LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio
eletrônico
O Japão, de
Aluísio de Azevedo
Obra de
Referência
Biblioteca Virtual de Literatura
O Japão
Graças à recente vulgarização das crônicas
japonesas, dantes inacessíveis a todo e qualquer estranho, poucos segredos
haverá de virgindade inteira sobre o Japão remoto, e nenhum absolutamente a
respeito dos fatos políticos que no moderno determinaram a restauração
micadoal, podendo-se num punhado de capítulos despretenciosos dar exata notícia
do que foi aquele passado, outrora tão misterioso e sem fundo, e do que vem a
ser ao justo essa famosa revolução que num momento de frenesi histórico
derrocou, em nossos dias, um mundo insondável de tradições acumuladas durante
vinte e dois séculos de sigilo nacional. Isto, conquanto um pouco fora do meu
programa, faz-se indispensável para clareza do resto desta singela obra de
impressões pessoais; sem contar que o caso é de si bonito e novo, pois começa
poeticamente por uma lenda maravilhosa e risonha, palpitante de quimeras e
ficções divinas, e acaba na mais engravatada e burocrática monarquia
constitucional, com os seus ministérios de casaca bordada, com as suas
secretarias de Estado e os seus competentes amanuenses de calças puídas, e até,
acreditai se quiserdes! com o pálido bacharel apenas desabrochado da academia
sem outro ideal na vida além de apanhar por empenho qualquer emprego público.
Aluizio Azevedo
1o Capítulo
JIMMU TENNÓ
JINGÓ KOGÓ - YORITOMO
Um dia, o tonante Izanangui, que habitava com a formosa e
divina Izananmi o empíreo celeste, indiferentes ao mundo ainda descampado, teve
a fantasia de sondar com a ponta ciclópica da sua lança de deus as profundezas
do oceano e, ao recolhê-la d'agua, as gotas que escorreram e pingaram no mar
viraram-se numa ilha esmeraldina, Awaji, da qual os dois altos amantes,
cansados do céu impassível, fizeram o éden dos seus amores terrestres e
sensuais. Izananmi, meiga e fecunda, deu deles então a luz da vida as oito mais
bonitas ilhas de Dai-Nipão e logo, para as não deixar tristes e desertas,
produziu do seu ventre trinta e cinco kamis ou deuses já humanizados pelo amor
sexual feito por ela na terra. Dentre esta nova sucessão de Izananmi surtiu
Amateras, deusa do sol, a dona do divino espelho de Shinto, em cuja luz a sua
futura descendência mortal e sensitiva poderia, e nos escassos tempos e dias
aziagos do porvir, contemplar-lhe o rosto amigo e ler-lhe nas benignas feições
os desígnios providenciais. Amateras, cônscia do que lhe reservava o destino,
queria também ser fecundada, mas, orgulhosa dos seus incompensáveis encantos,
não achava entre deuses e kamis varão assaz luzido e belo para o amor do seu
corpo, e então, num singular enlace, concebeu um filho com os ardentes
carbúnculos do seu próprio diadema de princesa celestial. O filho, da têmpera
rija e cristalina das gemas que o geraram, foi posto na ilha de Kiuciu, que ele
povoou de heróis, vindo dois de seus descendentes, guiados pelo divino falcão
de oito cabeças, a atravessar o Mar Interior e a cair sobre o Japão central, de
pronto por ambos conquistado contra o poder dos maus deuses e homens rebeldes
que o ocupavam.
Um desses dois conquistadores, Iware Hito, foi o primeiro
soberano do Japão e morreu, com mais de um século de idade, 585 anos
antes de Jesus Cristo. Seu nome póstumo é Jimmu Tennô, como está na História e
com o qual abre o almanaque de Gotha a lista cronológica e genealógica dos
Micados e Shoguns de Dai-Nipão; ocupa hoje o trono o seu descendente em linha
reta Mutsu Hito, que e o 122o da divina série micadoal.
Assim, o atual Imperador, apesar da sua constituição
parlamentar, apesar do seu prosaico uniforme de General de Divisão, é nada
menos do que descendente direto da formosa Deusa do Sol e tem com certeza na
augusta fíbrina centelhas das luzes cambiantes do ilustre diadema seu
antepassado; sacrossanta procedência donde lhe deriva indiscutível supremacia
sobre todos os seus compatriotas terrestres e logo o direito absoluto de ser,
nem só obedecido e cegamente respeitado por eles como soberano, mas adorado como
divindade que é e como foram todos os seus consubstanciais antepassados.
O espelho por Amateras transmitido carinhosamente a seus
filhos, representa o símbolo da religião shintoísta, à qual não pode o Micado
renegar sem com ela renegar também a qualidade divina da sua própria essência.
O Shintoísmo é pois no Japão ainda hoje a religião do Estado; mas a religião
popular e verdadeiramente querida, talvez por mais folgada e vistosa, é o
Budismo, introduzida no país pelos coreanos no século sexto da era cristã.
Esta tão negativa preferência do Japonês pela religião
alheia levou hábeis casuístas, zelosos da divina procedência do trono, a
tecerem em épocas hoje longínquas sutis relações entre os dois cultos, aliás
bem divergentes na forma externa como no íntimo espírito; laços de origem e de
doutrina estabeleceram-se engenhosamente entre o letárgico Buda e a palpitante
deusa do sol, permitindo assim aos fiéis de ambas as seitas queimarem o seu
incenso e os seus papéis dourados facultativamente aos pés do altar de uma como
da outra divindade. E destarte conseguiu o trono, sem abrir luta com a nação,
ou antes sem insistir na luta começada, guardar íntegro o seu caráter divino e
permitir que o povo conservasse o seu culto pueril pelo espetaculoso Budismo,
alegremente exercido em paz ao lado da pobre e desguarnecida religião do
Estado. Buda no Japão ganhou um nome japonês: chama-se "Ammiddah".
De Jimmu Tennô até duzentos anos depois de Jesus Cristo
(860 da era japonesa) o Japão pouco mais seria do que uma extensa região completamente
bárbara e desconhecida, em luta constante entre as suas tribos de caráter
nômade e guerreiro, cujos vestígios ainda hoje se encontram puros ao extremo
norte da ilha de Yezo onde se refugiaram e habitam os cabeludos Amos e os quase
extintos selvagens Koropukgurus; mas por aquela época, a célebre imperatriz
Jingô Kogô, divinizada hoje com o nome de Hachiman Daibosatsu no seu templo de
Otokoiama, resolveu, sob inspiração do céu, organizar e ela própria conduzir,
acompanhada do seu fiel valido Take-no-utschi, uma grande expedição contra a
Coréia, então tributária da China que florescia à sombra da dinastia dos Thsin.
A expedição obteve o melhor resultado possível: ao fim de
três anos volvia à pátria a gloriosa imperatriz, senhora da vassalagem de três
reis vencidos com a submissão da Coréia. Logo porém ao partir para a guerra,
Jingô Kogô notara-se pejada e, como esta imprevista circunstância lhe podia
estorvar os planos militares, ela, invocando a proteção dos deuses, amarrou uma
pedra no ventre. Produziu ótimo efeito o talismã: o céu atende às suplicas da
guerreira e a gestação esperou miraculosamente os três largos anos da campanha.
Ao fim desse tempo a imperatriz, de volta aos seus penates, recolhe-se
apressada ao castelo sem atender a aclamação nem parabéns, corre ao quarto,
desaperta-se, lançando fora couraça e capacete, e deixa-se cair por terra nos
braços do marido a quem, entre gemidos de mulher, explica o caso maravilhoso. O
feliz cônjuge prosterna-se, agradecendo aos céus a graça e o benefício, e ela
entrementes dá à luz o príncipe Ojin, mais tarde divinizado com o título de
Deus da Guerra, a cuja alta influência foi logo, nem era de esperar coisa
melhor, atribuída toda a honra da vitória.
Com esta vitória sobre a Coréia, entra no Japão a civilização
chinesa, que no continente vizinho tinha já nessa época chegado ao seu máximo
desenvolvimento, assim nas artes, como na literatura e na moral filosófica de
Kang, conhecido no Ocidente pelo ilustre nome de Confúcius. E a imigração, que
logo se fez caudalosa, vem espontaneamente favorecer a ação da corrente
civilizadora; chamados pelos japoneses ou puxados uns pelos outros, começam os
chins a instalar-se no arquipélago fronteiro; "de uma só vez, diz a
crônica por intermédio de Georges Bousquet, dezessete distritos do sul
do Celeste Império arribam em massa para os verdejantes portos de Kiuciu";
o erudito Wang Ien, maior poço de ciência que possuía a Coréia, é atraído às
cortes do micado Ojin para iluminá-lo de perto, e com ele atravessa o Mar do
Japão um fator decisivo —o alfabeto chinês. O Japão começa a ler e a escrever e
não se forra a sacrifícios para aumentar o seu cabedal de luzes; acumula de
garantias e favores os artistas, artesãos e operários de valia, que logo acodem
avidamente da outra banda asiática de ferramenta em punho; chama a si
cabalísticos astrólogos, facultativos e alquimistas, carregados de misteriosas
retortas e alfarrábios. E com esta gente da sabedoria do tempo vem o segredo da
porcelana; vem a bússola; vem a indústria da seda; vem a arte de construir
casas de mais de um andar; vem, com as primeiras noções de astronomia, a
organização cronográfica e o calendário; vem a fabricação do papel e da tinta
de Nankin; vem o moinho de pilar o arroz, e as rodas hidráulicas substituem a
mó girada a braço vivo; vem o relógio com o seu maquinismo movido pela água;
vem a metalurgia, e descobrem-se minas preciosas e cunha-se a primeira moeda de
metal na terra dos micados; e finalmente vem a imprensa, e estampa-se as
literárias primícias japonesas, entre as quais o mítico "Kodziki", a
mais remota história escrita do Japão. Foi ditada esta história por uma
mulherzinha de fenomenal retentiva, a quem o Imperador Jimmu no século sexto
ordenara de guardar na memória todos os passos e episódios da vida pública
japonesa, transmitidos até aí de geração em geração pela voz dos trovadores e
menestréis ambulantes.
E o Japão acerta afinal o passo do seu progresso com o da
China e entra, por diante, a caminhar tão seguro e firme, que em breve já não
se contenta só com imitar os translados da mestra e vai por conta própria
modificando alguns deles para melhor e mais bonito; e já em 643 manda à
metrópole da sua civilização o primeiro embaixador que veio ao mundo, o Adão
dos diplomatas — Onono-Imokô, encarregado de regular a favor da sua pátria os
tributos de guerra, que a Coréia começava a saldar, e de estabelecer a
permanência de uma comissão japonesa na China para estudar ciências ocultas e
reveladas.
Todas essas maravilhas, perfeitas pelos nipons entre o ano
284 e o 703 da nossa era, só muitos séculos depois foram sabidas e exercidas
pela então agreste Europa, onde todavia por tal modo se desenvolveram e
apuraram que é agora a cultura ocidental, hoje rematada e extrema, que,
refluindo, vem civilizar de novo a velha terra do Oriente, de cujo seio
abundante Árias nasceu para gerar novas e mais formosas raças.
Rezam entretanto as crônicas indígenas que não foi por
mero espírito de generosidade que o governo chinês cedeu ao vizinho oriental a
sua civilizadora emigração; sobre a primeira leva de emigrados corre uma lenda
que não resisto ao desejo de contar:
A certo imperador da China, notável só pela assombrosa
estupidez e tartárica dureza de entranhas que o distinguiam, meteu-se em cabeça
escapar à lei fatal da morte e pôs logo em ação toda a sua autoridade para que
lhe descobrissem o segredo de perpetuar a vida. Imaginai daí o sangue que não
correu por causa disto! Mas Jokufu, médico e astrólogo da corte, propôs-se
afinal realizar o desejo do tirano, contanto que lhe facultasse este os meios
de obter um misterioso filtro para isso indispensável, e o qual consistia no
extrato de certa flor só existente nas ilhas vulcânicas de Nipão, flor de tal
melindre que, para nada perder da sua amaviosa virtude, tinha que ser colhida por
mãos juvenis de imaculada pureza. O imperador estava por tudo, autorizou o
médico a organizar o pessoal de que houvesse mister e abriu a régia bolsa para
todos os custos; pôs-se então o astrólogo em diligência e escolheu) um por um,
cuidadosamente, entre a parte melhor do povo, trezentos rapazes e trezentas e
uma raparigas que, de corpo e alma, lhe pareceram os mais perfeitos do país, e
com esta alegre companhia fez-se de velas para as plagas do Sol Nascente. O
monarca, se conseguisse afinal realizar por outro meio o seu sonho de vida
perpétua, ainda agora estaria à espera do facultativo, cujo fim era só escapar
à crueldade do déspota a quem servia, e tentar vida nova em país novo no meio
de uma alegre colméia de patrícios por ele escolhidos a dedo.
Fosse este ou não o ponto inicial da emigração chinesa, o
fato é que só com esta começa verdadeiramente a história do Japão, como é
também daí que começa e se vai estendendo pelos séculos novos a lenta e surda
elaboração homogênica da raça, até conseguir fixar o seu tipo, depois da eterna
luta etnológica, em que os elementos contrários se repelem entre si e os de
afinidade eletiva se combinam e se fundem para sempre. E assim, pouco a pouco,
de século a século, se vão destacando e acentuando as castas em volta de um
centro comum, espiritual e supremo, que é o micado; começam então as agrupações
sociais, a formação das classes: de um lado condensa-se o lavrador, que nunca
mais deixará os campos produtores e será o passivo e silencioso lastro da nação
inteira; de outro lado constitui-se o militar, a quem o agricultor sustenta,
confiando-lhe a guarda das suas terras lavradas, e o qual há de ser no futuro o
"Samurai", suscetível de enobrecimento pelas armas, e em que o
feudalismo vindouro encontrará cavaleiresco esteio para a sua violenta
expansão; de outro lado concentra-se a aristocracia de sangue, criada e mantida
tranqüilamente pelos fidalgos da família micadoal, parentes do imperador ou da
imperatriz, e de cujo núcleo privilegiado se formará a classe principesca dos
"Kugês", que serão conselheiros áulicos e pares do trono, gozando da
prerrogativa exclusivíssima de fornecer da sua descendência as mulheres do
soberano, legítimas como ilegítimas, com direito qualquer delas a dar herdeiros
à coroa. E desta nobreza consangüínea dos kugês, combinada com a outra militar
dos samurais, resultará o "Daimo", que já é o puro chefe feudal, com
senhorio e rendas territoriais e faculdade autoritária para lançar impostos,
estabelecer tenças, fortificar castelos, construir navios e ferir batalhas. E
uma vez retalhado o país em principados autônomos, começarão estes em viva
guerra a disputar entre si a supremacia, até que uma família triunfe,
aniquilando as outras, e crie o poder suserano do "Shogun", isto é, o
chefe dos chefes feudais, o generalíssimo dos príncipes militares, só dos
militares, porque quanto aos do conselho áulico, esses continuarão
exclusivamente sob a alçada espiritual do micado.
A original instituição do Shogunato, que redundou em cisão
do governo soberano é, a contar depois da conquista da Coréia, o marco mais
saliente da antiga história política japonesa. Até essa época, 1185, os micados
governaram unitariamente; oitenta e um se sucedem no trono, por
hereditariedade, sem interrupção, desde Jimmu Tennô até Antoku; dai para cá a
série continua firme e seguida, mas já ladeada pelo shogunato que se apossou do
poder militar e civil, deixando ao imperador apenas o espiritual e
convertendo-o num simulacro de Papa privativo do Estado, embastilhado por uma
etiqueta ainda mais inexpugnável que as muralhas do seu gocho imperial;
verdadeiro ídolo, que o povo devia adorar, mas sem ver, sob pena de morte ou do
esvazamento dos olhos, e para quem as estradas públicas eram rigorosamente
veladas, "Porque —diz o primeiro shogun na sua proclamação —a terra vulgar
e rasa é indigna de pôr-se em contato com os divinos pés do filho dos
deuses".
O primeiro shogun foi o grande Yoritomo, príncipe
inteligente e bravo, celebrizado em prosa e verso na literatura japonesa. Era
ele então o último vestígio da família Minamoto, cruamente exterminada pelos
Taíras. De todos os feudos, inimigos irreconciliáveis, que procuravam firmar,
cada um de per si, a sua hegemonia pelo aniquilamento dos rivais, só essas duas
casas haviam resistido, e o duelo final e decisivo que se travou entre elas
deixou os Taíras inteiramente senhores do campo. Yoritomo escapou
miraculosamente à carnificina; teria dez ou doze anos quando o resto de sua
família, sobejado à sanha das pelejas, fora passada pelas armas inimigas; fizeram-no
prisioneiro e iam matá-lo, apesar da tenra idade, quando uma mulher compassiva
intercedeu por ele, obtendo dos Taíras deixarem-no viver.
O último descendente dos Minamotos cresceu pois entre os
destruidores da sua estirpe, afagado pelas mesmas mãos que o fizeram órfão; mas
posto homem casou-se calculadamente com a filha de Hojô, de cuja influência
militar contava ele tirar partido. Recolhe-se com a mulher às províncias mais
remotas do Japão, organiza em sigilo como o herói do Rubicon uma coorte de bravos
e, depois de algumas vitórias fáceis, alcançadas só com o fim de engrossar as
suas hostes, arroja-se sobre os Taíras, bate-os em terra, cerca-os por todos os
lados, sem dar quartel a nenhum, e acaba por exterminar o que deles resta em um
decisivo combate naval nas águas de Daneira. Feito isto e repelida uma invasão
de mongóis que abalançava a independência do país, Yoritomo, declarando-se
Primeiro Vassalo do Imperador, a quem rende pública homenagem e em cujo poder
espiritual, só espiritual, jura defender de qualquer pretensão externa ou
interna, assume o posto de comandante em chefe das armas com o título de Bakufu
ou Shogun. Estabelece a sua corte em Kamakura, guarnece-a de artistas, poetas e
aprazíveis sábios, fundando nesse distrito uma segunda capital do Estado, sede
do poder civil e ao mesmo tempo o centro de operações das forças militares do
norte, em flagrante oposição à de Kioto, ao sul, onde, na imperial custódia do
espiritualismo sacro, ostraceava o pobre Micado com o seu conselho de mãos finas
e perfumadas, muito feitas à difícil execução da música religiosa, mas de todo
alheias ao manejo das armas de combate.
E eis aí como se deu a estranha cisão no poder soberano do
monarca, criando-se quase ao nível do trono a suserania shogunal, que aliás só
atingiu ao auge da sua autoridade anômala quatro séculos depois quando Ieiás
fundou de vez a sua dinastia e tornou a função hereditária, fazendo desde essa
época a Europa acreditar até há bem pouco tempo que o Japão mantinha dois
imperadores, como se vê pelos seus ajustes internacionais com ele firmados
dentro já do nosso século. Naquela época é já com efeito o shogun quem governa,
mas ainda é o imperador quem reina, pois que teoricamente nada pode decidir o
chefe militar sem a sanção do micado.
