LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em
meio eletrônico
Luzia-Homem, de Domingos Olímpio
Edição de base:
Biblioteca Virtual – Escola
do Futuro
I
O morro do curral do
Açougue emergia em suave declive da campina ondulada. Escorchado, indigente de
arvoredo, o cômoro enegrecido pelo sangue de reses sem conto, deixara de ser o
sítio sinistro do matadouro e a pousada predileta de bandos de urubutingas e
camirangas vorazes.
Bateram-se os vastos
currais, de grossos esteios de aroeira, fincados a pique, rijos como barras de
ferro, currais seculares, obra ciclópica, da qual restava apenas, como lúgubre
vestígio, o moirão ligeiramente inclinado, adelgaçado no centro, polido pelo
contínuo atrito das cordas de laçar as vítimas, que a ele eram arrastadas aos
empuxões, bufando, resistindo, ou entregando, resignadas e mansas, o pescoço à
faca do magarefe. Ali, no sítio de morte, fervilhavam, então, em ruidosa
diligência, legiões de operários construindo a penitenciária de Sobral.
No cabeço saturado de
sangue, nu e árido, destacando-se do perfil verde-escuro da serra Meruoca, e
dominando o vale, onde repousava, reluzente ao sol, a formosa cidade
intelectual, a casaria branca alinhada em ruas extensas e largas, os telhados
vermelhos e as altas torres dos templos, rebrilhando em esplendores abrasados,
surgia em linhas severas e fortes, o castelo da prisão, traçado pelo engenho de
João Braga, massa ainda informe, áspera e escura, de muralhas sem reboco,
enleadas em confusa floresta de andaimes a esgalharem e crescerem, dia a dia,
numa exuberância fantástica de vegetação despida de folhas, de flores e frutos.
Pela encosta de cortante piçarra, desagregada em finíssimo pó, subia e descia,
em fileiras tortuosas, o formigueiro de retirantes, velhos e moços, mulheres e
meninos, conduzindo materiais para a obra. Era um incessante vai e vem de
figuras pitorescas, esquálidas, pacientes, recordando os heróicos povos
cativos, erguendo monumentos imortais ao vencedor.
Acertara a Comissão de
Socorros em substituir a esmola depressora pelo salário emulativo, pago em
rações de farinha de mandioca, arroz, carne de charque, feijão e bacalhau,
verdadeiras gulodices para infelizes criaturas, açoitadas pelo flagelo da seca,
a calamidade estupenda e horrível que devastava o sertão combusto. Vinham de
longe aqueles magotes heróicos, atravessando montanhas e planícies, por
estradas ásperas, quase nus, nutridos de cardos, raízes intoxicantes e palmitos
amargos, devoradas as entranhas pela sede, a pele curtida pelo implacável sol
incandescente.
Na construção da cadeia
havia trabalho para todos. Os mais fracos, debilitados pela idade ou pelo
sofrimento, carregavam areia e água; aqueles que não suportavam mais a fadiga
de andar amoleciam cipós para amarradio de andaimes; outros menos escarvados
amassavam cal; os moços ainda robustos, homens de rija têmpera, superiores às
inclemências, sóbrios e valentes, reluziam de suor britando pedra, guindando
material aos pedreiros, ou conduzindo às costas, de longe, das matas do sopé da
serra, grossos madeiros enfeitados de palmas virentes, de ramos de pereiro de
um verde fresco e brilhante, em festivo contraste com o sítio ressequido e
desolado. E davam conta da tarefa, suave ou rude, uns gemendo, outros cantando
álacres, numa expansão de alívio, de esperança renascida, velhas canções,
piedosas trovas inolvidáveis, ou contemplando com tristeza nostálgica, o céu
impassível, sempre límpido e azul, deslumbrante de luz.
Esse concerto esdrúxulo
de vozes humanas em cânticos e queixumes, de rugidos da matéria
transformando-se aos dentes dos instrumentos, aos golpes dos martelos, de
brados de comando dos mestres e feitores, essa melopéia do trabalho amargurado
ou feliz, era, às vezes, interrompido por estrídulos assobios, alarido de
gritos, gargalhadas rasgadas e as vaias de meninos que se esganiçavam: era uma
velha alquebrada que deixara cair a trouxa de areia; um cabra alto de hirsuta
cabeleira marrafenta,
lambuzado de cal, que escorregara ao galgar uma desconjuntada e vacilante
escada, e lançava olhares ferozes à turba que o chasqueava ; era a carreira
constante das moças e meninas para as quais o trabalho era um brinquedo; eram
gritos de dor de um machucado, rodeado pela multidão curiosa e compassiva, ou
os gemidos de algum infeliz, tombando prostrado de fadiga, pedindo pelo amor de
Deus, no estertor da hora extrema, não o deixassem morrer sem confissão, sem
luz, como um bicho.
Cercava o edifício em
construção, um exótico arraial de latadas, de choupanas, de ranchos
improvisados, onde trabalhavam carpinteiros falqueando longas vigas de
pau-d'arco, frechais de frei-jorge e gonçalo-alves, ou serrando e aplainando
cheirosas tábuas de cedro. Marcando a subida do morro, se alinhavam em rua
tortuosa, pequenas barracas feitas de costaneiras, cascas e sarrafos, as quais
serviam de abrigo às costureiras, fazendo, dos sacos de víveres, roupa para os
esmolambados, envoltos em nojentos trapos que lhes mal disfarçavam o pudor e a
horrenda magreza esquálida. De outras barracas subia ao ar, em novelos espessos
ou tênues espirais azuladas, o fumo de lareiras, onde, sobre toscas trempes de
pedra, ferviam, roncando aos borbotões, grandes panelas de ferro, repletas de
comida.
Ao cair da tarde, quando
cálida neblina irradiava da terra abrasada, esbatia o recorte das montanhas ao
longe, e adelgaçava o colorido da paisagem em tons pardacentos e confusos, o
sino da matriz, como um colossal lamento, troava a Ave-Maria. Cessava o rumor e
o mestre-de-obras batia com o pesado martelo o prego, em solene cadência,
anunciando o termo do trabalho.
A multidão de operários,
depois de silenciosa e contrita prece, se agrupava em torno dos feitores; e,
respondido o ponto, desfilava, depositando, em determinado sítio, a ferramenta
e vasilhame. Fatigada, suarenta, dispersava-se, dividindo-se em grupos,
seguindo várias direções em busca de pousada, ou desdobrando-se na curva dos
caminhos, nas forquilhas das encruzilhadas, até se sumir como sombras
desgarradas, imersas na caligem da noite iminente.
Começava, então, a vida
nos acampamentos, desertos durante o dia. E descantes à viola, ruídos de sambas
saracoteados, de vozes lâmures ou irritadas, de gargalhadas incontinentes
formavam incoerentes acordes com as rajadas ásperas de viração a silvar nos
galhos secos e contorcidos das moitas mortas de jurema e mofumbo, ou nas palmas
virentes das carnaubeiras imortais.
No céu límpido, profundo
e sereno, em quietitude de lago tranqüilo, sem as manchas de nuvens errantes,
tremeluziam em esplêndidas constelações, miríades de estrelas. Na terra escura,
um colar de luzes tímidas, como círios melancólicos velando enorme esquife,
cercava a cidade adormecida em torpor de monstro saciado. E no alto sinistro do
curral do Açougue, erguia-se, silenciosa e solitária, a molhe sombria da
penitenciária, como um lúgubre monumento consagrado à maldade humana.
II
O francês Paul –
misantropo devoto e excelente fabricante de sinetes que, na despreocupada
viagem de aventura pelo mundo, encalhara em Sobral, costumava vaguear pelos
ranchos de retirantes, colhendo, com apurada e firme observação, documentos da
vida do povo, nos seus aspectos mais exóticos, ou rabiscando notas curiosas,
ilustradas com esboços de tipos originais, cenas e paisagens – trabalho
paciente e douto, perdido no seu espólio de alfarrábios, de coleções de
botânica e geologia, quando morreu, inanido pelos jejuns, como um santo.
Um dia, visitando as
obras da cadeia, escreveu ele, com assombro, no seu caderno de notas:
“Passou por mim uma
mulher extraordinária, carregando uma parede na cabeça.”
Era Luzia, conduzindo
para a obra, arrumados sobre uma tábua, cinqüenta tijolos.
Viram-na outros levar,
firme, sobre a cabeça, uma enorme jarra d'água, que valia três potes, de peso
calculado para a força normal de um homem robusto. De outra feita, removera, e
assentara no lugar próprio, a soleira de granito da porta principal da prisão,
causando pasmo aos mais valentes operários, que haviam tentado, em vão, a
façanha e, com eles, Raulino Uchoa, sertanejo hercúleo e afamado, prodigioso de
destreza, que chibanteava em pitorescas narrativas.
Em plena florescência de
mocidade e saúde, a extraordinária mulher, que tanto impressionara o francês
Paul, encobria os músculos de aço sob as formas esbeltas e graciosas das morenas
moças do sertão. Trazia a cabeça sempre velada por um manto de algodãozinho,
cujas ourelas prendia aos alvos dentes, como se, por um requinte de
casquilhice, cuidasse com meticuloso interesse de preservar o rosto dos raios
do sol e da poeira corrosiva, a evolar-se em nuvens espessas do solo adusto,
donde ao tênue borrifo de chuvas fecundantes, surgiam, por encanto, alfombras
de relva virente e flores odorosas. Pouco expansiva, sempre em tímido recato,
vivia só, afastada dos grupos de consortes de infortúnio, e quase não
conversava com as companheiras de trabalho, cumprindo, com inalterável calma, a
sua tarefa diária, que excedia à vulgar, para fazer jus à dobrada ração.
– É de uma soberbia
desmarcada – diziam as moças da mesma idade, na grande maioria desenvoltas ou
deprimidas e infamadas pela miséria.
– A modos que despreza
de falar com a gente, como se fosse uma senhora dona – murmuravam os rapazes
remordidos pelo despeito da invencível recusa, impassível às suas insinuações
galantes.
– Aquilo nem parece
mulher fêmea – observava uma velha. alcoveta e curandeira de profissão. Reparem
que ela tem cabelos nos braços e um buço que parece bigode de homem...
– Qual, tia Catirina! O
Lixande que o diga! – maldou uma cabocla roliça e bronzeada, de dentes de
piranha, toda adornada de jóias de pechisbeque e fios de miçanga, muito
besuntada de óleos cheirosos.
– Não diga isso que é
uma blasfêmia – atalhou Teresinha, loura, delgada e grácil, de olhar petulante
e irônico, toda ela requebrada em movimentos suaves de gata amorosa.
– Por ela eu puno; meto
a mão no fogo...
– Havia de sair torrada.
Isso de mulher, hoje em dia, é mesmo uma desgraceira ...
