraram completamente a música e deram princípio
à execução. O Pedro aplaudiu-os vivamente com grandes e estrepitosas palmas, e
a própria d. Augusta, saindo bruscamente de sua atitude reservada, dirigiu ao
rapaz algumas palavras de animação.
biblioNenê,
essa nadava em contentamentos. Havia tanto tempo que ela sonhava encontrar
alguém que a acompanhasse ao piano, com quem pudesse conversar sobre música,
que a compreendesse enfim! E instintivamente estabelecia um paralelo entre o
marido e o Marcondes. Se ela fosse casada com alguém nessas condições como
havia de ser feliz! Vinham-lhe então umas lamentações íntimas. O marido, com as
suas continuas pilhérias e aquelas declarações brutais de que o piano era um
tacho rachado, estava até a fazê-la esquecer-se do que já sabia! Mas agora ia
tomar um fartão! E planejava umas longas noitadas assim como essa, ali entre a
mãe, o marido e o filho, durante as quais havia de executar com o outro as
peças que aprendesse durante o dia Muito encantada com o projeto, queria logo
procurar uma outra música, presa de estado febril, atirando-se no mais forte do
caudal, com uma grande voracidade de prazeres, numa prodigalidade de alegrias.
E o Marcondes prestava-se boamente às suas vontades, também encantado com
semelhante desenlace, intimamente satisfeito de poder dar largas a sua paixão
musical.
Capítulo VI
biblioJá
ia porém se fazendo tarde e o Valentim viera preveni-los de que o chá estava na
mesa. Com grande pena de Nenê, que queria ainda tocar mais uma peça,
dirigiram-se todos para a sala de jantar e o Marcondes, para se fazer amável,
ofereceu o braço a d. Augusta. Havia entre todos uma alegria comunicativa, e a
boa senhora, a pesar seu, sentia-se arrastada na correnteza de simpatias que se
dirigiam ao hóspede tão bruscamente aparecido. Mas o aspecto severo da sala de jantar
com o seu papel e adornos escuros, limitando a luz do lustre a um pequeno
círculo no centro da casa, fez esfriarem-se quase aqueles primeiros ímpetos.
Não se respirava mais aquela atmosfera saturada pelos acordes do piano e da
flauta. A mudança de aposento transtornara a direção das correntes magnéticas,
e o abandono dos lugares já aquecidos e aos quais se haviam habituado parecia
ter também contribuído para semelhante sucesso. Demais, pelas janelas abertas
entrava um ar frio, fazendo experimentar umas sensações más de isolamento, por
sob as roupagens.
biblioFoi
pois quase cerimonialmente que eles tomaram assento à mesa nas mesmas posições
que haviam ocupado ao jantar - d. Augusta à cabeceira, o Pedro e Nenê à
direita, o Marcondes e o Pedroca à esquerda. Cada qual atento a si mesmo,
começaram a tomar o chá que fora servido em xícaras delgadas como folhas de
papel, cobertas com essas pinturas burlescas da chinesaria. O silêncio
prolongava-se, todos à procura de uma frase para dar princípio à conversa, não
a achando e parecendo-lhes que a cada momento aumentavam as dificuldades. Como
porém estivessem a comer as infalíveis torradinhas com manteiga forcejassem
debalde para não fazer barulho ao mastigá-las, o Pedroca riu-se muito,
mostrando por entre os lábios rubros e úmidos de chá os dentinhos brancos e
ainda não completamente unidos. Todas as noites era sempre essa história, e o
menino julgava não ter tomado o chá com prazer quando não dava essa risadinha e
não dizia que a mãe parecia um ratinho. Sempre acolhiam com grande entusiasmo a
caçoada da criança e era esse o ponto habitual de partida para a viagem dos
felizes horoscópios.
biblioMais
do que tudo isto, era em tal momento um ótimo meio de entabular novamente a
conversação e o Marcondes aproveitou-o. Desde que o vira, quando ele fora ao
portão para recebê-los, que achara no Pedroca um arzinho de inteligente e
decidido! Sim senhor, a criança prometia! O Pedro aprovava muito com a cabeça
estas frases. Era essa também a sua opinião. O filhinho desde pequenino
revelara grande presença de espírito e um gênio empreendedor! Não podia estar
parado um só instante e o seu grande prazer era ir lá para o fundo do quintal
onde levava uma porção de tempo a remexer na terra fazendo buracos com a colher
de pedreiro das plantações. Dentre tudo achara-lhe muita graça uma ocasião em
que o encontrara a querer pregar na parede uma torneira quebrada que andava
rolando pelo chão e da qual, quando terminasse o trabalho a que se entregava
com tanto afã, e ele esperava ver sair água. E o Pedroca sorria-lhe
maliciosamente, muito contente em que se ocupassem com ele, admirado porém de
acharem graça numas coisas que lhe parcelam tão naturais, lá um pouco
sonolento, a cabecinha loura encostada à beira da mesa, tendo ainda na mão um pedacinho
de torrada.
biblioE
a conversa generalizava-se. Nenê voltara a tratar de música, elogiando muito o
Marcondes pelo seu talento e facilidade em tirar qualquer pedaço. O rapaz
fazia-se modesto. Não era tão habilidoso como parecia, até mesmo não sabia nada
de música e tocava muito de ouvido! Também isto até em certo ponto desculpável
na vida que levara lá em Pernambuco, onde nunca recebera uma lição, mesmo
porque também não tivera tempo para isto, muito ocupado como andava sempre!
Chegara mesmo a abandonar quase a flauta e fizera-se muito forte no violão, que
era aí muito estimado nas pândegas de estudantes! Nenê mostrou então vontades
de ouvi-lo ao violão.
biblioDevia
ser muito bom, sobretudo quando o tocador tinha boa voz. E como insistisse
muito o Marcondes prometeu fazer-lhe a vontade. No dia seguinte, quando fosse a
cidade, havia de procurar um, porque ao partir do Recife dera o seu a um amigo.
Apenas d. Augusta não simpatizou muito com a idéia, achando a filha estouvada
em fazer o pedido, atendendo a que o violão era instrumento de gente ordinária.
biblioE
como o Pedroca tivesse adormecido durante a conversa, um pouco zangado porque
não se ocupavam mais dele, conservando ainda a atitude engraçadinha em que se
pusera para ouvi-los, com a cabeça à beira da mesa reclinada sobre o bracinho
esquerdo e um pedaço de torrada na mão, a velha senhora propôs que o fossem
deitar. Então ela e a filha suspenderam a criança muito delicadamente a fim de
não acordá-la e antes de se retirarem para o quarto deram boas noites, contando
não voltar mais à sala. Todas as noites era aquilo mesmo e o Pedro que gostava
muito de chá e tomava cinco ou seis xícaras antes de se deitar já se habituara
a ficar sozinho, na debandada dos pratos, esvaziando o bule e acabando as
torradas. Era então, nesse grande isolamento, sentindo atrás de si os últimos
ecos murmurantes do dia que findava e a atmosfera abafada da casa lá fechada,
que ele se sentia inteiramente feliz, quase sem aspirações, num embotamento de
fantasias, todo entregue à elaboração sossegada de suas digestões burguesas.
Capítulo VII
biblioFicava
ali mesmo na sala de jantar a escada que conduzia ao sótão onde tinham
preparado o quarto do Marcondes; e como se fosse fazendo tarde e o bule já
estivesse esvaziado o Pedro lembrou a oportunidade de irem deitar-se. Antes
porém queria acompanhar o amigo até o seu aposento para ver se faltava alguma
coisa e de que modo haviam executado as suas ordens. Demais, era este o seu
primeiro encontro depois da formatura de ambos no externato do Pedro II. Havia
cinco anos que não se viam, comunicando-se apenas por meio de cartas, na
continuação, através da vida séria, daquela grande amizade do colégio - uma
amizade cheia de veemências amorosas, toda feita com ternuras infantis que iam
a caminhar pela existência afora. E eles agora tinham tanta coisa a se dizerem
mutuamente - coisas que não se escrevem nas cartas, essas grandes ninharias de
cada dia que fazem a vida inteira, que determinam-lhe todas as fases, a cujo
instigamento a gente vai andando pelo mundo adentro e que entretanto formam um
todo caótico, reconstruível apenas nessas longas conversas de recordações,
quando cada um vai trazendo seus parcos subsídios a aviventar a memória.
biblioNos
primeiros transbordamentos, naqueles abraços efusivos feitos com os juros de
uma amizade capitalizados durante anos, e depois, quando entre eles andava toda
a nova família do Pedro - Nenê tão amorosa e o Pedroca tão vivo e inteligente
com a sua cabecinha loura, quando sentiam a moderar-lhes os ímpetos o vulto
cerimonioso e gelado de d. Augusta, eles se haviam retraído, guardando para
mais tarde as mútuas confidências, para quando pudessem estar mais livremente,
em ceroulas e camisa, sem a etiqueta enfadonha das gravatas e colarinhos para
dificultar-lhes os movimentos. E trataram de aproveitar a ocasião, planejando
uma noite comprida de conversas, precavendo-se por causa das dúvidas com urna
garrafa de conhaque e o açucareiro. Principalmente para o Pedro, tudo isto
tomava as proporções de uma enorme patuscada. Como havia de ser boa aquela
noitada longa de palestras entremeadas com uns grogues fracos e açucarados,
bebidos simplesmente para molhar a garganta! E todos os seus instintos
represados de boêmio vinham-lhe a flux da pele, enquanto o Marcondes tomava uns
modos distraídos de quem lá está farto de semelhantes esbodegações.
biblioLogo
de principio não quiseram, porém, entrar no assunto. Precisavam retemperar-se
nas evocações daquele passado comum que haviam vivido juntamente - espécie de
embasamento por sobre o qual devia assentar o edifício do que iam dizer.
Falaram dos companheiros, dessa grande turma de cento e tantos rapazes que
tinham entrado no primeiro ano, que a pouco e pouco fora depurando-se, deixando
em cada exame um pedaço de si mesma, e que chegara ao sétimo apenas reduzida a
oito companheiros. Três estavam na academia de medicina, um em direito e dois
na politécnica. Os outros andavam aí pelo mundo, uns já formados, outros
empregados públicos, outros caixeiros, e tantos outros mais já perdidos de
vista, disseminados pelas províncias! E iam assim, relembrando nomes. Cada um
trazia umas grandes recordações - lembranças de outros tempos e de outras
alegrias. Rememoravam fatos - os castigos que tinham sofrido, os grandes
temores do fim do ano, quando o exame vinha se aproximando e oscilava-lhes pela
imaginação o vulto fantástico e aterrador de uma bomba.
biblioAgora,
completamente despreocupados das intrigazinhas e pequenos sucessos de então,
julgando serenamente os acontecimentos, eles surpreendiam-se de encontrar tanta
coisa boa, aí nos tempos buliçosos e alegres das suas primeiras mocidades.
Tinham saudade. Saudade dessa vida de meninos! Saudade de toda essa gente que
os cercara então! Se eles pudesse revivê-las - essas quadras sorridentes das suas
infâncias, ir novamente para o pátio arenoso do colégio jogar a barra com os
companheiros, voltar do recreio esfogueados e exaustos, para recordar
rapidamente as lições, ouvir de quando em vez o grito dos inspetores
chamando-os à ordem e procurando contê-los nos seus ímpetos de crianças, por
certo que não teriam dúvida em voltar atrás, em recomeçar a existência! Era tão
bom aquilo tudo! Havia ali tanta alegria, tanto prazer! E a imagem desse
colégio, onde eles tinham vivido os seus primeiros anos, surgia-lhes de entre
as recordações, correta e grandiosamente, como um castelo suntuoso de fadas
numa orgia honesta de alegrias santas.
biblioE
eles demoravam-se prolongadamente na reconstrução desses tempos idas, tendo
talvez vontades de parar aí - nessa primeira pátria dos seus espíritos. Para
aquém, para as bandas do presente, havia muita lágrima, muita tristeza e muito
dissabor. E fizeram um silêncio grande, cada qual reconcentrado em si mesmo,
esgravatando ainda um farrapo de recordação. Quais esses peregrinos que se
abalançam para regiões ignotas e que lá do cabeço do monte derradeiro pairam um
pouco o olhar para ver a imagem sagrada da casa paterna que se dissolve além,
nas fímbrias nevoentas do céu, eles puseram-se a relembrar esse dia em que pela
primeira vez vestiram a casaca das solenidades e, joelho em terra, cingiram à
fronte aquele barrete branco, imaculado e puro das suas crenças e das suas
virgindades. Depois... vinha a vida! E os dois olhavam-se mutuamente, tendo a
pelejar-lhes nos olhos umas lágrimas de saudade, com vontade de revivê-lo
novamente - esse passado de infâncias que haviam vivido juntos.
Capítulo VIII
biblioDe
todas essas evocações do passado que eles tinham vivido juntos na grande efusão
dos primeiros anos nascia-lhes um imenso bem-estar, uns redobramentos de e
amizades que os reuniam em desejos enormes de comunismo. E os dois olhavam-se
com exuberâncias de ternura, rearquitetando aquele edifício transposto da sua
vida, com vontade de encontrá-lo novamente, saudosos desses tempos em que os
prazeres lhes pareciam mais agradáveis, e não andavam cheios de preocupações,
irrefletidos sobre o mundo, às soltas pelos campos sem fim da fantasia. Agora
eles tinham inúmeras responsabilidades, eram homens feitos a principiar a vida
séria; impunha-se-lhes a obrigação de construir umas pousadas - casulos tirados
do próprio organismo, onde pudessem descansar mornamente, na grande elaboração
biológica da família, às voltas com a atmosfera opressora do convencionalismo.
E essa imagem alegre dos tempos que foram rejuvenescia-os, deixava que eles se
embalassem as virações boas do ideal, blindava-os contra todo o meio opressor
que os circundava.
biblioVeio-lhes
então imperiosamente a necessidade de completarem aquele quadro, de dizerem-se
um ao outro tudo quanto lhes havia sucedido, esse desfilar peripecioso dos dias
no lento trabalho do gota a gota que faz os estalactites das cavernas. E eram
tão diversos os rumos que haviam seguido! o Pedro logo depois de sua formatura
no colégio, sem mais detenças nem estadas pelas academias, entrara para a vida
prática, achando-se sem família, sozinho no mundo, único arrimo de sua velha e
entrevada mãe que morrera algum tempo depois. O emprego público fora para ele a
única franquia que se lhe oferecera a mitigar as vicissitudes da sorte. Nem
outra direção lhe era possível dar às suas aspirações, pois as outras carreiras
andavam cheias de sobressaltos e de imprevistos. Ao princípio encontrara grande
dificuldade em sujeitar-se a esse modo de existência, e ainda conservava umas
tristes recordações dos tempos em que andara pelas secretarias a fazer
concursos e a arranjar cartas de empenho. Fora mesmo uma campanha gigantesca o
conseguir a sua nomeação como praticante da Secretaria de Agricultura.
biblioHabituara-se
porém àquilo tudo, e desde então começara a saborear pacatamente as beatitudes
do sossego. Regrara a vida, numa grande atrapalhação para gastar o tempo que
lhe sobrava. Bastava-lhe estar na repartição às horas e sair às duas horas para
ter cumprido exemplarmente as suas obrigações. E todo o resto do dia, esse
longo suceder de horas, parecia-lhe muito enfadonho, difícil de passar. Sem
encontrar atrativos na vida boêmia da rua do Ouvidor, incapaz até de uma
leitura, tendo abandonado os livros todos, vira-se numa grande inação,
necessitado de ocupar-se em alguma coisa para não morrer de tédio. Pusera-se
então a freqüentar os salões e as casas de família, muito bem recebido em toda
parte porque granjeara a reputação de rapaz ordeiro, considerado como um bom
partido, moço inteligente e cheio de futuro. Foram nesses tempos uns encadeares
intermináveis de aventuras galantes, três em quatro namoradas ao mesmo momento,
viajando pelos bondes da casa de uma para a da outra, colhendo um beijo aqui,
outro ali! tudo aliás feito com uns requintes de honestidades, não
ultrapassando as raias do decente simples curioso a viajar pelos balcões onde a
gente compra uma mulher.
biblioEm
uma dessas excursões agradara-se de Nenê, numa grande exuberância de paixões,
fanatizado por aquela figura esbelta, tão gentilmente enquadrada na moldura
singela da vida retirada que a moça vivia junto à mãe. E historiava todas as
alternativas do seu namoro, as grandes esperanças que o arrebatavam às regiões
sem fim da fantasia, os súbitos desânimo que o surpreendiam de momento a
momento - enormes castelos abastilhados, erguendo-se de uma frase, de um
incidente, à mão possante e tenebrosa do ciúme. Casara-se enfim e desde então
sua vida tomara umas composturas burguesas, uns ares calmos e refletidos, sem
desperdício de efusões, rotineira e uniforme como a evolução de um ponteiro por
sobre o mostrador. Nascera-lhe o Pedroca, e convergira na criança toda a seiva
apaixonada que porventura lhe circulava através do corpo. Ao mesmo tempo tinha
melhorado a sua posição oficial. Agora, graças às relações que adquirira e às
de d. Augusta, ia a pouco e pouco ascendendo na hierarquia burocrática,
construindo silenciosamente um ninho acolchoado e tépido onde sonhava descansar
a sua velhice satisfeita.
biblioE
vinha-lhe um desejo de ostentações, vontades de mostrar ao amigo esse esquema
alegre da vida que ia vivendo pelo mundo afora, num grande sonho de aspirações.
Bem verdade que por sob aquela capa de mansidões andavam disfarçadas as
contrariedades de cada momento, os pequenos nadas da existência, toda a guerra
surda e sem tréguas que ele pelejava constantemente com d. Augusta. Mas o que
eram essas ninharias! Coisas que a gente esquece nesse bosquejos risonhos!