Yoritomo fez da sua capital uma cidade relativamente
importante e poderosa, cidade todavia de madeira e bambu que, depois dele e da
sua curta descendência direta, desapareceu substituída por infinitos arrozais e
canteiros de hortaliça; a estrada de ferro passa hoje por ela ligando-a a
Yokohama e Tókio; do seu passado fausto só perduram alguns ídolos e
reconstruídos templos. É aí, nesse ameno canto mal povoado, que está o famoso
Buda de bronze "Daibutsu" de que em lugar competente darei a
descrição. O fundador do Shogunato morreu em 1199, com cinqüenta e três anos de
idade, depois de quatorze de indiscutido e absoluto poder.
Com a sua morte desencadeia-se o feudalismo militar que
ele sistematizara, e desde essa época até 1573, tendo tido vinte e seis micados
e vinte e quatro shoguns, o Japão mal encontra alguns momentos de refolga entre
as implacáveis guerras civis que o dilaceram. O militarismo degenera em paixão
e invade às raias da vesânia, lavra por todas as classes, apodera-se de todos
os espíritos, e a nação inteira desfalece moralmente arriscando retroceder as
tontas para o barbarismo primitivo; desaparecem os artistas, desaparecem os
obreiros, a gleba corrompe-se e pega em armas; os poetas arribam da pátria com
as asas sujas de sangue, e até os sacerdotes, os meigos bonzos de crânio
raspado e túnica branca, dantes fechados na sua fé sinistra que lhes vedava
comer carne, beber licores e tocar em mulheres, endurecem de alma e fazem-se
guerrilheiros; os santuários do budismo convertem-se em fortalezas e arsenais;
o monastério de Higeizen, maior de todos, às margens quietas do formoso lago de
Biwa, com os seus quinhentos templos boscarejados de sagradas cliptomérias,
transforma-se em reduto inexpugnável, onde as súplicas do próprio Micado são
repelidas com duras blasfêmias e pedradas. Alguns japoneses, caindo de fome,
vendem-se então como escravos para as Filipinas e para a China, levando olhos e
alma consumidos de fitarem inutilmente o frio espelho de Amateras, a deusa-mãe
degenerada.
E nesse largo e negro período de decomposição geral que os
militantes samurais, homens d'armas, com direito a usar duas espadas e direito
a deixar crescer a barba, se desenvolvem e consubstanciam numa classe
privilegiada e turbulenta, podendo comer, beber e dormir pelas locandas e
hospedarias de todo o país sem obrigação de pagar os gastos, pronto sempre a
qualquer deles a castigar com a morte o kuli ou plebeu que ousasse contrariá-lo
no meio das suas correrias e aventuras soltas. Como desdobramento espúrio dessa
classe de fundo cavaleiresco em que, seja dito com justiça, havia por vezes mau
grado a dura escuridão dos tempos, altruísmo nacional e nobreza de sentimentos,
esgalhou a facção fragueira dos roninos, homens que não são já soldados, mas
nem por isso menos ardidos e belicosos; gente de arma encoberta e arbitrária,
mas com quem podiam os príncipes senhoriais contar em caso de guerra,
transformando em instrumento de ação política o que era desclassificado produto
do meio corrompido; fatores e auxiliares inconscientes, ora do bem, ora do mal,
vigoroso elemento étnico, cujo naturalismo heróico se dispersava à toa numa
exaltação brigalhona e constante, às vezes generosa, quase sempre porém
inconfessável e perversa, porque lhes faltava, a esses como aos seus
originadores, o sustinente ideal piedoso que continha na mesma época os seus
congêneres ocidentais, pondo ao lado da espada ensangüentada desses tempos
cruéis o lírio místico da fé cristã. Mas, nos curtos intervalos da guerra,
dessa guerra civil que durou perto de quatro séculos; o ronino volvia-se
salteador e pirata, ao passo que o samurai, depostas transitoriamente as duas
espadas, ia para o campo administrar a própria fazenda e criar os filhos para
dá-los depois ao seu príncipe e senhor, ensinando-lhes desde o berço que os
deveres da vida militar são carga pesada como as armas e que a morte nas
batalhas é leve como a pluma.
Esta desoladora situação, em que o país esteve prestes a
desfazer-se em sangue, e em que apenas prosperaram os artefatos e produtos
industriais concernentes à arte da guerra, só veio a ceder, esbarrando de
encontro à ação bravia de três grandes vultos consecutivos: Nobunaga - Taiko
Sama - Ieiás, e dissolvendo-se enfim de todo contra a maquiavélica resistência
do último destes, que é incontestavelmente o maior homem do Japão medieval,
como por si mesmo julgará o leitor, se tiver a paciência de ler o seguinte
capítulo.
2o Capitulo
NOBUNAGA - TAIKO~SAMA - IEIAS
Nobunaga, filho do príncipe de Owai, é um espírito claro e
forte, porém ímpio, servido por uma vontade enérgica e resoluta. Bate em 1573 a
poderosa família Achikanga, que então mantinha no poder o seu décimo quinto
shogun por ela imposto — Yochi Aki, e alça mão das rédeas do Estado, fazendo-se
"Daijin" ou Grande Ministro do Interior.
Como subiu em luta aberta com os daimos, cuja supremacia
militar tem em mira destruir em favor do poder áulico, desiste da eleição
shogunal, mas também não consente que elejam outro, deixando vago esse cargo
que depois de Yoritomo não havia sofrido interrupção, e entra a governar em nome
diretamente do Imperador, a quem assim consegue soerguer um pouco do fundo
rebaixamento político em que o tinha deixado o feudalismo militante.
Uma vez seguro do poder não são todavia os daimos a sua
primeira preocupação, mas sim a milícia religiosa; é que os budistas,
riquíssimos e cheios de prestígio nos seus alcáceres monásticos, com vassalos
próprios colhidos entre os mais terríveis samurais e roninos, se haviam
constituído em uma força de guerra superior à dos próprios príncipes feudais,
porque a seu favor laborava o espírito religioso do povo. Ora, Nobunaga
compreende que, governando em nome do Imperador e sendo o Shintoísmo a religião
do Estado, seu poder não passaria de ficção se persistisse de pé a arrogância
dos sacerdotes budistas; para firmar pois o princípio da sua autoridade e o
prestígio moral do governo, era preciso antes de mais nada aniquilar a
supremacia dos bonzos; empresa que a todos se afigurava a mais louca das
quimeras, já pelas convenções espirituais estabelecidas pelo trono entre as
duas religiões dominantes, já pela boa organização das forças de que dispunham
os budistas, já pelo mau efeito que produziria nas camadas populares o caráter
sacrílego do sucesso, e já enfim pela solidariedade que existia entre os
sacerdotes de Buda e certos príncipes poderosíssimos do norte.
Foi então que Nobunaga, em má hora para os seus patrícios,
pensou em tirar partido do Cristianismo que por esse tempo prosperava
exuberantemente ao sul do Arquipélago, depois das suas tentativas quase
frustradas no continente chinês. O Japão havia sido descoberto, acidentalmente,
pelos portugueses em 1542, como explicarei adiante; São Francisco Xavier,
acompanhado de frades Agostinianos, Dominicanos e Franciscanos, tentara
desembarcar em 1549 no porto de Kaugosima; repelido, seguiu para Yamaguchi e
depois para Kioto, conseguindo afinal estabelecer-se ao sul com o seu humilde
exército de missionários. Foi tal o bom êxito dessa piedosa campanha, reforçada
mais tarde pelos jesuítas espanhóis, foi tão fecunda a catequese, que, na época
de Nobunaga, trinta anos depois do início dela, havia no império duzentas
igrejas católicas e meio milhão de convertidos, entre os quais principescas
famílias de Kiuciu e muita gente da melhor nobreza que chegou a chamar por sua
conta novos missionários europeus; tanto assim que em 1581 o príncipe Sendai
enviava ostensivamente uma embaixada a Felipe II de Espanha, e aos papas
Gregório XIII e Sixto Quinto, apresentando-lhes os votos dos católicos do
Extremo Oriente.
Pois bem, Nobunaga, político hábil e homem cético, achou
meios de chamar a si os cristãos novos e com estes conseguiu levantar as forças
de Kiuciu contra os budistas, assaltando logo, sem dar tempo aos daimos de
acudirem, o monastério de Heijeizen que, depois de formidável resistência, foi
tomado e reduzido a cinzas com o despojo dos que o defendiam. Em seguida, antes
que lhe esfriassem as armas, volta-se para o de Hang-wanji em Osaka, onde se
praticava a seita Chichiu; neste porém volvia-se o feito muito mais duvidoso, o
monastério tinha cinco redutos exteriores, guarnecido de fossos e valas; e não
perdera a ocasião de engrossar as suas forças enquanto o outro era atacado. A
primeira investida foi como se os assaltantes se abismassem num sorvedouro
infernal, os sitiadores só tiveram notícia do resultado dela vendo descer as
águas mortas do canal um enorme e sinistro junco carregado até as bordas de
orelhas e narizes decepados; era tudo que voltava da expedição. Nobunaga
insiste; ataca de novo e de novo é repelido, e afinal, à força de atividade e
pertinácia, logra vencer o primeiro reduto, e depois o segundo, o terceiro,
todos os outros, e penetrar enfim no coração ardente da alcaçova e escala a
formidável cidadela, que arrasou no meio de uma hecatombe de vinte mil
associados, bonzos, samurais, roninos, servos e concubinas.
Destruída a resistência budista foi fácil ao temeroso
general fazer o mesmo com a dos daimos, cujas tentativas de reação conseguiu
logo ao nascedouro afogar em sangue, podendo ele depois disso dedicar-se de
corpo e alma ao seu grande plano de reorganização feudal para dar ao Império a
unidade que lhe faltava e remodelá4o pelo seu peculiar ponto de vista
cesariano, talvez, quem sabe? na intenção de, arvorando-se ditador, alçar-se
com o próprio cetro pelo qual se batia agora; mas, ao lançar em 1582 os
primeiros alicerces do vasto edifício, caiu para sempre atravessado no coração
por uma flecha que ninguém nunca descobriu donde partira.
Sua obra porém não morreu com ele: Nobunaga contava
desaparecer de um momento para outro, e havia preparado para secundá-lo um
homem cheio de vida e perfeitamente na altura da situação, um herói que ele
inventara, um cabo de guerra, sem família e sem títulos, que fora seu
palafreneiro, seu "betto", e de quem o General nos últimos combates tinha
feito, nem só seu ajudante de campo e confidente nos segredos do Estado, mas
depositário dos seus futuros planos políticos e por eles responsável.
Entra pois em cena o extraordinário Hideyochi, conhecido
na História pelo original cognome de Taiko-Sama.
Nada tendo por si que justificasse a ambição, além do
prestígio pessoal, começa por voltar-se contra os descendentes do seu próprio
benfeitor, usurpando-lhes pelas armas o direito de sucessão no governo e
obrigando-os ao extremo de rasgar o ventre para esconderem na morte voluntária
e nobre a infâmia da derrota. Ato continuo, lança-se como um raio para as
províncias de Nagato, cujos príncipes e daimos se haviam levantado a
contestar-lhe o poder, e sobre eles investe com tal fúria que é de um assalto
que os leva de vencida, mandando logo incendiar estâncias e castelos, e varrer
a ferro e fogo os campos arrasados.
Ninguém pode imaginar a que ponto de vertigem heróica
chegou nessa época entre os japoneses o desprezo pela vida. Enquanto Taiko-Sama
é ruidosamente aclamado em triunfo na frente das legiões vencedoras, que
arrastam os prisioneiros escravizados e expõem na ponta dos chuços quarenta mil
cabeças de vencidos, Chibatá, um dos melhores e mais altos samurais de Nobunaga
e que, fiel à descendência do extinto chefe, se recusara reconhecer a
autoridade do usurpador, vê-se encurralado com a mulher e alguns últimos
companheiros de desgraça no seu castelo de Fukui no principado de Hechisen, sem
outra expectativa além da rendição do inimigo que o não poupará de certo. Não
se aflige entretanto; ao contrário, arma um festim e durante toda essa sua
última noite, ordena que em volta dele fervam as danças e as cantigas sensuais
das "gueichas". Ao raiar da aurora, em meio do prazer, Chibatá enche
pela vez extrema a taça com que vai celebrar o brinde fatal, o adeus para
sempre; antes porém de levá-la aos lábios e de entoar o cântico da morte, chama
junto a si a esposa e diz-lhe, pousando-lhe uma das mãos na cabeça enquanto com
a outra empunha o copo fatídico:
— Tu, minha flor, como mulher, podes sair do castelo;
entre as gueichas e bailadeiras ninguém te reconhecerá... Não tens, como eu e
os meus companheiros d'armas, o dever de morrer cá dentro... Vai! Dou-te com
gosto a liberdade, e desejo que no domínio de outro homem possas encontrar
melhor sorte e prosseguir na virtude de que me deste todas as boas mostras.
Vai! Podes sair, adeus!
Ela, por única resposta, toma-lhe das mãos o copo que ele
havia enchido e é a primeira a romper o cântico funerário, o hino dos vencidos
com honra.
O coro responde e todos se prosternam para morrer.
Calam-se de novo e, no meio do lúgubre silêncio, acrescenta a esposa
ajoelhando-se aos pés do marido:
— Meu senhor, não me tires o direito de findar com orgulho
ao teu lado; morta pelas únicas mãos a quem me devo...
Abriu o kimono e apresentou o colo nu: ele, desviando os
olhos, arranca da espada e fere-a no coração. Depois, voltando-se para os mais,
gritou:
— Yake - haraii!
Era a voz para o incêndio e para o suicídio geral, de modo
a que não encontrasse o inimigo, no meio das cinzas ensangüentadas, nenhum
troféu nem despojo com que pudesse ornar a vitória.
Taiko-Sama, que em virtude da sua baixa procedência não
podia ser eleito shogun, nem mesmo grande ministro ou chefe de conselho, faz-se
Administrador Geral, título que é precisamente a tradução daquele cognome com
que ele passou à História; mas depois, submetendo à mão armada os príncipes
feudais e jungindo ao Estado a função das diversas seitas monásticas, dilatou por
tal modo o seu predomínio político, e por tal modo se fez senhor do país
inteiro, que, em 1586, impôs à Corte Imperial que o elegesse Kuambaku, isto é,
nada menos que — Vice Imperador.
Esse cargo, até aí honorário e só preenchido pelos membros
superiores da família micadoal dos Fujiwara com direito simultâneo à
presidência do conselho privativo da coroa, tornou-se então efetivo e de
poderes amplos, pois de um lado, aos olhos dos senhores feudais, representava a
soberania aristocrática do trono como intermediário entre este e a nação, e do
outro, perante o monarca, representava a nobreza armada e autoritária dos
daimos que em Taiko-Sama reconheciam o seu chefe militar.
A golpes de energia, cada vez mais pronta, o Vice
Imperador estabelece a paz em todo o território nacional e, a poder de boa
administração, consegue reorganizar a agricultura, desenvolver a indústria e
lançar as primeiras bases do comércio exterior, que ainda não existia; mas,
precisando por cálculo dar expansão ao elemento militar, sobreexcitado e
aguerrido durante tantos séculos de luta civil, concebe o gigantesco plano de
conquistar para o Japão a China e a Coréia, a pretexto de que já não pagavam
impostos pela imperatriz Jingô Kogô; e, durante cinco anos, prepara-se para a
formidável empresa, com grande contentamento dos daimos e dos samurais. Levanta
fortificações; organiza esquadra; disciplina admiravelmente as forças de terra,
e afinal, em 1592, comandando ele em pessoa, atira-se com oitenta mil homens
sobre o continente asiático, atacando a Coréia pelas ilhas Iki e Tsusima.
Feliz em todas as batalhas, tendo já subjugado três partes
da península coreana, cujo rei fugiu diante dele, invade a China e logo vê,
pelo bom êxito da primeira investida, sorrir-lhe no horizonte da guerra a
vitória completa. Senhor e cônscio da sua fortuna que nunca desmaiara,
dispõe-se, num alegre frenesi de ambição e glória, a ir, com as suas próprias
mãos, fincar nas venerandas muralhas de Pekin o triunfante guião do Sol
Nascente. Condu-lo a sua estrela — não recuará! O colosso asiático retrai,
treme, dominado pela vontade irresistível desse homem que nasceu das próprias
armas e como as armas se arroja. O grande Celeste Império vai, para
sempre talvez, cair em poder da menor e mais atrevida nação do Oriente! Taiko-Sama
concentra as suas forças já multiplicadas, reúne em volta de si os seus
primeiros generais; nesse momento cíclico porém, 15 de setembro de 1598, uma
febre cerebral o acomete em pleno conselho deliberativo, prega com ele em
delírio ao fundo da sua tenda de campanha e dentro de uma hora o mata.
A junta regencial que ele havia deixado a governar o
Império, ao saber do ocorrido, dá ordem às forças japonesas de recolherem
incontinenti, sem mesmo negociar pazes com a China, abandonando desse modo uma
campanha começada sob os melhores auspícios e abrindo mão do que já estava
conquistado sobre a Coréia. Dizem uns que houve, nessa estranha medida da
Regência, perversa intenção de quebrar a fama póstuma do feliz dominador, alvo
de muita inveja e ódio entre os seus próprios ministros; outros afirmam até que
estes contavam já com o fato, pois em segredo estava de longa data resolvido o
envenenamento do chefe.
Taiko-Sama, entretanto, além do grande nome que deixou
como general estratégico e valente, goza na história do seu país da reputação
de exímio administrador; alguns comentadores estrangeiros o comparam a Henrique
IV, que nessa mesma época sufocava em França as revoluções da Liga. Entre
muitas outras coisas, a pátria deve-lhe os trabalhos de fortificações em Kioto
e Osaka, o aperfeiçoamento da indústria da porcelana e o desenvolvimento do
comércio holandês, único que logrou fixar-se no país apesar dos vexames que em
seguida sobrevieram. Se Taiko-Sama conseguisse viver mais alguns anos, é
natural que o Japão desde esse tempo entrasse em relações com o resto da
Europa, pois isso fazia parte dos seus planos políticos herdados de Nobunaga,
planos totalmente destruídos pelo homem fenomenal que os sucedeu.
Sim, o maior vulto, maior e derradeiro, dessa limitada
galeria de homens típicos do Japão antigo, vai surgir agora em Ieiás,
levantando um novo marco na vida histórica da pátria e separando a sua época
das épocas anteriores. A esse guerreiro, estadista e legislador a um tempo,
caberá a glória de levar a efeito com um golpe decisivo o vasto plano de
unificação feudal, concebido pelos seus dois grandes antecessores, e
transubstanciar definitivamente a alma da nação inteira, moldando-a pela
harmoniosa complexidade do seu próprio talento original e criador.
Espírito sutil e forte, pela face contemplativa do gênio
que o animava, mas sem o menor escrúpulo sentimental como todo homem de ação.