– Mas você não pode
negar que ela viva no seu canto sossegada sem se importar com a vida dos outros
e fazendo pela sua, como uma moira de trabalho. Vocês, suas invejosas, não a
poupam; não tendo para dizer dela um tico assim, vivem a maldar, a inventar
intrigas e suspeitas. Nem que ela fosse uma despencada do mundo...
– Tu a defendes, porque
és parceira dela...
– Antes fosse!... Outros
galos me cantariam. Não andaria aqui, sem eira nem beira, metida nesta
canalhada de retirantes... Quem me dera ser como Luzia, moça de respeito e de
vergonha...
– Quem perdeu tudo isso
para ela achar?.. – obtemperou numa rasgada gargalhada de sarcasmo brutal, a
roliça cabocla de agudos dentes.
– Qual?... Vão atrás da
sonsa!...
– Deixem estar que há de
ser como as outras. Em boniteza, verdade, verdade, mete vocês todas num
chinelo. Aquilo é mulher para dar e apanhar – disse chasqueando um soldado de
linha, destacado no curral do Açougue para manter a ordem, pois não raro
rixavam e se engalfinhavam mulheres, ou se esbordoavam homens por fúteis
pretextos: houvera mesmo sérios conflitos e lutas sangrentas, tão abatido
estava, naquela pobre gente o senso moral.
– Vão ver que você, seu
Crapiúna, também está fazendo roda a Luzia-Homem?!...
Crapiúna, o tal soldado,
era mal-afamado entre os homens e muito acatado pelas mulheres, graças à
correção do fardamento irrepreensível, os botões dourados, o cinturão e a
baioneta polidos e reluzentes: todo ele tresandando ao patchuli da pomada, que
lhe embastia a marrafa e o bigode, teso e fino como um espeto. Possuía,
apesar das duras feições, o encanto militar, a que é tão caroável o animal
caprichoso, e fútil, a mulher de todas as categorias e condições sociais,
talvez porque, sendo fraca, naturalmente, se deixa atrair pelas manifestações
da força.
Contavam dele histórias
emotivas, aventuras galantes, feitos de bravura, façanhas na perseguição de
criminosos célebres; ele estivera nas escoltas que prenderam o facínora José
Gabriel e o cangaceiro Zé Antônio do Fechado, cavaleiro e bravo à antiga, de
raça de heróis, os Brilhantes, Ataídes, e Vicente Lopes do Caminhadeira,
representantes dispersos, atávicos, espécimens ferozes de banditismo que foi a
glória de Portugal, e lhe conquistou mundos, descobrindo-os, roubando-os com a
indômita coragem de piratas, consagrados pela imperecível gratidão da pátria à
póstera veneração.
Não faltavam ao soldado
feitos que lhe aumentassem o prestígio de pessoa bem-conformada, sem vícios que
lhe dessem o realce de um afortunado. Dizia-se, à puridade, nos colóquios da
protérvia popular, que, antes de ser recrutado por audácias sensuais, e
envergar a farda, fora guarda-costas de um famigerado fazendeiro da Barbalha,
onde executara proezas cruéis, de pasmar, em verdes anos, pois mal lhe
despontava, então, o buço. Tinha o ativo de três mortes e outros crimes
menores, valendo-lhe isto por título ao temeroso respeito do povo.
A insinuação de Romana
ferira certo o alvo, e assanhara a secreta cupidez de Crapiúna, que não se
conformava com os modos retraídos e a impassível frieza da mulher-homem,
resistência passiva e calma, ante a qual se amesquinhava a sua fama e sentia
arranhado o amor-próprio de vitorioso em fáceis conquistas. Sempre que a
encontrava, dirigia-lhe, com saudações reverentes, palavras de ternura e
erotismos incontinentes, olhares e gestos de desejos mal sofreados. E, tão
freqüentes se tornaram esses meios de obsessão, que um dia a moça os rebateu
secamente, com firmeza inelutável:
– Deixe-me sossegada.
Não se meta com a minha vida. Eu não sou o que o senhor supõe...
– Deixa-te de luxos,
rapariga – respondeu Crapiúna, mostrando-lhe um grosso anel de ouro. – Olha a
memória de ouro que tenho para ti... Não te zangues com o teu mulato...
Desde então entrou a
acompanhá-la, a persegui-la por toda a parte, nas horas de trabalho na
penitenciária, nas caminhadas ao rio e a rondar durante a noite pela vizinhança
da casinha velha, lá para as bandas da lagoa do Junco, onde ela morava com a
mãe, velha e enferma, a boa, a santa tia Zefa.
Exasperada por essa
obsessão afrontosa, cada vez mais ardente e descomedida, Luzia queixou-se ao
administrador que obteve do tenente, comandante do destacamento, a remoção do
temerário galante para outros serviços, guarda e faxina da prisão e, nos dias
de folga, a polícia da feira.
O tão severo, merecido castigo penetrou
fundo no duro coração do soldado, remexendo a vasa de instintos, ali
sedimentada em demorado repouso. Mais ainda lhe moeram os melindres, os
comentários irreverentes, os aplausos, as insinuações ferinas e o chasco de ser
punido por queixa da mulher apetecida, a quem ele, com fingido desdém, chamara
uma retirante à-toa, sem eira nem beira, toda arrebitada de luxos e medeixes.
E ainda mais o estomagava o ser a opinião, em esmagadora maioria, favorável ao
castigo.
Acharam todos fora
acertada providência tirar aquela onça do pasto para tranqüilidade e segurança
das moças e das mulheres casadas, pois já era demasiada a falta de respeito
escandalizadora. Aquele homem de maus bofes, era um perigo. E surdiam histórias
de crimes, anedotas grotescas, revelação de casos repugnantes, verdadeiros ou
inventados pela fantasia do populacho nos excessos de saborear a vingança,
denegrindo-lhe a reputação e deturpando-o para transformá-lo de pelintra quente
e apaixonado, em reles monstro horripilante.
Crapiúna sabia dessas
más ausências, das calúnias e falsos testemunhos que lhe levantavam, cobardemente,
pelas costas; das pragas e esconjuros, irrogados pelas suas vítimas e
desafetos. Safados uns, ingratos outros. Corja de mal-agradecidos, que já se
não lembravam dos benefícios de ontem. A muitos deles, desses que agora o
malsinam por intrigas de mulheres, havia morto a fome. Não se tinha em conta de
santo, confessava; fizera certas vadiações de homem solteiro, que não tinha
contas que dar; mas ninguém lhe podia lançar em rosto o haver aforciado
mulheres honestas. Quanto à remoção, até dava graças a Deus por se ver livre
daquela cambada de retirantes nojentos e leprosos, cujo aspecto, em jejum,
causava engulhos; seria, entretanto, melhor sair da obra por sua livre vontade
e não por queixa... E logo de quem? De Luzia-Homem... Oh? o diabo daquela sonsa
era capaz de virar pelo avesso o juízo de uma criatura, e provocar muita
desgraça por causa daquele imposão de querer ser melhor que as outras...
Tirando-lhe a força bruta, não passava de uma pobre tatu, que só tem por si o
dia e a noite.
– Você está... – mas é
fisgado pela macho e fêmea – arriscou o camarada Belota que lhe ouvia a
confidência – Aquilo tem mandinga... Quem sabe se não te enfeitiçou!... Olha
que ela tem uns olhos que furam a gente... E então aquela cabeleira... Acho
melhor pedir à Chica Seridó uma oração forte para desmanchar quebrantos e
fechar o corpo contra mau-olhado.
– Qual, o quê!... –
retorquiu Crapiúna, com afetado desdém. – Eu até nem gosto dela... Não lhe acho
graça... Depois... com semelhante força... nem parece mulher...
– Tira o cavalo da chuva
e conta a história direito, Crapiúna. Todas as mulheres são iguais e merecem
tudo; a demora é grelar no coração o capricho, principalmente, quando resistem.
Fora ela um monstro da natureza; paixão não enxerga nem repara e, quando nos
ataca, é como o sarampo: até jasmim de cachorro é remédio. E deixa falar quem
quiser, que é soberba, sonsa, mal-ensinada... Ela não é nenhum peixe podre. Não
reparaste naqueles quartos redondos, no caculo do queixo. Na boca encarnada
como um cravo?! E o buço?!... Sou caidinho por um buço... Ela quase que tem passa-piolho,
o demônio da cabrocha...
– O que mais me admira é
que não se diz dela tanto assim – afirmou Crapiúna pensativo, riscando com a
unha do polegar a ponta do indicador.
– É por ser mais velhaca
que as outras... Pergunta ao Alexandre...
– Que Alexandre? Aquele
alvarinto que servia de apontador na obra , e passou depois para o armazém da
Comissão?... Aquilo é defunto em pé. Não é qualidade de homem para um como eu.
– O caso é que ele gosta
dela. Estão sempre perto um do outro, ao passo que o Crapiúna velho foi posto
fora, como um cachorro tinhoso, e está aqui gemendo no serviço...
E como o soldado, em
cujo coração se derramara fel, ficasse a cismar, Belota afastou-se com um
gracejo ferino: – Ali é ver com os olhos e comer com a testa ou lamber vidro de
veneno por fora, como rato de botica. Toma o meu conselho. Não te metas com a
bruxa que cheiras vara!
Crapiúna não o ouviu.
Contorcendo-se no martírio de onça acuada, com o coração caldeado no peito,
estremecia à suspeita de um rival venturoso na disputa da cobiçada presa.
III
A população da cidade
triplicava com a extraordinária afluência de retirantes. Casas de taipa,
palhoças, latadas, ranchos e abarracamentos do subúrbio, estavam repletos a
transbordarem. Mesmo sob os tamarineiros das praças se aboletavam famílias no
extremo passo da miséria-resíduos da torrente humana que dia e noite
atravessava a rua da Vitória, onde entroncavam os caminhos e a estrada real,
traçado ao lado esquerdo do rio Acaracu, até ao mar. Eram pedaços da multidão,
varrida dos lares pelo flagelo, encalhando no lento percurso da tétrica viagem
através do sertão tostado, como terra de maldição ferida pela ira de Deus;
esquálidas criaturas de aspecto horripilante, esqueletos automáticos dentro de
fantásticos trajes, rendilhados de trapos sórdidos, de uma sujidade nauseante,
empapados de sangue purulento das úlceras, que lhes carcomiam a pele, até
descobrirem os ossos, nas articulações deformadas. E o céu límpido, sereno, de
um azul doce de líquida safira, sem uma nuvem mensageira de esperança,
vasculhado pela viração aquecida, ou intermitentes redemoinhos a sublevarem
bulcões de pó amarelo, envolvendo como um nimbo, a trágica procissão do êxodo.