Grãos de argila que turvam por um instante as águas, mas que acabam sempre por
se depositarem no fundo, deixando que lhes corra pelo dorso a limpidez
cristalina do regato! Naquela ocasião ele mesmo os esquecia - esses pontos
negros na fotosfera de suas felicidades. Não precisava de cálculos nem de
reservas, nas descrições que ia fazendo ao amigo dos encantos que o rodeavam.
Bastava-lhe deixar às soltas as suas impressões para que todo o seu otimismo de
burguês contente e superficial banhasse de luzes o quadro imaginoso de sua
vida, tal como ele a via através da sua convicção de homem satisfeito, sem
aspirações, a sonhar um sonho alegre de festins floridos, sem ter ao menos como
perspectiva admissível o receio de despertar no meio de alguma realidade
tenebrosa.
Capítulo IX
biblioO
Marcondes, esse passara em Pernambuco uns intermináveis cinco anos de vida
acadêmica, longe da família, que residia em Santa Catarina de onde era natural,
quase completamente entregue a si mesmo, tendo polido o seu espírito na
convivência da rapaziada boêmia da qual gostava de imitar as teorias e as aspirações.
Seu maior prazer era fazer-se de debochado, rodear-se com a reputação de homem
pervertido e mau, culotado nas orgias, militante ativo nas fileiras da crápula.
Dava-se uns aspectos dramáticos de d. Juan tenebroso que anda aí pelo mundo a
conquistar mulheres; e para emprestar a tudo isto uns ares de verossimilhança
citava fatos, contava histórias complicadas de adultérios em que vivera
envolvido e nas quais reservava sempre para si os papéis simpáticos de galã nos
romances da velha escola. Até mesmo a força de repetir as mesmas anedotas, os
mesmos episódios, forjicados nas longas noites de insônia, chegara a
convencer-se da sua veracidade, firmemente crente de que tudo aquilo se havia
passado, apelando para o testemunho dos companheiros.
biblioE
ele não se esqueceu de reeditar todo esse peripecioso suceder de aventuras
escabrosas. Aos olhos admirados do amigo, a quem iam-se um a um revelando
bruscamente os mistérios insondáveis de uma vida para ele completamente
desconhecida e inacreditável, fazia o Marcondes deslizar lentamente o caudal
majestoso das epopéias à la Murger. Eram aqueles longos, intermináveis dias de
fome em que até faltava dinheiro par cigarros, existência penosa, coberta de
maldições, bruscamente transmudada em risonhas orgias, o vinho correndo em
profusões, sorvido a longos tragos por entre os beijos das mulheres bonitas que
faziam coro a orquestrar-se no estampido do champanha que desarrolhavam. A
sempre eterna história das sete vacas gordas e das sete vacas magras,
alternativas isocrônicas de abundâncias e de misérias, de risos e de prantos,
do meio às quais, em carnaduras fortes e risos epicurianos, surgia a imagem
fantástica da vida descuidosa boiando sem rumo, num grande abandono de si
mesma, aos vaivéns da sorte.
biblioMas
veio-lhe logo em seguida uma volta à realidade das coisas. Todo o seu
temperamento ordeiro e pacato acatava sempre confessando a si mesmo os
dissabores e vexames dessa vida que ele pintava tão alegre e da qual chegara a
viver um bocadinho. No final das contas isso não era tão bonito como parecia.
Havia enormes contrariedades, ocasiões em que tivera vontade de romper com os
companheiros, de liberar-se completamente dessas relações que só lhe traziam
prejuízos. Essa mesma reputação, que a si fazia, incomodara-o extraordinariamente
por diversas vezes. Enfim! Por mais que o quisesse, faltava-lhe vocação para
Schaunard e, se se deixava fascinar pelo exterior formoso dessa existência
aboemiada, não lhe faltavam momentos em que se arrependia de ter seguido uma
tal diretriz. Em todo caso achava desculpas ao seu procedimento, procurava
justificar-se aos seus próprios olhos e concluía atribuindo tudo isto à
irreflexão própria da rapaziada. Agora porém que já estava formado e ia começar
a vida séria e responsável, deixava-se atrair por outras aspirações,
aparentando uns ares honestos de burguesia.
biblioE
os dois, dando de mão àquele lado fantasioso da vida, puseram-se a conversar
num grande desdobramento de filosofias práticas. O Pedro já estava arranjado;
bastava-lhe apenas dar tempo ao tempo, deixar que os anos fossem no seu lento
trabalho de petrificação a consolidar-lhe as felicidades. O Marcondes, porém,
só agora ia começar a existência, lançar os embasamentos do seu futuro viver, E
ele dizia os seus sonhos, Queria ver se arranjava a promotoria de Santa
Catarina e para isto contava com algumas relações de que dispunha a sua
família. Fora até para conseguir isto que resolvera-se a ficar uns cinco ou
seis dias na Corte, porque contava levar ao presidente umas cartas do Ministério.
Depois bastava-lhe deixar correr o barco. E ia numa longa vista pelo futuro
adentro acompanhando o seu lento progredir através da magistratura. Havia de
acabar ministro do Supremo Tribunal! Apenas em seus cálculos, um x
imprescindível e incógnito - o seu casamento, que se lhe apresentava como
necessidade imperiosa para o complemento do seu próprio ser e a consolidação
das suas alegrias.
biblioEntretanto
ia-se fazendo tarde. Já por duas vezes Nenê mandara chamar o marido que,
absorto naquela mútua confissão, perdia a noção das horas e rompia brutalmente
com todo o seu costumeiro viver. Mas infelizmente tinham esgotado o montão de
comunicações que desejavam permutar. Bem verdade que ainda havia uns pontos
duvidosos, uns pequenos incidentes, umas grandes ninharias que eles tencionavam
não deixar ocultas naquele entusiasmo do primeiro encontro. Isto serviria porém
de tema às futuras conversas! Ainda tinham tantos dias para viverem juntos que
não valia a pena esgotarem-se logo de uma vez, e parecia prudente guardar
algumas reservas para as noitadas vindouras. Demais, estavam com sono e o
conhaque, que tomaram em repetidos grogues, quase insensivelmente, na grande
febre de intimidades, pesava-lhes na cabeça e amortecia-lhes os olhos,
principalmente os do Pedro que não estava habituado a estas coisas. E foi num
grande transbordamento de amizades, por entre palavras arrastadiças, que eles
se despediram um do outro, augurando prazeres ainda maiores nessa convivência
em que iam viver.
Capítulo X
biblioPosto que as janelas tivessem
ficado completamente abertas e de havia muito o sol clareasse o aposento, o
Marcondes continuava a dormir, cansado por essa noitada de conversas,
prolongada até as tantas, depois das grandes fadigas da viagem. Demais, ele
gostava tanto do sono da manhã! Lá em Pernambuco habituara-se a levantar-se ali
pelas 11 horas, e às vezes mesmo prolongava a sua estada na cama até o
meio-dia, apreciando muito esses momentos de moleza em que a gente fica inerte
por entre a branda quentura dos lençóis e as fofices do colchão, deixando que o
pensamento vá boiando à toa pelos mares sem fim da fantasia! E para que
acordasse foi preciso que o Valentim batesse por diversas vezes na porta a fim
de lhe entregar a xícara de café. Só então levantou-se. Mas como pusesse a
canequinha no bidê e se assentasse na beira do leito para enrolar um cigarro,
veio-lhe uma grande preguiça a percorrer-lhe os membros, uns desejos de
descansar ainda um bocadinho, apenas uns cinco minutos; e deitou-se novamente
encolhendo as pernas, envolvendo-se todo nas cobertas ainda quentes do sono.
biblioFoi então que se pôs a refletir
sobre a sua estada ali naquela casa. No final das contas era uma coisa sem
explicações nem justificativas! O Pedro parecia-lhe bom rapaz, muito seu amigo,
mas apesar de tudo quanto lhe dissera na véspera, a sua vida íntima não deixava
de andar muito atrapalhada por um mundo inteiro de contrariedades, e até mesmo
tinha ares de quem não estava em sua casa! E o perfil cerimonioso de d Augusta
surgia-lhe ameaçador, cheio de terríveis perspectivas, como a prometer-lhe um
suceder de dissabores. Apesar da afabilidade e simpatia que Nenê lhe mostrara
por ocasião das discussões sobre música ele também não deixava de nutrir
algumas apreensões por este lado, e recordava a reserva e quase frieza com que
a moça o tratara na mesa do chá! Apenas o Pedroca, com a sua cabecinha loura e
o seu olhar de criança inteligente, parecia sorrir-lhe meigamente nessa
evocação da gente que o rodeava. Enfim, ele e o amigo tinham feito uma grande
tolice, admissível aliás na efusão de sentimentos do primeiro encontro, mas que
cumpria emendar.
biblioE veio-lhe então a idéia de uma
mudança rápida e imediata, enquanto as coisas não se tornavam mais feias, e ela
podia ter ainda o aspecto de uma retirada airosa. Se o amigo residisse sozinho
não teria dúvidas em aceitar-lhe a hospitalidade, porque os dois poderiam se
entender facilmente e entre eles não havia cerimônias! Mas, assim como se
achavam os negócios, era impossível! De mais a mais, apesar da grande confiança
que aparentava no tocante à rápida obtenção da promotoria, poderiam sobrevir
inúmeras dificuldades que o forçariam a prolongar por tempos indeterminados a
sua estada no Rio de Janeiro. Enfim, ele havia de falar ao Pedro com toda a
franqueza, e os dois juntos arranjariam a coisa da melhor forma possível. E
nesses pensamentos, que lhe saiam da cabeça em grandes hélices a acompanhar a
fumaça do cigarro, deixava-se ele absorver, esquecido das horas, todo entregue
à beatitude da imobilidade, o corpo amolecido, caindo ao azar da sorte naquele
ninho fofo de lençóis e travesseiros onde se sentia tão bem, no grande
aniquilamento do seu próprio eu.
biblioUrgia, porém, reagir contra esta
preguiça. Já ia se fazendo tarde e lá embaixo deviam estar à sua espera, porque
o Pedro lhe dissera que costumavam almoçar cedo. Mas estava tão bem! E
custou-lhe muito o sentar-se na beira da cama, procurando os chinelos para
levantar-se. O café ainda estava ali na xícara. Esquecera-se de bebê-lo e agora
ele tinha esfriado, mas não fazia mal! E foi tomando-o aos goles, por entre
baforadas de um novo cigarro que acabara de preparar. Só então pôde erguer-se,
ainda meio atrapalhado com a arrumação do quarto e dando-se a grandes trabalhos
para procurar nas malas, em que não havia medido até aquele momento, a roupa
que pretendia vestir. Demais, retinha-o a preguiça que se aproveitava de todas
as ocasiões para deixá-lo parado, com vontades de se deitar novamente. Gastara
muito tempo em mudar os botões da camisa, praguejando contra as engomadeiras,
que não abriam as casas; e para acordar verdadeiramente foi preciso a brusca
sensação da água fria com que se pôs a banhar o rosto numa prodigalidade de
sabonete.
biblioE como o Valentim viesse bater-lhe
novamente à porta chamando, para almoçar, começou a vestir-se apressadamente.
No último ano da vida acadêmica, quando prestes a formar-se, contraíra o hábito
de brunir-se todo nuns grandes requintes de toalete, e era incapaz de sair do
quarto sem estar preparado com todas as regras da arte. Era da sua parte uma
adoração constante à própria pessoa que o fazia ficar longas horas defronte do
espelho, a contemplar-se, achando-se muito bonito. E naquele dia, por mais
pressas que quisesse ter, absorvia-se no exame do seu rosto, profundamente incomodado
porque só tinha feito a barba na Bahia, havia três dias, e os cabelos já
principiavam a nascer. No final das contas tudo era possível neste mundo! E
como lhe aparecessem as suas aspirações a d. Juan de envolta em toda a sua
exterioridade canalha, lembrou-se do busto estatuário e correto de Nenê. Era
uma idéia como outra qualquer e que de mais a mais o lisonjeava muito! Bem
verdade que o Pedro era seu amigo! Mas se havia de ser um outro... por que
motivo não seria com ele?!
Capítulo XI
biblioLá
embaixo já estavam à sua espera para dar princípio ao almoço que esfriava sobre
a mesa e ele incomodou-se muito com isto. Por que não tinham começado a
refeição sem dar mais importância à sua demora? E ao mesmo tempo procurava
desculpar-se. As viagens eram tão afadigosas e cheias de trabalho, de mais a
mais enjoara tanto a bordo, que contra a sua vontade prolongara o sono além das
horas do costume! Todos ouviam-lhe as desculpas, muito distraidamente, sem
responder-lhe mais uma palavra além dos bons dias secos com o que haviam
recebido; o Marcondes continuava sempre, numa grande prolixidade de palavras,
atrapalhado por esta ducha gelada de cerimônias que lhe caía assim sem mais nem
menos pelo corpo abaixo, a resfriar-lhe os seus primeiros ímpetos, fazendo-o bruscamente
esquecer todas as suas esperanças e cálculos de ainda havia pouco, trazendo-lhe
novamente à idéia a perspectiva de uma mudança obrigatória que vinha agora
desordenar-lhe os anos sedutores, exatamente quando o perfil correto de Nenê
lhe aparecia numas linhas sensuais por sobre o fundo negro do salão.
biblioAtrapalhava-o
de entre tudo o ar reservado com que d. Augusta e a filha ostentavam tratá-lo.
Necessariamente elas deviam ter conversado a seu respeito e tudo quanto faziam
era a execução de algum plano adotado que ele forcejava por adivinhar, desejoso
principalmente de conhecer o juízo que haviam de ter formado sobre ele. E
procurava examiná-las cuidadosamente, continuando sempre a falar, num
interminável jorro de palavras, a fim de disfarçar o acanhamento que a pouco e
pouco lhe ia invadindo o organismo inteiro. A velha senhora de pé, encostada ao
espaldar da cadeira da cabeceira, cuidadosamente penteada nos seus eternos
bandós de cabelos brancos que lhe passavam por sobre as orelhas, com a pele acetinada
e fresca da lavagem, conservava o seu ar esfíngico, apenas sublinhado por um
riso sardônico que lhe contraía levemente os lábios delgados. Sentada à cadeira
de balanço, Nenê trajava umas vestes caseiras mas não despidas de elegância,
seus bastos cabelos divididos em duas largas e compridas tranças que lhe caiam
pelo colo abaixo, o olhar verde-azulado mergulhando-se distraidamente no vago
do infinito.
biblioDemais,
ele não podia compreender nem sabia explicar o modo acanhado e quase
cerimonioso com que o Pedro lhe respondia monossilabicamente às perguntas. Na
véspera o amigo mostrara-se tão cordial e afável, tão cheio de expansões, numa
grande facilidade de frases afetuosas! E agora assumia uns ares discretos e
comedidos, como que a refletir sobre o caso, talvez já arrependido dessas
primeiras efusões, quiçá mesmo desejoso de vê-lo em mudanças, à procura de
algum meio decente de lhe pedir a retirada! Decididamente tinham longamente
falado a seu respeito e d. Augusta com toda a sua diplomacia andara a minar-lhe
os derredores, trabalhando para circunscrevê-lo em um isolamento atroz!
Vinham-lhe então uns desejos de luta, vontades de lançar-se inteira e cegamente
à conquista de afeições. Havia muito que sonhava coisas destas, batalhas
encarniçadas feitas de sorrisos e de calembures. Ao seu espírito romantizado
agradariam muito mais umas encenações medievais, uns montantes pesados de ferro
a arrastarem-se pelos lajedos do castelo indo tudo liquidar-se ali adiante nos
fossos onde devia ficar o corpo de um dos combatentes. Mas era preciso
conformar-se com o espírito da época e aceitar o combate no terreno em que lhe
ofereciam.
biblioEntretanto
tinha começado o almoço e cada qual acomodava-se no lugar que ocupara na
véspera, sem pronunciar uma só palavra, naquele grande silêncio em que se geram
os tristes pensamentos. D. Augusta presidia a refeição, com o seu eterno
sorriso de cortesias ferinas, como que a petrificar-lhe os lábios, quedando-se
flácidos e amolecidos, apenas a remexerem-se para a deglutição da comida. O
Valentim circulava preguiçosamente, mudando os pratos, fazendo de longe em
longe uma pergunta relativa ao serviço, sua voz a perder-se no imenso da sala.
E o Marcondes sentia-se opresso e desajeitado, sem coragem para continuar na
sua loquacidade de ainda havia pouco, à espera de um ensejo para reatar o fio
da conversa, já meio acovardado, calculando que não podia obter a vitória nessa
luta em que tinha vontades de se empenhar, achando até mais conveniente uma
retirada airosa que viria contentar a todo o mundo, meditando mesmo sobre o
pretexto de que serviria para levar a efeito o seu novo plano que agora lhe
parecia muito melhor.
biblioApenas,
de entre toda essa gente, o Pedroca conservava o seu rosto prazenteiro de
criança, alheia aos pequenos nadas do convencionalismo social, que não sabe
refrear os seus sentimentos nem pode compreender as variabilidades e
alternativas de conduta. Ele continuava a testemunhar grandes simpatias ao
Marcondes e era o único que lhe dirigia a palavra para lhe fazer umas perguntas
esquisitonas de menino ou lhe pedir um qualquer favor. E como o moço lhe
prestasse muita atenção e se mostrasse sempre pronto a satisfazer-lhe os
menores desejos, gostoso deste diversivo que vinha tão alegremente socorrê-lo
na grande atrapalhação de conduta em que se achava, ele ia de momento a momento
aumentando a sua afeição, e acabou até passando-se-lhe para o colo onde queria
por força tomar o café com leite. Quando terminou-se o almoço e os dois amigos
se prepararam para ir à cidade, o Pedroca acompanhou-os até o portão repartindo
uniformemente entre ambos beijos e abraços, encomendando-lhes que não se
esquecessem de lhe trazer bolas.