Ieiás apresenta o arquétipo da ambição inflexível e regrada e do egoísmo
político levado à transcendência de ideal filosófico. E de alta linhagem, vem
da família Tokugawa, colateral dos Minomotos donde procedeu Yoritomo, pertence
por conseguinte à divina raça dos Micados. E pouco antes se havia unido a uma
irmã de Taiko-Sama, a qual desdenhou depois por infecunda.
Esse homem sem entranhas, mas que conhecia profundamente o
coração humano, pode ser chamado, a justo título, o Confúcius do Japão, pois
dele, e só dele, saiu o célebre estatuto constitucional das "Cem
Leis", sucinto e sábio código que dirigiu o espírito público de sua pátria,
desde esse rente começo do século XVII até a contemporânea restauração micadoal
de 1868, e com cujo vibrante feixe de sentenças mosaicas conseguiram seus
descendentes, em quem aliás, à exceção do primeiro filho, não houve um só capaz
de secundá-lo, governar a nação durante dois séculos e meio de paz fecunda e
esplêndida prosperidade transformando-a, do grupo anárquico de sesmarias
feudais que era, em um Estado homogêneo, de caráter próprio e distinto, capaz,
dessa era em diante, de impor-se ao mundo inteiro pela pureza original da sua
arte, pela inexcedível perfeição da sua indústria, pelo requinte da sua afável
cortesia e pelo nunca desmentido altruísmo patriótico dos seus heróis.
Para governar teve que bater-se com os Príncipes do Sul e
do Oeste coligados contra ele, e jamais nenhum outro usurpador japonês, que
este também o foi empossando-se do direito hereditário de Hideyori, filho de
Taiko-Sama, encontrou para galgar o Poder tão forte oposição pelas armas; mas
nessas refregas, em que seus inimigos têm em pé de guerra cento e vinte e oito
mil homens e ele apenas setenta e cinco mil, Ieiás realizou tais prodígios de
valor, que os seus próprios vencidos o aclamaram entusiasmados.
Depois de uma campanha de guerrilhas e escaramuças,
fixou-se o combate decisivo para o dia 1o de outubro de 1600.
As duas legiões tinham de encontrar-se no extenso planalto de Sekigahara, na
província de Mino. Avistam-se ao raiar daquele dia e avançam de longe uma
contra .'. outra com igual denodo. Os Príncipes de Satzuma comandam a direita
dos Coligados, Konichi o centro, e Tchidá, um cristão, dirige a esquerda,
levando no loudel uma cruz vermelha sobre o peito; Ieiás faz o comando em chefe
das suas forças e não tem consigo outro general.
Disparam-se os primeiros tiros de bombarda; começa a
fuzilaria de arcabuzes; mas nesse instante cai dos céus um terrível nevoeiro, e
estende-se como lúgubre mortalha sobre o campo da peleja, cegando todos os
combatentes. Os Coligados param, perturbam-se; Ieiás porém avança firme por
entre a espessa bruma, recomendando aos seus de não fazerem alarme, e
rojando-se que nem o tigre quando fareja a presa descuidosa.
Rasga-se num relance o nevoeiro de alto a baixo, o sol de
novo inunda os arraiais, atroa os ares o alarido bélico, e os Coligados
estremunham, dando de surpresa pela frente com o inimigo, que feroz se atira
sobre eles. Começa logo então, desordenadamente, a luta corpo a corpo, numa
confusão estrepitosa de homens, armaduras, cavalos e carretas, que se arrastam
de roldão com um só impulso. Ninguém mais se entende; cruzam-se os ferros,
partem-se azagaias, arrancam-se punhais; é cara a cara, e a pulso a pulso que a
luta se incendeia.
Meio dia. O sol a pino e a vitória indecisa. Um momento
mais de resistência dos Coligados e os Tokugawas terão de ceder à desproporção
do número. Ieiás pressente a derrota; voa num galope à retaguarda, toma a
frente das forças de reserva e avança com elas, empunhando o seu branco pendão
de rosas malvas. Ruflam metálicos tambores à vista dos brasões do Chefe;
tam-tans retinem; os búzios ressoam à laia de trombetas; maior levanta-se o
clangor das hostes, e, de um arranco, Ieiás rompe as fileiras dos daimos
assombrados. Quem pode resistir a um tal arranco? "Decepar! Decepar!"
grita ele aos seus guerreiros, dardejando a alabarda fumegante de sangue. E os
fracos fogem; e os fortes apunhalam-se, para não deixar essa honra aos
inimigos.
Ao declinar do sol, Ieiás era senhor do campo, distribuía
postos militares e, pela primeira vez no Japão, armava, sob a sua espada,
cavaleiros os samurais que se haviam distinguido na batalha. Para essa nova
formalidade, semente de uma nobreza submissa com que ele havia de
engrandecer-se na paz, pede o seu capacete emplumado, aparelha-o na cabeça e
diz, ao abrochar-lhes os loros de seda escarlate:
— É só depois da vitória que um General deve ornar-se com
este festivo toucado de gala!
Na manhã seguinte fez a sua entrada triunfal em Hikone e
depois em Osaka, no meio da aclamação unânime de vencedores e vencidos. Os
príncipes do Sul e do Oeste, de cabeça baixa, humilhados, franquearam-lhe os
seus domínios em troca do indulto, que ele, contra a norma até aí estabelecida,
cedeu com uma demência já de perfeito soberano em que pese a desgraça dos seus
súditos.
E a partir desse momento, o herói de Sekigahara ficou
sendo, se não logo de direito, mas incontestavelmente de fato, dono e senhor
absoluto do Japão. Em 1603 restabelece o Shogunato, cujo posto assume,
convertendo-o agora em poder hereditário, e criando assim, ao lado da velha
dinastia dos Micados a nova dinastia dos Tokugawa. A Suserania Shogunal deixa
de ser desde então revogável pela Coroa e dependente da vontade dos daimos,
para se arrogar foros de pura autocracia aristocrática, perdendo de todo o
primitivo caráter subalterno de intermediário entre a Nobreza militar e o Trono
místico. Não podendo Ieiás tomar do Micado também o título para si, inventa o
de Tai-Kum (Grande, Primeiro ou Maior Senhor), o qual, em boa lógica, não passa
de um sinônimo do outro. E assim se consumou essa estranha duarquia que, duzentos
e cinqüenta anos depois, tanto enleio e perplexidade veio a produzir nas
relações internacionais do Japão. O Império, sem deixar de ser império, passou
a ter duas autoridades paralelamente heráldicas e majestáticas, igualmente
supremas e respeitável — o Micado, a quem a nação inteira venerava como um Deus
e o Shogun, a quem ela temia como um Rei absoluto; as grossas rendas do Estado
logo se derivaram para as mãos deste, não indo para as do outro mais que as
sobras, porque ao primeiro cabia, com os seus punhos fortes; prover todas as
ineludíveis e ásperas coisas cá da terra, ao passo que o segundo, de palmas
finas e defumadas, tinha de haver-se apenas com as boas e complacentes coisas
do céu.
Triste nobreza é essa, da consangüinidade requintada e
puída pelos séculos, que assim desfibra o organismo de uma geração até
reduzi-lo àquele mítico estado de semideus, ambígua e desclassificada condição
social, inteiramente desaproveitável para o menor dos interesses da vida
coletiva. ~ o que se deu com essa ilustre descendência de Jimmu Tennô, homem
tal que tomou a terra dos Ainos e fez dela o seu Japão divinizado, haveria, com
o correr dos tempos, de acontecer fatalmente à própria sucessão dos Tokugawas,
cujo último príncipe hereditário, se não houvera degenerado de todo em
contemplativo místico, seria logo em seguida à Revolução, como adiante
verificará o leitor, o poderoso Rei de um Estado independente e novo, que os
seus prosélitos, fiéis ao testamento de Ieiás, lhe tinham preparado na vasta
ilha de Yezo, ao verem em 1869 perdido para sempre no resto do Império Japonês
a metade do Trono que lhes legara o fundador da dinastia.
O Tai-Kum não quis deixar a geração da sua Casa sem um
frisante subtítulo como com aquele não deixou a si próprio, e deu-lhe o de Seitaishogun
(Sei - Tai -Shogun), que é já nada menos do que um programa político
desdobrável em questão social. Sei era, em longínquas datas o nome do
General encarregado especialmente de expulsar do país os bárbaros invasores; Tai
já o leitor o sabe, quer dizer "Grande" e Shogun, não o ignora
tampouco, "Comandante Geral das forças militares"; podendo-se
pois traduzir aquele sobrenome de uma só palavra por toda essa frase:
"Generalíssimo destinado a expulsar do Japão os estrangeiros". E é
com efeito desde essa transitiva época que se converte em feição nacional, e se
arvora em fórmula do Governo, o nativismo japonês, que até aí não passava de um
frouxo e curto reflexo produzido pelo da China. O sistema político de Ieiás
baseia-se na mais estreita e orgulhosa reclusão; o país deve fechar-se
hermeticamente contra o resto do mundo e só contar consigo para viver.
Diz um dos artigos do famoso código: "Quando de todo
não for possível evitar a presença de quaisquer bárbaros no Império, convém
nesse caso tratá-los com a máxima reserva e fria polidez, cuidando ao mesmo
tempo de intimidá-los logo com a exibição de respeitável aparato bélico, de
armas esplêndidas e bem disciplinadas, e de forte e feliz aparência da mais
brilhante prosperidade; dar-lhes por favor o que com boas maneiras peçam para
as suas urgentes necessidades pessoais, mas deles não aceitar, sob pena de
castigo, nada em que transpareça sombra de obséquio ou sinal de gratidão e
estima".
E o legislador decreta a pena de morte para o súdito
japonês que se afastar das águas territoriais da sua pátria, compreendidas
dentro de um tiro de flecha; estabelece a forma que devem ter os barcos
mercantes, cortando-lhes a proa em linha reta, de modo a que não possam
alongar-se das costas do país; proíbe toda e qualquer navegação que não seja a
de cabotagem, e começa a pensar nos meios de pôr barra afora os estrangeiros
que se acham estabelecidos no arquipélago; ideal mais tarde realizado, exceto
com o Holandês, único de quem se não revoltou o brio contra as duras e
humilhantes condições impostas pelo Governo. Ieiás, ao contrário do que fez
Nobunaga, que se ligara aos Jesuítas portugueses e espanhóis, vexa-os e
persegue-os sistematicamente, obrigando alguns a fugirem para Formosa e para a
China, não ainda por motivos religiosos, mas porque tiveram aqueles a
leviandade, neles com efeito imperdoável, de envolver-se na política do país.
Pouco depois estalou a ordem de expulsar para todos os
missionários; mas Hideyori, filho de Taiko-Sama, de cujas mãos Ieiás usurpara o
poder, abraça a causa dos católicos, com eles engrossa as forças de que
dispunha; e faz do seu castelo em Osaka um árdego centro de resistência contra
o Governo. O Tai-Kum, acompanhado por Hidetada, seu filho mais velho e
intransigente secundador, corre ao lugar da sedição e, depois de bloquear e
tomar a fortaleza, redu-la a cinzas. Hideyori, ao lado da mãe, desapareceu com
esta, devorados ambos pelas chamas, e os que escaparam de morrer na peleja ou
no incêndio, caíram no poder do vencedor. E então, como podiam sobrevir novos
pretendentes que, à semelhança do filho de Taiko-Sama, se ligassem aos
católicos; e, como Ieiás queria opor-se a todo o custo a qualquer troca de
idéias com os estrangeiros e cortar pela raiz as relações com a Europa, resolveu
dirimir esse último estorvo dos seus planos e, depois de fazer passar à espada
os prisioneiros, ordenou a matança geral dos cristãos; poupando apenas aqueles
que abjurassem e em público tripudiassem sobre um crucifixo, como fizeram os
holandeses.
Muitos católicos, porém, preferiram deixar que lhes
despedaçassem o corpo a terem de despedaçar a alma pelas próprias mãos e,
afrontando o furor do déspota, agruparam-se foragidos, e ganharam, sem
esperanças de salvação terrestre, os rasos sertões desse país feito de
litorais. O descaroável Tokugawa lançou-se pronto no encalço deles, e os
míseros acossados, impelidos pela aflição, concentraram-se nas ruínas do
castelo de Chimabara, em Nagasaki, enorme pardieiro ao abandono, perto do
golfo. A resistência era impossível, mas a angústia e o desalento viraram-se em
força cataléptica, e o Tai-Kurii teve de lançar mão da artilharia e dos seus
veteranos de Sekigahara para tomar de assalto aquele pobre baluarte do
desespero. Uma onda voraz de lanças acirradas rebenta dentro do arraial em
ruínas, e trinta e sete mil cristãos são trucidados, enquanto outros, fugindo
mal feridos às férreas garras do inimigo, arrojam-se das altas fragas do
Pappenberg nos abismos do golfo.
Foi completa a exterminação dos apadrinhados da Cruz, e
com o sangue desses mártires secou para sempre na terra do Extremo Oriente a
árvore do Cristianismo, já então frondosa e aromática, e à sombra da qual
haveria sem dúvida de germinar; eflorescer e frutificar com o tempo o que hoje
falta à nação japonesa para ser uma nação perfeita; malogrados bens, cuja
semente todavia fora posta naquela mal-aventurada terra pela mão piedosa de São
Francisco Xavier, o imortal Apóstolo das Índias.
E Ieiás, uma vez fechado e mais os seus compatriotas
dentro do torrão nativo, demarca e traça' com mão segura e taumaturga lucidez
de espírito, a linha de conduta para essa nação que já era inteiramente dele,
não escapando ao seu encabrestante código das "Cem Leis" nenhuma das
classes e sub-classes, nem mesmo as excrescências sociais, como por exemplo o
enxurro dos roninos que ficaram reduzidos à triste condição de espiões
políticos, porque no entender do Confúcius japonês, o segredo de bem dirigir um
Estado consistia principalmente em saber utilizar com vantagem todas as
moléculas, boas e más, de que se constitui o complexo organismo de um povo. Eis
o que, com o seu pitoresco estilo, diz... (a página do manuscrito perdeu-se!).
Aplique cada qual a si próprio este principio e só não será feliz quem não
quiser, pois do saber viver nasce o sorriso, e do sorriso nasce a fortuna. A
vida é sempre um útil instrumento de felicidade; o caso esta em saber servir-se
dele." Depois de disciplinar hierarquicamente a população, fixar em regras
os limites dos canteiros sociais, traçando o lugar preciso de cada grupo, de
cada família, de cada indivíduo, com a tábua rigorosa dos seus direitos e dos
seus deveres, Ieiás penetra com a lei pelo íntimo da vida privada e regula como
se deve comer, beber e até sentir. Ao Samurai, entre outras muitas coisas,
recomenda ele: "Não consinto que a mulher se envolva no ato mais
insignificante da tua vida pública, como por tua parte não intervenhas no seu
governo doméstico. Não deve a galinha vir cá fora ao terreiro cantar ao romper
d'alva, nem deve o galo meter-se no ninho a chocar os ovos. Esta é a lei."
Firma quais hão de ser daí em diante os recíprocos deveres
entre as duas clássicas Nobrezas que encontrou estabelecidas, e quais as novas
relações que devem existir entre a Corte micadoal e o Shogunato; conserva as
regalias dos Daimos e assegura-lhes o senhorio feudal, exigindo porém que
venham todos eles periodicamente a Gotten Yama para testemunhar ao Shogun a sua
fidelidade política; faz o elogio e multiplica as honras da classe militar,
agora regularmente constituída pelos Samurais, mas impõe que ela se não arme
senão à ordem do Shogun e só em caso de guerra por este oficialmente declarada;
e finalmente cria uma nobreza à parte, exclusivamente sua, dá-lhe senhorios e
direito de levantar castelos; faz enormes concessões de principados
territoriais à sua descendência viva e por nascer, e, à semelhança de Yoritomo
em Kamakura, estabelece uma nova capital em Yedo, que mais tarde devia
chamar-se Tókio.
Quanto ao Imperador, invulnerável símbolo, ligado por mil
vínculos morais à própria alma do povo e superior a todas as lutas partidárias,
vendo o Tai-Kum que jamais poderá afundá-lo na terra, nem varrê-lo para os
lados, toma o expediente de despedi-lo para o céu; quer dizer, enquanto com uma
das mãos lhe cerceia até o extremo a autoridade política, chegando a vedar-lhe
à Corte intervir nos negócios do Estado, com a outra lhe dilata exageradamente
o prestígio divino, e faz dele a sumidade metafísica e ultra-espiritual do Governo,
transformando-lhe o trono em um altar sem Deus, a submissão e a fidelidade dos
seus súditos em um culto religioso e vago, balbuciado apenas por cerimônias
convencionalmente piedosas e distraídos votos de fé; transcendentalizando-lhe
enfim a supremacia até lhe apagar de todo o último vestígio de realidade e dar
com ela em águas de quimera. Nesse trono mágico, já sem vislumbre do cetro nem
de coroa, não se assenta um monarca, ergue-se uma sombra divina; desprendida do
solo, e cuja fronte se vai perder no infinito por entre nuvens de sonho
alucinado; miragem hereditária de um poder supremo que existiu há dois mil
anos; símbolo abstrato de uma onipotência que nada pode.
Já nem sequer é o Papa privativo do Japão esse pobre
Imperador n,0 108, é um mito, é uma alegoria eponímica, é um
fantasma que veio do céu e voltará para lá, sem haver tocado com as plantas na
imundície terrena, atravessando a vida amortalhado na sua alva de gorgorão sem
mácula, apenas guarnecida ao meio das amplas mangas com as heráldicas crisântemas
imperiais; cativo espectro, cujo mesquinho âmbito de ação, o Tai-Kum foi, com
as suas garras implacáveis, cada vez mais apertando até que o restringiu aos
degraus do santuário, onde brilha já vinte e dois séculos, inalteravelmente, o
espelho de Amateras, mãe formosa da ante-humana dinastia do prisioneiro. E
agora, aí, de rastros, a única missão dessa alma penada, que ainda não habita o
céu e nunca viveu na terra, é orar, suplicando noite e dia aos seus
antepassados do empíreo a salvação espiritual desse povo simples e querido dos
deuses, que, lá fora, nas estradas cheias de sol, correndo atrás do arroz de
cada dia, esfervilha feliz e risonho, orgulhoso de se ver isolado do resto
bárbaro do mundo pela mão ciosa e férrea de Tokugawa Ieiás, a quem, de resto o
então rei da Inglaterra, Jacques I, chama no alto da sua respeitosa
correspondência desse tempo: "Sua Majestade, o Shogun do Japão"
Tendo estabelecido a sua capital em Yedo, o Tai-Kum faz
edificar por trezentos mil obreiros o famoso "Chiro Shogunal", de
abundantes e tortuosos canais, que ainda hoje são a felicidade dos olhos de
quem passeia em Tókio; inexpugnável propugnáculo para aquelas épocas de fôlego
largo e tiro curto, e atualmente gracioso parque e sui-generis palácio imperial
de Sua Majestade Mutsu Hito. E aí, pois, há pouco menos de trezentos anos,
instalava-se Ieiás com a sua esplêndida Corte, em que luziam, na vistosa gala
de seda e ouro, cinqüenta e cinco fidalgos do seu Conselho Privado,
originalmente intitulados "Chimaguns"; e os nobiliárquicos
"Matsudairas" cortesãos honorários e adventícios que, em caso de
necessidade, tomavam parte no Conselho; e os "Hattamotos", em número
de oitenta mil, que eram os vassalos diretos dos Tokugawas e gozavam da subida
honra de poder assistir às cerimônias shogunais; e os "Cobemins",
nobreza puramente militar, ganha na guerra, formando a Ordem de Cavalaria
japonesa instituída no campo de vitória de Sekigahara, aos quais não era dado
penetrar nos recintos majestáticos do Shogun, mas que podiam dirigir-lhe a
palavra em acampamento ou nas praças fortificadas; e enfim os infinitos
Samurais, menos que cavaleiros, um pouco mais que simples soldados, a quem
cabiam os postos subalternos de comando no efetivo das forças, com direito a
ganhar título de nobreza e de transmitirem aos filhos as suas vantagens
militares, e ainda com a prerrogativa, para eles muito estimada, de poderem
trazer, em vez de uma, duas espadas à cinta; estes, como os fidalgos de alta
linha, não casavam senão dentro da própria classe, tomando porém do povo as
concubinas que quisessem.