Luzia viera na enxurrada,
marchando, lentamente, a curtas jornadas, e fora forçada a esbarrar na cidade,
por já não poder conduzir a mãe doente. Do capitão Francisco Marçal, o homem
mais popular da terra, tão procurado padrinho, que contratara com o vigário
pagar-lhe uma quantia certa, todos os anos, por espórtulas dos batizados,
obtivera, por felicidade, uma casinha velha e desaprumada, onde se aboletou com
relativo conforto. A vida lhe correu bem durante seis meses. Havia trabalho e
ela ganhava o suficiente para se prover quase com fartura. Mas o coração
pressentia, então, com vago terror, o perigo das pretensões de Crapiúna e ela
procurava, por todos os meios, evitá-lo. Seu primeiro impulso, depois que lhe
ele ousara falar em termos desabridos, foi anoitecer e não amanhecer; emigrar,
confundir-se nas levas de famintos em busca das praias ubertosas, com os lagos
povoados de curimãs, em cardumes assombrosos, os tabuleiros irrigados por
orvalho abundante, cheios de plantações, e confinando, em contraste consolador,
com a planície seca e estorricada.
Além se desdobrava o
grande, o soberbo mar infindo e glauco, a rugir lamentoso, despejando, envolta
em rendas de espuma, a generosa esmola de peixes, moluscos e crustáceos
saborosos. Com a proteção de Maria Santíssima venceria a travessia. Vinte
léguas galgam-se depressa. Talvez tombasse, como os míseros, cujas ossadas
alvejantes, descarnadas pelos urubus e carcarás, iam marcando o caminho das
vítimas da calamidade.
E a mãe, a querida mãezinha, que era o
seu tudo neste mundo? Não era possível abandoná-la a cuidados estranhos,
doente, quase entrevada, como estava, a deitar a alma pela boca, quando a
acometia o implacável puxado. Os brincos e o cordão de ouro, que lhe dera a
madrinha, vendidos aos mascates da miséria, não dariam com que pagar o
transporte da pobre velha em carroças puxadas por homens atrelados dois a dois,
como animais de tiro. Era esse, naquela quadra de infortúnio, o veículo das
famílias abastadas, que já não possuíam cavalos e muares de carga e montaria.
Nessa triste conjunção,
venceu o dever. Luzia ficou resoluta a enfrentar, de ânimo sereno, o destino, e
aparelhada para suportar os mais dolorosos lances da adversidade. Continuaria a
trabalhar sem desfalecimento, retraindo-se quanto pudesse para evitar encontros
com o importuno soldado. Por fortuna sua, Alexandre, o amigo dedicado e
afetuoso, que se lhe deparara entre a multidão de desconhecidos e indiferentes,
moço de maneiras brandas, muito paciente, muito carinhoso com a tia Zefa,
passando serões, noites em claro junto dela e da filha, num recato de adoração
muda e casta, lhe poupava o vexame de ir à cidade: era ele que ia ao mercado
comprar a quarta de carne fresca para o caldo da enferma, os remédios e
consultar o médico, mister em que era auxiliado pelo Raulino, outro amigo da
família.
Uma tarde, ao voltarem
juntos da obra, Alexandre, impressionado pelo tom de penosa preocupação bem
acentuado no semblante de Luzia, disse-lhe a medo:
– Se a senhora não se
zangasse, eu acabava com essa reinação, dando um ensino ao Crapiúna...
– Não quero – retorquiu
Luzia vivamente – Não tenho medo daquele miserável, mas não desejo dar nas
vistas dessa gente desabusada. Depois que hão de dizer?... Você não é nada meu
para tomar dores por mim... Aquilo não tem entranhas de cristão: é um
malfazejo...
Alexandre sentiu-se
humilhado, supondo que a moça desconfiasse do seu valor, e, continuou com
brandura tímida:
– Não seria a primeira
vez... Não sou nada seu, mas sou um homem capaz de jogar a vida em defesa de
uma mulher de bem. Pensei que não se agravaria comigo...
– Agravar-me?!... Não
pensei nisso. Não quero que se sacrifique por mim, que já muito lhe devo –
favores que só Deus pagará. Imagine a briga de dois homens, pancadas,
ferimentos, um crime e o meu nome detestado passando de boca em boca,
Luzia-Homem causadora de tudo... Não quero, não. Faça de conta que aquele
mal-encarado homem não existe... Não tenha receio, Alexandre, eu sei
defender-me. De mais a mais... tudo passa...
Luzia confiava na
ausência, mãe do esquecimento, para conjurar o perigo; entretanto, um mês
depois, recebeu uma carta de Crapiúna, transbordante de frases de amor, em
prosa e verso – protestos lânguidos e trovas populares, escritas em péssima
letra sobre papel de cercadura rendilhada, tendo, no ângulo superior, à
esquerda, um coração em relevo, crivado de setas, desfechadas por travessos
Cupidinhos alados. E leu-a com assombro e cólera, como se as letras disformes,
enfileiradas em tortuosas linhas, e o pensamento sensual nelas expressado, lhe
vergastassem cruelmente o rosto.
– Este homem será o
causador da minha desgraça – murmurou ela com um soluço de pranto sufocado.
– Que tens, filha? –
inquiriu a mãe... – Estás tão alterada?... Que houve?
– Nada, mãezinha –
respondeu Luzia, disfarçando a emoção que a conturbava – É este labutar
constante, sem esperança de melhoria, e a sua doença que me apertam o
coração...
– Tu me encobres alguma
coisa. Estás afrontada?
O peito de Luzia arfava
descompassado, e seus rijos seios espetavam, em sacudidos golpes trêmulos, a
delgada camisa.
– Tenho ouvido dizer –
continuou ela – que banhos salgados são bons para reumatismo. Se pudesse
levá-la para as praias... Bastava chegarmos com vida à Barra. Daí para os Patos
é um pulo. Ficaríamos acostados à gente do meu padrinho José Frederico, que é
rico e bom para os pobres.
– Tenho medo... Nunca vi
o mar. Dizem que é bonito, perigoso e traiçoeiro. Inda que fosse essa viagem a
salvação. Como queres que me mexa? Não vês? Estou impossibilitada de andar
neste quarto, quanto mais para fazer a travessia deste sertão inclemente!...
Ai!... Deus não quer, filha. São os meus pecados, que me encaranguejam as
pernas. Já fiz uma promessa a São Francisco das Chagas de Canindé para que ele
me pusesse em estado de caminhar com os meus pés; e... nada... Cada vez mais me
incham as juntas e se me entortam os ossos...
Subjugada pelo
impossível evidente, inelutável, a moça estraçalhou com as unhas pontudas a
carta fatal. A mãe tinha razão. Deus não queria. Era forçoso ficar, amarrada
àquele poste de amor e sacrifício, onde morria, em lento martírio, a mãe
adorada, arrostar o perigo pressentido, o acinte da paixão do lúbrico soldado.
Era forçoso ficar exposta ao insulto daquela atrevida e grosseira insistência
repugnante; e sucumbir, talvez, assoberbada de vilipêndio e ultrajada como as
outras desditosas, arrastadas pela miséria à crápula abjeta.
Sob os músculos
poderosos de Luzia-Homem estava a mulher tímida e frágil, afogada no sofrimento
que não transbordava em pranto, e só irradiava, em chispas fulvas, nos grandes
olhos de luminosa treva.
IV
Quando lhe serenou o
ânimo atribulado, teve ímpetos de repelir o insulto com represálias violentas,
castigando, ela mesma, o insolente, custasse-lhe isto, embora, muita vergonha,
muito opróbio, ou procurar auxílio na dedicação cega de Alexandre, com a qual
sabia poder contar para a vida e para a morte; mas, demoveram-na desse passo,
ponderações das conseqüências de escândalo, um crime possível e a punição. Não
queria arriscar o moço, cuja alma impetuosa e forte, parecia adormecida sob
aparências de mansidão e doçura, como a lâmina de uma faca acerada, escondida
em bainha de veludo. Raulino era demasiado ardente; tinha o coração na goela e
seria capaz de estripulias graves. Demais, por lhe haver prestado valioso
serviço, pareceria exigir a paga com o apelo ao seu concurso. Além desses, não
tinha um coração amigo onde fosse haurir conselho e procurar o inefável alívio
da confidência, válvula benéfica para o escoamento das mágoas, pesares e
desgostos. As moças da mesma idade, ainda não contaminadas pelo vírus
pecaminoso, que empestava o ambiente, evitavam-na com maneiras tímidas,
discreto acanhamento, como não fossem iguais na condição e infortúnio. Muitas
se afastavam dela, da orgulhosa e seca Luzia-Homem com secreto terror, e lhe
faziam a furto figas e cruzes. Mulher que tinha buço de rapaz, pernas e braços
forrados de pelúcia crespa e entonos de força, com ares varonis, uma virago,
avessa a homens, devera ser um desses erros da natureza, marcados com o estigma
dos desvios monstruosos do ventre maldito que os concebera. Desgraça que lhe
acontecesse não seria lamentada; ninguém se apiedaria dela, que mais se diria
um réprobo, abandonado, separado pela cerca de espinhos da ironia malquerente,
em redor da qual girava o povilhéu feroz a lapidá-la com chacotas, ditérios e
remoques. Tal se lhe figurava, através dos exageros pessimistas, a sua triste
situação.
Uma vez, estando ela a
banhar-se, depois de cheio o grande pote, na cacimba aberta no leito de areia
do rio, em sítio distante dos caminhos e aguadas mais freqüentadas,
surpreendeu-a Teresinha, a rapariga branca e alourada, bem-parecida de cara e
bem-feita de corpo, que era flexível como um junco, de sóbrias carnações e
contornos graciosos.
Estava ainda longe o
dia. As barras apenas despontavam no levante em pálido clarão e alguns farrapos
de nuvens rubescentes. Exposta à bafagem da madrugada, Luzia de pé, em plena
nudez, entornava sobre a cabeça cuias d'água que lhe escorria pelo corpo
reluzente, um primor de linhas vigorosas, como pintava a superstição do povo o
das mães-d'água lendárias, estremecendo em arrepios à líquida carícia, e
abrigada no manto da espessa cabeleira anelada que lhe tocava os finos
tornozelos. Ao perceber desenhar-se no lusco-fusco da nebrina matinal, já
perto, o vulto da moça a contemplá-la, soltou um grito de espanto e agachou-se,
cruzando os braços sobre os seios.
– Não tenha receio, sá
Luzia. Sou eu – disse Teresinha, atirando o pote sobre a areia. – Vim também
lavar-me com a fresca. É tão bom, neste tempo de calor, poder molhar o corpo...
– Dê-me a camisa por
favor – suplicou Luzia, transida de pejo, apontando para a roupa amontoada.
Teresinha não despregava
dela os olhos, em êxtase de admirativa curiosidade. Deu-lhe a roupa, e, despindo-se
sem o menor resguardo, banhou-se rapidamente.
– Você tem vergonha de
outra mulher, Luzia? Eu, não. Não sou torta, nem aleijada, graças a Deus...
Vestida a camisa que se
lhe amoldou ao corpo molhado, como leve túnica de estátua, Luzia não ousava erguer
os olhos, tão confusa e perturbada estava.