Capítulo XII
biblioAli
pelo meio-dia, na grande força do sol a crestar lá fora as folhas das plantas,
a sala de jantar tinha umas frescuras úmidas debaixo de ramagem mais semelhadas
ainda com o escuro dos enrodamentos. E era bom de se passar aí a sesta, por
entre aquelas ostentações de um luxo asseado e burguês. Sempre a essas horas,
depois do abatimento determinado pelas ligeiras febres sibaríticas seqüentes ao
almoço, mãe e filha gostavam de se reunir nesse aposento tão cômodo e onde se
permitem as pequenas sem cerimônias de uma sala comum de vapor. Nessas
ocasiões, quando as duas estavam bem sozinhas, sem que o Pedro, retido na
repartição, viesse perturbar-lhes os colóquios, elas gostavam de discutir os
acontecimentos do dia e de comunicar-se reciprocamente os pensamentos, as
frases a saírem-lhe em grandes intervalos durante os quais iam-se distraindo
com seus ligeiros trabalhos de agulha, cada qual no seu lugar favorito, tendo
entre si todo o comprimento da mesa elástica e a vastidão escura da sala que as
obrigavam a levantar um pouco a voz.
biblioE
elas lá estavam, d. Augusta na sua cadeira baixinha de costura, Nenê molemente
reclinada na de balanço que se movia preguiçosamente, naquele dia mais animadas
do que nunca nas suas conversas, quando se fez ouvir a voz argentina do
Pedroca, que brincava no jardim, vibrando fortemente o nome de sá Jovina. A
moça chegam à janela para gritar com o menino. Já lhe havia proibido por
diversas vezes o andar exposto ao sol! Dessa forma ele bem podia apanhar uma
febre que o prendesse na cama por muito tempo! E teimava com a criança para que
entrasse imediatamente. Mas o rapaz fingia não ouvi-la, encaminhava-se em
grandes alegrias para o portão.
biblioD.
Augusta também não achava muito bom o procedimento do neto, mas desculpava-o.
Eram coisas próprias da idade! Demais, um bocadinho de sol não fazia mal! E
voltara-se para o interior da casa, chamando pelo Valentim, mandando que alguém
fosse correndo para abrir o portão.
biblioPoucos
instantes depois sá Jovina fazia sua entrada na sala de jantar, sempre
acompanhada pelo Pedroca, que se lhe segurava à saia, saudada jovialmente por
d. Augusta e pela filha que lhe correram ao encontro. Era uma velha de idade
indeterminável, muito baixinha, o corpo envergado em forma de s, o torso para
trás e a cabeça para adiante a repousar por sobre o peito. Sua pele de um
amarelo pergaminhento enrugava-se fortemente nas comissuras dos lábios e dos
olhos, formando uns leves de profundos sulcos. Ao rir-se, por sobre as gengivas
nuas, mostrava os restos legendários de um dente que existira em outros tempos.
Nas têmporas umas mechas desastradas de cabelos brancos saíam de debaixo dos
bandós negros, revelando uma cabeleira com que pretendia ocultar a calvície.
Mas apesar deste conjunto estrambótico, evocando imagens tétricas de sibilas
priscas, circundava-lhe o todo uma atmosfera de bondades e de mansidões, talvez
gestada por seus olhos de um escuro russo continuamente a remexerem-se nas
órbitas à flor do rosto.
biblioApreciavam-na
muito por causa da sua constante alegria e do modo pachorrento com que ia
aturando todas as maçadas e debiques - espécie de retribuição exigida pelos
benefícios que lhe prestavam. Em outras épocas, quando ainda podia trabalhar e
não tinha a vista estragada, fora uma excelente costureira a andar de casa em
casa para aprontar vestidos e até mesmo enxovais. Datavam daí as suas relações e,
habituada a este gênero erradio de vida, continuava em sua peregrinação,
passando uma semana em um lugar, outra noutro, sem residência fixa, velha
boêmia através do mundo ao qual entretanto não se fazia pesada porque, nessas
longas visitas, encarregava-se de costuras ligeiras ou pelo menos ocupava-se em
remendar alguns trapos velhos. Desejando viver sobre si, sem os grandes vexames
dessas hospedagens, tentara ao princípio fazer-se lavadeira quando os seus
olhos cansados não se prestaram mais a acompanhar a agulha nas rápidas e
complicadas evoluções do pesponto. Mas este serviço tomara-se-lhe muito penoso
e vira-se obrigada a largá-lo apesar do imenso prazer que encontrava na vida
independente.
biblioDesde
então andava assim, de porta em porta, a visitar as suas antigas freguesas,
hoje já velhas e mães de filhas casadas. Em toda parte era sempre muito bem
recebida, e apesar das caçoadas as vezes um tanto pesadas que lhe dirigiam,
gozava de uma certa consideração e respeito por parte de todo esse mundo novo,
que carregara ao colo, que acompanhara nas lentas evoluções através da
sociedade. Tinha um lugar reservado em todos os enterros, em todos os
casamentos e em todos os batizados. Mas o seu verdadeiro trono, onde ela
gostava de se mostrar aos seus, era ali à noite, depois do chá, rodeada pelas
crianças que lhe pediam histórias Então a boa velha procurava endireitar o
corpo e ia, uma a uma, desfiando todas as Mil e Uma Noites peneiradas através
de uma corrupção popular. E outras ocasiões entrava pelo seu passado adentro,
um passado honesto e chão de virgem macróbia, sem incidentes, que guardara
apenas recordações dos tempos agitados de Pedro I e da Regência, que conservara
até umas vagas e incertas reminiscências da chegada de d. João VI, naturalmente
adquiridas pela tradição.
Capítulo XIII
biblioReceberam-na
com grandes alegrias e expansões de desejando saber por que passara tanto tempo
sem aparecer. Sá Jovina ouvia-as com um sorriso benévolo, procurando responder
às interrogações que lhe faziam, explicando as razões da sua tardança. Estivera
muito doente com umas febres que se manifestaram em casa do conselheiro
Pedrosa, onde teve de ficar duas semanas de cama! E louvava muito o conselheiro
e a d. Ritoca, que se lhe tinham mostrado extraordinariamente desvelados e
cuidadosos, chegando mesmo a mandar chamar um médico que fora visitá-la de dois
em dois dias. Depois tivera de ir ao casamento da filha de d. Juvência e a d.
Sinhazinha levara-a para Petrópolis de onde tinha chegado na véspera. Entrava
então em pomposas descrições da viagem, não poupando nenhuma minudência,
entusiasmada com o trem da serra, dilatando-se principalmente no tocante aos
passeios que fizera e nos quais por diversas vezes encontrara-se com o
imperador, que ela achava muito parecido com o pai e quase se admirava de ver
tão acabado.
biblioDepois
desta ligeira prosa foi tratando de entrar em seus cômodos. Ela já tinha o seu
quarto reservado, ali junto à sala de jantar, por baixo da escada que ia para o
sótão. E dirigiu-se para lá, a fim de tirar a saia - uma saia de seda preta com
rendas de vidrilhos que lhe dera a d. Rosinha e que afecionava dentre todas as
coisas. Acompanharam-na e assistiram-lhe à toalete, ajudando-a a tirar o
chapéu, numa grande expansão de contentamentos, continuando a fazer-lhe
perguntas, caçoando-a pelo cuidado que dava às suas vestimentas. Mas sá Jovina
ouvia-as com o seu sorriso benévolo, sem lhes dar resposta, ocupada em escovar
e dobrar cuidadosamente a sua saia, um pouco inquieta porque estava a
despregar-se uma das plumas do chapéu, querendo consertar imediatamente o
estrago, e só volvendo à sala de jantar quando deixou tudo convenientemente
acondicionado na gaveta da cômoda e não lhe pareceu haver mais possibilidades
de encontrar uma qualquer avaria nas suas vestes domingueiras.
biblioFoi
então que d. Augusta e Nenê lhe deram parte do ocorrido, de toda essa brusca
revolução a perturbar-lhes o calmo da existência. Insistiam sobre o fato.
Admirava-as muito que o Pedro, assim sem mais nem menos, trouxesse para casa um
companheiro. Concordavam em que o Marcondes era muito atencioso e bem-educado.
D. Augusta gabava-lhe mesmo o trato ameno e a consideração que lhe mostrava;
mas apesar de tudo isto o genro devia tê-la previamente consultado a respeito e
não fazer as coisas estouvadamente, sem prevenir a ninguém! Nenê por seu lado
não deixava de louvar o talento musical do rapaz que a acompanhava tão bem ao
piano. Em todo caso a gente não devia formar opinião pelas primeiras impressões
e era possível que mais tarde tivessem a lamentar algum desaguisado! Enfim, de
comum acordo, tinham resolvido conservar-se na mais estrita reserva, não
poupando recriminações ao Pedro, que seria o único responsável de qualquer
coisa que porventura acontecesse mais tarde, por isso mesmo que não quisera
ouvir conselhos sobre o negócio.
biblioSá
Sovina, porém, mostrava-se conciliadora e desculpava ao Pedro. Ela conhecia
muito o que eram amizades de colégio! E citava fatos. O filho do conselheiro
Pedrosa levava todos os dias uma porção de companheiros para casa do pai, e
quando era de noite a rapaziada juntava-se toda lá no sótão e punha-se a fazer
uma barulhada infernal! Demais, elas não tinham nada a recear! Ainda se
existisse em casa alguma moça solteira haveria possibilidade de suceder alguma
desgraça! Mas nem isto tinham que temer! O melhor era tratar o Marcondes com
muita cerimônia porque ele perceberia logo que estava se tornando incômodo e
procuraria um leito de ir-se embora! Em todo caso não achava bom o fazerem-lhe
má cara, nem aprovava as tensões que tinha Nenê de ficar zangada com o marido
por uma coisa que não valia a pena.
biblioNessas
questões de marido e mulher a sua longa experiência do mundo lhe tinha ensinado
que a gente, de qualquer lado que se voltasse, só saía perdendo!
biblioEntretanto
o Pedroca, que ouvira calado todas essas explicações, vendo que a conversação
começava a esfriar, pediu a sá Jovina para lhe contar uma história. Ele gostava
tanto quando a boa velha o sustentava ao colo, lhe falava de umas princesas
encantadas e muito bonitas que viviam acorrentadas e sofredoras até a chegada
de algum príncipe que lhes restituísse a liberdade! E insistia ante as negaças
da senhora. Trepava-lhe pelo colo acima, não obstante as advertências de Nenê,
e tanto fez que a obrigou a satisfazê-lo. Antes porém de dar princípio à sua
história era preciso que sá Sovina merendasse qualquer coisa. Dona Augusta
chamava pelo Valentim e pela Marocas para que trouxessem uns pratos e talheres
e pusessem em cima da mesa o queijo e o doce. O Pedroca quis fazer companhia à
sua boa amiga e as duas senhoras, apesar de não terem o costume de comer
qualquer coisa entre o almoço e o jantar, resolveram-se a acompanhá-la. Foi
então, ali em derredor da mesa um grande redobramento de confidências íntimas
ditas baixinho, a despertar a curiosidade do menino, que distraidamente ia
mastigando o doce de laranja.
Capítulo XIV
biblioOs
conselhos de sá Jovina pareciam ter fortemente impressionado a mãe e a filha.
Tanto que, à chegada dos dois amigos, foram eles recebidos quase cordialmente,
com grande espanto do Marcondes, que esperava encontrar umas fisionomias
enregeladas de cerimoniosidades, e por causa das dúvidas fora durante a viagem
do bonde preparando o espírito do Pedro para a sua mudança. O Pedroca tinha ido
recebê-los lá fora no portão e, trepando-se para o colo do rapaz, falou-lhe
desenvolvidamente sobre a velha senhora, procurando repetir-lhe a história que
acabava de ouvir. Depois quis acompanhá-lo ao sótão onde assistiu-lhe à mudança
de roupa, vivamente interessado pelas escovas e frascos de perfumarias que
havia em cima do toalete. Então, para contentá-lo, o Marcondes penteou-o com
requintes de perfumes. Ao regressarem para a sala de jantar, naquela pequena
espera do jantar que o Valentim estava pondo na mesa, o menino andou a mostrar
os seus cabelos a todo mundo, exigindo que lhe cheirassem a cabeça no meio da
geral alegria.
biblioA
refeição correu em grandes contentamentos, amenizada pelas graças de sá Jovina,
que contava uma história a todo o propósito e a quem o Pedro excitava com
contínuos apetites e perguntas. Por vezes d. Augusta mesma esquecia-se do seu
aspecto severo de dama antiga e compartilhava das risadas satisfeitas com que
iam todos distraindo o tempo. Nenê abandonara completamente os modos reservados
do almoço, conquistada por essa superficialidade de alegrias intimamente
gostosa da feição acomodada que iam tomando as coisas.
biblioO
Pedro, sempre bonachão, alheio a tudo quanto o rodeava, vivendo num mundo de
sonhos, tornara-se também brincalhão, procurando recobrar-se do mau humor com
que aparecera de manhã, depois da noite mal dormida que passara. E o Pedroca,
sentado entre o Marcondes e sá Jovina, mimado pelos seus dois vizinhos, que
procuravam adivinhar-lhe as vontades, dava uma nota de alegrias infantis,
modulada no argentino suave das risadas a adornarem-lhe a boca rubra e
pequenina.
biblioÀ
tarde, foi aquele mesmo espetáculo da rua convertida em salão comum, nas
grandes familiaridades da vizinhança. D. Augusta acompanhara-os até o portão e
agora envolvia-se na conversa, prestando atenção ao Marcondes, que se divertia
em discutir com sá Jovina a dissolução da Constituinte e o 7 de abril; ela
mesma acrescentando algumas minudências e detalhes que ouvira em outros tempos
nas conversas de família, falando desassombradamente da marquesa de Santos, que
chegara a conhecer. Nenê brincava distraidamente com o Pedroca, aborrecido
daquilo, não podendo compreender como havia gente que achasse graça em
semelhantes coisas, procurando de quando em vez interromper o fio da
conversação, chamando-a para um outro terreno onde lhe fosse permitido fazer
também as suas observações. O Pedro por seu lado não estava muito contente com
isto. Não que ele tivesse opiniões assentadas em política! Era-lhe
completamente indiferente a questão de forma de governo; embora tivesse uns
amores secretos pega República, votava sempre pelo governo e em casa não
gostava de conversar sobre este assunto.
biblioEntretanto
as duas velhas continuavam a remexer o entulho das suas recordações. Entravam
francamente nuns detalhes crus, pela grande pornocracia do Primeiro Império.
Evocavam por entre umas auréolas de glória o vulto abandalhado de Pedro I, e
compraziam-se em contemplar a estatura corpulenta do real bilontra. Ele
surgia-lhes na imaginação com o seu todo varonil e os olhos lúbricos a
destilarem vícios, mas uns vícios nobres, que não se escondem nos camarins, que
vêm para o meio da rua com a coragem de sua existência e a ostentação de suas
torpezas! Aquilo sim era um homem! E d. Augusta, sem segundas intenções, aliás,
comparava-o ao filho e achava este muito desajeitado, falto de elegâncias na
sua eterna casaca sebosa. Ao menos naquele tempo a gente podia chegar à janela
quando o imperador passava, certa de ver uma bonita cavalhada! Ela era então
muito menina, mas ainda se lembrava de ter admirado por diversas vezes o
brilhantismo do séquito imperial!
biblioE
vieram a falar sobre a independência. No final das contas, havia ali um
mistério, uma coisa que nunca foi devidamente esclarecida, mas de que em tempos
se falava extraordinariamente. Pelo menos sá Jovina lembrava-se de tê-lo ouvido
a diversas pessoas. E a boa velha fez-se discreta, abaixando a voz, como quem
ia comunicar um segredo. Jorge de Avillez, o comandante das tropas portuguesas no
Rio de Janeiro, dizia ela, fora casado com urna senhora muito bonita por quem o
Pedro I se apaixonou. Este apaixonou, a velha senhora o sublinhava, nuns tons
cômicos, cheios de segundas intenções. Parecia, acrescentava ela, que o general
não gostara muito da coisa e reunira as tropas na Armação para se vingar. Mas o
imperador, que estava no teatro, foi avisado em tempo e obrigou a legião
lusitana a capitular. E sá Jovina sorria maliciosamente. Achava muito engraçada
esta idéia de fazer depender o 7 de setembro, e tudo mais, de uma aventura
galante, de uma simples briga entre um marido altivo e um príncipe metido a d.
Juan!