Ieiás, como para se não servir da religião do Imperador,
ou talvez cedendo ao seu temperamento ostentativo de homem de espírito, para o
qual o fausto e o brilho estético eram viva necessidade como era o aplauso público,
toma sob a sua égide o Budismo que ainda se não tinha levantado do abatimento
em que o deixara Nobunaga; restaura-lhe suntuosamente os altares e traça com
apurado bom gosto o homérico plano dos templos de Nikko na Montanha Sagrada,
destinando-os à magnificente necrópole das suas próprias cinzas e das de sua
dinastia; templos aonde levarei ainda o leitor e que são indubitavelmente os
mais belos, mais artísticos e mais opulentos de todo o Japão antigo e moderno.
Com a direção inteiramente nova que Ieiás deu ao espírito
de sua raça, imprimindo-lhe o cunho original do seu próprio espírito, criou-se
a renascença japonesa; depois dele as artes e as letras ressurgem em plena
eflorescência, atingindo no século seguinte um grau de elevação e pureza a que
nunca até aí tinham aspirado sequer. A sua minuciosa e individualíssima lei deu
logo ao Japonês tal consistência e tal homogeneidade de caráter, que desde
então a vida desse povo ressalta harmoniosa, inteiriça e original, como uma
bela obra concebida e realizada de um só jato por um autor de gênio. Fechando
ele ciosamente a sedutora pátria à curiosidade importuna e à grosseira cobiça
dos ocidentais, foi que conseguiu fazer, nem só a unidade nacional, mas a
glória artística do Japão. E a esse largo feriado de reclusão e de paz, durante
o governo dos Tokugawas, que o mundo culto deve o século XVIII do Extremo
Oriente, o século de Hokusai e Utamaro, para citar apenas dois nomes já
vulgarizados por Edmond de Goncourt; século em que o Japonês se constituiu em
primeiro e mais poderoso artista decorador de todos os tempos.
3o Capitulo
O COMODORO PERRY Ii KAMMON
Foi sem dúvida o insólito advento dos estrangeiros no
Japão, de 1853 em diante, o que, provocando a guerra civil em todo país,
determinou a queda do Shogunato e a seqüente restauração do unitarismo
imperial. Aqueles porém não conseguiriam penetrar e instalar-se no território,
ou pelo menos muito mais caro lhes custaria o feito, se não fora a ardilosa
política e traiçoeira audácia de um homem, cuja memória é ainda hoje execrada
pelos japoneses da velha têmpera; e o qual de resto pagou com a vida nas mãos
dos roninos semelhante ato, nem só contrário à vontade do Micado de então,
Komei, pai do atual, como inteiramente oposto às aspirações da nação, que era
nessa época profundamente nativista, desde a sua mais alta à mais baixa camada
social.
Esse homem fatídico é o Daimo de Hikobe, Ii Kammon no
Kami, que durante muito tempo exerceu o cargo de "Tairô", ou primeiro
ministro, do Shogun Tokugawa Yeçada, e depois, com a morte deste, passou a ser
o poderoso Regente do Shogunato durante a menoridade do sucessor, Tokugawa
Iyemochi, príncipe de Kii, criança de treze anos.
Mas, para bem explicar como se deram os fatos, é preciso
voltar atrás. O primeiro Ocidental que pôs pé no Japão, assinalando com obras a
sua presença, foi um português, Mendes Pinto, em 1542. Antes deste, consta que
no século XIII Marco Polo havia já desembarcado no arquipélago, se é com efeito
o Japão o que ele nas suas famosas memórias chama "Zipangri" ou
"Cipango"; tais revelações porém, verdadeiras ou fantasiosas, sem
merecerem até hoje inteiro crédito nem dos próprios compatriotas do autor, não
deixaram de si nenhum resultado positivo; podendo-se pois concluir que, a
passagem do ilustre navegador veneziano pelo nipônico Império do Sol Nascente,
é caso de efeito inteiramente nulo e que ninguém afirma com segurança. Com
Mendes Pinto a coisa muda de aspecto, não se contentou o investigador português
com descrever as suas aventuras, muito mais desenvolvidas sobre o Japão e em
nada menos interessantes que as do outro, foi a Macao e de lá conseguiu trazer
para o arquipélago São Francisco Xavier e mais trinta jesuítas que, uma vez
instalados em Kiuciu, atraíram novos, até formarem um núcleo forte e próspero
de catechistas, ao qual não tardaram de incorporar-se os espanhóis e logo
depois os holandeses, arrebatados estes últimos, não pela fé, mas pela cobiça.
Qual veio a ser nos primeiros trinta anos a boa fortuna
dessa pacífica expedição já o leitor conhece, mas o que talvez ainda não saiba
é que, à vista de tal êxito, os holandeses, a quem tanto faltava espírito
evangélico quanto sobrava o de ganância, receando lhes viessem aqueles a fazer
mais tarde concorrência comercial, principiaram a guerreá-los com a mais feia e
intrigante deslealdade; como eram protestantes, afetaram pertencer a religião
muito diversa da dos portugueses e, calcando aos pés o Crucifixo e fazendo toda
a sorte de ridículas manifestações anticatólicas, perseguiram os missionários a
ponto de fornecerem a Ieiâs a artilharia com que este exterminou os cristãos na
célebre hecatombe de Chimabara.
Foi com esses e outros lances de igual jaez que os
holandeses obtiveram, sob o governo de Tokugawa Iyemitsu, filho e sucessor de
Ieiás, o privilégio de ficar no arquipélago, enquanto eram todos os mais
estrangeiros enxotados e logo corridos a bala e ponta de azagaia. A despeito
porém de tanta baixeza e tanta humilhação, permanecia latente no espírito do
Shogun o desejo de varrê-los também pata fora do país, de sorte que os não
deixava respirar com imposições e exigências cada vez mais cruéis. A um tal
Francisco Caron, que em 1640 era o chefe da feitoria holandesa em Hirado,
intimaram secamente para demolir todas as edificações por ele e seus patrícios
construídas, porque dizia o mandado, se afastavam um pouco da forma
arquitetônica nacional imposta pelas "Cem Leis", e os bons homens dos
Países Baixos submeteram-se a isso sem o menor protesto e até com vivo e
afetado empenho de bem cumprir as ordens do Governo, na esperança, já se vê, de
que tais mostras de sujeição abrandassem os rigores oficiais e lhes facultassem
a eles continuar a auferir os belos lucros que proporcionava o seu tráfico sem
concorrência. Maximiliano Lemaire, que, com a morte de Caron, o substituiu,
obteve afinal do Governo, à força de súplicas e juramentos de solidariedade,
concessão para construir uma ilha ao pé de Nagasaki, feita com a terra de uma
colina próxima, para estabelecer nela a sua feitoria que não tinha onde
abrigar-se. Essa ilha artificial, em hemiciclo, forma lisonjeira aos Tokugawa,
cujo escudo era um leque de ouro com as rosas malvas do brasão de Ieiás no
centro, chamou-se Dechima e foi o escasso recinto em que, durante trinta e dois
anos, vegetaram os holandeses no Japão, sem família e sem direitos, privados de
licença de arredar pé do presídio, a não ser com mil formalidades e só durante
certas horas do dia, enchiqueirados lá dentro debaixo de uma fiscalização
draconiana; não podendo receber da pátria por ano mais do que um navio, e sem
vênia de entreter relações, fora das comerciais, com os japoneses e, ainda
menos, com as japonesas, às quais era rigorosamente vedado o ingresso na ilha,
como a toda e qualquer mulher estrangeira, menos a asiática, era defesa, sob
pena de morte, a entrada no Império.
Semelhante reclusão teve, como era de prever,
conseqüências ridículas. Nesse tempo não comiam ainda os japoneses outras
viandas senão de aves e peixes; o boi era um animal sagrado, o porco
desprezível e o carneiro inaclimável no território, apesar das d1-ligênncias
nesse sentido tentadas pelos chineses e coreanos; ora, os holandeses, que não
estavam dispostos a amargar, além do que já sofriam do Governo, os rigores da
cozinha japonesa, faziam vir todos os anos da Europa um bom carregamento de
gado ovelhum e caprino; quanto ao bife nem era bom falar nisso - animal
consagrado! Assim, quando mais tarde, depois de muita lamúria, permitiu o
Shogun que as "musmês" da mais baixa extração fossem ter à ilha
Dechima e isso somente na ausência do sol, o povo começou de alcunhá-las de
"Ovelhas" e "Cabras", qualificativo com que ainda agora
grande parte dele estigmatiza a japonesa que partilha com qualquer ocidental o
fruto do paraíso.
Mas o fato é que foram os holandeses os únicos europeus a
permanecer no arquipélago desde 1625, época da expulsão definitiva dos
estrangeiros, até 1853, quando um grito de alarma e de cólera ecoou por todo o
país, arrancado pela arrogância do Comodoro norte-americano Perry, que se
apresentara nas águas japonesas com uma esquadrilha composta de quatro navios
de guerra, a reclamar o direito de ancorar, deter-se e traficar nos proibidos
portos de Chimoda e Hakodate.
Dai Nipão já não era o mesmo quanto ao naturalismo
espontâneo dos costumes. Duzentos e cinqüenta anos de profunda paz e
desenvolvimento artístico, impostos pelos Tokugawas, tinham abafado o ardor
bélico e turbulento dessa raça que agora se elevava já mais além de 40 milhões
de indivíduos. Os acaroados arneses e as decorativas espadas de Massamore e da
família Miotchim, os mais primorosos alfagemes da idade média japonesa, jaziam
havia muito dependurados nos altares domésticos, como venerandas relíquias dos
tempos heróicos e dos antepassados valentes. Os príncipes e daimos viviam então
tranqüilos, a gerir as suas terras patriarcais, desistidos das antigas
rivalidades de classe e descuidosos das armas; os respectivos samurais, dantes
tão árdegos e revessos, eram agora os seus agentes de confiança na
administração dos feudos. Mas, se por um lado haviam a preguiça e a voluptuosidade
invadido a aristocracia e a nobreza militar, por outro os artistas, os
operários e a gente da gleba se tinham apurado pelo esforço inteligente ou pelo
trabalho subalterno. Não se contava um só analfabeto no país.
E com efeito durante aquela extensão pacífica que
atingiram a sua mais linda plenitude as artes e as indústrias japonesas, caindo
depois vertiginosamente com a revolução e ameaçando hoje em dia desaparecerem
para sempre, estioladas de todo pela macaqueação da arte européia e do industrialismo
cosmopolita e banal. Os artistas japoneses, então diretamente protegidos pelos
daimos senhoriais não faziam obra de afogadilho destinada ao comércio, que só
em muito pequena escala existia no Japão. Como tinham vida garantida pelo
príncipe a que serviam, e absolutamente despreocupada de necessidades materiais
ou de ambições burguesas, trabalhavam sem impaciência, sem pressa de acabar, e
só cuidosos da perfeição e requintado esmero. Daí essas inverossímeis
maravilhas de laca, de bronze, de esmalte, de mosaico, de porcelana, e todas as
outras mil inapreciáveis coisas, das quais neste sincero livro muito tenho que
vos referir; coisas que nunca mais se repetiram depois daquele tempo áureo e
que, — infelizes dos olhos futuros! — nunca mais se farão em parte alguma do
mundo.
E que o governo feudal dos daimos era, contido pelas
sábias e humanas leis de Ieiás, nem só paternal para o povo, mas talhado de
molde a favorecer a expansão do talento artístico. Com uma obra d'arte perfeita
obtinham-se foros de nobreza, tença vitalícia e até hereditária, se acontecia
neste caso, como era então muito comum, exercer a família do artista a mesma
profissão que o chefe. Uma alçada, de imediata confiança do Governo Central,
composta de cinco membros e dispondo de duzentos agentes de tradicional
integridade, tinha a seu cargo a fiscalização da gerência dos principados, e,
uma vez por ano, passava em revista todos os oitenta e quatro distritos do
Império, recolhendo, uma por uma, as queixas e reclamações do povo; o protocolo
de tudo isso seguia para Yedo a ser estudado e julgado pela Corte Shogunal, que
punha em confronto essas partes populares com as contidas nos relatórios,
também anuais, apresentados por cada um dos daimos governadores. Em caso de
denuncia de crime grave, o Shogun fazia vir à sua presença os interessados,
acareava-os em plena audiência e, se o daimo tinha razão, entregavam-lhe o
delinqüente para ser punido como de lei; mas, se ficava justificada a razão de
queixa contra o príncipe, o Shogun anotava o depoimento das testemunhas com o
seu parecer, e os autos subiam, pro forma, às mãos da Corte do Imperador que,
imediatamente, em nome do Micado, convidava o daimo criminoso a abrir
honradamente o ventre com a sua katana de fidalgo. E nunca se dava o
caso de semelhante convite deixar de ser atendido com toda a solicitude, nem só
porque ele significava áulica deferência prestada a um nobre do Império, corno
também porque, se o criminoso não se prevalecia do privilégio, passava pelo
negro vexame de acabar menosprezadamente decapitado, enforcado ou crucificado,
conforme o dia da semana em que caísse a execução.
O produto de cada feudo era consumido pelo próprio feudo,
não havia por bem dizer outra permuta fora da produção industrial e da produção
agrícola; o mercador intermediário não estava classificado, porque também não
existia ainda capital em giro de especulação. O organismo político do Estado,
como a própria economia do povo, achavam-se na mais sinérgica integridade de
equilíbrio e força; neles se não acusava nenhum dos vírus que na Europa
perturbaram e destruíram o sistema congênere; não havia questão religiosa; não
haviam rivalidades dinásticas em luta, nem reivindicações filosóficas e
populares contra o direito divino do Trono ou contra a autonomia civil e militar
do Shogun; não haviam tendências igualitárias transbordamento industrial dos
limites que às competentes classes lhes traçavam as leis ieiasinas; a vida era
fácil e simples, o país abundante; o clima em geral benigno, os patrões
afáveis, o caráter do povo risonho e doce, como recomendou Ieiás, a fartura das
terras e das águas afastava toda e qualquer insurreição de inferiores famintos
contra superiores fartos; o patriarcalismo dos costumes, a sobriedade, o gosto
da nudez; a ausência da moda, o enlevo amoroso pela natureza, punham a
população ao abrigo dos apetites brutais e dos vícios caros e vaidosos de que
se fazem os pronunciamentos e as plutocracias. Não se acusava no corpo da nação
o menor sinal dessa implacável moléstia oriunda dos Estados Unidos da América
do Norte — a Febre do milhão, a cujo alucinador contágio nenhum 'país ocidental
escapou até hoje; o dinheiro ainda servia só para ser gasto e não para ser
multiplicado pela tabuada dos filhos de Israel; o capital ainda não era
capital, era coisa secundária, não se tinha transformado em força viva e roda
dentada que engrena, arrasta, mastiga e babuja a moral, o talento, o amor e o
caráter da melhor porção do mundo moderno. Ninguém se azafamava correndo atrás
dos galopantes cavalinhos de Dona Isabel, e não havia por conseguinte
encontrões, nem choques, nem trambolhões; suicídios só por amor, por desafronta
de honra ou em piedosa homenagem à morte de um amado chefe, militar ou
doméstico, a quem por íntimo e espontâneo voto de lealdade se tivesse consagrado
a vida. O Shogun era olhado pela população como um pai severo e bom, e o Micado
como um taumaturgo padroeiro, compassivo e brando, em cuja influência divina
contavam todos para obter entrada no céu. A Nobreza, abençoada e quieta,
desfrutava em respeitável paz os prazeres do espírito adubados com as delícias
coreográficas que lhe davam entre sorrisos as maikos e as gueichas; livre
e ainda forte para gozar, já impotente e manietada para levantar desordens. O
povo pelo seu lado tinha tudo o que lhe desejava o coração ainda simples: as
suas festas civis e religiosas, os seus espetáculos e justas de lutadores, os
seus arraiais e os seus fogos de artifício. As relações sociais e as regalias
públicas eram, como as relações e as regalias dos poderes constituídos, metodicamente
e pontualmente exercidas e observadas. Enfim — a nação era feliz.
Durante esse largo período de bem-aventurança, as várias
tentativas de quebrar o isolamento japonês, empreendidas pelos ingleses, pelos
espanhóis e pelos russos, abortaram completamente. A disposição geográfica do
terreno e as especiais condições meteorológicas do clima e da latitude eram
vigilantes cúmplices do Tokugawa no seu apertado código das "Cem
Leis"; eram a melhor garantia da estreita reclusão em que desejavam viver
os donos do país, caprichoso arquipélago armado com mais de três mil e
oitocentas ilhas perigosas, de costas escudadas por tufões e ciclones
infernais. Qual seria o louco aventureiro que entestasse contra tais sinistros
para ir lá dentro, em terra firme, dar talvez, por entre homens, com ainda mais
duros rochedos e mais ferozes tempestades? Assim pois, o decreto de Iyemitsu,
fechando positivamente o Japão em 1625 a todo e qualquer ocidental, depois de
expelir, à exceção dos ostráceos holandeses, os poucos que lá restavam, não se
via uma só vez desacatado até a revoltante chegada dos americanos. E seja dito
de passagem que, no modo de fazer respeitar essa lei, o Japonês foi sempre,
assevera-o Georges Bousquet, tão lógico e firme quanto cortês e humano. Por
ocasião de qualquer daquelas investidas européias, negou-se ele com boas razões
e boas maneiras a franquear a pátria, sem jamais empregar inúteis violências;
desde todavia que a pretensão saltava para o terreno da arrogância, como
sucedeu com a Rússia, o Japonês arrancava da espada e não a recolhia de novo à
bainha enquanto o perturbador da paz do seu Estado não desarvorasse das águas
territoriais. O Tokugawa porém, dois séculos antes, não contara com a
descoberta da aplicação do vapor que, no começo do nosso, veio neutralizar as
defesas naturais do seu país, transformando os oceanos, de abismos isoladores
que eram, em laços de união entre todos os continentes do velho e do novo
mundo. Com o vapor ao serviço da avidez, podiam os modernos fenícios abordar às
costas japonesas e, sem risco de avaria, insinuar-se por entre esses sirtes e
recifes com que contava Ieiás para guardar a sua frágil e humana obra contra as
danosas ambições do resto do mundo cobiçoso, fechando-a naquela natural
custódia que lhe parecia invulnerável por ser feitura das mãos de Deus.