– Agora sou sua
defensora – continuou a outra torcendo os cabelos ensopados – Hei de punir por
você em toda parte, porque vi com os meus olhos que é uma mulher como eu, e que
mulherão!... Sabe? Outro dia estava numa roda conversando sobre moças que não
há nenhuma honrada para aquelas línguas danadas. Falou-se de você e o Crapiúna,
que estava ouvindo, disse que, por bem ou por mal, lhe havia de tirar a teima.
– O Crapiúna? – exclamou
Luzia com irrepressível terror.
– Sim. Aquele infame
soldado, muito metido e apresentado, que anda perseguindo a gente. É um gabola
para quem não há mulher séria. Não se fie daquele malvado. Conheço muitas que
ele desgraçou com partes de promessa de casamento; e não teve coragem de
dar-lhes um pedaço de pano para fazer uma saia. A mim andou ele a afrontar com
o anelão de ouro que traz no dedo, como isca para as tolas. Eu não sou mais
moça, confesso a minha desgraça, mas não me sujo com semelhante desalmado.
Luzia ouvia calada, com
os olhos fitos na cacimba, onde a água marejava lentamente.
– Dizem que é criminoso.
Muito provocante e atrevido, outro dia quase teve uma pega com o Alexandre por
causa de umas liberdades, que quis tomar com a Quinotinha. Não foi por ciúme
que o outro avançou em defesa da menina, uma criança inocente, coitadinha, que
ainda não desceu o embainhado da saia. Só visto se acredita. Era preciso ter
cabelos no coração para fazer o que ele fez e ter sangue de barata para
suportar tamanho desaforo.
– Então o Alexandre?!...
– Avançou para ele que
nem uma fera, e o cabra ficou branco como um defunto. Todo o homem de más
entranhas, à traição, é cascavel, mas, peito a peito, é medroso. Alexandre já
andava com ele de olho por sua causa...
– Por mim?!...
– Ora, eu sei que ele
gosta de você, mas não tem coragem de se declarar. Olhe, minha camarada,
procurando com uma vela acesa, não encontrará homem de bem igual a ele. É
pessoa de consideração e procedente de boa família. Dizem que deixou moradas de
casa e uma fazenda nos Crateús; mas essa desgraça da seca acabou com tudo e o
obrigou a andar trabalhando para arranjar um bocado para comer... Ah! também eu
já tive muito de meu e agora vivo nesta miséria. Quando saí de casa com o
Cazuza, meus pais, graças a Deus, ainda possuíam muita farinha, muito milho e
muito arroz, na despensa, não falando nas matalotagens. Depois, andamos vagando
pelo sertão como casados, até que o perdi. Morreu de bexigas, o pobre... Eu
saíra de casa com a roupa do corpo. Vi-me sozinha no mundo, sem ter com que
comprar uma tigela de feijão... Fiz então, o que me mandou a minha ruim
cabeça... E por aqui ando como um molambo, sem uma criatura que se doa de
mim... Ainda hei de contar-lhe a minha vida.
Teresinha limpou os
olhos com as costas da mão, e suspirou. Sentada, em desalinho, traçava na areia
úmida, figuras cabalísticas, entremeadas de letras que logo apagava, como se
simbolizassem importunas e saudosas recordações da felicidade, para sempre
perdida.
A cacimba transbordava.
Os potes estavam cheios. Luzia torcia em rodilha um trapo de antiga toalha,
para equilibrar o seu sobre a cabeça, esperando que Teresinha lhe restituísse a
cuia com que se banhava.
Nisto ouviram vozes e tropel humanos.
Teresinha vestiu-se às pressas. Era o triste cortejo da faxina diária da
cadeia. Dois presos, ligados pelo pescoço por comprida corrente de ferro,
carregavam pendurada de um caibro, polido pelo uso, a grande cuba contendo os
dejetos da véspera, para despejá-los longe da cidade, à margem do rio, nas
vazantes onde, em tempos prósperos, medraram melões e melancias. Acompanhava-os
uma escolta de soldados, da qual se destacou Crapiúna, que se dirigiu às duas
moças com maneiras de afetada severidade.
– Então, suas vadias!
Estão a sujar a água que a gente bebe?... Corja de porcas... estas
retirantes... Ai, Jesus!... Não tinha reparado na sá dona Luzia, milagrosa
santa dos meus olhos pecadores...
– Deixe a gente
sossegada, seu Crapiúna – atalhou Teresinha. Siga o seu caminho e não se
importe com o que não é da sua conta...
– Não estou falando
contigo, tábua de bater roupa. O meu negócio é com esta feiticeira soberba que
furtou meu coração...
– Você diz isto –
replicou Teresinha – é por estarmos aqui sozinhas. Soldado relaxado...
– Olha – retrucou
Crapiúna enfurecido. – Toma a bênção ao furriel que está ali na escolta. Se eu
não estivesse de serviço te ensinava quem é relaxado, cachorra....
– Cachorra é tua mãe,
cabra safado...
A esta injúria Crapiúna
cerrou os punhos, num gesto bruto de ameaça; mas, à chamada do furriel, teve de
partir, dirigindo à moça uma praga obscena.
– Deixa estar que me
pagarás. Esta não caiu no chão.
Voltando depois para
Luzia, trêmula e confusa, inanida de surpresa e vergonha, acrescentou,
requebrando os olhos congestionados:
– Adeus, meu bem...
Tenha pena de seu mulato... Me responda; faça uma fezinha para me consolar o
peito, sua ingrata... Ai, ai, coração!...
Luzia continuava a
preparar, automaticamente, a rodilha, não ousando, erguer os olhos para o
sinistro homem.
— O demônio te carregue,
peste – resmungou Teresinha. Quando Crapiúna se reuniu à escolta. – Tu só
prestas para carregar porcaria de preso. Por estas e outras é que eu não ando
de mãos abanando. Era encrespar-se para mim aquele excomungado, metia-lhe no
bucho este canivete até o cabo...
– E tinha coragem? –
perguntou Luzia encarando na franzina moça e na fina lâmina da arma, que ela
trazia oculta no cós da saia.
– Ora, ora, ora!...
Fisgava-o sem dó nem compaixão. Não me importava de ser presa, nem tenho a vida
para negócio... Desgraça por desgraça... Ah! minha camarada, já sofri tudo de
ruim deste mundo; passei por vexames e desgostos... Só lhe contando isso por
miúdo... Deixe estar que os desaforos daquele cabra miserável não caíram no
chão. Paga-me mais cedo ou mais tarde, tão certo como chamar-me Teresa de
Jesus...
– Ferir, matar um
homem!... Seria horrível.
– Qual horrível, qual
nada. Já vi gente morrer à minha vista. Não foi uma nem duas criaturas. Tivera
eu a sua força, não precisaria de arma: quebrava-lhe a cara safada que ficaria
a panos de vinagre. Quando ele me dissesse alguma liberdade, dava-lhe tamanho
tabefe...
– Vamos que são quase
horas de ir para a obra... Ah! nem me lembrava que hoje é dia santo... Esta
minha cabeça...
– Olhe para mim, Luzia;
mire-se no meu espelho... Eu já lhe quero bem, como parente minha, por isso
falo-lhe assim. Veja como estou pagando os meus pecados; veja a minha desgraça
e a quanto estou sujeita...
– É pena, você, uma moça
branca, andar assim na vida...
O céu pálido clareava, e
a aurora, que irrompia, punha nas coisas o rúbido fulgor das suas pompas.
Ranchos de mulheres e de meninos macilentos se endireitavam à cacimba; e,
falando e rindo, os pequenos, quase nus, sacudidos por quintos de tosse rouca,
levavam grandes cabaças para colherem o precioso líquido, ainda nas entranhas
da terra ressequida e flagelada.
V
Mal restabelecida da
comoção do encontro com Crapiúna, Luzia sentia-se humilhada pelos grosseiros
galanteios que ele lhe dirigira sem o menor rebuço, com desabrida petulância e
desenvoltura sensual, como se ela fora uma dessas desgraçadas, cujo acesso não
é já resguardado pelo prestígio da virtude. Pouco atenciosa à incessante
tagarelice de Teresinha, e remordida pela afronta, meditava na turra de
Alexandre com o soldado, persuadida de que a defesa de Quinotinha fora o
pretexto para a explosão do ódio latente. Seu coração estremecia, vacilante, à
idéia de um conflito entre os dois homens, e o júbilo de sentir-se amparada por
dedicação superior a todos os sacrifícios.
E flutuava nesse
consolador eflúvio de reconhecimento, arrebatada à região dos sonhos, das
coisas ideais, sobranceiras ao pélago da tristeza e sofrimentos humanos.
Quando chegou a casa, e
depôs o grande pote sobre as três garras de uma forquilha de sabiá, fincada no
solo, a mãe, sentada à rede armada a um canto do quarto, gemia, à surdina, em
atitude de vítima resignada ao martírio da implacável moléstia.
– Sua bênção, mãezinha?
– Bênção de Deus, filha.
Vens tão cansada. Teimas em carregar água nessa jarra... Estás a botar a alma
pela boca...
– Não é o peso do
pote... São pesares...
– Hoje é dia santo.
Achava bom ires à missa...
– Já fiz as minhas
orações, mãezinha. O meu lugar – Deus me perdoe – é aqui a seu lado,
tratando-a, a ver se podemos deixar logo esta terra.
– O quê!!... A terra não
tem culpa do que padecemos. Admira de pensares ainda em semelhante coisa.
Desengana-te, filhinha da minha alma. Havemos de ficar e talvez morrermos aqui,
quando Deus for servido...
– Também, mãezinha, não
faz caso dos remédios, que têm custado um dinheirão. Se tomasse de verdade os
da receita do doutor Helvécio... Olhe ele quase sarou a mãe da Gabrina. Muito
mais doente e com moléstia ruim, teria ficado boa, se não se metesse com meizinhas
e feitiçarias ensinadas. Pelo menos conseguiu viver muito...
– Porque a hora não era
chegada.
– Só queria que
melhorasse. Era capaz de carregá-la nas costas, como criança de peito, até à
Barra. Tenho visto mulheres, mais franzinas que eu, conduzindo ao colo filhos
crescidos, quais rapazes, doentes, ou meio mortos. Tenho fé em Deus que me
dobraria as forças para fazermos, em paz e salvamento, a viagem. Depois
Alexandre havia de ir conosco e nos ajudaria, ao menos, carregando os nossos
teréns... Pensar que em cinco dias poderíamos estar na praia, livres deste
inferno...
Enquanto tentava demover
a mãe a empreender a viagem, a moça torcia as madeixas dos fartos cabelos
negros, embebidos d’água, até secarem à pressão de suas mãos, mãos delicadas de
mestiça, pequeninas e elegantes. Enrolado no alto da cabeça o cabelo, que ela
tratava carinhosamente, passou aos cuidados domésticos matinais: atiçar o fogo,
preparar o café e uma sopa com grandes bolachas duras, quebradas em pedaços
miúdos.