Capítulo XV
biblioEntão,
naquela grande paz das digestões a elaborarem-se nuns laivos de beatitudes,
vieram a falar sobre a política. Um assunto corno outro qualquer, para matar o
tempo, essas longas intermináveis horas do entardecer, quando o ar embalsamado
que se coava pelos jardins afora lhes trazia, de envolta com o perfume das
murtas e das madressilvas, a sensação boa da vida honesta e pacata a escoar-se
mansamente através dos anos pelas uniformidades enfadonhas do rotineiro! Urna
coisa que a gente lia de manhã cedo nos "A Pedidos" do Jornal do
Comércio, que ouvia nas palestras do bonde, ao alcance de todo mundo, que se
podia discutir à vontade, em opiniões autoritárias, sem ter o trabalho de
estudar, deixando apenas às soltas a louca fantasia! E eles entravam
francamente na matéria, cada um trazendo o seu contingente, todos construindo
um Brasil lá a seu jeito, fazendo uma atmosfera propícia à vitalidade das suas
teorias, concordes sempre em que o governo fazia tudo mal, admirando-se de
tanto amontoado de desatinos!
biblioO
Pedro pertencia à mocidade decrépita de hoje em dia. Tomava parte nas conversas
da repartição, discorria nos cafés da rua do Ouvidor e chegava mesmo a ler a
Gazeta da Tarde quando voltava para casa. No seu modo de considerar os negócios
havia os ressaibos de umas leituras revolucionárias que não tinham sido bem
compreendidas. Inclinava-se às aspirações modernas e chegava mesmo a ter uns
pruridos republicanos. No final das contas o país estava à beira do abismo e em
pouco tempo a bancarrota nos viria bater às portas! Era preciso um remédio
violento para esse estado de anarquia e dissolução! E dava-se uns aspectos científicos
para falar no ferro em brasa, na amputação das partes grangrenadas do organismo
social. Chegara o momento dos grandes heroísmos e das grandes dedicações. A nau
do Estado não podia continuar a viagem sem alijar metade das velharias que lhe
entulhavam o porão!
biblioMas
o Marcondes divergiu completamente da sua opinião. Em tempos ele também
deixara-se enlevar por estas teorias bonitas dos panfletários! Chegara mesmo a
ser sócio fundador do clube dos Girondinos, e escrevera alguns artigos de
propaganda republicana na revista desse clube! A pouco e pouco, fora porém
mudando de idéias e, quando se esvaíram os seus sonhos da mocidade, quando
aparece-lhe o juízo calmo e refletido, deixou de parte todas estas baboseiras
próprias da rapaziada e converteu-se aos sãos princípios de um liberalismo
moderado. A tal República era simplesmente uma especulação com que meia dúzia
de esfarrapados andava empulhando a pobre humanidade idiota! Demais, ele agora
não tinha tempo nem meios de ser político. Principiava a vida, e precisava
arranjar um meio de subsistência, um ganha-pão com todas as garantias legais.
Mais tarde, quando já tivesse uma posição independente, refletiria sobre o caso
e alistar-se-ia em um dos partidos militantes! Por enquanto a sua obrigação era
não se meter nestes negócios para não angariar antipatias gratuitas que só
podiam perturbar-lhe o desenvolver da existência!
biblioD.
Augusta aprovava-o, revoltada às idéias do genro, achando o Marcondes muito
ajuizado e bem pensante. Ela votava sempre pelo sossego, gostando da política
pacífica, intimidada à expectativa de uma qualquer coisa perturbadora. Demais
prendiam-na à causa monárquica as suas tradições de família preciosamente
guardadas no relicário do seu peito. O pai emigrara com d. João VI, e o marido
possuíra o título de conselho! Além disto, das muitas obrigações que devia à
família imperial, outras razões ponderosas havia a lhe ditarem todas estas
crenças! No final das contas, as coisas não eram tão feias como pintavam! Todo
mundo vivia bem, sem grandes inquietações! Tanto que sobrava tempo para
discutir política! E em todo este negócio convinha observar que não valia a
pena a gente dar-se ao trabalho de uma mudança para pior! O que seria do Brasil
quando a hidra da anarquia tomasse conta do território? Só o pensar nisto
bastava para arrepiar os cabelos!
biblioNenê
também ritmava pelos mesmos tons Não achava fundamentos nas acusações que
dirigiam ao imperador! Ele era tão bom, tão caritativo! Quantas e quantas
mulheres, pobres viúvas desamparadas, iam aos sábados receber a esmola com que
ele as sustentava? Nem valia a pena falar na imperatriz! Todo mundo sabia
reconhecer-lhe o subido mérito! A princesa, essa, era tão agradável de trato!
Não tinha presunção de qualidade alguma, falava com grandes amabilidades e, nos
bailes que dava no Palácio Isabel, era tão cortês! Enfim! De que eram eles
culpados? Para que atribuir-lhes a origem dos males que porventura houvesse? E
em presença destas três convicções que lhe batiam todos os argumentos o Pedro
teve de dar-se por vencido, ruminando ainda umas objeções vagas e indefinidas,
em grandes frouxidões; ele próprio, meio duvidoso das suas crenças, republicano
para ter uns ares guerreiros de moço modernista, incapaz de ir além da esfera
palavrosa das discussões, amando dentre tudo o grande quietismo de existência
em que ia vivendo.
Capítulo XV
biblioEntão,
naquela grande paz das digestões a elaborarem-se nuns laivos de beatitudes,
vieram a falar sobre a política. Um assunto corno outro qualquer, para matar o
tempo, essas longas intermináveis horas do entardecer, quando o ar embalsamado
que se coava pelos jardins afora lhes trazia, de envolta com o perfume das
murtas e das madressilvas, a sensação boa da vida honesta e pacata a escoar-se
mansamente através dos anos pelas uniformidades enfadonhas do rotineiro! Urna
coisa que a gente lia de manhã cedo nos "A Pedidos" do Jornal do
Comércio, que ouvia nas palestras do bonde, ao alcance de todo mundo, que se
podia discutir à vontade, em opiniões autoritárias, sem ter o trabalho de
estudar, deixando apenas às soltas a louca fantasia! E eles entravam
francamente na matéria, cada um trazendo o seu contingente, todos construindo
um Brasil lá a seu jeito, fazendo uma atmosfera propícia à vitalidade das suas
teorias, concordes sempre em que o governo fazia tudo mal, admirando-se de
tanto amontoado de desatinos!
biblioO
Pedro pertencia à mocidade decrépita de hoje em dia. Tomava parte nas conversas
da repartição, discorria nos cafés da rua do Ouvidor e chegava mesmo a ler a
Gazeta da Tarde quando voltava para casa. No seu modo de considerar os negócios
havia os ressaibos de umas leituras revolucionárias que não tinham sido bem
compreendidas. Inclinava-se às aspirações modernas e chegava mesmo a ter uns
pruridos republicanos. No final das contas o país estava à beira do abismo e em
pouco tempo a bancarrota nos viria bater às portas! Era preciso um remédio
violento para esse estado de anarquia e dissolução! E dava-se uns aspectos
científicos para falar no ferro em brasa, na amputação das partes grangrenadas
do organismo social. Chegara o momento dos grandes heroísmos e das grandes
dedicações. A nau do Estado não podia continuar a viagem sem alijar metade das
velharias que lhe entulhavam o porão!
biblioMas
o Marcondes divergiu completamente da sua opinião. Em tempos ele também
deixara-se enlevar por estas teorias bonitas dos panfletários! Chegara mesmo a
ser sócio fundador do clube dos Girondinos, e escrevera alguns artigos de
propaganda republicana na revista desse clube! A pouco e pouco, fora porém
mudando de idéias e, quando se esvaíram os seus sonhos da mocidade, quando
aparece-lhe o juízo calmo e refletido, deixou de parte todas estas baboseiras
próprias da rapaziada e converteu-se aos sãos princípios de um liberalismo
moderado. A tal República era simplesmente uma especulação com que meia dúzia
de esfarrapados andava empulhando a pobre humanidade idiota! Demais, ele agora
não tinha tempo nem meios de ser político. Principiava a vida, e precisava
arranjar um meio de subsistência, um ganha-pão com todas as garantias legais.
Mais tarde, quando já tivesse uma posição independente, refletiria sobre o caso
e alistar-se-ia em um dos partidos militantes! Por enquanto a sua obrigação era
não se meter nestes negócios para não angariar antipatias gratuitas que só
podiam perturbar-lhe o desenvolver da existência!
biblioD.
Augusta aprovava-o, revoltada às idéias do genro, achando o Marcondes muito
ajuizado e bem pensante. Ela votava sempre pelo sossego, gostando da política
pacífica, intimidada à expectativa de uma qualquer coisa perturbadora. Demais
prendiam-na à causa monárquica as suas tradições de família preciosamente
guardadas no relicário do seu peito. O pai emigrara com d. João VI, e o marido
possuíra o título de conselho! Além disto, das muitas obrigações que devia à
família imperial, outras razões ponderosas havia a lhe ditarem todas estas
crenças! No final das contas, as coisas não eram tão feias como pintavam! Todo
mundo vivia bem, sem grandes inquietações! Tanto que sobrava tempo para discutir
política! E em todo este negócio convinha observar que não valia a pena a gente
dar-se ao trabalho de uma mudança para pior! O que seria do Brasil quando a
hidra da anarquia tomasse conta do território? Só o pensar nisto bastava para
arrepiar os cabelos!
biblioNenê
também ritmava pelos mesmos tons Não achava fundamentos nas acusações que
dirigiam ao imperador! Ele era tão bom, tão caritativo! Quantas e quantas
mulheres, pobres viúvas desamparadas, iam aos sábados receber a esmola com que
ele as sustentava? Nem valia a pena falar na imperatriz! Todo mundo sabia
reconhecer-lhe o subido mérito! A princesa, essa, era tão agradável de trato!
Não tinha presunção de qualidade alguma, falava com grandes amabilidades e, nos
bailes que dava no Palácio Isabel, era tão cortês! Enfim! De que eram eles
culpados? Para que atribuir-lhes a origem dos males que porventura houvesse? E
em presença destas três convicções que lhe batiam todos os argumentos o Pedro
teve de dar-se por vencido, ruminando ainda umas objeções vagas e indefinidas,
em grandes frouxidões; ele próprio, meio duvidoso das suas crenças, republicano
para ter uns ares guerreiros de moço modernista, incapaz de ir além da esfera
palavrosa das discussões, amando dentre tudo o grande quietismo de existência
em que ia vivendo.
Capítulo XVII
biblioE
debaixo destas impressões benfazejas, em sonhos gentis de alegrias que
caminhavam do futuro para si, que o Marcondes dirigiu-se para o quarto. Já não
lhe vinham mais as tristezas do amanhecer, não palpava mais aquelas
hostilidades surdas a atrapalharem-lhe a existência, a ditarem-lhe uma pronta e
imediata retirada. Todos estavam conquistados a si, envolvendo numa atmosfera
benevolente como um desdobramento das primeiras efusões com que o recebera o
Pedro. E toda a flacidez de suas carnes, que no aboemiado da vida acadêmica
sonhara tantas vezes um cantinho assim macio e acolchoado onde pudesse
descansar, ideava-se em perspectivas sorridentes, fazendo-lhe achar a
existência tão boa e cheia de bem-estares! Ali pelo quarto tão asseado, a
despertar-lhe uns desejos preguiçosos, ele passeava nuns compassados de
movimentos, despindo as roupas, preparando-se para dormir, a ruminar todos
estes pensamentos, enfeixando-os ao grande poema otimista que andava compondo
nuns versículos de risadas burguesas e de digestões pacíficas.
biblio
biblioDepois,
sentou-se à beira da cama, vestindo apenas um chambre, as pernas cabeludas
saindo-lhe pelas aberturas, a balançarem-se compassadamente. A luz da vela
tinha uns palores mórbidos clareando vagamente o aposento. E ele recostara-se,
a cabeça por sobre o travesseiro. Esperava. Antes de se retirar tinha falado a
respeito com o Pedro, e este lhe prometera arranjar tudo imediatamente. Desde a
viagem que andava um pouco incomodado e na véspera tomara apenas um banho frio.
biblio
biblioContava
porém melhorar com um de água morna, e como o amigo lho prometesse, admirava-se
de que tardasse tanto, já quase adormecido. Entretanto um barulho de balde a
gemer nas argolas vinha subindo pela escada acima. Enfim a Marocas entrou-lhe
pelo quarto, desculpando-se da demora, apressando-se em dispor as coisas. E o
rapaz soerguera-se um bocadinho, a fitar nuns olhares lúbricos a mulata que
circulava pelo quarto, remexendo garbosamente os quadris das grandes curvaturas
sensuais, desenhando pela parede em sombras fantásticas o seu perfil
provocador.
biblio
biblioNo
final das contas ele conhecera-as muito inferiores! E examinava-a com uns
grandes gestos de conhecedor blasé que não discute grandemente estas coisas e vai
buscar o prazer onde o encontra. Então, para dar princípio ao negócio, pôs-se a
falar-lhe, numas frases acanalhadas, cheias de subentendidos que a rapariga
ouvia em sorrisos benévolos e provocadores com que acompanhava as suas
respostas sempre prontas. Aos poucos a conversa ia tomando uns ares sérios de
operação comercial não muito debatida e em que as partes entram imediatamente
em acordo. O Marcondes levantara-se, e teve pequenas brutalidade a fim de
vencer umas mascaragens de negaças. Ele não gostava destas criançadas!
Preferia-as arrogantes no impudor, levantando o pano de boca ao estrídulo do
apito, franqueando bruscamente os cenários ocultos - esses palcos feéricos dos
dramas carnais! E sem mais parlamentações atirou-a, ali para cima da cama, deixando-lhe
as pernas pendidas para o assoalho num amortecido gentil, enquanto galgava-lhe
o corpo na febre da sensualidade. Depois, quando o organismo inteiro se lhe
arrebentou num desmoronamento de prazeres, ele levantou-se meio enjoado,
achando aquilo simplesmente porco.
biblio
biblioVieram
então a falar em grande intimidade, a Marocas respondendo-lhe às perguntas
enquanto a água do banho esfriava-se a pouco e pouco. A rapariga contava-lhe
tudo quanto ouvira entre d. Augusta e Nenê, quando na véspera o Pedro estivera
cá em cima a palestrar com ele. E o Marcondes ia ouvindo-a, num súbito
aniquilamento de si mesmo. Parecia-lhe impossível continuar a viver naquela
casa depois de informado sobre os juízos acabrunhadores de ridículo que mãe e
filha haviam formulado a seu respeito. Agora só lhe cumpria retirar-se! Nem lhe
restava outro alvitre desde que a moça o achara um importuno a perturbar-lhe o
calmo da existência! Far-lhe-ia a vontade! Deixá-la-ia a sós com a sua gente!
Admirava-se apenas de que ela após tudo isto ainda o tivesse convidado para os
acompanhamentos de piano! Não podia também compreender como a velha senhora lhe
tivesse mostrado tanta afabilidade no dia presente quando na véspera falara até
em exigir do genro a sua pronta retirada!
biblio
biblioE ele
adormeceu nestas tristezas de pensamentos, firmemente resolvido a mudar-se no
dia seguinte, não querendo mais ficar numa casa em que o tinham qualificado de
importuno. Entretanto, e apesar dos esforços que fazia para afugentá-la,
sorria-lhe meigamente uma visão feita de memória e fantasias a inspirar-lhe uns
pensamentos cálidos de voluptuosidades canalhas. O busto encantador das
curvaturas graciosas e carnações sadias de Nenê aparecia-lhe animado com aquele
sorriso de desejos que a moça lhe dirigira havia pouco tempo quando lhe pedia
que viesse buscar a flauta para acompanhá-la. No final das contas só podia ser
uma conquista cheia de honrarias para quem a conseguisse, prometedora de
felicidades sem fim! E recordava todas aquelas palestras da vida acadêmica em
que os companheiros afirmavam não haver mulher que não tivesse sua hora de
fraquezas. Repugnava-lhe a forma genérica e absoluta da proposição. Mas por que
Nenê não seria dessas que caem?! E, como de repente se lhe evocasse a imagem
sincera nas amizades do Pedro, procurou enxotar de si estes pensamentos
satânicos e assentou definitivamente para o dia seguinte a sua partida.
Capítulo XVIII
biblioAo
amanhecer do dia seguinte depois de uma noite em que levara a pensar muito
sobre o assunto, o Marcondes levantou-se firmemente resolvido a retirar-se
imediatamente daquela casa. Não havia mais razão para ficar ali a incomodar os
outros, ele mesmo tolhido em seus movimentos, obrigado a sujeitar-se num
sistema de vida ao qual não estava habituado! E vestia-se apressadamente,
tratando logo de acomodar nas malas, ainda não completamente desarrumadas, os
objetos e roupas que pusera da banda de fora. Apenas parecia-lhe um pouco
difícil arranjar um pretexto para tão brusca reviravolta no seu modo de pensar.
o Pedro se lhe mostrara muito amigo e prestadio. Não valia a pena bangá-lo,
dar-lhe inquietações, talvez mesmo determinar urna pequena altercação entre
marido e mulher por uma coisa tão insignificante. Arranjaria qualquer
justificativa, a primeira que lhe viesse à cabeça, e faria a mudança sem mais
explicações, contando voltar pouco àquela casa da qual entretanto levava
Intimamente umas bem gratas recordações.
biblioLá
embaixo receberam-no muito alegre e benignamente. O Pedroca saltara-lhe ao
colo, querendo repetir uma história muito engraçada que sá Jovina acabava de
contar. D. Augusta, amenizada, sem os cerimoniosos e reservados da véspera,
sorria-lhe benevolamente, informando-se de como tinha passado a noite. Nenê
mostrava-lhe uma fisionomia prazenteira, admirada de vê-lo tão madrugador,
ainda fresca e rosada do banho de chuva que vinha de tomar, os longos e bastos
cabelos a caírem-lhe por sobre as costas ao longo do torso embrulhado numa
toalha branca. E o Marcondes atrapalhava-se. Não podia compreender tanta hipocrisia
nem sabia como explicar estas aparências de jovialidade com que o recebiam, a
ele que andava a incomodá-las, como elas próprias o diziam. Punha-se a refletir
sobre o caso. Talvez houvessem mudado de opinião, modificado as impressões do
primeiro momento! Em todo caso ele era quem não ficava mais ali! Estava
resolvido a mudar-se e havia de falar com o Pedro a este respeito!