Ora, a América do Norte em 1852 sonhava com uma nova e
grande linha marítima que unisse pelo Oceano Pacífico a Califórnia à China,
fazendo escala pelo Japão, e por isso queria que lhe franqueasse este, ao norte
o porto de Hakodate em Yezo, e a leste o de Chimoda em Izo. Era esta a razão
ostensiva e oficialmente declarada, mas a oculta e talvez mais palpitante, não
passava da mesma que várias vezes movera as outras nações ocidentais a pôr, não
os pés, mas as garras no Extremo Oriente; quer dizer: era, nada mais, nada
menos, do que a curiosidade de verificar se no misterioso arquipélago havia de
fato muitas riquezas, como constava; e, caso houvesse, fazer de conta que elas
não tinham dono.
Bem sei que os europeus e norte-americanos, naturalmente
por decoro, não contam deste modo nos seus livros sobre o Japão os fatos que
aqui vou narrando; dizem todos os autores, pelo menos os meus conhecidos, que a
revolução existia em estado latente no Império Japonês e que a chegada do
Comodoro Perry nada mais fizera do que precipitar-lhe os efeitos.
E preciso muito má fé, ou não, ter sequer cheirado as
crônicas japonesas, para sustentar semelhante falsidade histórica! nem sei como
não afirmam logo que o pobre Japão se achava em viva guerra de extermínio e que
eles, americanos, lá foram, impelidos pelos próprios sentimentos de humanidade.
Seria desse modo a burla mais engenhosa e mais completa.
O país nunca tivera época de tão inteira paz e nunca
vivera tão despreocupado de lutas. Esta é que é a verdade! Como se deram os
sucessos vou eu dizê-lo francamente, porque entre o assaltante atrevido e a
vítima sacrificada, claro está que me coloco ao lado desta.
Eis o caso. Não sendo o Comodoro Perry atendido na
primeira vez, ameaçou que voltaria para o ano seguinte e que empregaria a força
se as suas reclamações fossem de novo rejeitadas.
Pode-se facilmente calcular o efeito produzido por tal
audácia no espírito desse povo, que para mais de dois séculos vivia tranqüilo e
feliz, fechado no seu canto, sem nada pedir a ninguém, nem de ninguém precisar,
tão indiferente e alheio ao resto do mundo que ignorava até que se houvesse
descoberto do outro lado deste a navegação a vapor. O efeito foi fulminante;
uma profunda perturbação logo abalou o país inteiro. A nação dividiu-se em dois
partidos; um pequeno e tímido, outro enorme e forte; o dos curiosos, dos
comodistas ou medrosos, que eram pela admissão dos estrangeiros; e o dos
nativistas radicais, que clamavam energicamente a favor da repulsão pelas
armas. Este último partido compreendia a nação quase inteira.
O Shogun hesitava, e compreende-se a sua hesitação, porque
é fácil de compreender a responsabilidade; a resistência, sem visos de bom
êxito, iria pôr de novo em pé de guerra, e logo de intriga e de ambição
política, os daimos que administravam agora tranqüilamente os principados, e
iria acordar nos samurais o instinto brigalhão e turbulento a tanto custo, e
com tanto sacrifício de sangue, reprimido pelo fundador da sua dinastia; mas,
por outro lado, se o mensageiro Americano fosse admitido e conseguisse do
governo japonês tratados de paz, comércio e amizade; com o do seu país, não
seria isto igualmente, por modos diversos, a destruição completa da obra de
Ieiás, cuja garantia única de estabilidade tinha os seus alicerces no mais
completo isolamento? Sem contar que, o fato de se não chamar oficialmente a
nação às armas não queria dizer que ela se não levantasse amotinada e a guerra
civil não rebentasse do mesmo modo e produzindo as mesmas funestas
conseqüências.
Entretanto, o Shogun Yeçada no seu enleio descobria uma
tangente para escapar ao dilema, era a contemporização, a meia promessa que não
dá nada e ganha tempo na expectativa de uma solução aceitável. Foi a esse
farrapo de esperança que se agarrou o desgraçado.
E já sobre a hesitação deste começavam os príncipes do sul
a fazer carga política, quando o mais inesperado dos fatos veio decidir tudo e
precipitar os acontecimentos: o hipotético Imperador, com quem ninguém contava,
esqueceu-se de que o seu destino era ser o fantasma n.0 121 e rezar
para aí de gatinhas defronte do espelho até que os céus para si de feita o
arrebatassem, tira-se dos seus cuidados, interrompe os seus mistérios e
intervém diretamente no Governo do país, pronunciando-se com firmeza sobre a
endiabrada questão.
Era a primeira vez que tal coisa sucedia desde que os
Tokugawas tinham hereditariamente a posse do poder executivo. E o fato, posto
que extraordinário, vinha tão a propósito naquele momento, também único e muito
angustioso para a vida nacional, que ninguém, a não ser o Shogun, pareceu
estranhá-lo.
Espalhou-se logo no ambiente um profilático aroma de
milagres. Sim! o filho dos altos deuses descia pelo seu pé à terra vil dos
homens; a palavra inspirada baixava, como a luz dos astros, lá das místicas
alturas, para vir inspirar o povo querido do peito de Amateras; e essa palavra
bendita fazia estremecer a multidão como se fosse a voz de uma alma do outro
mundo.
A boca do santo falou e disse
É preciso, quando esses bárbaros tornarem cá, varrê-los
para longe, como se varre a poeira com a vassoura. O súdito que proceder de
outro modo ofende a vontade do meu coração.
Esta simples ordem do divino fantasma de Kioto fez vibrar,
com um arrepio aceso, a alma de todo aquele bom povo, que nesse tempo era
ainda, como o foi até aos últimos instantes da revolução, ingênuo e casto.
Àquelas poucas palavras do Imperador dissolveu-se logo por encanto a pequena
facção política favorável aos estrangeiros. Mas o Shogun, em cujo espírito a
indecisão cedera afinal abrindo pelo lado da impossibilidade da resistência,
expediu imediatamente um poderoso emissário para junto da Corte Imperial,
Hayachi, príncipe de sangue, que aliás não foi sequer atendido pelo Imperador;
mandou um segundo, na aparência decisivo pelo seu grande prestígio naquela
Corte, da qual havia sido já o mais belo ornamento, Hotta Bishu, que apesar de
tudo porém, não conseguiu melhor resultado; então o Shogun correu em pessoa
para lá. Era também a primeira vez que um Tokugawa ia ao lado do Trono curvar o
joelho antes de decidir sobre os negócios do Estado. Definitivamente uma das
conchas da balança política começava a pesar mais e a descer, procurando
equilibrar-se com a outra. A posição do Imperador tinha sido até aí a mais
alçada justamente por ser a mais leve.
O Shogun expôs ao Micado a verdadeira situação do país e
falou-lhe com franqueza; mostrou-lhe o perigo interno de armar os mais
poderosos príncipes e disse-lhe quais eram as probabilidades negativas da
resistência. Os americanos viriam fortes, e atrás deles estava a Europa
inteira, a espreitar a situação, esperando o resultado da empresa para dela
tirar partido!
— É preciso varrê-los! exclamou sinteticamente o Monarca.
— O melhor, insistiu o outro, seria aceitar uma conferência
com Perry, fazer cara alegre e, por meios hábeis, com boa diplomacia, tratar de
mistificá-lo, prometendo pouco e não dando nada...
— Isso é um paliativo que a ninguém aproveita!
— Mas que ganha tempo, durante o qual nos prepararíamos
para a resistência e para a vitória neste momento impossíveis.
— Não engoliriam semelhante isca!
- Os ocidentais não conhecem absolutamente o mecanismo
político do Japão... nem sequer sabem ao certo qual é o verdadeiro chefe do
Estado; seria fácil por conseguinte engodá-los durante muito tempo, sem nada
lhes ceder de positivo.
— Mas cedendo sempre...
— Cedendo sombras de concessões... Que pode valer um
simulacro de tratado, sem a assinatura do Imperador, e que...
Yeçada não conseguiu concluir a frase, porque Komei, ouvindo
falar em tratado com os estrangeiros, teve um terrível assomo de cólera e
bradou, com os lábios trêmulos e os olhos apopléticos:
— Um tratado?! Nunca! E preciso varrê-los! Se o Shogun,
que é o Comandante das Forças, desobedecendo as minhas ordens, não der quanto
antes providências para repelir os bárbaros, eu próprio chamarei às armas os
príncipes japoneses e irei em pessoa comandá-los!
Pobre Imperador! Tarde voltava ele à vida. Estremunhava
agora como a Bela adormecida no bosque, e com a agravante de que não levara
apenas um século a dormir. As suas intenções eram as melhores, a sua vontade
enérgica e leal, o seu patriotismo legítimo e puro; mas a complicada rede de
fórmulas e etiquetas, que em volta do arbítrio lhe teceram durante o sono
gerações inteiras de áulicas aranhas manhosas, torcia-lhe o gesto e
quebrava-lhe a ação. Nenhuma das suas ordens foi cumprida, posto não deixasse
nenhuma de ser acatada com a máxima reverência; as Cortes, os Ministros, os
Daimos, ninguém, como o próprio Shogun; zombava dele, isso não! mas delas
zombavam todos; ninguém o contradizia, cada qual porém, a dizer que sim, ia
fazendo o que melhor lhe convinha, contemporizando, iludindo os decretos, e
dando tempo a que a situação por si mesma abrisse brecha para qualquer lance
decisivo ou para qualquer escapada.
O Shogun ainda hesitou, ainda roeu as unhas durante alguns
dias, mas, percebendo que os insofridos príncipes do sul já por conta própria
se proviam para a guerra, chamou a nação às armas, dando aos daimos liberdade
de levantar exército e construir navios de combate. E o país inteiro, ao grito
de "Morram os Bárbaros!" ferveu em apercebimentos vertiginosos para
defesa do território. Principiaram febrilmente as obras de fortificação;
construiu-se dentro de poucos meses o forte de Chinagawa, guarnecido logo com
artilharia fabricada em Nagasaki, pelos aprendizes dos fundidores holandeses.
Os donativos choviam de todos os lados; o dinheiro desencadeou-se
espontaneamente correu a rodo; o príncipe de Satsuma fez lançar n'água dois
grandes navios de forma européia e ofereceu-os ao Estado; outros daimos o
imitaram; o príncipe de Mito, então detido à ordem do Governo no seu próprio
castelo desde 1841, por se ter, como intransigente nativista, contraposto ao
forasteiro Budismo, foi absolvido e chamado para tomar o comando em chefe da
defesa marítima do país. "Era este príncipe, diz a mais recente das
crônicas japonesas, um homem de energia e coragem, com dois sentimentos únicos
no coração — cego fanatismo pelo Imperador e ódio ainda mais pelos
estrangeiros."
Yeçada, desiludido e sagaz, tinha para si, sem ânimo
contudo de dizer palavra, que todo aquele apresto bélico ingenuamente
improvisado pelo patriotismo, e todo aquele santo e brioso entusiasmo dos seus
compatriotas nada valeriam contra o bombardeio de um só encouraçado moderno,
cujas baterias de grande projeção e certeza de mira podiam de longe, fora do
alcance de qualquer insulto, fazer à terra o dano que lhe aprouvesse; e em
sobrecarga do seu desalento e da sua inconsolável tristeza, notou, sempre de si
para si, que o pavilhão arvorado pelas novas milícias já não era o do leque de
ouro encentrando as rosas malvas da casa dos Tokugawas, com o qual, depois de
Ieiás, pelejaram sempre os japoneses; mas sim a bandeira branca de globo vermelho
no centro, representando o sol oriental. Era já o pendão do Império que se
levantava em desafronta da pátria comum. E viu nisto Yeçada um mau presságio
para a sua dinastia.
Justo um ano depois da primeira investida, o Comodoro
Perry, pela primavera de 1854, surgiu de novo nas águas japonesas, e agora com
uma esquadra de oito vasos de guerra de alto bordo, duzentas bocas de fogo e
quatro mil homens de abordagem. Era com estes argumentos diplomáticos que os
Estados Unidos da América do Norte contavam entrar em relações de paz e amizade
com o Shogun, única potência que os ocidentais conheciam no Japão e à qual
davam o título de soberano.
A imponente esquadra bordejou orgulhosa todo o
arquipélago, e foi fundear a leste em frente á barra de Yokohama. O povo miúdo,
cuja curiosidade era muito maior que o terror, corria às praias a contemplar
boquiaberto aqueles estranhos monstros que invadiam as suas águas virgens de
vapor, vomitando fumo negro e atroando os ares com ameaçadores berros de fera
infernal e faminta; faminta ainda se não sabia de que. Afinal a cada ronco dos
monstros, os indígenas quase nus saltavam a rir torciam-se em gargalhadas de
prazer; alguns, concheando as mãos na boca, respondiam ao mugido feroz com um
sibilante e zombeteiro silvo de garoto; e, enquanto o povinho se divertia com o
caso, o Shogun, sem querer ferir de frente a vontade do Micado, que ao apontar
da esquadra lhe dera aviso terminante de dispor as forças em ordem de batalha,
e sem querer também produzir a irreparável ruína de sua pátria, assanhando os
ograis monstros que rondavam para a devorar, reuniu conselho extraordinário e
chamou em seu socorro parecer dos príncipes Gosankês e de outros de bom aviso;
mas ninguém lhe valeu na aflição; uns, encolhendo os ombros, confessavam não encontrar
saída para semelhante conjuntura outros entendiam que o melhor seria cumprir à
risca a vontade suprema do Imperador, desse por onde desse, ainda mesmo com o
sacrifício do país inteiro; e nenhum, ou por intransigente convicção ou pelo
receio do estigma público, nem por sombras alvitrava a hipótese de travar
acordo no que pretendiam os invasores. O Shogun, coitado! esse arfava
cabisbaixo e tíbio, escondendo o rosto entre as duas mãos. Não sei se chorava.
Passam-se dias. Os americanos já não pedem, exigem, sob
pena de começar o bombardeio, a resposta do memorandum que, em nome do Governo
da República, enviaram por um oficial de patente superior á "Sua Majestade
o Shogun do Japão". Marcam afinal um prazo de espera e, no dia
precisamente em que terminava esse prazo fatal, Yeçada é encontrado morto,
estendido de bruços sobre os degraus do seu trono shogunal.
Assassínio? suicídio? natural explosão do desespero?
Ninguém o explica. Um romance japonês conta o episódio histórico muito
dramaticamente e diz que o mísero sucumbiu estrangulado pela perplexidade.
Com este fato, resolveram os americanos suspender a
intimação e esperar, de fogos apagados, que o Estado tivesse novo chefe.
Surge então à ribalta da história contemporânea do Japão a
já anunciada figura de Ii Kammon no Kami, príncipe de Hikone, ao qual, na sua
qualidade de primeiro ministro ou chefe de gabinete, competia tomar as rédeas
do Governo até a sagração do novo Shogun. Ora, o sucessor de Yeçada, como já
disse, era uma criança de doze anos, e o príncipe de Hikone trata logo de
assumir a Regência do Shogunato, o que conseguiu, a despeito da forte oposição
levantada por Mito e outros intransigentes daimos do sul.
Vai a situação mudar de aspecto. Ii Kammon dispunha de
todas as qualidades políticas que faltavam ao seu perplexo antecessor, audácia,
energia, resolução, astúcia e sangue frio; talento não sei se o tinha e
espírito nativista posso afiançar que não. Inspirado de outro modo, esse homem
de valor, havendo por si a nação inteira pronta a reagir com entusiasmo até a
morte, pregaria uma boa peça aos americanos, que afinal poderiam sim arrasar o
país de um extremo a outro, esmigalhá-lo, mas não poriam os pés lá dentro,
ficando-lhes perante o resto do mundo a odiosa responsabilidade do vandalismo
cometido. Era essa a vontade da Nação; vontade insustentável decerto para o
futuro, mas sem dúvida reveladora do sábio instinto de uma raça que defende a
sua hegemonia, a sua originalidade, o seu caráter nacional; como nos mostrara-o
os fatos posteriores.
O primeiro ato público do Regente foi dar balanço às
forças deixadas pelo falecido Shogun e logo providenciar para completá-las,
formando um efetivo superior ao dos primeiros daimos. Ninguém se negou a
ajudá-lo nesse empenho, todos convencidos de que Ii Kammon se fortificava para
resistir aos estrangeiros, quando em verdade o fazia para impor à nação pelas
armas o seu programa político. Depois, sem se preocupar absolutamente com a
opinião do Micado, nem com a da Nobreza e ainda menos com a do povo, recebe em
audiência privada o próprio Comodoro Perry, que o toma pelo verdadeiro
Imperador do Japão e firma com ele um tratado, não provisório como queria o
outro, mas decisivo, e cedendo mais do que pretendia o Americano, pois além de
Chimoda em Izo e Hakodate em Yezo, lhe abriu mão também do porto de Nagasaki a
oeste de Kiuciu. Como complemento desta medida, envia, por conta própria, uma
embaixada à América do Norte, a qual saiu do Japão sem o público dar por isso;
em seguida por decreto concede a todo o súdito japonês o direito de afastar-se
das águas territoriais do país e quanto quisesse e pelo tempo que lhe
parecesse. Este golpe nas "Cem Leis" foi ostensivo e forte.
O povo, sempre agarrado às praias, vê com alegre surpresa
a esquadra americana começar a dispersar-se, a esgalhar por todos os lados do
Pacífico e afinal sumir-se no horizonte, sem fazer para a terra sequer um
bocejo de fogo; respira, inteiramente estranho ao que vai pelos misteriosos
bastidores sbogunais, e deveras maravilhado pela habilidade desse Regente, cujo
governo se abre assim aos olhos aflitos do público por um tão lindo milagre
político; mas os verdadeiros nativistas, a quem no seu vigilante amor da pátria
sobressaltavam tristes pressentimentos, esses franzem o sobrolho e não
participam da confiança geral.