Nisto ouviu um forte
silvo de fadiga. Era Alexandre que chegava, trazendo provisões em um uru, funda
bolsa de malha tecida com palhas de carnaúba.
– Bom-dia, sá Luzia.
Como passou tia Zefinha? – disse em tom prazenteiro.
– Deus te abençoe, meu
filho! – gemeu a velha com esforço.
– Passei por uma madorra;
mas, à primeira cantada dos galos, despertei e não houve meio de tornar a pegar
no sono.
– Que há de novo? –
inquiriu Luzia.
– Ouvi estarem falando,
na casa da Comissão, que o doutor José Júlio deu ordem para facilitar a saída
do povo. Quem quiser embarcar deve procurar a Barra ou o Camocim, onde há
vapores para conduzir a gente. Quem quiser ficar tem trabalho na estrada de
ferro e nos açudes. Mas, assim mesmo, não se pode dar vencimento ao potici de
povo, que vem derramado por esse sertão afora. Disse-me o capitão Marçal que
vão principiar as obras do cemitério novo e da estrada para a Meruoca. Já estão
engenheiros medindo a ladeira da Mata-Fresca. Era o caso de irmos nós trabalhar
na fresca da serra, onde ainda há olhos-d'água vivos. Pelo meu gosto já não
estava mais aqui...
– Quem impede? –
perguntou Luzia, ocupada em dar a sopa à mãe.
– Ninguém – respondeu
Alexandre surpreendido pela inesperada pergunta, feita em tom de indiferença.
Ninguém, nada me impede... Mas a gente nem sempre faz o que quer. Muita vez a
cabeça vira para um lado e o coração para outro. Quando morreu minha mãe e
vi-me só no mundo, estive em termos de assentar praça, porque quando um homem é
soldado vira outro, fecha a alma e não se pertence mais. Estava maginando
nisso, em me afastar da terra da sepultura, onde descansava a minha defunta
velhinha, quando topei com você, sá Luzia, servindo no trabalho da cadeia. Por
sinal que, nessa ocasião, lembra-se? a maltratavam. Era uma canzoada de
mulheres e meninos, gritando: Olha a Luzia-Homem, a macho e fêmea! O povo todo
corria de morro abaixo e eu também fui ver o que era. Você vinha subindo,
trazendo nos braços Raulino Uchoa, quase morto, ensangüentado e coberto de
poeira. Contou-me, então, o Antônio Sieba, pai daquela moça bonita, que canta
como um canário, o que se havia passado. O Raulino apostara derribar, a toda a
carreira, um boi pelo rabo. Na verdade o homem corria como um veado e, era
pegar na saia da rês e virá-la, na poeira, de pernas para o ar; mas, naquele
dia, foi caipora; falseou-lhe o pé; o boi voltou-se como um gato e mataria o
pobre diabo se, dentre o povo, que disparava espantado, não surgisse uma moça
afoita e destemida que agarrou o bicho pelas galhadas e o sujicou que nem um
cabrito.
– Não valia a pena
lembrar isso.
– O capitão João Braga,
aquele coração de ouro, mandou recolher o ferido à casa da administração; e,
voltando-se para mim, disse-me: Seu Alexandre aliste esta moça para trabalhar e
dê-lhe cinco mil-réis como molhadura pelo ato de coragem. Você não quis receber
o dinheiro. Ficou até meia estomagada..
– Por força... Eu não
devia receber pagamento pelo que fiz por caridade.
– Eu tomei por soberba.
Cem anos que viva, terei sempre diante dos olhos e do pensamento, a sua figura,
de cabelos soltos, rompendo a multidão, com o Raulino nos braços, como se fora
uma criança. Lembrava-me um registo do Anjo da Guarda, levando a alma de um
inocente para o céu.
Luzia ouvia-o
complacente e admirada, porque Alexandre, de ordinário tão retraído e acanhado,
estava, nesse dia, expansivo, e loquaz.
– Desde, então –
continuou ele – não pensei mais em assentar praça, nem abandonar esta terra.
Quando sube que tinha mãe e conheci a tia Zefinha, meu coração se abriu
consolado, como se houvesse ressuscitado a minha defunta mãe, que Deus haja em
glória.
– Você hoje – observou a
velha, amparando da luz os embaciados olhos, com as mãos, trêmulas e mirradas –
trouxe o uru cheio!...
– O pobre tem seu dia...
– E afastou-se para entregar as compras
a Luzia, esvaziando o uru, que deixara sobre o jirau do alpendre.
– Aqui tem uma libra de
carne fresca e um corredor, uma quarta de toicinho, afora a ração do governo. A
farinha é meia grossa, mas tem muita goma.
– Ninguém dirá, com
semelhante fartura, – gracejou Luzia – que somos retirantes.
– Agora – disse-lhe
Alexandre, baixando a voz, tímido e comovido – tenho uma coisa para você; um
mimo que me trouxe um camarada meu da Meruoca.
– E tirou do bolso
interior da jaqueta de brim pardo uma laranja, onde estava plantado um cacho de
cravos sangüíneos e cheirosos.
Aqueceu-se o rosto
moreno de Luzia, como inundado de um fluxo de sangue abrasado. Seus olhos
negros brilharam em fugaz eflúvio de prazer fitando-se no fruto e nas rubras
flores sensuais, preciosas jóias da natureza avara naquela quadra de desolação.
Ela as tomou a duas mãos, meigamente; hauriu com voluptuoso anseio o perfume
dos cravos; e, mal articulando as palavras, dirigiu-se à mãe:
– Aqui tem, mãezinha, um
presente de Alexandre. Tome a laranja; eu fico com os cravos. Que bonitos!...
E, com gestos de
casquilhice infantil, cravou-os nas ondas do cabelo. Depois, voltando-se para
Alexandre, que não ousava contemplá-la, lhe disse à puridade:
– Muito agradecida.
Mas... estou zangada com você...
– Comigo!?...
– Sim. Teresinha contou-me
a sua briga com Crapiúna.
– Não houve nada.
Juro-lhe à fé de Deus! Estávamos na casa da Comissão: eu no meu lugar fazendo a
relação da gente que era demais; ele, numa reinação, intimando com as mulheres.
Chegou a Quinotinha em procura da ração do pai, que desmentira um pé; e o
desaforado entrou a bulir com ela até fazê-la chorar. Aquilo foi me inchando no
coração; perdi a paciência, e não me pude conter. Meti os pés; cresci pra cima
do cabra, e disse-lhe por aqui assim: “Se o senhor não respeita a farda para
provocar uma menina inocente, há de respeitar um homem!...” Ele estremeceu;
quis se endireitar pra mim, mas eu não o deixei esfriar, e acrescentei: “Uma
pouca vergonha que a gente não se atreve... Tamanho homem e, de mais a mais,
soldado, andar aqui todos os dias, que Deus dá, com desaforos, até com meninas
donzelas! Fique sabendo que não me mete medo; não me vou queixar ao sargento
Carneviva, nem ao comandante!...” O mulherio abriu em roda; e o Crapiúna, vendo
que eu estava decidido para o que desse e viesse, murchou; ficou fulo de raiva
e foi saindo, lá ele, por estas palavras: “Está bom! Não quero baticum de boca
comigo...” E o povaréu caiu em cima dele com ditérios que faziam uma zoada
doida: – Olha o valentão!... Meteu o rabo entre as pernas!... Cabra frouxo!...
Vi que ele ficou danado, mas, nem como coisa, continuei sossegado o meu
serviço. Quando o capitão José Silvestre soube do caso, disse-me que eu tinha
feito muito bem.
– Que tinha você de
comprar briga...
– A gente não faz essas
coisas por querer. Quando dá fé está feito... Tal qual você, quando tirou o
Raulino debaixo do boi... O coração não se governa, nem pede licença. para
bater...
– Mas você já estava de
ponta com ele...
– Andava, falo a minha
verdade. E não era para menos ver aquele safado, com partes de ser cangaceiro e
criminoso, andar intimando com Deus e o mundo. Todo o gabola é mofino...
– Faça-me um favor...
– Que não farei eu por
você, Luzia?...
– Não se meta mais com a
vida do Crapiúna...
– Está dito!... Por
essas e outras é que eu desejava trabalhar fora daqui...
– Ninguém está livre de
uma traição...
– Ah! Bem se vê que ele
tem cara de cascavel de tocaia...
– Evite; evite aquele
homem, Alexandre... Eu lhe peço por alma de sua mãe...
– Juro!... – afirmou o
moço, solene, erguendo-se e estendendo a destra, com um gesto resoluto e
sincero.
– Confiem em Deus, minha
gente – observou a velha, que do quarto os ouvia.
– Não há mal que sempre
dure. Ele é pai de misericórdia. Há de ter pena de nós e desta terra...
– Se nós dois – disse
Luzia, após alguns momentos de meditação – botássemos mãezinha numa rede e a
carregássemos até a Barra do Acaracu?
– E tu a teimares,
filha...
– Eu era muito homem
para fazer isso – respondeu Alexandre – mas vinte léguas, léguas de beiço,
muito puxadas, por uma estrada de águas difíceis e com esta soalheira!?...
Luzia não replicou.
– Mais fácil seria –
continuou ele, irmos trabalhar na obra da ladeira. Já estou com uma casinha de
olho: a que fica quase defronte da Cova da Onça. Daqui até lá levamos a tia
Zefinha de um só fôlego...
– E ficaremos sozinhas
naquelas brenhas? – ponderou Luzia.
– Se não levassem a mal
eu ficaria morando com vocês... Sempre é bom ter homem em casa...
– E as más línguas?...
Acha pouco o que já rosnam de nós?...
– Então não sei como há
de ser... Só se...
Alexandre estacou
enleado, não ousando externar a idéia que lhe ocorrera...
Recobrado o ânimo,
titubeou, a meia voz, trêmulo quase comovido:
– Só se... nós... nos
casássemos...
Luzia surpreendida pela
proposta, estremeceu, corando.
No mesmo instante,
passava pelo terreiro, rente à casa, um magote de mulheres, com trajes
domingueiros, grazinando em desbragada conversa.
– Que lhes dizia eu?...
Vote!... Já estão bem principiados no namoro! – exclamou uma delas indicando,
com um gesto do mento, Luzia e Alexandre, transidos de pejo, como delinqüentes
apanhados em flagrante crime de amor.
O grupo desapareceu
correndo e tagarelando, aos empurrões e palmadas, com maneiras desenvoltas.
Dominava o murmúrio de risos e chacotas grosseiras, a gargalhada estridente e
sarcástica de Romana, a lúbrica, a roliça e quente cabocla de dentes
pontiagudos.
VI
Setembro de 1878 ia em
meados, e não apareciam no céu límpido, de azul polido e luminoso, indícios de
auspiciosa mudança de tempo. Não se encastelavam no horizonte, os colossais
flocos a estufarem como iriada espuma; nem, pela madrugada, cirros, penachos
inflamados, ou, em pleno dia, nuvens pardacentas, esmagadas em torrões. À
noite, constelações de rutilante esplendor tauxiavam o firmamento, e a lua
percorria, melancólica, a silenciosa senda.