biblioDurante
o almoço, na boa e franca intimidade das refeições, teve por diversas vezes
vontade de encetar o negócio. Para animar-se a si mesmo tentara persuadir-seode que era conveniente preparar o terreno para não
esbarrar de encontro aos sobressaltos de uma bruscaria. Mas havia alguma coisa
a atrapalhá-lo que não lhe deixava liberdade de expressão. Não sabia bem
compreender o que se passava em si! O certo era porém que se sentia já
arrependido do pouco que deixara entrever. Agora aquela vida lhe parecia tão
boa e tão calma! Comparava-a com os imprevistos e dificultosos da existência em
hotel. E vinham-lhe umas vontades de ficar. No final das contas não lhe tinham
dito nada, não sentia mais a envolvê-lo esse ar constrangido do primeiro dia,
cercavam-no de carinho e de afetos, tratavam-no já como filho da casa e, se a
Marocas não lhe tivesse revelado a conversa de Nenê com a mãe, ele se teria
deixado ficar ali, compartilhando dessa vida calma e honesta, enquanto não
arranjava a promotoria e não seguia para Santa Catarina! E andava assim, nessas
irresoluções, já não sabendo mais o que devia fazer, preso e fascinado por umas
perspectivas de existência naquele canto alegre de umas felicidades mansas.
biblioNo
bonde, porém, quando se havia quebrado todo o encanto que o circundava e ele
sentia-se mais livre, sem o peso daquela sala de madeiras a se lhe impor,
voltaram-lhe as primeiras resoluções. E pôs-se a meditar sobre a forma pela
qual havia de dizer ao amigo o súbito desenlace que pretendia dar àquela
situação. Seu espírito alternava entre as branduras e as bruscarias,
Principalmente importunava-o a escolha do pretexto. Enfim, entrou na matéria,
amontoando considerações sobre a vida do solteiro, a falta de hábito em que
estava da existência familiar. As palavras vinham-lhe a flux dos lábios
desordenadamente, contradizendo-se, numa dificultosa elaboração lógica à qual
ele não sabia como pôr o remate desejado. o Pedro escutava-o, meio atônito,
adivinhando algum pensamento oculto, forcejando por saber aonde o outro queria
chegar. E o Marcondes continuava no mesmo desalinhavado de palavras, até que
por uma transição brusca formulou francamente a sua resolução, declarando que
de tarde pretendia mudar-se para um hotel do Rio Comprido.
biblioEntão
o Pedro zangou-se. Insistia para que o amigo lhe explicasse categoricamente a
razão de ser de semelhantes idéias. Perguntava-lhe se tinha encontrado falta de
alguma coisa, ou se alguém o havia molestado. E, como o Marcondes declarasse
que não tinha motivo de queixa de quem quer que fosse e principiasse a entoar
louvores à gente da casa, o outro disse-lhe que se deixasse de tolices, que
continuasse a residir com e enquanto não arranjasse a promessa da promotoria e
que não andasse a importuná-lo com semelhantes escrúpulos. O rapaz ouvia-o
calado, sem fazer-lhe mais objeções, já arrependido do que dissera, intimamente
gostando da insistência do amigo que lhe dava ensejos de continuar naquela
existência apenas entrevista e lhe parecia tão boa. Acabou aceitando novamente
os oferecimentos do Pedro, dizendo-lhe que não ficasse zangado com aquilo, que
ele tivera como obrigação sua tentar uma saída desde que vira as dificuldades
que ia encontrar para obter a promotoria. Mas já que o amigo insistia e
queria-o junto a si, ele não se fazia de orgulhoso e guardaria sempre umas
gratas recordações das bondades com que o estavam tratando. Mais tarde, se o
Pedro quisesse experimentar-lhe o reconhecimento, era só dar-lhe ordens.
Capítulo XIX
biblioA
pareceram então umas grandes intimidades. O Pedro falara com a mulher e a sogra
a respeito do Incidente do bonde, e houve desde este dia um recrudescimento de
atenções. Procuravam cercá-lo de mil afetos e carinhos, reservando para ele os
melhores pedaços, numa sinergia inexplicável de simpatias. O Marcondes
deixava-os fazer. Gostava dessa vida que lhe davam. Sonhara sempre uma coisa
assim - em torno de si gente alegre e satisfeita, passeando umas fisionomias
prazenteiras, atentas aos seus menores desejos, a fazer-lhe a existência
alcatifada de flores e de prazer, evitando sempre o encontro com as dores e
contrariedades - essas modalizações horríveis da vida, junto às quais devia-se
passar distraidamente! E agora que tinha assim arrumado o seu cantinho calmo e
sossegado, preocupava-se pouco com a promotoria e contentava-se em aparecer
todos os dias na Secretaria da Justiça e em fazer uma ou outra visita de
cerimônia para conseguir alguma carta de recomendação com, em tudo isto, uns
modos aboemiados de quem liga pouca importância ao futuro e tem tempo de sobra
para esperar.
biblio
biblioFora
logo se habituando ao regime da casa e a pouco e pouco granjeara urna certa
ascendência. Agora, durante as refeições, falava alto, dava ordens ao Valentim
e por vezes, nuns requintes cerimoniosos para com d. Augusta, tomava a si o
encargo de trinchar. O Pedro olhava-o serenamente, num tom brando de amizade
contínua e inabalável, despida de acidentações. E o rapaz ia lentamente
ganhando terreno na conquista daqueles corações todos. Sua grande aliada em
tudo isto era sá Jovina, a quem trouxera de presente um leque de fantasia. A
boa mulher, que, a insistências de Nenê, resolvera-se a passar um mês ali na
casa para consertar a roupa branca que estava toda sem botões e descosida em
alguns lugares, deixara-se facilmente fascinar pela superficialidade brilhante
e luzidia do Marcondes. Ouvia-o atentamente, gostando muito daquelas histórias
novas que ele contava tão bem, envolvendo em meias-tintas e diáfanos de gaze o
seu fundo acanalhado. E, quando ele estava ausente, a velha senhora não o
esquecia nunca, falava sempre a seu respeito e arvorava-o em árbitro de
qualquer questão suscitada.
biblio
biblioD.
Augusta tinha-o em muito boa conta. Achava-lhe um ar sério de homem prático que
sabe encarar devidamente o mundo. Augurava-lhe um esplêndido futuro e chegava
mesmo a estabelecer um paralelo entre a sisudez do rapaz e as leviandades
inconcebíveis do genro. Ali, antes do jantar, quando ele voltava mais cedo, a
boa senhora gostava de fazê-lo sentar-se junto dela. Então os dois começavam a
discorrer largamente sobre qualquer assunto que se lhes apresentava, entravam
num desnovelar de considerações intermináveis, admirando-se da uniformidade de
pensamentos que os animava, E iam por aí afora, cada que dando pasto às suas
maledicências, fazendo-se confissões mútuas num grande transbordar de amizades.
Ela assumia uns ares protetores e ditatoriais de mãe benévola, que fecha os
olhos a muitas escapadelas, mas que às vezes, arrependendo-se das suas
condescendências, ralha, já disposta a perdoar. E o Marcondes deixava-a fazer,
prestava-se boamente a esta comediazinha, gostando de tudo isto, sentindo-se
mesmo ainda um pouco estouvado e precisando ter quem o guiasse, frouxa e
bondosamente, neste labirinto dificultoso e complicado que se chama a vida
social.
biblio
biblioÀ
noite, assim que começava a cair o sereno, iam todos para a sala de visitas e
davam então princípio ao concerto habitual. Nenê já tinha aquilo em obrigação.
Mal chegava à sala ia para o piano e punha-se a ferir distraidamente as teclas
enquanto o Marcondes tirava uns ligeiros acordes da flauta. Depois os dois
começavam a execução e caminhavam seguidamente, de partitura em partitura, até
a hora do chá. Agora andavam tirando umas peças novas e de muito efeito que ele
trouxera da cidade. E os dois entusiasmavam-se, mergulhando-se numa comunidade
de ondas harmoniosas a acariciar-lhes a plástica, apenas perturbadas de quando
em vez pelos aplausos do Pedro, que ia tomando gosto àquilo e, a modo de graça,
falava em comprar um realejo para aprender a tocar. Mas, quando ele prolongava
demais as suas manifestações de aplauso ou vinha importuná-los com perguntas,
mandavam-no embora tratando-o de desajeitado, dizendo que não podiam
compreender como houvesse quem não apreciasse a música.
biblio
biblioDe
tudo isto ia se formando entre os dois uma grande intimidade. Nenê já
abandonara completamente os modos cerimoniosos de tratamento e às vezes chegava
mesmo a servir-se para com ele desse tu que nivela os terrenos e suprime as
distâncias. Depois da execução de cada partitura, quando ainda vibravam-lhes
aos ouvidos os acordes sentimentais e tristonhos de Chopin, a moça fitava-o nuns
olhos quentes de delírio, como a lhe agradecer aqueles instantes de ventura que
lhe tinha proporcionado. Nessa região mística dos sonhos e das fantasias ela
lhe permitia uns amplexos de fraternidade artística. E eles juntos iam por ai
afora a vogar mansamente, nuns doces enleios lamartinianos, pelos mundos
etéreos dos sonhos, absortos nos seus cismares, como que desprendidos da
realidade, num idílio murmurado brandamente em linguagem de harmonias. E iam
assim através da vida, sonhadores de quimeras com um acordar sem sobressaltos
nem inquietações, naquela mansidão de existência que viviam, encontrando em
derredor de si apenas umas fisionomias alegres e prazenteiras a lhes sorrirem
benevolamente.
Capítulo XX
biblioForam
então uns períodos de prazeres e de contentamentos. A vida corria fácil e
ligeira em pruridos de felicidades mansas e uniformes orquestrando-se numa
monotonia sem fim. Eram todos os dias as mesmas cenas - uma espécie de opereta
galante que caíra no agrado do público e mantinha-se garbosamente no palco à
espera do centenário. Os atores conservavam-se ainda na rijeza embaraçosa das
primeiras representações, mas já iam se habituando ao papel, encarnando-se nas
personagens, sem mais titubeios, gostando no final das contas da vadiação em
que andavam a dispensar-lhes novos estudos e aquelas grandes cacetadas do
ensaio, movendo-se como maquinismos ao apito do contra-regra. Enfim
circundavam-nos uns horizontes azulados e límpidos, puros de névoas, sem
prenúncios nem vislumbres de borrascas e tempestades, por debaixo dos quais
fazia bem viver nuns anquilosamentos de bem-aventuranças, na grande paz quieta
e sossegada dos paraísos - espécie de sono opiado sem perspectivas de acordar.
biblioE
o Marcondes sentia-se bem nesse banho tépido de dias uniformes. Deixava-se
viver. Todo o seu egoísmo exultava numas modalizações barulhentas de
contentamentos. Sonhara sempre a existência assim, sem atrapalhações nem
incômodos, tendo quem lhe cuidasse da roupa e lhe pusesse os botões na camisa.
Insistira ao princípio com o Pedro para que este fixasse o preço da sua pensão
ou pelo menos aceitasse alguma coisa como adjutório aos acréscimos de despesa.
Mas, como o outro mostrou grandes repugnâncias à idéia, não lhe falou mais a
respeito, resolvido a dar algum presente de valor quando se retirasse,
limitando-se por enquanto a trazer algumas músicas para Nenê e voltar sempre da
cidade com os bolsos cheios de bolas para o Pedroca. Assim lhe parecia tudo
convenientemente arranjado, e ele mesmo não se ocupou mais do assunto. E
deixava-se viver tranqüilamente, sem se ocupar muito da promotoria, todo
entregue a sua preguiça e à adoração de si próprio, achando muito justas e
cabidas as atenções de que o rodeavam, numa grande calmaria de existência.
biblioEm
tudo isto surgia-lhe como um incompreensível e um problema a solver a imagem
graciosa e simpática de Nenê. Lenta e lentamente, por uma amontoação de
ninharias e de insignificâncias ele fora entrando-lhe na intimidade, a cada
momento descobrindo-lhe uma nova feição, uma particularidade de caráter.
Chegara mesmo a apropriar-se-lhe do aroma, daquele cheiro suave e discreto de
jasmim que a moça exalava do corpo inteiro e que ele agora sentia na sua
ausência, como parte integrante do próprio organismo. Tanto se habituara a
vê-la e a tê-la sempre presente à memória que por vezes, à noite, no grande
aniquilamento do sono, parecia-lhe distintamente senti-la junto a si nuns
tangíveis de realidade. E quando acordava, meio contente, meio sobressaltado,
custava em desvanecer-se daqueles sonhos, procurava a moça por toda parte, não
podendo acreditar em uma simples visão, reconstruindo novamente esse perfil
sereno das grandes curvaturas sensuais, querendo revê-lo novamente nas
decorações fantasiosas do ainda havia pouco, alquebrado por todas essas
comoções violentas que acabava de experimentar.
biblioVinham-lhe
então uns desejos de conhecer o passado da moça. Talvez aí encontrasse alguma
coisa que lhe servisse de orientação no proceder! Mas por mais perguntas que
dirigisse à Marocas, que agora sempre tinha uma qualquer coisa para fazer no
seu quarto às horas em que ele ia deitar-se, não conseguia descobrir o que
queria. Nenê, através das longas e detalhadas narrações da rapariga,
aparecia-lhe constantemente calma e sossegada, numa existência lisa e honesta,
toda de meias-tintas. Era um produto genuíno da educação fluminense, sem
grandes paixões nem exuberâncias de sentimentos, a viver tranqüilamente entre a
mãe, o marido e o filho. E o Marcondes remexia-a por todos os lados procurando
algum ponto fraco, talvez mesmo alguma brecha por onde lhe fosse fácil a
entrada na cidadela, desanimado de encontrá-lo mas procurando sempre, numa
grande teimosia, esforçando toda a veemência dos seus desejos com as
dificuldades que encontrava, querendo-a sem discussão de meios, até mesmo à
força se não houvesse outro jeito.
biblioE
ele raciocinava demoradamente sobre o assunto. No final das contas o passado de
quietismo e de sossego não provava coisa alguma. Era bem possível que a moça
não tivesse caído até aquele momento porque encontrara sempre a estrada livre e
macadamizada, sem uma dificuldade, sem uma pedra que a fizesse tropeçar! Mas
por que ele não tentaria conquistá-la? Por mais que procurasse, não encontrava
uma razão bastante forte para dissuadi-lo deste desígnio! E voltavam-lhe as
recordações das conversas de república, quando os companheiros contavam proezas
de seduções e ele ficava muito quietinho a um canto, sem ter nada que dizer, na
uniformidade boçal dos seus amores pagos à hora! Mas havia de vingar-se desses
tempos de obscuridade! Agora havia de ser como os outros! Teria também em seu
passado uma aventura escabrosa de adultério para regar os amigos quando tivesse
bebido um pouco mais, e fosse chegada a hora das confissões íntimas! E queria
Nenê, veementemente, como um futuro adorno à sua individualidade de homem que
conhece tudo, com todos os requintes da sua sensualidade brutal.
Capítulo XXI
biblioPara
se aproximar de Nenê, tê-la sempre junto a si, sentir-lhe o hálito perfumado,
contemplá-la nas suas formas esculturais de carnações sadias, o Marcondes
tornava-se de mais em mais freqüentador da sala de jantar. Ele gostava de ficar
ali em meio às intimidades, por entre as saias e as conversas das três
senhoras. Quase sempre tinha umas pequenas caçoadas para com sá Jovina, e a boa
velha, sem mexer-se, continuando nas suas costuras e remendos, ia-lhe dando o
troco respondendo-lhe no mesmo tom, não se recusando até a entrar francamente
em uns duelos de espírito a que muito aplaudiam d. Augusta e Nenê. Eram então
umas frases de duplo sentido, meio acanalhadas, a deixarem ver o pensamento por
entre umas obscuridades fáceis, todo um mundo ligeiramente entrevisto a alegrar
os circunstantes sem ferir-lhes as suscetibilidades em ostentações de rudezas,
deixando uns refúgios já preparados a tendências moralizadoras, carnaval da
bandalheira, em que ninguém repara, e que todos podem aplaudir sem comprometer
os foros de boa educação e de severidade.
biblioÀs
vezes d. Augusta tomava a direção das conversas dando-lhe um aspecto serioso de
quem já viveu muito e fala em nome de uma longa e bem formada experiência. Ela
gostava das investigações pelo passado adentro com súbitas e extemporâneas
evocações de amigos, concluindo sempre por umas apaixonadas diatribes aos
tempos que correm. Outrora a vida era mais amena, mais cheia de prazeres
honestos e singelos, as amizades mais duradouras e veementes, os homens mais
delicados, incapazes de fumar na presença de uma senhora, tudo enfim
apresentava uns ares virtuosos e refletidos de quem media o alcance de qualquer
ato antes de praticá-lo! E quando tinha acabado o elogio dos tempos que foram,
fazia-se satírica, analisava com uns sarcasmos brutais todo este modernismo
enfezado e hipócrita que lhe fazia mal aos nervos. Não poupava nenhuma
minudência, carregando o quadro de forma a fazer sobressair o lado ridículo das
coisas. Os outros riam-se, achavam-lhe graça nos comentários e não tentavam
discutir, eles mesmos um pouco sectários da religião do passado.
biblioEm
outras ocasiões o Pedroca só a si tomava conta das atenções, divertindo os
circunstantes com as suas ingenuidades, mostrando-se muito alegre e folgazão.
Ele continuava a gostar muito do Marcondes, que lhe trazia bolas sempre que
voltava da cidade, e nunca cessava de acariciá-lo. Ia quase constantemente
esperá-lo no portão e saudava-o com umas alegrias ruidosas, procurando
repetir-lhe as histórias que ouvira a sá Jovina, acabando por trepar-lhe ao
colo. E, quando entravam na sala de jantar, começavam entre os dois umas
grandes brincadeiras infantis. O menino escondia o rosto com as mãos e
perguntava ao outro: - Onde estou eu? Então o Marcondes fingia procurá-lo em
todos os cantos e por debaixo da mesa, acabando por perguntar a Nenê se o
Pedroca não tinha ido para o jardim. E a moça continuava o brinquedo,
debruçava-se na janela, chamando pelo filho, gritando com ele por estar
apanhando sol e não obedecer às suas ordens, até que o menino, tirando as
mãozinhas do rosto, corria ora para um, ora para outro, dizendo que estivera
escondido ali mesmo na sala de jantar, que ouvira tudo quanto haviam
conversado, achando muita graça na grande admiração que os outros mostravam.
biblioO
Pedro vinha também misturar a sua nota de boemia alegre àquelas conversas da
sala de jantar, e quando voltava mais cedo da repartição tomava parte em toda
essa intimidade de viveres. Ele trazia sempre um bafo quente da vida barulhenta
lá de fora, andava muito bem informado dos escândalos da véspera e não perdia
vaza para encaixar as pilhérias do momento. Atualmente o seu maior gosto era
zangar alguém. Ia constantemente andando pelas suas teorias afora, de dedução
em dedução, até que a mulher ou sogra lhe saltasse em cima, chamando-o de ateu
ou de republicano, prometendo-lhe a maldição eterna, e as chamas de satanás.