Outras potências estrangeiras, que espreitavam de perto a
solução da cartada americana; mal fariscaram o bom êxito da expedição, acudiram
logo nas águas dos Estados Unidos e surgem por sua vez nas costas do requestado
arquipélago. Ii Kammon recebe-as todas de braços abertos e sucessivamente vai
assinando novos tratados com a Inglaterra, com a Rússia, com a Holanda e mais
tarde com a França que foi então a última a apresentar-se, concedendo-lhes,
além da abertura dos portos já franqueados à América do Norte, a de mais um que
valia por dois, o de Kanagawa, a cuja alçada se prendia Yokohama ainda nesse
tempo sem maior importância.
Às honras e zumbaias oficiais prestadas ao Regente por
esses gratos expedicionários da Europa, respondeu como Imperador magnânimo,
fazendo salvar as fortalezas e hasteando o pavilhão nacional. O povo via tudo
isto intrigado, sem nada poder compreender do que se passava. E a bordo dos
próprios navios estrangeiros lá seguiam em segredo novos embaixadores japoneses
destacados para diversos pontos do Ocidente.
Não tardou a chegar ao Japão Townsend Harris, enviado pela
República Norte Americana como ministro residente para acompanhar de perto o
bom desempenho do tratado concluído entre os dois países. Só então foi que,
alcançando os ouvidos do Imperador e caindo no domínio público a notícia dos
atos arbitrários do Regente e até onde subira a sua audácia, rebentou o
descontentamento da nação e transformaram-se em desespero febril a desconfiança
e a ansiedade que às ocultas ardiam no ânimo dos nativistas.
Traição! Traição! bradavam de toda parte. E Mito, pondo-se
à frente dos revoltados, decidiu tomar contas ao pérfido governante. Ii Kammon,
bem provido de forças, recebeu-os à bala e golpes de bacamarte, mandando
decapitar no próprio teatro da ação os que pôde apanhar com vida.
Era a guerra civil que recomeçava depois de dois séculos e
meio, como previra Yeçada; e ela agora seria inevitável e terrível, porque
acabava de abrir-se a divergência entre a Corte do Imperador e a do Shogun.
Contra esta se levantavam já, ao exemplo de Mito, todos os príncipes do sul, e
a seu favor acudiriam logo os do norte, fiéis à dinastia dos Tokugawas que do
norte provinha.
Ii Kammon, homem de ação por excelência e disposto a não partilhar
o poder com quem quer que fosse, trata antes de mais nada de pôr Mito fora de
combate e descobre meios de responsabilizá-lo como conspirador contra o
Shogunato, cuja soberania devia ser por princípio fundamental do Império
reconhecida e respeitada pelos daimos sob sua alçada. Para documentar a
acusação obtém com muita astúcia e audácia da entibiada Corte do Micado a
correspondência secreta dos príncipes do sul, feita ainda em tempo do seu
frouxo antecessor; publica-a lardeada de negros comentários e acompanhada das
mais injuriosas censuras, e acaba condenando Mito ao exílio perpétuo e os
fidalgos de sua casa ao completo afastamento dos negócios públicos.
Depois, receoso de uma provável coligação sulana contra o
seu predomínio, arroja-se incontinenti em fúria desabrida sobre os príncipes de
Tosa, de Tozamma e de Uwajima e sobre os quatro daimos de Sikok, que eram os
mais vivos correligionários de Mito e os mais intransigentes inimigos da
expansão internacional; bate-os a todos, consegue fazê-los prisioneiros; manda
executar na praça pública o intrépido Tatewahi com a centena de cúmplices do
seu heróico nativismo, e passa pelas armas uma multidão de samurais e homens do
povo.
Não se sentindo ainda bem seguro do perigo, ordena, como
medida preventiva, a captura, com arresto de armas, dos príncipes de Owari, de
Gazen e de Echizen, todos três membros da Casa Imperial e os quais até aí não
se tinham absolutamente pronunciado a respeito dos atos do Governo.
Era demais! Um grupo de roninos, dezessete apenas, afiam
as adagas, cobrem o corpo com um capucho de palha espetadiça à moda dos kulis
do campo, e atiram-se firmes para Yedo. Escondem-se às portas de Sakurada,
aguardando a passagem do déspota, que tem essa manhã de atravessar por aí para
chegar ao inexpugnável chiro dos shoguns.
Esperam mais de três horas. Tempo nevoado e frio apesar de
estarem já a 23 de março desse ano famoso na história do Japão, 1860. Afinal
surge o lobo no seu palanquim de charão dourado, ao meio de uma refulgente
escolta em que as galas brilham tanto quanto as armas. Saem-lhe os roninos pela
frente e, fazendo da capa escudo, às cutiladas se atiram sobre eles. Desfeito o
séquito, despedaçam a liteira e arrancam pelas pernas Ii Kammon, a quem cortam
a cabeça, para ir no mesmo instante levá-la ao chefe dos nativistas.
O príncipe de Mito, rejubilando com a dádiva sangrenta,
manda expô-la na ponte mais concorrida da capital com o seguinte letreiro,
estampado em letras vermelhas sobre uma pele de hiena:
"Esta é a cabeça de um traidor, que violou as santas
leis do Japão admitindo estrangeiros na pátria."
Os assassinos, seguindo a usança nobre entre os japoneses
do tempo, foram solicitar da justiça a pena capita] que lhes cabia,
apresentando por escrito as razões morais que os levaram a cometer o atentado.
O memorial, depois de expor todos os atos reprováveis da vida pública do
Regente, concluía assim:
"Esse monstro em suma, por medo ou por espírito de
perfídia, e a pretexto de necessidade política, firmou com os bárbaros tratados
feitos clandestinamente, contra a vontade do Imperador e contra a vontade do
povo japonês; crimes tais que não encontram perdão nos deuses, nem nos homens.
E nós pois, representantes da cólera nacional, deliberamos castigar o grande
culpado com a morte, dando a nossa vida em holocausto à felicidade da
pátria."
Um grupo de oito samurais de Ii Kammon, fiéis à memória do
chefe, juraram sobre o seu cadáver ainda quente que em breve, para vingá-lo,
poriam as mão sobre o príncipe de Mito.
4.o Capitulo
Eliminaram Ii Kammon, mas o grande fato estava consumado,
bem ou mal os tratados concluídos, e o Japão aberto aos estrangeiros.
Em breve, à semelhança da América do Norte, os Estados
europeus entravam de mandar os seus representantes diplomáticos, e atrás destes
surgiam logo, de focinho arregaçado e palpitante, os primeiros furões
comercias, os farejadores de negócios virgens de exploração, os avançados de
Ashaverus que aí já vinha se arrastando azafamado de saco vazio às costas;
enquanto do arquipélago muitos indígenas curiosos, estalando por gosto o
ocidental fruto até aí proibido pelas "Cem Leis", muniam-se de ouro e
tomavam as pressas o primeiro barco a sair para a China, com medo de que, uma
vez morto o Regente, não fosse de novo trancada a autorização de viajar pelo
estrangeiro. Esta leva tão espontânea, quase toda de gente moça e rica, na
melhor parte inteligente e ávida de aprender coisas novas; haveria no futuro de
influir também nos acontecimentos políticos do país.
Quanto ao que neste ia por dentro, agora a grande questão pública
era apurar se valiam ou não valiam os tratados apenas com a assinatura do
Shogun. O Imperador abanava as mãos e sacudia os ombros, declarando a quem lhe
ia falar em credenciais e exequatur que não lhe constava haver nenhum
compromisso formal entre o seu império e qualquer Potência estrangeira; e que
de sua parte evidenciassem ao novo Regente a necessidade de desenganar
semelhantes importunos antes de ser preciso lançar mão dos meios extremos. Ao
mesmo tempo decreta a retirada de todo o forasteiro que se ache no território
sem clara e positiva autorização do Micado, e delega a Mito essa incumbência,
repetindo-lhe numa carta escrita de seu próprio punho, a frase da vassoura e da
poeira com que ele havia ressuscitado do outro mundo para acudir ao momento
crítico.
Visionário! Agora já não era uma simples esquadra que
flutuava nas águas japonesas, era uma formidável armada constituída pelo
contingente marítimo das principais potências do mundo. Dir-se-ia um congresso
universal nas costas do Japão, porque, além das bandeiras que de tão longe
vinham por defender os seus tratados, outras novas iam chegando desejosas de
entrar também em fala com a sedutora esfinge do Extremo Oriente.
E os radicais elementos patrióticos do altaneiro Sul
coração do Império, sequiosos por descarregar em alguém ou alguma coisa a raiva
de cruel despeito em que ardiam, nada podendo fazer contra o verdadeiro objeto
do seu impotente desespero, voltaram-se contra a instituição a que pertencera o
causador de tio irreparável desastre nacional; tomando porém o Shogunato para
alvo dos golpes que precisavam descarregar, forçoso era opor-lhe em campo de
combate a bandeira de outro poder, pelo qual se batessem e pelo qual, no
momento da vitória, substituíssem o do vencido, resolveram então, depois de
muito bem discutir o caso, adotar o unitarismo do Trono como ideal político.
Mito, consultado, aplaudiu-os e deu-lhes de conselho que procurassem pôr à sua
frente os príncipes do extremo sul.
Foi desse modo que se formou, para logo se desenvolver maravilhosamente,
o partido popular do Imperador, coisa que até aí nunca tinha existido no
movimento político do país. Ora, como o pobre Soberano, no seu empírico
patriotismo, punha antes de tudo a preocupação de expulsar os estrangeiros, o
novo partido, por cair-lhe em graça, fez o seu lema com o grito de guerra
"Honra ao Micado! Fora os bárbaros!", apesar de compreender
perfeitamente a impossibilidade de levar a efeito nessa ocasião tão adorado
sonho.
Assim pois vinha à luz o partido do Imperador já com um plano
de mistificação urdido contra o seu próprio chefe, disposto a servir-se da
mesma maromba que caíra das mãos fracas de Yeçada e que servira Ii Kammon para
equilibrar os seus primeiros passos no governo, pois como esses iria dizendo ao
Micado que se constituía e fortificava só com o fim de bater os estrangeiros,
quando a sua real intenção era, pelo menos antes de cuidar doutra coisa,
combater o Shogunato.
Os daimos do sul, ligando-se a esse elemento popular, não
calculavam o alcance que contra eles próprios poderia ter a campanha
empreendida, não previam que a unificação do poder do trono iria absorver
também o dos principados; e contavam ingenuamente que, abolido o Shogunato, o
Império voltaria sem dúvida ao regime feudal de antes de Yoritomo, quando os príncipes
governavam ao lado do Imperador e não estavam sujeitos i alçada do Shogun.
Quanto ao que pensava a Nobreza e Povo com respeito aos estrangeiros, era
opinião corrente que qualquer ação decisiva seria impossível contra eles
enquanto existissem a Corte e as forças shogunais para defendê-los dentro do
país, desde porém que o Imperador concentrasse na mão todo o poder e comandasse
diretamente os daimos, claro estava que a questão seria prontamente resolvida.
Eis aqui em que estado se achava o país nas vésperas da
sua grande revolução. A terrível guerra civil que se ia abrir, isto é, a luta
de parte dos príncipes e parte do povo contra a instituição do Shogunato ou
contra a dinastia dos Tokugawas, era pois conseqüência direta dos atos de Ii
Kammon e não tinham raízes em nenhum fator político precedente à chegada do
Comodoro Perry, como pretendem os ocidentais nos seus livros sobre o Japão.
Alçando-se o partido do Imperador até a esfera dos
príncipes do sul, que eram muito unidos e poderosos, converteu-se em força
disciplinada capaz de fazer frente à do Shogun, contra a qual ninguém até aí se
atreveria a levantar o braço. Para ter o leitor idéia justa da importância
dessa campanha, convém lembrar-lhe quão extensa permanecia então a autoridade
shogunal. Além das suas inveteradíssimas tradições, mantidas por enorme família
e filtradas durante dois séculos e meio ininterruptamente até os íntimos
refolhos da alma da nação, era mais que considerável a força material de que
dispunha, graças à maravilhosa posição por Ieiás escolhida para sede do seu
poder. O grande homem havia, nem só aproveitado admiravelmente as condições
topográficas do Império, como a dos elementos militares que encontrou
disseminados por todas as províncias, cujos castelos fortificados se acharam
sempre nas mãos de príncipes por muitos laços jungidos à família Tokugawa e à
instituição agora ameaçada. A zona Tokugawal propriamente dita era a enorme
bacia de Kuanto na parte leste da grande ilha central do Japão, compreendendo
oito províncias cercadas de montanhas abruptas que lhes serviam de natural
defesa, com os seus despenhadeiros inacessíveis, não deixando ao inimigo outro
ponto estratégico mais que a cidade de Hokone na província de Izo, entre as duas
bacias de Suruga e de Sagami, lugar este precisamente onde Ieiás estabelecera
as barreiras dos seus vastos domínios territoriais e em que lhe era fácil
verificar uma a uma as pessoas que neles penetravam. Nessas oito províncias de
Kuanto residiam os oitenta mil hattamotos, vassalos diretos dos Tokugawas, os
quais por sua vez, como nobres, tinham nos samurais inferiores os seus vassalos
próprios. Toda essa gente se levantaria em massa ao primeiro apelo do chefe
suserano.
Yedo, capital do Shogun e centro das suas operações
militares, está no fundo de um golfo, cuja boca estreita era defendida de um
dos lados pela fortaleza de Futsu e do outro pela de Kannonzaki, e tinha como
tem, as costas guardadas por uma anfractuosa cordilheira de montanhas que só
dão uma garganta praticável, a de Akonê. Em volta, para além das penedias e
quebradas, todos os príncipes fortificados, menos o de Mito em Hitachi e
Chimoosa, eram simpáticos à causa dos Tokugawas; e para o norte até Hakodate em
Yezo, e para o sudoeste, e na ilha de Sikok, até certo ponto da ilha de Kiuciu
ao sul, não havia um daimo inimigo dela, podendo por conseguinte as forças do
Shogun moverem-se por toda a parte, certas de que só poderiam encontrar auxílio
e proteção. Os únicos pontos do Império que escaparam à imensa rede estendida
por Ieiás eram, além de Hitachi e Chimoosa a noroeste, o extremo sul da ilha de
Kiuciu, onde se acham as províncias de Ocumi e Satzuma, e o extremo oeste de
Hondo em que existe a de Nagato. E foi precisamente destes pontos que rebentou
a guerra.
Havia assumido a regência do Shogunato Ando Tsusima, como
ministro sucessivo do príncipe de Hikone. É um comparsa sem feitio próprio, com
quem não vale a pena gastar muitas palavras em descrevê-lo; sumir-se-á daqui a
pouco nos bastidores, substituído pelo dono legítimo do papel, Iyemochi, que
reclama o seu cargo e entra a exercê-lo antes mesmo da maioridade comum, no
Japão fixada aos vinte anos; comum, disse eu, porque a dos membros da família
imperial é privilegiadamente contada dos dezoito anos em diante, e a dos
príncipes Tokugawas era a partir dos quinze.
Como esperavam todos, Ando Tsusima, galgando o poder,
declarou logo sustentar os atos e a norma política do seu antecessor, mas ao
mesmo tempo, para fazer crer que não persistiam divergências entre o Shogunato
e o trono micadoal, abriu mão do príncipe de Mito, a quem Ii Kammon havia
condenado ao exílio perpétuo e a quem o Imperador agora por último delegava a
expulsão dos estrangeiros; e faz melhor: consegue a aliança do seu jovem chefe Iyemochi
com uma princesa ainda mais jovem, irmã legitima do Micado; pomposo casamento
que se realizou em 15 de dezembro de 1860.
Nada disto porém impediu que continuasse cavado o abismo
entre as duas Cortes, como não impediu que se desse, para mais agravá-lo, o
seguinte revoltante fato: precisando Mito recompor uma parte desmantelada das
trincheiras do seu castelo e estando com toda a gente ocupada, mandou chamar de
fora alguns pedreiros; apresentaram-se oito sujeitos com o traje característico
daquele ofício e armados de picaretas, martelos e alavancas (no Japão cada
artífice trazia sempre o seu uniforme próprio). Confiou-lhes o príncipe o
trabalho e foi em pessoa mostrar o que havia de fazer. Os oito operários
desceram com ele ao fundo das fortificações e lá, vibrando as ferramentas que
levavam, o trucidaram e mais a dois pajens que o acompanhavam. Aos gritos
destes últimos, acudiram as sentinelas, mas antes já os assassinos tinham
galgado os fossos e mergulhado nas valas sem deixar rastros de si. Eram os oito
samurais que em Yedo sobre o cadáver de Ii Kammon haviam jurado vingar-lhe a
morte.
Semelhante crime, tão vil e traiçoeiro, tão contrário aos
usos cavaleirescos do japonês do tempo, achou enorme repercussão na alma
generosa do povo, a quem sem dúvida não desagradava um homem que só tinha
coração para amar o seu imperador e odiar os estrangeiros; pelo menos todas as
classes armadas, até mesmo as hostes do Shogun, viam em Mito a legítima e
briosa expressão do velho sentimento nacional. A nódoa daquela covardia chegou
para todos os samurais que foram de Ii Kammon; alguns rasgaram o ventre
sentindo-se desonrados; e, sabendo-se que Iyemochi ao ouvir falar do monstruoso
crime, tivera um mau sorriso e nenhuma providência dera para castigar os
criminosos, nobreza e povo começaram a ver nele um Tokugawa degenerado e um
dinasta perverso, apesar da sua extrema juventude e natural donaire que o
faziam simpático aos olhos da nação. O Imperador, desde esse fato, começou a
desdenhá-lo.
Com a morte do seu idolatrado chefe, os nativistas de
Hitachi e Chimoosa sentem-se desamparados, ali tão cerca de Yedo, valhacoito do
estrangeirismo, e tão longe do extremo sul, onde palpitava o coração da pátria.
O sucessor natural de Mito era uma criança e no horizonte político da nação não
havia ainda então apontado o vulto juvenil e petulante de Mori Daízen, príncipe
de Nagato, parente do assassinado, e que foi quem o secundou no ardor da
convicção e na audácia franca de sustentá-lo pelas armas.
À falta de sinceridade e firmeza nos chefes nativistas,
ganhava terreno a causa dos estrangeiros, fortalecida agora pela veemência do
novo Shogun; herdeiro de muito ódio e muita sede de vingança contra os inimigos
da sua dinastia. Mas, enquanto com mil disfarces, e às pressas se levantavam em
Yedo, no Coten Yama, terreno de propriedade particular dos Tokugawas, os
edifícios destinados às legações ocidentais, ia minando o pais nas mais fundas
camadas até aí indiferentes à agitação política, um surdo mal estar, uma
angustiosa desesperança no futuro, um desses perigosos descontentamentos do
povo, que são já principio de raiva e revolta contra os que governam.