Como que se percebia no
abismo do espaço infindo, a eterna gestação do cosmos, operoso e fecundo, em
flagrante criação de mundos novos. E, na gloriosa harmonia dos astros, na expansão
soberba da vida universal, a terra cearense era a nota de contraste, um lamento
de desespero, de esgotamento das derradeiras energias, porque o sol sedento lhe
sorvera, em haustos de fogo, toda a seiva.
Olhares ansiosos
procuravam, em vão, o fuzilar de relâmpagos longínquos a pestanejarem no rumo
do Piauí, desvelando o perfil negro da Ibiapaba. Nada; nem o mais ligeiro
prenúncio das chuvas de caju.
O sertão ressequido
estava quase deserto: campos sem gados, povoações abandonadas. E a constante, a
implacável ventania, varrendo o céu e a terra, entrava, silvando e rugindo, as
casas vazias, como fera raivosa, faminta, buscando e rebuscando a presa, e
fazendo, com pavoroso ruído, baterem as portas de encontro aos portais, num
lamentoso tom de abandono.
As pastagens de reserva,
nos pés de serras, protegidas por espessa facha de catingas impenetráveis, onde
se criavam famosos barbatões bravios, haviam sido devoradas ou estruídas e
pesteadas pela acumulação de rebanhos em retiradas numerosas. E, à grande distância,
sentia-se o fedor dos campos inficionados por milhares de corpos de reses em
decomposição.
Não havia mais
esperança. Os horóscopos populares aceitos pela crendice, como infalíveis: a
experiência de Santa Luzia, as indicações do Lunário Perpétuo e a tradição
conservada pelos velhos mais atilados, eram negativas, e afirmavam uma seca
pior que a de 1825, de sinistra impressão na memória dos sertanejos, pois
olhos-d’água, mananciais que nunca haviam estancado, já não merejavam.
Os socorros, distribuídos
pelo governo, não podiam chegar aos centros afastados, por falta de condução,
ou eram os comboios de víveres assaltados por bandos de famintos, malfeitores e
bandidos, organizados em legiões de famosos cangaceiros.
Em tão aflitiva
conjunção, era natural que os retirantes, por instinto de conservação,
procurassem o litoral, e abandonassem o sertão querido, onde nada mais tinham
que perder; onde já não podiam ganhar a vida, porque à miséria precedera o
fatal cortejo de moléstias infecciosas, competindo com a fome e a sede na
terrível faina de destruição.
Luzia encontrara em
Sobral, abrigo e fáceis meios de subsistência; mas pressentia iminente perigo
do capricho ou paixão brutal de Crapiúna. Era forçoso procurar outro refúgio, e
por isso espreitava, ansiosa, os mais ligeiros sintomas da moléstia da mãe,
sinais de melhora, para empreenderem a anelada viagem aonde a distância a
preservasse dos contínuos sustos e vexames afrontosos. Não confiava no projeto
de mudança para a ladeira da Mata-Fresca, dependente de condição, que não
resolvera ainda aceitar, além de que ficaria a duas léguas, apenas, da cidade.
Já não ia, diariamente,
ao trabalho. Ficava em casa, tratando com desvelado carinho, a pobre mãe, cada
vez mais trôpega. Felizmente, o capitão João Braga lhe abonava as rações, e
Alexandre não se descuidava de repartir com elas, quanto ganhava, apesar da
relutante recusa, oposta à sua espontânea generosidade. Ele vivia folgadamente,
porque passara de apontador a fiel do armazém, onde havia grande depósito de
mantimentos e todos os valores do almoxarifado. Tinha de mais para si, e
doía-lhe no coração não poder aliviar as necessidades dos pobres, seus
companheiros de infortúnio.
Um dia, pela manhã,
encontrou Luzia desanimada: a mãe passara mal a noite, inquieta, afrontada,
como se lhe apertassem o peito ou não houvesse bastante ar respirável no
estreito quarto.
– Deus não quer, filha –
dizia a velha com o seio ofegante e mal articulando as palavras – Deus não
quer... Seja feita a sua... santa... vontade...
– Mãezinha tem tido isto
tantas vezes – ponderava Luzia, afetando serenidade. – Isto é puxado... Cheire
este frasco...
– Parece que tenho ar
encausado... aqui... Olha, sinto uma bola... qualquer coisa que me tapa o
fôlego. Abre bem a porta... Abana-me... Se eu tomasse o vomitório de
papaconha...
– Como está, tia
Zefinha? – inquiriu Alexandre, chegando à porta do quarto.
– Como quem está se
acabando... Ai Jesus!... Que aflição!...
– Por que não toma
aquela garrafa que o doutor receitou?...
– Tenho medo... Disse-me
a Chica Seridó que tem veneno... do reto...
– Então ela sabe mais
que o doutor?!... Tome, experimente...
– Ah, Alexandre; já
pedi, roguei, não sei mais que fazer para mãezinha tomar a receita – observou
Luzia, quase em lágrimas.
– Há de ser o que Deus
for servido...
– Mas tome sempre, tia
Zefinha. Faça-me esta vontade. É para seu bem...
– Enfim – concluiu a
velha condescendendo – vá lá... No meu estado, só um milagre... Não quero que
você diga que não o atendi antes de morrer...
E tomou uma colher da
poção, administrada pela filha.
– Aqui está, na garrafa
– disse Alexandre repetindo o que estava escrito no rótulo – uma colher das de
sopa antes de cada refeição. Quando voltar do serviço, quero encontrar vosmecê
aliviada. Adeus, Luzia! O sol já está alto. Vou andando... E eu que devia estar
no armazém às seis em ponto...
Desde o dia em que foram
alvo das chufas da malta de vadias, capitaneadas pela Romana, Alexandre apenas
uma vez pedira a Luzia, com muitos rodeios e acanhamento, resposta à proposta
de casamento. Ela, porém, nada lhe respondera, limitando-se a, com um gesto de
desânimo, indicar-lhe a mãe, como se a doença dela fosse invencível obstáculo.
Ocultava ao moço,
resignado, nutrido de esperanças, o haver recebido cartas de Crapiúna, qual
mais apaixonada, qual mais recheada de expansões de amor, acrisolado pela
resistência; todas salpicadas de alusões iradas ao outro mais afortunado, e
ameaças de não poder sofrear os estos de ciúme que o devoravam, ou de acabar
com a própria vida, porque para ele só havia Deus no céu e ela na terra.
Ao menino, que lhe
levava as cartas, Luzia respondia invariavelmente: – Diga esse homem que me
deixe sossegada, que não se meta com a minha vida! Mas, por um impulso de
curiosidade, muito humano e sobretudo muito feminino, tivera a fraqueza de
lê-las, o que ela considerava uma vergonha, senão crime injustificável. Também
não ousara contar a Alexandre que o soldado havia aparecido várias vezes na
residência. Uma noite passava ele com o Belota e tivera o atrevimento de
fazer-lhe uma serenata cantando à viola, quase no terreiro da casa, modinhas e
canções eróticas, que terminavam nesta saudosa endecha:
“Vou me embora, vou me
embora,
Como fez a saracura;
Bateu asas, foi
cantando:
Mal de amores não se
cura!...”
Ouvindo-o, Luzia tremia
de indignação e terror, suspirando de alívio, quando se sumiu ao longe, o
pesqueiro batido, acompanhando a voz fanhosa de Belota, a cantar:
“Quem quiser ser
bem-querido,
Não se mostre afeiçoado,
Que o afeto conhecido,
É sempre o mais
desprezado.”
– Não sei como essa
gente ainda tem coragem de cantar – gemia a velha Zefa – É uma falta de
coração...
Pouco depois da partida
de Alexandre, prometendo voltar cedo com o doutor Helvécio Monte, surdiu o
pequeno mensageiro com uma carta, que deixou sobre o pilão, por ter Luzia
recusado recebê-la. Entretanto não pôde ainda resistir à curiosidade, e
reincidiu na culpa nefanda de abri-la. E leu:
“Minha Santa Luzia –
Esta tem por fim unicamente, dizer-lhe que se há de arrepender da sua
ingratidão e quem lhe diz isto é o seu amante fiel até a morte – Crapiúna.”
– É preciso acabar com
isto, custe o que custar, – murmurou a moça inflamada de cólera. – Este malvado
me há de desgraçar...
Passou o dia preocupada, e procurando
espairecer com desvelos à mãe, mais acalmada com a poção de iodeto de potássio,
o venenoso remédio, que, na opinião da Seridó, fazia apodrecerem os ossos,
caírem os dentes e pôr o estômago em carne viva, quando seria mais eficaz a
purga de mel de abelha e um emplastro de sabão da terra com um pinto pisado
vivo; ou com o vomitório de cardo-santo, chá de erva-doce para desempachar o
ventre, e raiz de pega-pinto por causa da retenção de urina.
Com esses remédios
sarara a defunta Desidéria – afirmava a feiticeira – que padecia de um puxado
com apertos do coração e uma dor que lhe tomava o fôlego, respondia – lá nela –
nas cruzes e alastrava pelo braço esquerdo, que às vezes ficava esquecido.
Vivera a enferma muito tempo, trabalhando como uma negra, apanhando sol e chuva;
e, senão fora um ataque violento que não deu tempo para nada ainda estaria
vivendo, com a graça de Deus. Remédio de botica havia levado muita gente desta
para melhor vida.
Luzia inquietava-se com
a demora de Alexandre, que era pontual à hora do jantar, servido sobre uma
tosca mesa improvisada com uma tampa de caixão de pinho, apoiada em quatro
forquilhas.
O sol descambava,
deixando as cumeadas áridas da serra do Rosário, quando apareceu Teresinha
quase a correr e de semblante apavorado.
– Que foi? – perguntou
Luzia sobressaltada – Que aconteceu? Que é do Alexandre?...
Teresinha tomou-lhe do
braço, levou-a para fora do alpendre e disse-lhe, com voz sacudida de tristeza:
– Uma desgraça!...
– Brigaram? – inquiriu
Luzia ansiosa, encarando no semblante da moça ruiva para lhe apreender a
misteriosa notícia.
– Imagina que eu voltava
da obra e, quando dei por mim, foi com a gralhada de Romana, aplaudindo com as
parceiras. Aquelas não-sei-que-diga riam como doidas varridas. Uma
dizia: Foi bem feito! A outra resmungava: Bulir com o de-comer dos pobres!...
Que miséria!... Se fosse só feijão – grazinava a deslambida da Romana – meu
Deus, perdoai-me...Passou as unhas no dinheiro. Quem houvera de dizer – rosnava
a Joana Cangati, aquela sirigaita, que tem o bucho caído – que aquele sonso...
– Mas... que aconteceu,
mulher de Deus?
– Cheguei-me a elas e
soube então... Imagina como fiquei estatelada, e caí das nuvens quando me
disseram que Alexandre estava preso...