Então fazia-se alegre gostando daquilo, sentindo prazer em apregoar-se homem
moderno, de idéias adiantadas e revolucionárias, tomando umas atitudes
guerreiras de quem quer dar cabo do mundo. E continuava, sem atender às
exprobrações que lhe faziam, ostentando uns radicalismos inconcebíveis, até que
d. Augusta se zangava seriamente e Nenê o mandava embora para o jardim,
dizendo-lhe que não viesse mais aborrecê-la com as suas tolices e
extravagâncias.
biblioEra
enfim uma boa vida honesta e pacata a que o Marcondes andava vivendo no meio de
toda essa gente cujas simpatias iam aumentando de momento a momento. E o rapaz
sentia-se bem, deixava-se embalar nesse quietismo de aspirações, não querendo
mais do que isto mesmo, apenas escaldado por uns desejos sensuais que lhe
faziam grandes placas vermelhas nos olhos e lhe aumentavam a intensidade das
pulsações. Tão fortes lhe vibravam por vezes semelhantes desejos que ele
punha-se a fitar longamente Nenê, tendo nos lábios uma torrencial de palavras
prestes a desabar, retido bruscamente por umas atemorizações repentinas,
temendo que a moça o repelisse logo à primeira palavra, preferindo mil vezes
ficar-lhe assim na intimidade sem que ela suspeitasse a mais insignificante das
suas intenções. Vinham-lhe por momentos umas vontades de abandonar
completamente estes desígnios, de contentar-se com a vida mansa que ia vivendo,
mas voltavam-lhe logo as primeiras aspirações aguilhoadas sobretudo pela
necessidade que sentia de arremedar um homem, de ter uma conquista no seu passado.
Capítulo XXII
biblioNenê
andava também grandemente sobressaltada, nuns incompreensíveis de existência
que ela mesma não sabia explicar. Tinham-lhe aparecido agora uns
recrudescimentos de efusões maternais Em repentes, pegava do Pedroca e
beijava-o repetidas vezes, com umas grandes veemências que assustavam os
circunstantes. Para com o marido tinha da mesma sorte uns transbordamentos de
ternura, abraçando-o e beijando-o à vista de todos. Apesar do modo respeitador
e quase cerimonioso pelo qual vivia com d. Augusta, esta não escapava às
bruscas e repentinas manifestações de amizade que a moça atualmente derramava
em mancheias ao derredor de si e das quais nem mesmo se livrava sá Jovina.
Parecia enfim que Nenê sentia em si uma exuberância de afeições que ela
irrefletidamente ia prodigalizando a torto e a direito, talvez por não poder
gastá-la como sonhava, nuns esquisitos de caprichos de que se admirava mais
tarde, fazendo-se faceira, trabalhando nuns requintes de toaletes, vivendo num
estranho de ilusões e de fantasias onde não se reconhecia, em cujo terreno
julgava não ter pisado até aquele momento.
biblio
biblioDominava-a
agora uma grande paixão pela música. Sonhava umas harmonias deliciosas de
instrumentos bizarros e nunca vistos, tangidos por mãos celestiais, a saturar o
ambiente de sonorosidades excitantes, a banhar-lhe o corpo inteiro numas vagas
de sensualidades. Era nuns automatismos de alucinada que ela caminhava para o
piano, fazendo-lhe vibrar o teclado numas notas merencórias de tristezas sem fim
por entre as quais, de momento a momento, destacavam-se nuns rápidos veios
auríferos os ritmos alegres de Offenbach. Ela andava assim, a estereotipar na
variabilidade das músicas o vasto movediço que lhe ia pela alma adentro; todas
essas modalizações bruscas e antinômicas do seu espírito a vogar, a vogar
indeterminadamente, aos azares da correnteza, pelo oceano marulhoso dos
pensamentos. E quando, nuns rápidos momentos passageiros, sentia-se senhora de
si e procurava sondar essas paragens ignotas, em que navegava agora, achava-se
em presença de um abismo sem fundo cujas sensações más procurava abafar num
mundo de harmonias.
biblioPor
vezes, mesmo durante o dia, ela exigia que o Marcondes fosse ensaiar em sua
companhia alguma nova peça. Os dois dirigiam-se para a sala de visitas cujas
janelas escancaradas deixam entrar francamente sol alegre e vivificante a
alumiar umas paisagens verdes e encantadoras todas formadas com os arvoredos do
jardim. Então olhavam-se nuns olhares longos, expressivos, que procuravam conter
um mundo de pensamentos dissolvidos na tibiez própria de cada um. Olhavam-se e
sorriam-se, atrapalhados, lamentando esse momento do frente a frente, que
haviam desejado pouco antes, silenciosos, sem terem a coragem de pronunciar uma
palavra, com medo de ouvir o som da própria voz, procurando esconder o
acanhamento das suas posições. E para aparentarem uns ares de desembaraço
atiravam-se logo ao piano e à flauta, tentando sufocar o que lhes ia pelo
organismo inteiro, a febre que os devorava, num oceano sem fundos de harmonias,
custando muito em acertar o compasso, tocando quase sempre ao acaso das
recordações, vendo pouco e distraidamente a música que tinham diante dos olhos,
com vontades de pôr um termo àqueles sofrimentos, de dizerem-se mutuamente os
turbilhões de desejos que os abrasavam.
biblioPela
porta que haviam deixado aberta, de envolta com o sopro de vida mansa e
sossegada que vinha lá de dentro, Nenê sentia a beijarem-lhe as espáduas e a
nuca, em satânicos de cantáridas, umas arreitações gostosas que a prostravam.
Parecia-lhe ouvir, em tons murmurantes, umas excitações tresloucadas a lhe
falarem de amor. Era a voz de d. Augusta, nas intimidades do a sós, tecendo
elogios ao Marcondes, achando-o um rapaz sério e refletido que tinha diante de
si largos horizontes e um futuro sorridente de prosperidade. Era sá Jovina
entoando em homenagem ao moço uns louvores sem fim, descobrindo-lhe qualidades
raras, fazendo o protótipo das virilidades. Era o Pedro, que à noite, no
aconchego dos lençóis, lhe contava anedotas da vida colegial, uns rasgos de
coragem do amigo, umas situações difíceis de que todos se haviam retirado sãos
e salvos graças à sua valentia e presença de espírito. Eram enfim as risadas
infantis do Pedroca, que gostava muito do seu amigo grande e lhe vinha mostrar
as balas que ele lhe trouxera.
biblioE
a moça curvava a cabeça num gesto gentil de vítima pagã que espera sorrindo o
golpe do sacrificador. Entregava-se. Não tentava mais lutar. Parecia-lhe que a
casa inteira, a mãe e o filho, o marido e a velha amiga, até mesmo os objetos,
tudo quanto a circundava, conspirava para lançá-la nos braços daquele homem. E
ela ficava ali, quieta e sossegada, num grande aniquilamento de si mesma, à
espera de que ele se abaixasse para tomá-la. Vinham-lhe umas submissões de
escrava, vontades de que ele fosse brutal, desejos de cair nuns laivos de
honestidades, aos últimos paroxismos de uma luta. E como ele se conservasse
quieto, a olhá-la longamente numas ternuras medrosas, a moça levantava a cabeça
e fitava-o com um sorriso triste de quem pede que acabem de uma vez com esses
tormentos, de quem quer libertar-se quanto antes de perspectivas negras e
ameaçadoras. Então os dois recomeçavam novamente a música, entoando as
sinfonias tristonhas de uma qualquer balada alemã, procurando afogar o
turbilhão de pensamentos, que lhes ia pelo cérebro adentro, no lago tranqüilo e
calmo de umas melodias, norsas, merencórias e taciturnas como a natureza gelada
de sua pátria.
Capítulo XXIII
biblioA
cada uma destas superexcitações de sentidos o Marcondes retirava-se alquebrado,
tendo um mundo de ardentias a escaldarem-lhe as artérias. Vinham-lhe então uns
longos abatimentos, umas prostrações sem fim. Recriminava-se a si mesmo! No
final das contas devia atribuir tudo à sua covardia. Adivinhava-a prestes a
desfalecer, a cair-lhe nos braços! Bastar-lhe-ia abaixar-se para apanhá-la,
para tê-la como sua! Entretanto não fizera nada! Deixara-a quieta e sossegada a
magoar-se daquela vitória não perdida! E de si para si, confessava-se uma
besta, muito ignorante nestas matérias de amor! Se ele fosse mais brutal, não
tivesse tantas considerações e respeitos, não andasse atemorizado com uns
receios infundados, com certeza já tê-la-ia conquistado! E lamentava-se
furiosamente da sua inépcia, maldizia estes tempos em que se metera nas
conquistas fáceis e nos amores a cinco e até mesmo a dois mil-réis! Se ele
tivesse aproveitado estes anos da sua primeira mocidade na aprendizagem da
crápula do bom-tom, com certeza não estaria agora tão atrapalhado com este
noviciato que lhe custava tanto trabalho!
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biblioE
prometia emendar-se. Jurava a seus deuses que daquela época em diante havia de
ser mais empreendedor. Castelava uns planos para o futuro. Agora queria Nenê
fosse como fosse. Queria-a em nome de todas estas derrotas que experimentara
por causa de seus modos esquerdos e de sua falta de prática. Queria-a em nome
dessa paixão que lhe escaldava o sangue e lhe entontecia a cabeça. Queria-a
como o primeiro degrau dessa escada por onde esperava subir ao canalhismo
aristocrático, como embasamento sólido e gentil de arabescos sobre o qual
pretendia erguer o monumento de suas futuras glórias dom-juanescas. Queria-a
como o sarcasmo lançado aos amores fáceis do seu passado, como o complemento da
sua carta de bacharel em direito. Queria-a fosse como fosse, custasse o que
custasse, ainda mesmo que tivesse de passar por cima de um cadáver, numa grande
superexcitação de espírito, alucinado por toda essa paixão sensual que lhe
brotara de repente no organismo inteiro, nas veemências que geram as
dificuldades não superadas.
biblio
biblioFormava
uns planos para futuros a sós. Dir-lhe-ia toda a imensidade de desejos que lhe
abrasava o crânio. Ela havia de ceder, de se deixar cair nos seus braços. E
depois? Oh, como havia de ser bela a existência! Castelava-a numas alegrias sem
fim, numas brutalidades enormes, nuns paroxismos de sensualidades. Viveria ali,
naquela mesma casa, a amá-la constantemente, a rodeá-la de carinhos e afetos.
Não lhe repugnava compartilhar com o Pedro esse tesouro de amores bons que lhe
adivinhava. No final das contas o outro era marido e tinha direitos adquiridos,
direitos em que não ousava tocar. Seriam dois a amá-la. Apenas, evitaria por
todos os meios que o outro conhecesse aquela vida a três. Era possível que o
amigo não se agradasse muito com o negócio e convinha evitar as desavenças
possíveis! Amá-la-ia em segredo, e sempre, e sempre. Para não abandoná-la, para
nunca separar-se dela, ficaria ali mesmo no Rio de Janeiro, sem pensar mais em obter
uma promotoria, limitando-se a abrir um escritório para viver honesta e
decentemente.
biblio
biblioOh!
Ele bem sabia o que fazer depois do primeiro abraço e do primeiro beijo quente,
quando já lhe tivesse inoculado um pouco daquela seiva abrasada que lhe
escaldava o sangue! Para ele toda a questão, todas as dificuldades estavam no
primeiro amplexo. Depois, tudo era fácil, devia suceder-se muito naturalmente
como um desencadear de corolários. Apenas lhe parecia extremamente complicado o
estabelecer a premissa. E a si mesmo confessava a sua impotência, reconhecia-se
inapto para tanto, acobardava-se diante da perspectiva. Oh! se ele fosse
ousado, se tivesse lá aprendido a aproveitar-se desses tão falados momentos
psicológicos em que as mulheres param-se à beira do abismo onde se deixam cair
ao mais leve impulso, com certeza já teria levado tudo de vencida, já estaria a
viver aquela vida honesta e sossegada que se lhe afigurava tão brilhante e
sorridente num conjunto de felicidades mansas! Oh! Ele queria dobrá-lo, este
Cabo Tormentoso após o qual ficar-lhe-ia, ao fim da navegação, essa Índia
poética e misteriosa das voluptuosidades asiáticas!
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biblioE
como se reconhecia impotente e pequenino para tão grande empresa, incapaz de
levá-la ao termo, sonhava uns meios de evitá-la, de pular por cima de todas
estas dificuldades. Queria uns desenlaces rápidos e fáceis para esta situação
que a cada momento sentia mais complicada. Por vezes, como uma idéia boa,
pareceu-lhe muito mais agradável o deixar à moça a iniciativa dos primeiros
passos. Assim era muito melhor! Quando estava só, lá no quarto, todo entregue a
este escaldar de desejos, mordendo os travesseiros nuns paroxismos de paixões,
sonhava o vê-la chegar de repente e entregar-se a ele cheia de súplicas, pedindo-lhe
que a não fizesse mais sofrer, que a tomasse já e já. Ele então mostrar-se-ia
bondoso e complacente, como um José que, depois de pequena resistência, acaba
cedendo porque tem amor à roupa e não quer deixar a túnica nas mãos da mulher
de Putifar. Assim, sim! E ele queria este desenlace como o mais cômodo e o
menos trabalhoso, como a solução mais fácil àquele paroxismo de desejos em que
viviam os dois. Havia de obrigá-la a isto, a vir-se-lhe entregar! E para
determiná-la a tanto, para conseguir tudo isto procurava fazer-lhe brotar no
crânio uns ciúmes fortes e veementes.
Capítulo XXIV
biblioHavia
já uns dez dias que o Marcondes chegara àquela casa pelo braço do Pedro e a sua
situação, bruscamente melhorada logo no seguinte dia, ia lentamente complicando-se
tornando-se dificultosa e cheia de entraves com toda essa aventura amorosa que
ele ateava constantemente e nunca conseguira deslindar com a sua natural
tibieza e falta de prática. Sentia a necessidade de não prolongar por mais
tempo este estado todo anômalo de viver. Precisava dar um desenlace a este
pequeno incidente! E como não se reconhecia coragem para arcar frente a frente
com a situação, como a sua franqueza andasse sempre a atemorizá-lo procurou uns
caminhos tortuosos para chegar ao termo da conquista empreendida. Firmemente
persuadido de que Nenê acabaria por entregar-se toda inteira, de corpo e alma,
à discrição do vencedor, almejava fazê-la render-se sem combate e sem
resistência, e pareceu de muito boa tática o despertar-lhe uns ciúmes em cujos
acessos violentos a moça viesse procurá-lo; e só esperava um ensejo para por em
execução este plano para ele tão cheio de prometedores resultados.
biblio
biblioUma
noite quando todos já se tinham retirado do portão, e, reunidos na sala de
visitas prestavam atenção a Nenê que preludiava no piano uma romanza italiana
apareceu a visitá-los a família Moreira. Foram então uns grandes rebuliços uns
transbordamentos de alegrias. Havia tanto tempo que não se viam! E de parte a
parte recomeçavam os beijos e os abraços, um desencadear sem fim de efusões
ternas o Marcondes foi imediatamente apresentado pelo Pedro ao sr. Moreira - um
sujeito alto e bem falante já meio idoso, que ocupava uma posição elevada no
funcionalismo. Logo em seguida, à voz de Nenê, que o chamava para o círculo das
moças, ele dirigiu-se para junto do sofá onde recomeçaram as apresentações às
filhas do tal sujeito. Eram três irmãs, muito galantes, de cabeças louras, os
cabelos bastos e sedosos caindo despretensiosamente até a cintura. Trajavam
igualmente uns elegantes vestidos de cetineta, com casacos de cetim arremedando
fraques, quase disfarçadas em homens, com os competentes colarinhos e as
gravatas com pregador em ferradura.
biblio
biblioA
conversa generalizou-se. Vieram logo a falar sobre modas. Nenê elogiava muito
aquele feitio de vestido, e declarou imediatamente que havia de mandar fazer um
igualzinho. Achava graça nessa ousadia de fraques e coletes. Mas o Marcondes
entendia que cada sexo tinha obrigação de guardar os seus trajes e não se meter
a inovações capazes de confundi-los. Então discutiu-se muito o assunto, cada
qual trazendo o seu parecer, alterando a voz para se fazer ouvir no grande
barulho que reinava. De modas, sem transição, passaram a tratar da rua do
Ouvidor. As meninas Moreira tinham estado lá na véspera. Sempre muita gente! Às
vezes era até difícil de atravessá-la! E diziam os encontros que tiveram: as
filhas do Nicolauzinho, a noiva do Artur - um primo delas, e outras, e outras,
um nunca acabar. O Marcondes ouvia-as com muita atenção, não perdendo vaza para
encartar uma graçola ou uma amabilidade. Resolvera-se a aproveitar o ensejo
para executar o plano concebido e olhava para as três, procurando escolher a
mais bonita, indeciso, ainda não sabendo a qual devia dar preferência, acabando
por decidir-se pelo narizinho arrebitado da mais moça, que respondia pela
alcunha de Linda.
biblio
biblioComo
viessem a falar sobre música e sá Jovina contasse os concertos habituais da
noite, as meninas Moreiras insistiram para que os dois fossem executar. Depois
de umas pequenas negaças facilmente vencidas, Nenê dirigiu-se para o piano
convidando o Marcondes a pegar da flauta. Então começaram. O rapaz fazia-se
porém distraído, raramente acertando o compasso, voltado para a Linda a quem parecia
fulminar com os seus olhares ternos a segredarem umas declarações de amor. E
como observasse que Nenê apercebia-se dos seus manejos e não prestava mais
atenção à música continuou, procurando fazer-se mais notado, muito contente em
ter posto em prática o seu plano, prevendo desde já uma próxima cena de ciúmes
veementes após a qual a moça se lhe entregaria inteira e completamente,
pedindo-lhe que não fosse tão mau, que a amasse pelo menos um bocadinho!