Entretanto, nem uma só parcela de tal repugnância pública visava a pessoa do
Micado, porque o pobre povo, na sua instintiva vidência, compreendia,
adivinhava, que contra os invasores da pátria, só havia agora em campo duas
vontades sinceras — a dele próprio e a do Imperador, dois utopistas, dois
ignorantes da vida nova, dois ludibriados pelas ambições dos outros, desses
outros que só faziam política de intriga, tratando cada qual do seu particular
interesse. O Shogun, a Corte Shogunal, a Corte Imperial, os príncipes do Sul,
os príncipes do Norte, todos disputavam entre si o maior quinhão de domínio
público sem cogitar nenhum deles da ferida que fazia gemer a pátria apunhalada.
Mas esse contínuo gemido sem socorro pode transformar-se
em uivo de tempestade feroz; aquele surdo e recalcado desespero pode de súbito
fazer-se aspiração nacional e rebentar com fúria, devorando todos os poderes
constituídos para só deixar firme e de pé as duas expressões sinceras da nação
— O Micado e o povo. Foi isto o que não souberam ver, o Shogun, nem os senhores
feudais, nem a Corte do Imperador, nem o seu próprio partido. É fácil enganar
diplomatas estrangeiros, mal conhecedores do verdadeiro mecanismo político do
país que os engana; é fácil mistificar um monarca espiritual, sofismar-lhe as
ordens e torcer-lhe a vontade ao sabor dos ministros que ele supõe governar;
mas iludir um povo ferido no seu patriotismo, isso deixa de ser difícil para
ser impossível e só pode ter conseqüências desastrosas para o temerário que o
surpreender. E foi isso justamente o que aconteceu. Muitos soldados começam
logo a abandonar entristecidos os seus nobres chefes, a quem de corpo e alma obedeciam,
para se incorporarem à ventura, sem patentes nem garantias, aos grupos
sediciosos que se vão formando entre os samurais do sul e os roninos de todo o
Império. O recente partido do Imperador estala em pedaços, e cada cisão é mais
uma nuvem sinistra que vai bandear-se com a tempestade iminente. Em breve de
Hitachi e Chimoosa, as duas províncias viúvas do único príncipe com que contava
o povo, surgem multidões armadas que chegam até às portas da capital do
Imperador, soltando o mesmo grito de guerra do partido despedaçado, mas agora
não como simples embuste para agradar ao chefe e sim fazendo dele o sincero
programa do seu ideal político. "Honra ao Micado! Fora os bárbaros!"
é agora um ardente grito d'alma e há de ecoar por todos os recantos do país até
a explosão da mina.
E começam os saques e as pilhagens, porque toda essa gente
que grita, de mãos arrancadas para o céu e olhos desvairados pelo ódio, já não
trabalha nem ganha com que comer. O terror invade os campos abundantes e os
centros populosos por onde voa essa multidão devastadora, mas ninguém, por medo
ou espontânea cumplicidade, não se atreve a denunciar um deles. E das mãos do
lavrador e do operário arrancam as ferramentas para as transformar em armas de
combate.
Todavia, essa gente, que os alheios historiadores do Japão
tratam com tão negro e desabrido rancor; essa gente que exerce a pilhagem para
não morrer de fome, nada mais quer do que a deixem morrer gloriosamente
defendendo a pátria ferida e sem socorro, a tenda em que vivem honrada e feliz
e que agora, tão mesquinha! parece abandonada dos seus divinos príncipes e dos
seus humanos deuses. Essa alucinada farândola, que lá vai, legião de espectros!
— a correr, uivando através dos campos e das cidades, de província em
província, de castelo em castelo, anda doida, como seu Imperador, à procura de
uma espada que a conduza contra os malditos abutres que lhe invadem o ninho
paterno. É morto porém o grande Mito, o homem que partiu o coração em duas
conchas, para encher uma de amor nativo e com ela dar de beber à sua raça, e a
outra de ódio envenenado reservada às que viessem lá de fora banquetear-se no
inviolável e sagrado arquipélago de Amateras; é morto o grande Mito, e os
príncipes que aí restam de pé, nem parecem descenderem dos preclaros daimos dos
tempos heróicos — Satzuma negou-se a comandar o bando desamparado; negaram-se
outros; negaram-se todos.
Então, como as primeiras bolhas de uma efervescência
subterrânea, irrompem por aqui e por ali, em plena rua das duas capitais e das
cidades imediatas, represálias cruéis já ensopadas em sangue: no dia 14 de
janeiro de 1862 assassinam em Yedo a golpes de machado o Secretário da Legação
norte-americana, Heusken, então interinamente encarregado de negócios, e que
acabava de representar papel saliente nas pretensões internacionais do seu
país; em 15 de julho do mesmo ano, o templo cedido pelo Shogun à Inglaterra
para ai fazer funcionar provisoriamente a sua Legação, é atacado durante a
noite e são estranguladas as duas sentinelas inglesas que o guardavam e detruídos
todos os móveis, escudo d'armas, bandeiras, livros e papéis que havia dentro;
em seguida é uma tentativa de morte contra Ando Tsusima, que escapou gravemente
ferido e inutilizado para o resto da vida, tendo de abandonar por vez o Governo
no qual persistia em atividade como ajudante d'ordens de Iyemochi; depois foi
uma descarga de arcabuzes contra um grupo de cinco estrangeiros que passeavam
no Tokaido e o assassínio do inglês Richardson; logo adiante o incêndio da nova
Legação da Inglaterra, cujo edifício se acabava de construir no parque de Goten
Yama em Kioto; e outros, e outros desforços se sucederam, e outros e outros
terão de vir, e as provocações por parte dos nacionais se irão multiplicando
cada vez mais cruas e destemidas. O bando impetuoso avulta e enrobustece de dia
para dia; já não é a humilde farândola que suplicava um braço armado, é agora
um indômito vulcão que rola de norte a sul, de leste a oeste, deixando atrás de
si o arquipélago aceso na cólera por ele desencadeada; é um baluarte ambulante
que à nação inteira se impõe pelo desespero da causa que o agita; é uma força
tempestuosa, desordenada e cega, que depois de varrer a necrópole dos Tokugawa
em Nikko, decepando as centenas de ídolos de granito celebrados dos shoguns
passados, vai à Corte Imperial tomar-lhe contas pela infame lentidão e covarde
cautela que estão pondo seus membros em cumprir as ordens do Chefe do Estado, e
vai depois ao castelo do próprio Imperador para pedir-lhe que se não deixe
ludibriar por mais tempo, que abandone a sua túnica celestial, envergue as
armas dos seus antepassados de antes de Yoritomo e venha cá fora à rua, entre o
seu povo, repelir à frente dele os bárbaros atrevidos.
O soberano não aceitou o alvitre, mas atendeu comovido aos
que reclamavam; chegou a mandar, contra todas as fórmulas da etiqueta micadoal,
descer as portas do chiro, abrir as portas do sagrado recinto e mostrar-se à
multidão, envolto espectralmente da cabeça aos pés, num enorme véu todo negro,
que lhe não deixava transparecer o menor vislumbre das suas formas de homem.
A multidão prosternou-se com um gemido de súplica,
emborcando por terra, braços estendidos, rosto colado ao chão. E aquela imóvel
sombra divina, daquele mistério todo negro, uma voz saiu e ressoou, amiga e
humana, no meio do religioso silêncio, como um balbuciar de bênçãos enviadas
pelo céu. A boca do santo falou pela segunda vez, para dizer:
- O espírito dos meus avós penetrou vossas entranhas e é
convosco! A vossa vontade é a vontade do meu coração, e ela se fará verdade, se
os Deuses a quem pertenço me não tomarem antes para junto de nossa mãe formosa
e cheia de luz. Em nome de Amateras vos digo que tomeis ao vosso lar pelo
caminho da satisfação: vou remeter ao Shogun ordem terminante para repelir os
bárbaros. Ide vós, e que os olhos de Izananmi vos acompanhem pela estrada!
Cerrou-se o reposteiro do santuário e desapareceu o divino
espectro. A multidão ergueu-se com um suspiro de consolo, e foi feliz e
reconfortada de esperança que retirou do sagrado reduto, bradando o seu grito
de guerra contra os estrangeiros e em honra do Micado.
Este, cumprindo o que acabava de prometer, expediu logo ao
Shogun por cinco kugês uma ordem escrita de seu próprio punho, na qual,
descobrindo-se de novo, fazia já sentir bem ao vivo a sua ascendência
monárquica. Os emissários partiram a galope para Yedo e o bando de nativistas
atirou-se a correr na mesma direção.
Eis o que dizia a carta do Imperador:
Desde a primeira vinda dos tais americanos, Eu Micado, dei
ordem para varrê-los do meu Império. Não fui atendido. Meu coração vive agitado
dia e noite, porque até hoje nada se decidiu com respeito à expulsão dos
bárbaros. Entre as forças regulares do Estado e as forças vivas da Nação não
existe a menor coerência; de sorte que, em vez de guerra com o inimigo exterior
por mim determinada, é a guerra civil que ameaça agora devorar e país. Para
evitar esta tão grande calamidade e outras que depois ainda sobrevenham, pois a
desgraça é má e medrosa e nunca se apresenta desacompanhada, recomendo ao
Shogun que delibere positivamente sobre a expulsão dos invasores, e leve quanto
antes esta minha irrevogável ordem ao conhecimento de todos os príncipes fortes
do Império. O Shogun, na qualidade de Comandante em Chefe dessas forças, há de
achar meios estratégicos de pôr em execução as minhas ordens. Tal é o seu dever
e tal é a minha vontade de Imperador.
"Vigésimo oitavo dia do quinto mês" (25 de
junho de 1862).
Os nativistas não tardaram a surgir em Yedo, reclamando a
execução da ordem imperial e declarando ao Shogun que se achavam prontos a
expulsar os bárbaros, se lhes desse ele elementos para a luta. Por única
resposta, Iyemochi, que se havia prevenido, mandou destroçá-los pelos seus
oitenta mil hattamotos.
Seguiu-se uma infernal tragédia, porque os visionários tentaram
resistir e assaltar o castelo e foram completamente esmagados, deixando mais de
vinte mil mortos no campo da sua heróica temeridade. Os que conseguiram escapar
à rápida carnificina despejaram-se como demônios pelas ruas de Yedo, a lançar
fogo em quarteirões inteiros da vastíssima capital. Mas naquele mesmo decreto
do Imperador estava implicitamente imposta a anistia dos implicados nos
sucessos contra Ii Kammon, e o Shogun, para não desobedecer de frente ao
Soberano, teve que desencadear por suas próprias mãos os príncipes inimigos do
Shogunato, Owari, Echízen, Uwajima e os outros postos em liberdade vão
apresentar-se logo ao Micado e passam, por ordem deste, a exercer altos cargos
na Corte Imperial, ou são restabelecidos na posição oficial que dantes
ocupavam; por outro lado, o Monarca resolve punir com a supressão parcial nas
rendas os daimos que s~ tinham posto ao lado de Ii Kammon.
Como se vê, já em fatos se traduzem os sonhos do divino
fantasma e a situação política começa a definir-se. Os príncipes de Satzuma e
de Tosa, acompanhados pelo de Nagato, o jovem e ardente Mori que até então não
tinha aparecido na cena política, vão também apresentar-se ao Imperador e
oferecer-lhe os seus serviços na defesa do Trono. Esses três príncipes formavam
o mais poderoso núcleo de resistência entre todos os daimos do Império. Komei
recebeu-os nadando em júbilo e entregou-lhes logo a guarda e segurança da sua
capital, agora a regurgitar de população com o enxurro fugitivo dos litorais;
gente fraca e desarmada que, no momento do perigo, ia abrigar-se estarrecida de
medo à protetora sombra do filho dos deuses. Volvia esse povo, como no
principio da sua formação étnica a agremiar-se em torno do centro espiritual da
sua raça.
Para a sagrada Kioto voltavam-se todas as vistas, e os
fidalgos não ligados diretamente ao Shogun por interesses dinásticos de
família, cargo público ou solidariedade política, entraram de abandonar Yedo
que era nessa época, como ainda é hoje, a maior e mais importante cidade do
Japão; nos rastros da nobreza seguem também os artistas e os obreiros, e afinal
os mercadores, com a tenda às costas, arribam por sua vez. É o abandono
palpável da capital do homem mau. O restante da população levanta-se em massa,
e da noite para o dia a incomensurável Yedo despovoa-se de todo, não ficando lá
senão os Tokugawas, os hattamotos, e a Corte de Iyemochi com as suas duas
câmaras, e os seus samurais e funcionários permanentes
Por essa ocasião, a 15 de abril de 1863, o Ministro
plenipotenciário da Inglaterra, em termos arrogantes, reclama uma indenização
de cem mil libras esterlinas pelo assassínio de Richardson, desculpas formais
pedidas pelo Governo Japonês ao Governo daquela Potência, e a execução dos
criminosos diante de uma força naval da Marinha Britânica que iria à terra só
para esse fim; e mais vinte e cinco mil libras pelos feridos em diversas
ocasiões, e mais dez mil pelas duas sentinelas mortas no ataque à legação
provisória, limitando em vinte dias o prazo para uma resposta categórica e
declarando que, no caso de recusa ou negligência por parte do Governo Japonês,
passaria a questão às mãos do Comandante em Chefe das forças navais de Sua
Majestade Britânica nas águas do Extremo Oriente, o Almirante Kuper, para que
tomasse este as medidas coercivas que lhe parecessem acertadas.
Bárbaros lhe chamavam os filhos do país, e com razão,
porque bárbaro não é só o que comete barbarias, é também todo aquele que comete
barbaridades.
5.o Capítulo
A ABERTURA
O leonino arreganho não produziu porém o efeito que
esperava o leão, e as ovelhas acabaram por lhe fazer amargar um bem mau quarto
de hora. Contavam sem dúvida os britânicos que as coisas se passariam como
pouco antes na sua brutal e desumana expedição de Changai. — Quia nominor
leo! mas os japoneses não eram chineses, não tremeram de medo com as
ameaças da Soberana dos Mares, ao contrário, mal o Micado teve notícia da
atrevida reclamação, expediu ostensivamente o seguinte manifesto aos trinta e
seis mais importantes dos duzentos e sessenta e dois principais daimos do
Império, no qual transparece toda a singela fortaleza de sua alma:
"Meus príncipes. As gentes desses navios de guerra
ingleses; que por teima estão aí fundeados em Yokohama, pedem-nos contas pela
morte de alguns de seus compatriotas assassinados em nosso país, e como
satisfação querem não sei quais e quantas coisas, de que nem vale a pena
tratar, porque nenhuma delas sem dúvida lhes será concedida. Mas, como a formal
e desprezível recusa há de dar em resultado a guerra imediata, preparai-vos
para ela com ânimo seguro. De minha própria mão vos envio Eu, Micado, este
aviso para que estejais prontos no primeiro momento. A campanha será aberta por
mim em pessoa."
O que há de mais notável neste ato é o modo pelo qual o
Imperador já se dirige diretamente aos daimos, a quem chama "Meus
Príncipes", pondo assim inteiramente de lado a autoridade shogunal. E não
pára aí a inesperada ação do ex-fantasma de Kioto: calculando este que o
astucioso Shogun lhe poderia destruir a obra tão bem começada, trata de isolá-lo
dos ministros estrangeiros e de evitar que entre eles se tramem novas
maquinações contra os seus planos; manda chamá-lo com a máxima urgência,
dizendo-lhe que lhe precisa fazer em segredo de Estado importantíssimas
revelações. Iyemochi cai no laço e vai a Kioto. Declara-lhe o Micado, em
confidência íntima, achar-se o país em crise, e que pois a capital do Imperador
e os seus arredores devem ser defendidos pelas forças permanentes do Estado
confiadas ao Shogun; e que decidida como está a expulsão dos estrangeiros,
haverá guerra provavelmente e daí negociações e ajustes a fazer pelo competente
Poder Executivo debaixo das vistas do Chefe da Nação; o que só pode ter lugar
no porto de Osaka por ser o mais próximo da Corte Imperial (trinta e poucas
milhas de distância); e mais que, declarada a guerra, competirá ao Shogun
assumir o comando geral das forças e entrar logo em ação.
E, depois de uma pausa, em que o silêncio foi absoluto, o
Micado acrescentou, franzindo levemente as sobrancelhas:
— Será essa ocasião, meu jovem Shogun, a de melhor
patenteardes a lealdade devida ao vosso Imperador e de pordes em relevo a vossa
dedicação pela causa pública, usando daquela mesma energia e veemência com que
repelistes à mão armada o miserável bando de maltrapilhos e famintos que vos
foi importunar em Yedo!
Iyemochi fingiu não compreender e disse com um meio
sorriso:
— Mas... tenho então de abandonar o governo do país? ...
Parece-me que...
- Não vos dê isso cuidado, príncipe, atalhou o Imperador,
far-vos-ei substituir durante a guerra por pessoa competente. Cumpra cada qual
o seu dever observando as minhas ordens e o resto ficará por minha conta, que
também saberei cumprir com o meu. Na ocasião solene de assumirdes o comando das
armas, confiar-vos-ei, de mão a mão, a mesma sacrossanta espada que o imortal
fundador da vossa dinastia recebeu diretamente das divinas mãos do meu
antepassado Goyo Zei, quando tiveram que repelir, em condições talvez piores
que as de hoje, a primeira invasão ousada pelos bárbaros do Ocidente nesta
nossa terra tão bem fechada dentro das "Cem Leis" por Tokugawa Ieiás,
e a qual os descendentes deste pretendem agora abrir à cobiça e à sensualidade
dos nossos inimigos! (Iyemochi tossiu sem levantar os olhos.) Aprontai-vos para
a guerra seguro da vitória, Tokugawa Iyemochi! Hão de chegar-vos à boca o peixe
e o sakê do triunfo! Com a espada de Goyo Zei não podereis sair senão
vencedor; além de que, é minha intenção ajudar-vos pelo meu lado, suplicando ao
poderoso espírito de meus avós que lá das sublimes alturas vos proteja
diretamente na patriótica expedição. Confiai nisso! e ficareis satisfeito
comigo, suponho eu, pois creio não ter regateado convosco as minhas graças.
Iyemochi curvou-se até poder olhar pela frente os seus
próprios joelhos e respondeu:
— Satisfeitíssimo, Imperial Senhor! Longe de haverdes
regateado as vossas mercês, confundistes o meu cabal imerecimento com tanta
prodigalidade. Vou daqui, sem perda de um instante, dar todas as providências
para que as vossas sagradas ordens sejam cumpridas à risca... Parto
imediatamente para Yedo e...
— Não! contrapôs o Imperador. Convém aos interesses do
Estado que vos quedeis em Kioto; dar-vos-ei parte quando for oportuno o
tomardes à vossa capital. Por enquanto vos deterei amigavelmente ao meu lado e,
para que nada vos falte aqui, vou mandar pôr à vosas disposição os domésticos
de que houverdes mister e, além das gueichas e menestréis mais escolhidos do
meu kókio (harém), uma guarda de honra na altura da vossa condição.