– Preso!... – exclamou
Luzia aterrada – Preso?!... Preso por quê?...
– Foi o que perguntei.
Então a avoada da Romana começou a caçoar: ora o moço precisava preparar-se
para o casório; não teve dúvidas; passou a mão...
– Mas... é mentira!...
– Eu também tenho
Alexandre em conta de pessoa incapaz de se sujar com o alheio; mas a verdade é
que foi preso e lá está, na casa da Comissão, com o delegado...
– É impossível,
Teresinha. Você não acha que Alexandre é incapaz de tamanha miséria?...
– É o que lhe estou
dizendo, minha camarada. Está preso e não tem quem puna por ele: todos o
acusam, porque tinha a chave do armazém; apareceu hoje fora de horas...
– Oh! Meu Deus! Era só o
que faltava! Juro que é falso! Caia eu morta, se não tenho certeza do que digo.
E, dirigindo-se, firme e
resoluta, ao quarto, abrigou-se no amplo lençol branco, dizendo à mãe,
surpreendida pelos modos agitados.
– Volto já, mãezinha...
É um instantinho... Teresinha fica...
Sem atender às
observações da velha, passou rápida ao alpendre, e suplicou:
– Você faz companhia
àquela pobre... minha amiga. Faça-me esta esmola pelo amor de Deus...
– Que vai fazer?
– Não sei... Deixe-me...
Com um movimento
violento desvencilhou-se de Teresinha, que tentara detê-la, e partiu em
desvairada corrida.
VII
Além da habitual
aglomeração de retirantes na rua do Menino Deus, à porta do armazém da
distribuição de socorros, algo havia de extraordinário, a julgar pelos modos
assustadiços, os olhares da maligna curiosidade do mulherio, que se acotovelava
aos empuxões para observar o que se passava no interior, onde estavam reunidos
os membros da Comissão, o delegado de polícia e o promotor público. Dois
soldados, Belota e Cabecinha,
guardavam a porta, com ordem de vedar a entrada a quem quer que fosse. Crapiúna
girava entre o povilhéu, contendo, com maus modos, os exaltados, que
protestavam contra a demora da distribuição das rações, principalmente as
mulheres que haviam deixado em casa filhos pequenos, sem um grão de farinha
para fazer um mingau.
– Cessa rumor! Cambada –
intimava Crapiúna, com a costumeira imposturia – Vocês ou ficam quietos e
calados ou arribam daqui. Em fariscando comida, ficam logo assanhadas...
E continuava a ronda,
sob um chuveiro de imprecações e motejos, que a sua excessiva grosseria
provocava.
Os cidadãos incumbidos
pelo governo da penosa tarefa de distribuir socorros, desempenhavam com
excepcional e caridosa dedicação, os seus deveres, mantendo o mais escrupuloso
zelo e probidade na administração do serviço. Não houvera ainda um caso de
muamba, coisa muito vulgar em outros centros de afluência de retirantes, nos
quais se explorava escandalosamente a miséria, e se desviavam, para serem
vendidos por excessivo preço, os víveres destinados aos infelizes famintos.
Era, pois, natural que, ciosos de tão honrosos precedentes, ficassem muito
impressionados com o roubo de gêneros e de duzentos mil-réis em dinheiro,
denunciado, naquela manhã, pelo almoxarife.
A porta do armazém fora
encontrada aberta, sem o menor vestígio de violência, caixas com fazenda
abertas e a gaveta que continha o dinheiro arrombada. Estavam bem patentes os
indícios do crime, pegadas do ladrão impressas na poeira, pingos de velas de
carnaúba sobre as caixas e o instrumento, empregado para forçar a gaveta, um
grande formão de carpinteiro.
Quem seria o audacioso criminoso?
O nome de Alexandre, pronunciado por lábios anônimos, no meio da turba, foi
logo envolvido pela sinistra atmosfera da suspeita. Ele guardava as chaves do
armazém; era empregado de inteira confiança, conquistada pelo mais
irrepreensível procedimento, e os mais abonados precedentes; mas não se podia
eximir da responsabilidade do fato, senão por desídia, por falta de vigilância.
Demais, naquele dia, ele sempre pontual, chegara tarde, notando-se-lhe no
semblante profunda perturbação ao encontrar a porta aberta, e o almoxarife, que
o interrogava com o olhar severo. Não pudera, no primeiro momento, se
justificar ou explicar as circunstâncias que o denunciavam. Indicações vagas,
circulando na massa de retirantes, aludiam a fatos que davam corpo às suspeitas.
Ele estava para casar; pretendia deixar a cidade; era bem possível que a paixão
por Luzia-Homem o alucinasse ao ponto de arrastá-lo a tamanha desgraça. Por
outro lado, alguns amigos que o não abandonaram na hora do infortúnio, alegavam
que, tendo as chaves, não necessitaria de deixar a porta aberta, apenas
encostada, recorriam aos precedentes de porte ilibado, a doçura de caráter,
maneiras de pessoa bem-ensinada e de boa procedência.
Entre os prós e contras,
prevaleceu o depoimento de Crapiúna, afirmando haver visto, à meia-noite, mais
ou menos, um vulto com uma trouxa volumosa subir apressadamente a rua na
direção da igreja. Não jurava que fosse Alexandre, por não ter, em consciência,
absoluta certeza, e para que não dissessem que o acusava por andar enticado com
ele; mas a verdade é que tinha o mesmo andar e a mesma estatura. Não o
perseguira por não lhe passar, então, pela cabeça, a idéia de um crime tão vil.
Belota confirmava, em todas as minúcias, a história do camarada, protestando
todavia, que, até a véspera, seria capaz de meter a mão no fogo por tão bom
moço; mas... a ocasião fazia o ladrão...
Alexandre foi
interrogado. Estava tão abatido pela comoção, que fez declarações
incongruentes, contraditórias e inverossímeis, nem pôde explicar, de modo plausível,
a demora. Acossado pelas questões da autoridade, limitava-se a protestar com
voz angustiada:
– Juro que sou inocente,
seu delegado. Eu nunca me sujei com o alheio. Antes me secassem as mãos e me
faltasse a luz na hora da morte!
Continuava o interrogatório,
aliás conduzido com imparcialidade complacente, quando a audiência foi
interrompida por estranho rumor, gritos e imprecações ameaçadoras, estrugindo
na rua.
Aquecidas as faces pela
fadiga da caminhada, os grandes olhos lampejantes de chispas fugitivas e o
traje em desalinho, Luzia penetrou nos densos magotes humanos, que lhe
embaraçavam a passagem, com ímpeto irresistível; e foi abrindo larga brecha,
afastando aos empurrões homens e mulheres, sob uma saraivada de remoques,
queixumes e impropérios.
– Arreda, que lá vem
Luzia-Homem, como uma danada!...
– Mulher do demônio,
você não enxerga a gente, sua bruta?!..
– Esta excomungada está
com o diabo no couro!...
– Vote! malvada!...
– Ficou como lacraia
assanhada, por causa do macho...
Luzia era insensível às
queixas e insultos, foi avançando sem desfalecimento, sem hesitação. Ao
enfrentar a porta, Belota pretendeu tolher-lhe o passo, mas foi repelido com
possante e rápido movimento. Igual sorte tiveram Cabecinha e Crapiúna. Este lhe
não ousou tocar, inanido por estranho terror. Surdiu, enfim, na sala, e parou
indecisa, espantada por se achar entre pessoas notáveis, aturdidas pela
surpreendente invasão. Depois se dirigiu a Alexandre, que a contemplava
estupefato, num misto de assombro e alvoroço.
– Que foi isto, seu
Alexandre?...
– Nada – respondeu ele,
baixando os olhos. – Um impute, que me fizeram...
– Mas é falso!... Não
é?...
– Juro por alma da
defunta minha mãe...
E grossas lágrimas lhe
deslizaram pelas faces tostadas, embebendo-se na barba crespa e aloirada.
– Seja homem, Alexandre
– disse-lhe então a moça, com voz vibrante e enérgica – Deus é grande!... Quem
não deve, não teme!...
– Choro de vergonha,
porque nunca me vi em semelhante desgraça...
Ela, animando Alexandre
com a protetora carícia de um olhar inefável, voltou-se resoluta e calma para
os circunstantes. Do desalinho das roupas, o lençol pendido do braço a arrastar
pelo chão, o cabeção de renda emoldurando o seio nu e palpitante, as
desgrenhadas madeixas a lhe caírem em ondulações fulvas de serpentes negras;
dos olhos, do gesto e da voz, um concerto de convicção e firmeza, irradiava
sobrenatural encanto, empolgando o auditório, subjugado pela esplêndida e
fascinante exibição da força e da beleza, harmonizadas naquela admirável
criatura.
– Saberão vossas
senhorias – exclamou, em vibrações fortes e sonoras – que este homem não é nada
meu!... Nem parentes somos, senão por Adão e Eva. Posso morrer sem confissão.
Meu corpo não tem pechas, nem pecados a minh’alma...
E estendeu os braços,
num gesto largo e franco de inocência que se exibe:
– Entre essa gente
maligna que faz pouco de mim, essa gente desalmada que me persegue, como se eu
fora uma excomungada ou um bicho brabo, encontrei nele um amigo, um irmão; e
hoje, abaixo de Deus, é ele quem me ajuda a sustentar os dias de minha mãe,
entrevada dentro de uma rede. Estas noites temos passado juntos fazendo quarto
à pobre velha que gemia com dores de fazer cortar coração. Hoje, de manhãzinha,
esteve lá em casa e pedi-lhe que fosse procurar o doutor... Ah! meus senhores,
até os bichos são agradecidos, quanto mais criaturas cristãs. E aqui está, em
pura verdade, porque eu puno por ele e juro que está inocente...
– Não temos provas –
observou o delegado – Por ora só há contra ele suspeitas, indícios...
– Então por que o
prenderam? Pois se envergonha um homem sem quê nem para quê, por um impute?...
– Em benefício dele;
para apurar a verdade...
– E se não conseguirem
isso? – perguntou Luzia impaciente – Ficará preso toda a vida?!...
– Não se aflija –
ponderou o promotor, intervindo, e no intuito de amenizar a pungente cena. –
Sente-se, repouse. A senhora está muito exaltada, acalme... Que estupendo tipo!
Que formoso cabelo – observou à puridade, voltando-se para um dos comissários.
Luzia reparou, então, em
seu desalinho, e sentiu um calafrio de pejo, como se a lambessem aqueles olhos
que a fitavam com insistência, olhos mortos de volúpia. Colheu os cabelos, toda
aflita e ruborizada; enrolou-os rapidamente, e os prendeu com um gesto gracioso
no alto da cabeça, e abrigou-se no lençol branco de babados de cambraia de
salpicos.
– Donde é natural? –
inquiriu o promotor.
– Eu me chamo Luzia
Maria da Conceição. Sou filha do Ipu. Meu pai, que Deus haja, era vaqueiro das
Ipueiras do major Pedro Ribeiro... Está ouvindo, seu doutor?