Entretanto a música terminara-se sem grandes entusiasmos de aplausos, apenas
com uns cumprimentos de civilidade, sem insistência para que executassem mais
alguma coisa, todos passando logo a outro assunto.
biblio
biblioDesde
então, já nas conversas da sala, já durante o chá, Nenê conservou-se muito
irascível e cheia de bruscarias. Forcejava em atrapalhar todos os colóquios do
Marcondes com a Linda; o rapaz, que notava estas súbitas transformações,
fazia-se mais amável para excitá-la e provocar-lhe a tão ansiosamente esperada
cena de ciúmes. A moça sentia-se fora de si, não podendo compreender tem o que
se passava no seu organismo. No final das contas ela gostava do Marcondes e
percebera havia muito tempo que o rapaz lhe retribuía na mesma moeda! Nunca
tivera a idéia de aceitá-lo para amante! Ela era muito honesta e não queria de
forma alguma ser infiel ao marido! Mas o amor submisso e sossegado do moço lhe
parecia muito decente, uma homenagem rendida à sua beleza vaidosa, homenagem
recebida sem escrúpulos, nunca lhe tendo passado pela idéia a possibilidade de
uma exigência! E agora zangava-se, não o queria para si, mas opunha-se também a
que ele andasse requestando outras mulheres, entendendo que o rapaz tinha
obrigação de dedicar-lhe uma contemplação gratuita de devoto!
Capítulo XXV
biblioO
Marcondes exultava. Agora só lhe bastava deixar que a semente germinasse! Nenê
devia necessariamente fazer uma qualquer, uma demonstração repentina, um desses
atos que desmascaram os mais íntimos sentimentos, e ele contava aproveitar-se
do ensejo para a realização de todos Os seus desejos. Dera-lhe boas noites,
assim como quem diz - até logo. Lá em cima, no quarto, esperava-a. Todo o seu
romantismo natural fazia-lhe pensar que a moça arranjaria qualquer pretexto,
aproveitar-se-ia do sono do Pedro para ir esprobar-lhe o seu procedimento,
chamá-lo de traidor, acabrunhá-lo com impropérios, por trás dos quais se
sentiria veementemente um mundo de paixões a calciná-la. Ele então seria bom,
perdoar-lhe-ia todos estes insultos, procuraria acalmá-la, gastando-lhe o fogo
nuns beijos longos, amorosos e quentes! E esperava sempre, indefinidamente, num
exaltamento de sensualidades, tendo apagado a luz e deixado a porta aberta,
estremecendo ao menor ruído, julgando a cada momento palpar-lhe, entre os
braços, o corpo gentil das boas carnações sadias, das desenvolturas fáceis de
serpente.
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biblioE
de fato, Nenê com a longa meditação da noite, ali na cama, sentindo por entre a
branda quentura dos lençóis o corpo do marido todo entregue à satisfação de
dormir, burilava umas elaborações penosas de pensamentos maus. Achava que o
Marcondes procedera muito canalhamente querendo namoricar, ali mesmo às suas
vistas. Vinham-lhe uns verdadeiros ciúmes a escaldar-lhe o sangue. Queria-o
para si, não como um amante mas como um adorador! Habituara-se àquelas
demonstrações silenciosas e humildes de veneração. Toda a sua vaidade de mulher
bonita gostava desse incenso com que lhe acariciavam a plástica graciosa.
Chegara mesmo a sonhar a existência assim. Numa grande calmaria de paixões e de
rivalidades ela queria viver entre a mãe, o marido e o filho e tendo o
Marcondes como um sacerdote da sua religião; ela lá em cima, em um altar, bela
e impassível como uma deusa a respigar todos os fanatismos histéricos dos seus
crentes, muito boa, consentindo que a adorassem!
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biblioE
no dia seguinte a moça acordou muito enraivecida e de mau humor, ralhando com
todo mundo e a qualquer propósito, fazendo-se má castigando o Pedroca porque
fora ao jardim contra a sua ordem expressa. Durante o almoço mostrara-se muito
cheia de bruscarias, tratando o Marcondes com umas ostentações de friezas. E
assim levara todo o dia, sempre irritadiça, mudando constantemente de lugar. À
noite, quando foram para o portão, naquele hábito contraído desde tantos
tempos, continuou a perturbar todos os prazeres e divertimentos, interrompendo
as conversações dizendo que estava incomodada, que os outros não lhe ligavam
importância, que a deixavam sozinha sem lhe prestar atenção. Mais tarde, à hora
costumeira da reunião na sala de visitas, ela ainda redobrou de maus modos e
declarou positivamente que não queria mais tocar piano, que estava farta de
cansar-se para divertir umas pessoas que não sabiam lhe agradecer e levavam a
debicá-la e a criticar-lhe a execução, que chegavam mesmo a negar-lhe vocação
musical!
biblio
biblioEntão
a noitada tornou-se enfadonha e entristecida. Todos andavam inquietos, sentindo
vagamente no ar que respiravam a ameaça de um cataclismo. D. Augusta quis mesmo
fazer umas pequenas observações à filha, nas foi recebida com um olhar tão
ameaçador que recolheu-se prudentemente aos bastidores. Nenê não era má, mas
quando se zangava ficava insuportável, incapaz de atender a quem quer que
fosse, e nessas ocasiões era sempre melhor deixá-la sossegada para não
azedar-lhe o ânimo!
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biblioO
Pedro também tentou intervir no negócio, não podendo compreender esta brusca
reviravolta na mulher, ainda na véspera tão contente, cantarolando alegremente,
tendo também de recuar ante o modo pelo qual foram recebidos os seus
comentários. E sá Jovina, que não gostava destas brigas, propôs que tomassem
imediatamente o chá e fossem todos deitar-se cedo, ela mesma resolvida a partir
no caso de piorar a situação, adivinhando alguma coisa do que se passara.
biblio
biblioO
Marcondes lamentava-se agora de ter posto em prática o plano tão longamente
concebido e do qual esperara tanto. Se ele não se tivesse metido a querer
rapidez no desenlace daquela pequena aventura que ainda se conservava oculta,
não lhe teriam acontecido coisas destas. Atualmente parecia-lhe que havia
procedido mal e arrependia-se do que fizera. Tinha mesmo vontades de chegar
junto à Nenê e de dizer-lhe que o incidente da véspera não passara de uma farsa
improvisada no momento. Mas a moça olhava-o com tanto rancor que não se animava
a isto e conservava-se silencioso, não sabendo que jeito havia de dar a esta
complicação, saudoso da boemia alegre dos outros tempos, com vontades de
aniquilá-lo este dia que lhe parecia tão fatal aos seus amores, como que o
esvaimento de todas as suas esperanças. E ficava irresoluto, não sabendo o que
fazer, confiando no tempo para apagar todas estas reminiscências, esperando
ainda na possibilidade de voltarem às grandes intimidades iniciais,
apressando-se em ir para o quarto a fim de fugir a essa realidade opressora.
Capítulo XXVI
biblioDesde
então começaram a reaparecer aquelas friezas e cerimoniosidades dos primeiros
dias, agora mais fortes e atrapalhadoras por todo este intervalo de
intimidades. Já tinham completamente desaparecido as conversas longas e
intermináveis com que eles andavam a matar o tempo. Por vezes o Marcondes ainda
tentava as familiaridades de outrora, mas via-se logo embaraçado com as
respostas monossilábicas que recebia. O Pedro mesmo não ostentava mais as
primeiras expansões, tomava uns ares tristonhos e esquecia as suas boas
pilhérias ruidosas de então. Apenas o Pedroca continuava a mostrar grandes
amizades ao rapaz e a ir recebê-lo no portão. Durante as refeições a fisionomia
séria e reservada de cada um abolira completamente as jovialidades com que eles
costumavam apimentar os pratos e preencher os intervalos. Enfim o Marcondes,
lenta e lentamente, sentia a formar-se em torno a si um grande vácuo no qual se
debatia estonteadamente, não podendo compreender uma tão brusca transformação;
ele mesmo achando agora que aquela existência não era tão boa como parecia,
furtando-se a ela o mais que podia.
biblioNenê
constituíra o centro deste movimento que ia lentamente minando e solapando o
edifício de felicidades que o Marcondes se construíra. Agora a moça tinha-lhe
uns ódios e uns rancores veementes. Não podia aturá-lo e ficava nervosa só com
a sua presença. Na grande febre dos seus ciúmes fora-lhe dado examinar em toda
a verdade a sua situação. Vira-se prestes a cair, a desfalecer nos braços desse
homem que o marido trouxera um dia para casa e que neste momento a
impressionara tão desagradavelmente. Sentira mesmo que devia à inexperiência e
acanhamento do rapaz o ter-se ainda conservado pura e sem mácula. E odiava-o
duplamente. Odiava-o por toda a sua honestidade que agora lhe vinha em
borbotões à flor da pele, horrorizada do abismo pelo qual escapara de rolar tão
desastradamente; odiava-o por causa desse amor que ainda lhe tinha, por causa
de toda a sua mulheridade exuberante de moça formosa, por todas estas vezes em
que estivera junto a ele a palpitar de sensualidades, por não se ter ele
aproveitado dessas ocasiões que ela inconscientemente lhe oferecera tantas
vezes! Oh! Odiava-o muito!
biblioSá
Jovina encarregara-se de fomentar todas estas tendências. Toda a sua bílis,
acumulada na longa vida de dependências e humilhações, vinha-lhe à tona, numas
frases causticantes que endereçava ao moço. Fora ela quem, reconhecendo as
latências de animosidades que se convergiam lentamente para o Marcondes,
estimulara-se e ousara mesmo pronunciar a primeira acusação, da qual todas as
outras não eram mais do que conseqüências. E desde então ela, que já começava a
sentir um tanto abalado o seu próprio crédito, firmava-o e restabelecia-o com
os destroços dessa outra amizade que estraçalhava. Ao princípio Nenê e d.
Augusta limitavam-se a ouvi-la, sem mesmo arriscar uma aprovação com a cabeça,
intimamente gostando dessas críticas que concordavam tão inteiramente com as
próprias opiniões. E a boa velha continuava lentamente no seu trabalho de
toupeira a minar o solo em que pisava o rapaz, esperando já o momento em que
lhe faltasse o terreno debaixo dos pés, contando aproveitar da ocasião em que
ele desabasse para auferir alguns proventos, ganhar os resíduos dos destroços
esparsos.
biblioTodos
iam se deixando arrastar insensivelmente, sem saber como nem por que, por esta
correnteza a acumular desafeições contra o Marcondes. D. Augusta já não o ouvia
mais como antigamente, não mandava-o chamar como dantes para as conversas
íntimas de durante o dia, não podendo ela mesma explicar a origem de tudo isto,
ouvindo benevolamente as maledicências por sá Jovina segredadas a seu respeito,
compreendendo haver da parte de Nenê uma tal ou qual antipatia para com o
rapaz. E a boa senhora não se dava ao trabalho de indagar a origem de tudo
isto. Conservava-se muito calma e tranqüila sem querer ajuizar sobre o caso,
entendendo que se tratava de uma qualquer coisa insignificante e passageira,
lamentando até que não voltassem aos imediatamente primeiros dias, àqueles
longos serões de músicas sem fim em que o espírito alegre e folgazão do
Marcondes podia vagabundar pelos assuntos, animando a conversa, dando-lhe umas
feições ao mesmo tempo séria e pilhérica, ajudando a gente a matar as horas
enquanto não chegava o sono.
biblioO
Pedro mesmo, sem compreender o que se passava em si, começava a aborrecer-se do
Marcondes. Já não eram mais aquelas grandes efusões dos primeiros dias, aquelas
conversas que se prolongavam pela noite afora. Ele agora fazia-se mais discreto
e menos comunicativo. Apenas, nas horas de refeição, sentindo o mal-estar que
lentamente se apoderava de todos, procurava animar a conversação, dar-lhe uns
aspectos de jovialidades. E como reconhecia-se fraco ele só para tamanha empresa
procurava um apoio no Marcondes, tentando espicaçá-lo a fim de rir-se do
eflúvio de palavras e teorias pândegas, com que o rapaz costumava responder a
esta ordem de provocações. Ao princípio servira-se de uns meios brandos, de
umas caçoadas ligeiras. Mais tarde encontrando-lhe, com grande pasmo seu, uma
epiderme moral muito coriácea, fora gradativamente aumentando a intensidade dos
seus ditos, fazendo-os ferinos, contente quando o Marcondes zangava-se ou um
sorriso de aprovação aparecia nos lábios de Nenê, compreendendo que se estava
passando alguma coisa estranha, mas muito preguiçoso para se dar ao trabalho de
investigá-la.
Capítulo XXVII
biblioO
Marcondes, que nos últimos tempos havia abandonado completamente a sua
pretensão de obter uma promotoria, voltara a se ocupar assiduamente do negócio,
contente em achar qualquer coisa que o prendesse na rua. Agora andava a fazer
muitas visitas e a procurar cartas de recomendação para o ministro da Justiça
que não mostrava muitos desejos de servi-lo. E ele teimava em ser bem sucedido,
querendo seguir imediatamente para junto da família, já cansado da vida que
levara, meio pessimista, a acusar o mundo das contrariedades que sofria,
sobretudo não poupando sarcasmos à amizade - uma coisa com que a gente sempre
se sai mal! Uma ocasião demorara-se fora além das horas do costume e fizera com
que o esperassem muito tempo para o jantar. Então, como notara um
recrudescimento de antipatias, pedira para que nunca mais o esperassem além das
quatro horas, e dois dias depois, convidado para um jantar de cerimônia em que
esperava ser apresentado a um amigo intimo do ministro, prevenira o Pedro de
que só voltaria de noite.
biblioForam
grandes as alegrias experimentadas pela família ao saber da notícia. D Augusta
mesma já andava cansada das etiquetas a que se sujeitava por causa da presença
do rapaz. No final de contas ele era um estranho e a gente não podia ter, à sua
vista, a grande expansão das intimidades! Era preciso tomar alguns cuidados nas
expressões, ostentar uns modos severos. Enfim, era sempre um estranho, um homem
que se metera por ali adentro e que já começava a importuná-los! E todos
apresentavam-se com uns ares prazenteiros, fisionomias rejuvenescidas,
prometendo-se uns mundos de prazeres. Até mesmo Pedroca parecia mais risonho,
contente em poder ficar perto da avó que agora o enchia de carinhos, dizendo
também as suas gracinhas, encantando a todos com as suas boas e argentinas
gargalhadas infantis, comunicando aos outros toda a sua alegria de criança que
gosta das novidades selam quais forem e que se aborrece logo que se sente
dentro de uma habitualidade enfadonha.
biblioNenê,
que andava sorumbática e amortecida, fez-se também alegre, voltando aos seus
belos tempos despreocupados, servindo ao marido, querendo picar a carne do
filhinho, num grande transbordamento de amizades. De momento para momento
aumentava-lhe o ódio que dedicava ao Marcondes. Não podia mais aturá-lo e
ficava nervosa com só ouvir-lhe a voz. Ele a fizera sofrer tanto! E sem
formular bem claramente a acusação, sem mesmo compreendia inteiramente,
exprobrava-lhe o ter ofendido a sua honradez e despertado a sua sensualidade,
nem maculando a primeira, nem satisfazendo à segunda. Ela perdoar-lhe-ia tudo,
uma declaração forte e veemente, uma audácia espantosa, o segurá-la de repente
quando eles estavam a sós e beijá-la, beijá-la por muito tempo,
indefinidamente. Nunca, porém, o que fizera o Marcondes - excitá-la, fazer-lhe
passar pela nuca uns hálitos quentes de arreitações para largá-la em seguida
exausta e não satisfeita, a pedir mais, a pedir tudo e sem conseguir coisa
alguma - espécie de gota d'água a aviventar a sede de quem a prova nos lábios
ressequidos pela abstinência!
biblioE
no meio do bem-estar que sentiam todos com a ausência do Marcondes, sá Jovina
julgou prudente lançar algumas das frases sarcásticas que lhe ditava a
maledicência. Como elas fossem muito bem acolhidas e d. Augusta arriscasse
mesmo um comentário, a velha voltou à carga, muito satisfeita por lhe acharem
graça, fiel à sua posição de divertidora, de quem paga a hospedagem com
histórias engraçadas e até mesmo escabrosas, ao paladar do freguês. Então
redobrou de causticante, haurindo coragem e incentivos nos aplausos que
encontrava. Não o achava tão bonito como parecia. O nariz era muito grande; o
corpo sem jeito, desengonçado. Depois passava-lhe em revista o moral,
relembrava fatos, reconstruía-o em todos os seus ruins aspectos. Acusava-o de
pretensioso, pensando-se uma grande coisa quando não passava de um bacharel sem
fortuna, enfatuado, acreditando que todo mundo devia estar-lhe debaixo dos pés
em contínua adoração.
biblioO
Pedro ao princípio tentara defender o amigo. Achava sá Jovina muito exagerada!