O Shogun baixou a cabeça sem responder palavra. Estava
prisioneiro. O coração naturalmente lhe estalava de cólera, mas na sua
fisionomia não transluziu dela o menor vislumbre, porque não era debalde que os
chins durante muitos séculos tinham ensinado ao Japonês o segredo da
inalterável compostura do gesto, a fria ciência búdica de governar com a
vontade a expressão do rosto no meio das mais fortes comoções morais,
anestesiando os nervos condutores e impedindo-lhes levarem ao semblante nem a
menos lúcida centelha do oculto incêndio, tapando a tempestade interior com uma
indecifrável máscara de cadáver; triste e amarela ciência que é bem da Ásia, e
que só poderia ter sido refinada a tal extremo por uma raça velha, impassível e
hipócrita como a raça chinesa.
Foi com o mais fino e perfeito sorriso nos lábios e com a
mais airosa reverência que o galante chefe dos Tokugawas se afastou do seu
carcereiro, a recolher aos principescos aposentos de papel de seda que lhe
haviam destinado no chiro imperial.
E aqui tem o leitor como conseguiu o Micado fechar na mão
a influência do Shogun. Produziu logo o fato grande escândalo nos paços de Sua
Majestade; ninguém atinava como poderia funcionar daí em diante a administração
pública, pois que o Imperador não haveria de ser ao mesmo tempo poder
deliberativo e poder executivo. Qual então seria agora o seu intermediário para
com os daimos, se o chefe dos príncipes ficava preso em Kioto? Iria o Monarca
chamar à alçada do Trono as Cortes Shogunais de Yedo? Mas isso, — que lhes
valesse Amateras! — daria uma balbúrdia de todos os diabos! rosnavam entre si,
perplexos e formigantes os cortesãos imperiais, que nada entendiam de
administração e viam periclitar muito a sério o seu doce e defumado ócio.
Entretanto Komei, sem consultar nenhum dos seus Conselhos,
nomeia o prestigioso Owari para substituir em Yedo o Shogun durante a guerra;
encarrega Nabeschima, daimo com direito à sua inteira confiança, de defender
militarmente a vasta bacia de Kuanto, onde se acha aquela capital, e entrega ao
príncipe de Hizen, de quem já conhece a lealdade, a direção das forças
marítimas que devem proteger as duas baías de Suruga e Sagami e as costas da
península de Izo. E a todos os daimos, cujos principados confinem com o
litoral, ordena que se recolham às competentes províncias e que se provenham
para a guerra.
Quanto à indenização inglesa, nada, nem a mais ligeira
referência nos seus atos oficiais; apenas, entre as instruções secretas dadas a
Owari, no momento da partida deste, recomenda-lhe que, a todas as perguntas do
Ministro inglês sobre o caso, vá respondendo sempre que o Shogun, em razão de
interesse público e ordem direta do Imperador, se acha, por tempo
indeterminado, ausente da sua capital, e que só ele pessoalmente pode dizer
qualquer coisa sobre o assunto, pois foi o Shogunato quem, lá por conta
própria; engendrou essa pantominice dos tratados, da qual, como contrária que é
às leis do pais, não cogita o Chefe da Nação, nem está disposto a cogitar; e
mais que, se os ingleses impugnassem tais razões com ofensas graves, então
prendesse o Ministro e todos os mais que pudesse da mesma nacionalidade,
facultando-lhe todavia os meios de comunicarem à sua esquadra que serão
irrevogavelmente enforcados na praia à primeira manifestação hostil partida de
bordo para a terra.
Nada disso porém chegou a acontecer. Terminado o prazo dos
vinte dias, quando a Nação, já disposta para a guerra, contava que o Almirante
Kuper resolvesse lançar mão das tais medidas coercivas com que o Ministro a
ameaçara, eis que este, à vista da ausência do Shogun, oferece um novo prazo de
igual tamanho, e depois ainda outro, que naturalmente não seria o último, se um
fato decisivo ocorrido em Yokohama, onde havia então o único settlement existente
no Império, não viesse de modo imprevisto torcer o rumo da questão.
É que, enquanto no litoral se armavam as fortalezas e no
interior as eminências das montanhas, e enquanto os Tokugawas, tendo à frente
os príncipes Aidzu, Ongasawa e Joren In, recorriam a todos os meios para
libertar o seu chefe das mãos do Imperador, começava em Yokohama a formar-se o
vácuo em volta dos estrangeiros que aí residiam, em número maior do que era de
esperar da má vontade dos donos da terra. Sem causa apreciável, sem nenhuma
justificativa, nem o menor comentário, organizava-se, pela calada e
metodicamente, a emigração do elemento indígena, de uma à outra ponta do settlement.
Que significaria isso?... Que novidade haveria?... Ninguém
o explicava, e, um atrás do outro, lá se iam esgueirando os empregados do
comércio e os serventes domésticos naturais do país, alguns até abandonando o
saldo a receber, sem nenhum deles declarar ao patrão porque deixava o serviço,
nem para onde se punha. Qual seria o motivo de tão estranha greve? Os operários
largavam a obra ao meio, perdendo o que estava feito; desmanchavam-se ajustes vantajosos;
retiravam-se compromissos e palavras; fechavam-se casas comerciais e
particulares depois de absolutamente esvaziadas; cambistas, negociantes,
corretores, bufarinheiros, kurumaias, kulis, todos enfim que constituíam o
elemento nacional no settlement, desertavam silenciosamente, sem mostras
de ressentimento, nem tristeza, carregados de trouxas e com a filharada às
costas. Afinal, um ou outro retardatário, preso por interesses de alta monta,
liquidava às pressas, sem olhar prejuízo, as últimas transações e, já com as
bagagens e a carroça ou o barco à espera, despedia-se para sempre.
E então?
Os europeus, a olharem de boca aberta uns para os outros,
sem atinar nenhum com a razão daquele súbito abandono, viram-se reduzidos aos
seus recursos pessoais, porque já não havia quem os servisse; muito gentleman
teve que escovar as próprias botas, e muita Iady que pôr o avental
de cozinheira; e começaram logo a imaginar em iminência toda a sorte de
perigos, acabando, como era natural, por apoderar-se deles o pânico, que ao fim
de alguns dias tomava já as proporções de intolerável angústia.
E no meio desse sobressalto terrível, dessa expectação de
uma desgraça que ninguém explicava, ou cada qual explicava a seu modo para
maior ansiedade e desespero de todos, no meio dessa incógnita calamidade que ia
rebentar sem se saber donde, nem quando, começaram a chegar, como um sopro de
morte, as primeiras notícias de que as forças japonesas já se mobilizavam
ganhando os litorais; que o Imperador havia marcado o dia definitivo para a
expulsa-o dos estrangeiros, e que o "Bando dos Roninos", como
chamavam eles aos agitados nativistas, já em fúria descia a estrada do Tokaido
na direção de Yokohama para invadir e saquear.
Os ingleses, que eram os mais de perto ligados ao instante
desastre e eram também os mais afligidos pelo terror, foram agarrar-se ao seu
Ministro pedindo-lhe garantias de vida e de propriedade. Houve reunião de
diplomatas, conselhos de autoridades navais, de chefes de corporação e
companhias; trocaram-se notas entre as diversas legações presentes; e afinal o
Ministro inglês comunica oficialmente aos seus compatriotas que "As forças
reunidas nas águas japonesas sob o comando em chefe do Almirante Kuper não eram
suficientes para proteger a colônia, garantir a existência e os bens dos
súditos de Sua Majestade Britânica, residente no settlement de Yokohama,
e que por conseguinte convidava os mesmos a tomarem até o dia 26 desse mês
(julho de 1863) as medidas que lhes parecessem necessárias para se porem ao
abrigo da guerra marcada para aquela data."
E esta?'
Foi pior que uma bomba explosiva tão inopinado ultimatum
da Chancelaria inglesa, caindo em cheio sobre a ávida e orgulhosa colônia,
cujos membros, justamente nesses dois últimos anos, tinham em grande número
feito vir da Europa as competentes famílias para junto de si. E semelhante
confissão de fraqueza por parte dos enviados oficiais da mais forte Potência
marítima que ali se achava, punha, nem só os ingleses, mas todos os
estrangeiros de Yokohama, em estreitíssimo apuro: se a Grã-Bretanha não podia
proteger os seus súditos quanto mais os outros Estados!
E para onde diabo queria o Ministro inglês que fugissem os
seus compatriotas? Para onde, se de um lado estavam as forças japonesas, aos
milhares e assanhadas de ódio; e do outro o Oceano, sem um só navio que os
abrigasse, pois os existentes eram todos indispensáveis para o combate? E como
os ingleses, os mais se encheram de pavor; holandeses, russos, alemães,
norte-americanos e franceses viam-se já encurralados no estreito setilement,
com suas famílias e seus haveres, dentro de um círculo de fogo,
exterminados até o último por uma guerra feroz e bárbara, feita a ponta de
azagaia e bombas incendiárias como usavam os japoneses.
A agonia foi terrível. A cada momento contavam com o
ataque do bando assolador. Então, nem era de esperar menos de tão superiores
raças, acudiu ao alto espírito de todos os representantes estrangeiros as
idéias filantrópicas e os deveres morais da civilização. Foram lembradas, na
ardente eloqüência dos momentos críticos, todas as conquistas humanitárias
feitas até esse ponto do nosso século de luz pelo Internacionalismo liberal e
triunfante! "Para que a guerra? — pergunta oficialmente o Coronel Neale,
em nome de todos os diplomatas residentes em Yokohama, no seu longo Manifesto
de 19 de julho de 1863 dirigido ao Governador de Kanagawa e daquela cidade. —
Para que a guerra, se o fim da Europa no formoso Oriente é a confraternização e
a paz? Em vez de lutarmos, melhor será que nos entendamos e que nos amemos. O
que por si impõe antes de mais nada, como indeclinável necessidade do progresso
humano, é que o nobre, o corajoso Povo Japonês, a tantos títulos obrigado
moralmente a compreender as nossas boas intenções, resolva por uma vez
abandonar essa idéia de má vontade e resistência contra os povos amigos, contra
os seus irmãos do Ocidente, que o procuram para a consorciação universal, e nos
abra os braços e nos receba como nós outros em nossos países fazemos, nem só
com os japoneses, mas com todo e qualquer indivíduo proveniente seja de que
nação for."
O manifesto em que vinha este tópico de requentada ternura
produziu o seu efeito, graças aos Tokugawas que trabalhavam ativamente contra a
guerra. Desceu logo de Yedo uma Embaixada presidida pelo transator Sakai Ukio,
ministro do Shogun e amigo dos estrangeiros, com o qual chegaram os ingleses à
fala e logo entraram a negociar as pazes, ficando inteiramente de parte a
pendência da indenização.
Entre os nativistas porém o efeito do manifesto foi bem
diverso. Um deles chegou a litografar um violento libelo que fez espalhar por
Yokohama e no qual, entre muitas coisas, dizia:
"Com que então esse Colosso Europeu, esse roncador
atrevido, até aqui tão arrogante nas suas indevidas reclamações, encolhe-se
agora diante do perigo, porque, diz ele, receia lhe matem a mulher e os
filhos?! Mas não foi o perigo que os foi buscar à casa; foram eles que vieram
buscar o perigo à casa alheia! Que se agüentem! se lhes é duro o transe, mais
dura é a pedra em que a sua audácia nos converteu o coração! Tremem pela
mulher, os filhos; e nós? nós acaso não teremos também família, que vivia feliz
e tranqüila ao nosso lado, e agora se vê, talvez para sempre, privada do seu
chefe que, em vez de cuidar dela; anda à aventura das armas para defender a
outra sua família maior, que é a pátria?! Que é feito das tais medidas
coercivas do famoso Almirante Kuper? Pois então, apesar de todo esse
espetaculoso aparato de força; apesar dessas numerosas máquinas de guerra
contra as quais só temos para opor o nosso brio nacional; apesar da tão
celebrada ciência e tão decantada coragem desses orgulhos donos dos mares
alheios; apesar dessas dragonas de ouro e desses chapéus de pluma que fizeram
rebentar de medo o Imperador da China nas profundezas empedradas de Pekin;
pois, apesar de tudo isso, nós, os japoneses, esparsos e mal disciplinados, sem
outra arte na guerra mais do que a luta corpo a corpo e sem outra força além da
própria coragem e da convicção patriótica, por tal modo os aterramos que, à
primeira notícia de um ataque eventual, declaram-se impotentes para defender o
território cinicamente ocupado contra a vontade do dono, e escondem-se atrás
das saias da família, a pedir pazes com fementidas palavras de ternura?! Para
que então gritaram tão alto?! Por que nos ofenderam, se não tinham coração para
resistir?! Não! Nós, como o nosso Imperador, não queremos a paz, nem queremos
amizade com estrangeiros! Guardem eles para si a sua civilização e os seus
progressos e com eles se fartem para longe de que lhos não pediu! Resistiremos
até o fim! Se os degenerados Tokugawas conseguirem reter os Daimos, não
conseguirão jamais reter o nosso ódio mortal e a enorme sede de vingança que
nos devora; e nós, que já não temos outro chefe, além dos deuses e do Micado,
havemos de tapar com terra a boca que nos insultou!"
Quando subiu ao conhecimento do Imperador a proposta de
paz, fez ele logo enviar, como resposta, a todos os representantes diplomáticos
estrangeiros as seguintes singelíssimas palavras:
"Meu Povo não quer relações com estrangeiros. A cada
momento a gente do país está matando ou está com vontade de matar ingleses, e a
Inglaterra quer que se pague. O meu Governo fez já quanto pôde a ver se as
coisas se acomodavam, nada porém conseguiu, nem conseguirá, em razão do
entranhado ódio do meu Povo pelos estrangeiros; ódio que aperta de dia para dia
que nem o sol do mês de agosto. Assim resolvi fechar definitivamente os portos
e convidar por bem os estrangeiros a que se retirem do país para evitar novas
questões."
Enquanto o Micado procedia deste modo, tão franco, tão
superior e tão singelo, o Ministro inglês, de mãos dadas ao da França, obtinham
ambos corresponder-se com o Shogun e, aproveitando a falsa posição política em
que se achava este perante o Imperador e perante o povo, de um prisioneiro e do
outro desprezado, propunham-lhe secretamente uma aliança ofensiva e defensiva,
comprometendo-se a auxiliá-lo com as forças navais de que dispunham, caso ele
quisesse readquirir o alto poder que lhe havia escapado das mãos.
Este fato não precisa comentários; basta dizer que é um
caso histórico corrente em todas as crônicas japonesas, mas que nenhum europeu
ou norte-americano o narra de modo claro e positivo nos seus livros.
Compreende-se que aos estrangeiros não conviesse de
maneira alguma o aniquilamento do Shogun, principalmente depois que o Imperador
declarara não cogitar dos tratados lá entre eles feitos; compreende-se ainda
que, conhecendo aqueles um pouco melhor agora o mecanismo da política japonesa
e reconhecendo ter pisado em falso, quisessem a todo custo salvar de modo
airoso a própria situação; mas o que se não compreende é que essa gente
civilizada não tivesse um pouco de consciência ou de escrúpulo em urdir o mal,
que estava a tramar contra a paz e os direitos desse pobre povo, a quem pediam
pazes em nome da filantropia e do amor universal. Positivamente tinham os
japoneses razão em chamar-lhes bárbaros! E note-se que, se por um lado os
diplomatas estrangeiros se mostravam desumanos, por outro se revelavam inábeis,
porque pretender destronar o Micado era pisar muito mais em falso ainda do que
ter tomado o Shogun pelo Imperador do Japão como fizeram na primeira descaída.
Seria mais fácil arrasar o Fuji Yama ou transladar para a Califórnia o
Daibutsu, como diligenciaram os yankees na sua impertinente megalomania, do que
pôr abaixo o divino espectro de Kioto do místico pedestal em que havia dois mil
e duzentos anos imperava. Tentando semelhante coisa, o que conseguiriam os
estrangeiros havia de ser, e com efeito foi, ensangüentar a presa que acossavam
e agravar a desgraça dos Tokugawas, a quem aliás deviam gratidão por serem
esses no país a única força ativa que os não desprezava, nem odiava. Verá
depois o leitor em que espécie pagou o Inglês aos descendentes de Ieiás essa
excepcional proteção, sem a qual todavia não teriam penetrado no sedutor
arquipélago, senão depois de arrasá-lo com a sua civilização de grande alcance
forjada na universidade de Krupp.
O Shogun, coitado! acolheu com as duas mãos a proposta que
solicitamente lhe levavam os dois civilizadores ministros; mas, ao aconchegá-la
reconfortado ao peito, picou-se logo num espinho que ia dentro dissimulado no
embrulho, era o ultimatum da indenização.
— Ah! isso era sagrado! explicou o inglês; antes de mais
nada, convinha satisfazer Sua Majestade Britânica a respeito daquelas belas
cento e tantas mil libritas reclamadas. Sem isso não havia negócio feito!
E o que a isto se seguiu é inacreditável. O Shogun que,
apesar de tudo, dispunha ainda do Tesouro público e era por si mesmo e sua
família imensamente rico, entrou com o Ministro inglês no seguinte acordo.
Pagava as cento e cinqüenta e cinco mil libras esterlinas, mais que fossem,
porque a questão não era de dinheiro; pagava, com uma condição porém — o
Ministro inglês havia de comprometer-se, sob palavra de honra, a guardar
segredo, de modo que o fato não transpirasse dentro do Japão e que jamais, em
nenhuma hipótese, fosse sabido pelo Micado, nem pelo povo.
O Inglês aceitou. Pudera! E a indenização foi efetivamente
paga em segredo, às quatro horas da madrugada do dia 24 de agosto de 1863. O
dinheiro foi levado à Legação da Inglaterra em carretas de mão e dentro de
cunhetas abarrotadas de muito boa moeda de prata e ouro.
Vergonhas de parte a parte. Ah! mas o Japão heróico e
brioso não tinha morrido com a família Tokugawa. Enquanto essas baixezas se
mercadejavam no balcão da Chancelaria londrina com um indigno descendente de
Ieiás, o destemido Mori, o príncipe de Nagato, em cujas veias corria o mesmo
sangue de Mito, ao saber do ocorrido,. corre às fortalezas do litoral, denuncia
o revoltante caso e toca com os seus três frágeis navios para as águas de
Chimonoseki na entrada do Mar Interior, onde se ostentavam vasos de guerra de
todos os Estados ocidentais com pretensões no Japão, e aí, cercado de seus
samurais intransigentes e protegido pelas baterias de terra, lavrou o protesto
da honra nacional, cuspindo balas sobre aqueles, do primeiro ao último, ao
mesmo tempo, sem medir forças, nem escolher bandeiras. Bombardeou o navio
inglês Euryalus, os franceses Kien-Chan, Tancrêde, os
norte-americanos Pembroke e Wyoming, o alemão Semiramis, e
o holandês Medusa, que ficou incendiado, a arder no meio daquelas águas
profanadas, com a triunfante pira do patriotismo, ali acesa por um raio
vingador para iluminar a eterna desafronta.
Agora, que vencessem os estrangeiros! só venceriam já
esbofeteados!
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