O Marcondes não era tão mau assim! Tinha boas qualidades que o recomendavam
logo de primeira vista! Depois, fora sempre um bom companheiro, muito prestadio
e serviçal! No colégio prestara-lhe muitos obséquios e ele não queria
mostrar-se ingrato! Mas a pouco e pouco, vendo o modo pelo qual lhe acolhiam as
palavras, e os aplausos que sá Jovina continuava a receber, atrapalhou-se um
bocado. No final das contas nem ele mesmo sabia explicar o que sentia, o que
lhe ia pelo corpo adentro. Deixava-se porém arrastar pela correnteza de
antipatias que convergiam para o Marcondes. Ele mesmo já estava cansado de
encontrá-lo a todo momento, já gastara toda a reserva de amizades que acumulara
durante anos, durante a prolongada ausência do amigo de colégio. E além disto,
agora que o outro não estava ali, parecia-lhe tão boa a vida assim, sem um
estranho a colocar-se de permeio às suas afeições! Tanto que se calou deixando
a velha inteiramente senhora do campo, continuando indefinidamente nos seus
sarcasmos e maledicências.
Capítulo XXVIII
biblioNo
dia seguinte o Marcondes encontrou mais fortemente acentuada a frieza dos dias
anteriores. As palavras de sá Jovina, tudo aquilo que eles pensavam em segredo
mas que não tinham a coragem de formular, pensamentos anônimos que acabavam de
encontrar na boa velha um editor responsável, produziam o seu efeito. Agora
eles sabiam de que acusá-lo, corporizara-se a aversão vaga e indefinida -
espécie de humores a vagabundar pelo organismo inteiro determinando umas
perturbações gerais que acabam por assestar-se em uma região qualquer e
apresentam-se francamente nos conjuntos sintomáticos do tumor. Evitavam-no.
Procuravam subterfúgios para não lhe responder, deixavam-no sozinho na sala de
jantar a braços com um rumor indeterminado de acusações murmuradas. Ele
fazia-se forte. Aparentava uns ares calmos e sossegados de quem tem a
consciência tranqüila, fingia não se aperceber dessa corrente de antipatias que
se dirigia para si como umas duchas fortes, tendo ainda a acalentar-lhe os
sonhos uns laivos de esperanças.
biblioEntretanto
sentia-se a incomodar. Vinham-lhe aquelas sensações más dos primeiros dias em
que aparecera ali, pelo braço do Pedro. E agora elas lhe pareciam mais fortes,
mais veementes, mais difíceis de aturar. Não se tratava mais de uma reserva
para com desconhecido, de uma inimizade gratuita. Por mais que quisesse pensar
o contrário e se deixasse embalar pelos ventos brandos da esperança a sua
situação não era a mesma. Não se tratava de conquistar afeições, mas sim de
reconquistá-las. Era preciso, agora que o atacavam, defender-se, provar as suas
boas intenções, entrar novamente em campanha, mas numa campanha mais difícil
porque não tinha aliados, sentia-se só, inteiramente só, quase abandonado pelo
Pedro! E além disto, intimamente apareciam-lhe a contê-lo nos seus ímpetos
guerreiros umas espécies de remorsos a reprovarem-lhe o procedimento, a
dizerem-lhe que fizera mal em querer seduzir a mulher do amigo que tão
fraternalmente lhe abrira a casa. Oh! Estava bem só, sentindo-se e mesmo contra
si!
biblioAté
o Pedroca, que antigamente lhe dispensava tanta amizade e ia sempre recebê-lo
ao portão, mostrava-se agora arredio às suas graças e amabilidades. Parecia
também enfastiado da sua pessoa, com vontades de vê-lo pelas costas. E o
Marcondes impressionara-se muito com isto. Tinha pela criança uma grande e
verdadeira afeição. Achava-o tão galante com a sua cabecinha loura e os olhos
claros e inocentes, a boca pequenina e rubra que sorria tão bem, tão engraçada
quando se remexia ao fluxo das palavras e das idéias! Demais redobrara-lhe a
paixão por Nenê. Queria-a ainda. Queria-a sempre, fosse como fosse, custasse o
que custasse! E o Pedroca parecia-lhe um pedacinho da moça, a trazer-lhe o seu
aroma suave, a destilar aquela beleza das carnações sadias. Gostava de tê-lo ao
colo como uma emanação do objeto amado. E a criança fugia-lhe, torturando-o,
aumentando-lhe os padeceres, fazendo-o sentir mais grandemente todo esse
isolamento e essa repulsão que haviam cavado em torno a si, onde ele se debatia
em vão, onde gastava a sua energia inteira, sem encontrar ao menos um pretexto
para romper, preso num círculo de cerimoniosidades.
biblioEntão
e quis saber ao certo do que se tratava, acreditando ainda que a sua imaginação
coloria negramente o quadro, fazia as coisas pior do que eram, esperando ser
dissuadido, sonhando ter-se enganado e suspeitado aversões e ódios onde talvez
houvesse apenas alguma dor íntima que lhe queriam ocultar. Recorreu à Marocas,
crivando-a de perguntas, não lhe dando tempo para responder, desejando e
receando ao mesmo tempo uma revelação. E quando a rapariga principiou a falar,
entrando em detalhes íntimos, repetindo-lhe parte da discussão que ouvira ao
jantar, achando prazer em remexer bem o ferro na ferida, ela mesma cansada de
encontrá-lo a todo instante e das brutalidades de cada noite, o Marcondes
sentiu umas lágrimas umedecerem-lhe a face. Por mais que tivesse dado pasto à
sua imaginação nunca lhe passara pela cabeça a possibilidade de tantos
horrores. E ficara abatido, sem coragem para reagir, arrependido de ter feito
estas perguntas à Marocas, preferindo agora ignorar tudo quanto diziam a seu
respeito.
biblioE
ele conservou-se assim, não sabendo o que devia fazer. Vieram-lhe a princípio
vontades de lutar, de ir lá embaixo, de pedir satisfações a cada um, de brigar
com o Pedro, de esbofetear sá Jovina. E em pouco abandonou completamente estas
idéias belicosas. Lembrou-se de fazer-se humilde, de pedir perdão, de dar
dinheiro à velha para que ela desmanchasse a sua obra e principiasse a falar
bem a seu respeito. E andava assim, de um para outro alvitre, acobardado dentre
tudo com a perspectiva enfadonha de romper bruscamente com aqueles sonhos de
existência que fizera tão belos, de abandonar aquele ninho acolchoado onde se
sentia tão bem. Mais tarde, e só depois de muita reflexão e de muito desânimo,
resolveu-se definitivamente a mudar de casa. Pareceu-lhe isto a melhor forma de
sanar todas as dificuldades, de resolver aquele súbito problema que o acaso dos
fatos lhe punha na frente. E com uma rapidez de execução, ali mesmo de noite,
pôs-se a arrumar a bagagem, querendo retirar-se no dia seguinte, achando
repugnância em conservar-se por mais tempo naquela casa.
Capítulo XXIX
biblioEntretanto
não lhe era de grande facilidade o formular a resolução tão bruscamente tomada.
Ele continuava envolvido nuns círculos de cerimoniosidades que não lhe
permitiam franquezas de movimento. Sentia-se como que tolhido e abafado. Não
podia chegar lá embaixo e dizer assim sem mais nem menos ao Pedro que se via
obrigado a mudar-se daquela casa porque o maltratavam, porque lhe faziam a
existência má, porque Nenê se apaixonara por ele e as coisas não tinham ido até
o fim e a moça, prestes a entregar-se, fugira bruscamente do abismo em que
escapara de se precipitar. Era preciso aparentar cortesias! Lembrou-se então de
que estava naquela casa havia perto de um mês e que tinha obrigação de dar um
presente de valor, uma jóia qualquer, para pagar a hospedagem. Este pensamento
revoltava-o e punha-o em embaraços. Pois ainda em cima de tudo quanto lhe
haviam feito, ele tinha de fingir-se agradecido, de ficar devendo um favor, de
sujeitar-se a oferecer uma pulseira ou um colar à Nenê?!
biblioE
continuava a procurar um pretexto. Temia, dentre tudo, que o Pedro, com o seu
sistema de não ver nada, de passar desapercebido por junto de todos estes dramas
de família, não compreendesse a situação e insistisse para que ficasse.
lembrava-se da cena do bonde, quando ele quisera partir, e lamentava-se de não
ter então mostrado mais energia. Quanta coisa não teria evitado com isto! E
buscava um pretexto, um pretexto forte que não admitisse dúvidas. Veio-lhe
então à idéia uma viagem. E recordou-se que em sua vida acadêmica, lá no
Recife, estivera em contato e intimidade com muitos estudantes de S. Paulo que
não poupavam elogios a esta última cidade e à sua academia. Por vezes projetara
ir concluir aí os seus estudos. E resolveu-se então a dizer ao Pedro que
encontrava muita dificuldade em obter a promotoria e formara a intenção de ir
defender tese em S. Paulo, porque com esta nova carta aplainava todas as barreiras
e ser-lhe-ia fácil arranjar o que quisesse.
biblioFoi
no almoço, quando já tinha deixado lá em cima a bagagem pronta, que ele
formulou o seu projeto. Tencionava sair logo depois da refeição para comprar o
presente e voltar de tarde para entregá-lo e levar a bagagem. Ficaria até a
manhã seguinte em um qualquer hotel nas proximidades do Campo de Santana e
partiria pelo trem da madrugada. E foi, aos bocadinhos, preparando o terreno,
receoso de encontrar uns pedidos de desistência, querendo-os ao mesmo tempo,
excitado pela presença de Nenê, pensando ainda possível remover todas as
dificuldades e entrar francamente na sonhada existência de amores, que ele
declarou a resolução que tomara. Como todos ficassem calados ainda não
compreendendo bem o que ele queria, amontoava argumentos, atrapalhando-se
visivelmente, tornando-se cada vez mais metafísico à força de querer
explicar-se. E só no fim, quando ele não sabia mais o que dizia e procurava
safar-se daquela situação falsa em que se achava, concluiu o seu pensamento
dizendo que partia no dia seguinte e de tarde viria buscar as bagagens.
biblioEntão
o Pedro aprovou muito o seu procedimento e continuou na mesma atrapalhação a
ajuntar frases, não querendo dizer quanto estimava a notícia da sua imediata
partida. Ele também pôs-se a discorrer sobre as vantagens da carta de doutor. A
gente ficava mais independente! Os ministros tratavam com mais considerações. E
ia por aí afora, nem ele mesmo sabendo o que dizia, apenas dentre toda esta
prolixidade, destacando-se como um estribilho, os louvores à resolução tomada.
Fizera muito bem em não se sujeitar mais às maçadas das antecâmaras! Quando
voltasse com mais este título, a sua pretensão, tão fortemente apostilhada,
seria prontamente despachada. Se era uma futilidade aparente, o título de
doutor não deixava de influir poderosamente na vida prática! E o Pedro
continuava sempre na mesma toada, com receio de um silêncio durante o qual
arrebentasse de repente este segredo que todos sabiam e que cada qual fingia
ignorar.
biblioOs
outros mal podiam ocultar as alegrias que lhe vinham a flux dos rostos. De toda
esta lengalenga só tinham compreendido uma coisa - que o Marcondes ia mudar-se,
naquele mesmo dia, que logo de noite estariam a sós na grande intimidade da
família, sem esse estranho a perturbar-lhes as expansões. D. Augusta, a fim de
ocultar o seu contentamento, fizera-se ainda mais severa e cerimoniosa,
presidindo a mesa com o seu busto aristocrático de palaciana. Nenê tornara-se
francamente alegre, sorrindo para o filho, debruçando-se sobre a mesa para
examinar-lhe o prato e picar-lhe a carne mais miudinha. Sá Jovina, essa, nadava
em vanglórias. Sentia-se feliz e confiante nos seus préstimos. Tudo aquilo era
sua obra! Fora ela, a desgraçada que não tinha casa, quem o pusera pela porta
afora! E agora ia ficar sozinha, ali, sem nenhum outro estranho com que eles
repartissem a afeição que lhes sobrava! E ficaria ali, a cobrar o trabalho, a
pedir a Nenê que lhe pagasse o serviço, que lhe pagasse o sossego de corpo e de
espírito em que ia dormir daquela noite em diante!
Capítulo XXX
biblioA
tarde, nas proximidades da hora do jantar, o Marcondes voltara com uma carroça
na qual devia acondicionar as bagagens. Depois que esta partiu e cessou todo
aquele rebuliço de carregadores a descerem as malas, o rapaz dirigiu-se para a
sala de jantar, onde estavam todos reunidos, a fim de despedir-se e de entregar
o presente que trouxera. Resolvera-se por um relógio e corrente de ouro que
pretendia oferecer ao Pedroca mas do qual Nenê podia servir-se se o quisesse,
assustado com a idéia de ver a moça recusar o mimo no caso de lhe ser
diretamente ofertado. Naquela hora sentia-se fraco e acabrunhado, a caminhar pesadamente,
nuns passos ofegantes de condenado que se dirige à forca, Mais forte e
apetecível do que nunca lhe parecia aquele quadro holandês de vida familiar e
honesta no emolduramento artístico do grande salão de madeiras. E lamentava o
ter de abandonar todo aquele cantinho de mansidões em que por vezes sonhara
viver uma vida morna de tranqüilidade sem fim a deslizar-se suavemente nos
aconchegos bons desse ninho acolchoado.
biblioLogo
ao primeiro plano, como o vulto proeminente sobre o qual caíam fortemente os
efeitos de luz, nas suas carnações sadias e belas curvaturas sensuais,
destacava-se Nenê, a encará-lo fixamente, com um sorriso triunfal a
entreabrir-lhe os lábios carnosos e rubros levemente separados pela linha
branca da dentadura. Perturbou-se ao seu aspecto. Sentia-se pequenino e covarde
ante aquela mulher que escapara de possuir, que por tanto tempo fora sua em
pensamento, que tantas vezes sonhara abraçar no febril de uns sonhos de
voluptuosidade, em cujos olhos vira tantas vezes tremeluzir uma súplica de
amor. E este agora reaparecia-lhe mais forte e veemente, aumentado com os
impossíveis que o rodeavam, recrudescido por tudo quanto havia sorrido. Os
olhos se lhe umedeciam dolorosamente e, cada vez mais atrapalhado, reagia sobre
si mesmo, querendo aparentar fortalezas, disfarçar todas as emoções que lhe
enchiam sofredoramente o organismo inteiro.
biblioEntão
começou a despedida, dirigindo-se primeiro para o Pedroca, que lhe escondia a
cara, e a quem entregou a caixinha. Como a criança se voltasse e sorrisse, meio
admirada, veio-lhe um grande prazer e abriu a caixinha de couro da Rússia para
colocar ele mesmo a jóia. Abaixou-se, um joelho em terra para ficar à mesma
altura, e pôs-se a brincar com a criança que se fazia alegre e o abraçava,
contente de ter um relógio, querendo examiná-lo imediatamente, pedindo que lhe
mostrassem o bichinho que fazia tique-taque, correndo de um lado para outro a
fim de ostentar a todos o presente que lhe tinha dado o seu amigo grande. Foi
esse um momento de satisfação para o Marcondes. As fisionomias se tinham
desenrugado ante o aspecto risonho da criança, disputando-a, achando muita
graça em vê-la com a sua roupa de fustão azul-escuro por sobre o qual luzia o
ouro novo da corrente. Apenas, o Pedro perguntara-lhe se ele queria pagar com
aquilo a hospedagem, mas fizera-o numa forma de quem não estava zangado,
dando-lhe ensejo para agradecer as inúmeras finezas e atenções com que o tinham
tratado.
biblioE
depois de ter abraçado e beijado o Pedroca o Marcondes dirigiu-se para os
outros. Cumprimentou cerimoniosamente a d. Augusta, repetindo-lhe novamente os
agradecimentos que fizera ao genro, oferecendo-lhe os seus pequenos préstimos e
garantindo-lhe uma gratidão eterna, na grande hipocrisia da sociedade. A velha
senhora respondia-lhe no mesmo tom, alambicando a frase, dando-lhe uns jeitos
de quem tem trato de salão. Foi-lhe porém impossível continuar na mesma comédia
com sá Jovina a quem nem mesmo estendeu a mão. Em presença de Nenê portou-se
com bastante sangue-frio, encarando-a fixamente, agüentando-lhe o peso do olhar
e aparentando sempre a mesma jovialidade. O Pedro abraçou-o e, como lhe
voltassem as primitivas expansões de amizade, convidou-o para jantar. O seu
talher ali estava a esperá-lo! O outro recusou-se. Tinha prometido ir à casa de
um amigo que o esperava. E ele retirou-se com um grande cumprimento acompanhado
até o portão pelo Pedro e pelo Pedroca.
biblioLá
fora, quando se sentiu só, enxugou o suor que lhe pelejava a testa. Sentia-se
opresso caminhando vagarosamente, ainda não podendo compreender bem o que se
passara, a reconstruir aqueles vinte e tantos dias que levara em casa do amigo.
Reviu-se no primeiro dia, chegando ali pelo braço do Pedro, ainda fresco da
viagem, topando de repente com uma antipatia inicial, com um retraimento de
caramujo que se esconde na concha! Mais tarde, vencidas as primeiras
dificuldades, ele dominara na casa, rodeado de afetos e de carinhos! E, depois
desse apogeu de felicidades, a sua estrela começara a descambar! Agora saía
expulso dali por todo um processo inconsciente daquele organismo familiar.
Também a culpa era dele! Lá nos tempos bíblicos, e por um fato idêntico, o
outro tinha ido para a cadeia! Mas a lição havia de aproveitar-lhe! No camarim
da mulher de Putifar ele deixaria nunca mais a sua capa de José do Egito!
NÚCLEO DE PESQUISAS EM INFORMÁTICA,
LITERATURA E LINGÜÍSTICA