Ela aludia a gritos e
gargalhadas do poviléu, bradando na rua: Luzia-Homem!... Metam ela na cadeia
que se descobre tudo!... Aviem os pobres que estão aqui esperando com fome!...
– Por que lhe deram essa
alcunha?
– Eu lhe digo, seu
doutor. Desde menina fui acostumada a andar vestida de homem para poder ajudar
meu pai no serviço. Pastorava o gado; cavava bebedores e cacimbas; vaquejava a
cavalo com o defunto; fazia todo o serviço da fazenda, até o de foice e machado
na derrubada dos roçados. Só deixei de usar camisa e ceroula e andar encourada,
quando já era moça demais, ali por obra dos dezoito anos. Muita gente me tomava
por homem de verdade. Depois meu pai, coitadinho, que era forte como um touro,
e matava um bode taludo com um murro no cabelouro, morreu de moléstias, que
apanhou na influência da ambição de melhorar de sorte, na cavação de ouro no
riacho do Juré. Daí em diante, começamos a desandar. Minha mãe, sempre muito
doente, e nós duas muito pobres de tudo, menos da graça de Deus, vendemos as
miúças e cabeças de gado, que tiramos à sorte da produção da fazenda, os
animais de campo e até o meu cavalo castanho-escuro, calçado dos quatro pés e
com uma estrela na testa... o meu querido Temporal... Tudo isso para não
morrermos de fome quando veio esta seca...
Soluços lhe embargaram a
voz, e desatou em copioso pranto.
– Sossegue moça –
disse-lhe o delegado compassivo. – A sua sorte nos interessa. Está entre amigos
de quem só deve esperar benefício; mas... é preciso ter paciência. Alexandre
tem por defesa os melhores precedentes e todos o abonam; entretanto é
indispensável que fique detido enquanto duram as diligências do inquérito...
– Preso?!... Não é
possível! – exclamou Luzia – Vossa senhoria não fará tamanha injustiça. Eu lhe
peço por vida de seus filhinhos... Alexandre é inocente!...
E rojou-se de joelhos, aos pés do
delegado.
– Tenha paciência! –
murmurou este comovido, e tentando erguê-la.
Luzia não se conformava com a horrível
idéia da prisão; e continuou a suplicar, muito condolente.
Alexandre já não podia
suportar aquele espetáculo, que lhe macerava a alma. Suspirou de alívio quando
o delegado mandou conduzi-lo; e, ao passar por ela, disse-lhe com firmeza:
– Tenha coragem. Cadeia
não se fez para animais. Espero em Deus sair limpo desse impute que me
levantaram... Vá para junto da tia Zefa que eu me arranjo...
Tanto que o preso partiu
escoltado pelos soldados Belota e Cabecinha, Crapiúna assomou na sala, mesmo em
frente de Luzia, cujo olhar dolente acompanhava o moço e se fixava na porta por
onde o levaram. A figura do soldado, detestável de arrogância triunfante,
substituindo o preso, no campo da visão desvairada, interrompeu imediatamente a
aniquiladora impressão de mágoa; e a moça, transformada por encanto, estremeceu
num esto de ódio, que lhe faiscou no olhar, como um corisco.
– Aqui está, seu doutor
– exclamou ela, indicando o soldado, com um soberbo gesto de indignação. – Aqui
está o asa-negra que me persegue, pensando que eu sou da laia dele... Este
homem me atormenta com malcriações, com cartas... Espere... Tenho uma comigo...
E retirou do seio, de
envolta com o cacho de cravos murchos, a última carta de Crapiúna.
– Eis – continuou
trêmula de cólera – a carta que este... não-sei-que-diga... me mandou hoje...
O promotor tomou a
carta; leu-a, sorriu-se e passou-a ao delegado, segredando-lhe:
– Há, talvez, em tudo
isso um drama de amor...
– De pouca vergonha, seu
doutor, atalhou Luzia. – Ele devia saber que sou uma rapariga direita...
Depois de ler a carta,
voltou-se o delegado para o soldado, que até então mantinha ares de bazófia:
– Que quer dizer
isto?...
– Saberá vossa senhoria
que não é nada... – balbuciou ele, sorrindo irônico.
– Nada!... Que
significam as suas palavras de ameaça?...
– É um modo de falar
para fazer medo e caçoar com ela... Negócio de namoro...
– Namoro, seu
atrevido... Pois o senhor fica responsabilizado por qualquer falta de respeito,
ou tudo quanto suceder a esta moça...
– Por causa disso –
observou o escrivão Antônio Rufino – é que ele foi removido da polícia do
curral do Açougue...
– Eu não quero fazer mal
a ela, seu delegado. De mais a mais não é crime a gente querer bem e pretender
uma moça dessas...
– Não admito
observações. Retire-se... Veja como se porta!...
Crapiúna fez continência
e deu meia-volta, com inexcedível garbo militar, lançando a Luzia sarcástico
olhar de desafio.
– Vá descansada, moça –
disse-lhe o promotor, com meiguice. – Sua mãe reclama os seus cuidados. Quanto
a Alexandre, a justiça empregará todos os meios e esforços possíveis para
descobrir o verdadeiro autor do delito. Estou persuadido que é inocente.
– Deus lhe pague, meu
senhor... Deus lhe dê saúde e felicidade... Queira perdoar a minha ousadia...
Fiquei fora de mim... – Suspirou ela, com lágrimas na voz.
E compondo as dobras do
amplo lençol de mandapolão, saiu lentamente, desconsoladamente,
acabrunhada de dor e vergonha.
O promotor voltando-se,
então, para o delegado e os comissários, ponderou:
– Não será esta carta um
indício precioso?... Na minha opinião, deve ser vigiado aquele soldado.
VIII
Teresinha informara a
tia Zefa do caso de Alexandre, procurando, com tortuosas e vagas digressões,
amortecer o choque demasiado rude, e substituir a filha ausente, preparando o caldo,
ajudando a velha a mudar de posição, e convencendo-a de tomar o remédio, que
tinha um sabor mau de azinhavre.
– Deus te pague –
repetia a velha, fazendo uma careta de repugnância e escarrando com ruído – e
perdoe os teus pecados. Bem sabia que o teu coração é bom... Ai... o que te
falta é cabeça...
– A minha sina é que não
foi boa... – observou a moça com requintes de ternura e meiguice – Se a gente
pudesse adivinhar; se soubera o que me havia reservado quando saí de casa...
– E Luzia que não volta!...
– Se não fossem os
cuidados estaria melhor, porque o puxado vai passando...
– É o remédio... Tome
outra vez...
– Já estou encharcada de
mezinha... Coitada da minha filha!...
– Descanse que ela não
tarda aí...
– Pobrezinha!... O dia
inteiro, com uma triste xícara de café escoteiro.
– Ao escurecer regressou
Luzia. Vinha taciturna e triste, rendida de fadiga. Tomou a bêncão à mãe;
apertou Teresinha contra o seio, numa demorada e silenciosa expansão de
reconhecimento, e deixou-se cair acocorada à soleira da porta do quarto, em
postura de desânimo, os cotovelos fincados sobre os joelhos e a cabeça apoiada
nas mãos.
– Seu de-comer –
disse-lhe Teresinha – está guardado...
– Não tenho fome...
– Ao menos uma xícara de
café...
– Deixa-me descansar.
– E Alexandre, filha? –
inquiriu a velha plangente.
– Está preso!...
Levaram-no para a cadeia como um malfeitor...
– Diz-me o coração –
atalhou Teresinha – que ele está penando injustamente... Mas... deixem estar
que vou farejar o ladrão... Conheço uma velha que faz a adivinhação da urupema
e sabe rezar o responsio de Santo Antônio. Não há furto que não descubra. Uma
coisa é ver, outra é dizer. Parece que tem parte com o cão... Meu Deus
perdoai-me...
– São abusões –
murmurou a velha.
– Pois amanhã cedo vou
atrás dela, da Rosa Veado, que mora na Fortaleza, nos quartos da Lianor, e
vosmecê há dever...
– Pode ir embora,
Teresinha – disse-lhe Luzia, quebrando o longo silêncio – Você já fez muito por
nós...
– Eu?!... Ai, gentes!
Que grande incômodo!... Agora é que fico mesmo aqui ajudando. Durmo ali, na
esteira, junto do jirau, ou em qualquer parte. Basta ter onde encostar a
cabeça...
E, acendendo fogo num
cigarro de papel amarelo, continuou contando casos maravilhosos da feitiçaria
de Rosa Veado que, além dessa habilidade, era insigne parteira, muito
cuidadosa, muito feliz.
Teresinha ficou. Passou
a fazer parte da família pois não tinha ânimo de abandonar as duas criaturas,
repassadas de amargos sofrimentos, sozinhas naquela casa, sem uma alma condoída
que as consolasse. Sabia quanto custava a privação súbita da companhia afetuosa
de um ente querido; tinha a dolorosa experiência do abandono e das fatais
conseqüências da orfandade do coração. Era quem cuidava da doente nas ausências
de Luzia, muito preocupada no andamento do inquérito sobre o roubo. Às
provisões que, escassamente, chegariam para mantê-las, ajuntava o pouco que
podia conseguir: algumas gulodices, ovos, manteiga e açúcar, adquiridas por
preços absurdos. Tomara a seu cargo os serviços da casa, menos os braçais, como
rachar lenha e pilar café, porque era aberta dos peitos e cuspia sangue sempre
que abusava dos seus delicados músculos.
Procurara, conto
dissera, Rosa Veado para rezar o responsio; esta, porém, exigira dinheiro para
comprar duas velas para o santo, luz sagrada, indispensável para o êxito do
sortilégio, circunstância que ela não revelou a Luzia, por querer que o
descobrimento do criminoso fosse devido, exclusivamente, à sua iniciativa.
Arguta rapariga, afeita
ao contacto do vício e do crime, a percebê-los por intuição, estava convencida
da inocência de Alexandre, e julgava obra de malvados, a infamante imputação.
– Ele não tem cara de
ladrão – dizia – Conheço pela pinta quem pega no alheio; e nunca me enganei...
Não se me dava de apostar... Enfim, não quero condenar a minha alma, levantando
falso a ninguém; mas... deixem estar que hei de desmascarar os safados, que não
têm consciência para fazerem sofrer um pobre...
As reticências irritavam
Luzia que, por sua vez, só pensava em deslindar o mistério.
– Ah! Se eu tivesse dois
mil-réis!... – suspirou Teresinha.
– Para que queres dois
mil-réis?...
– Para uma coisa que só
eu sei...
E passaram-se dias.
Da frugal comida Luzia
separava, todos os dias, uma porção que levava a Alexandre. Apesar dos remoques
de Belota e dos encontros com Crapiúna, ela cumpria, pontualmente, o dever de
visitar o preso e conversava com ele alguns momentos, por entre as grades da
cadeia, uma grande sala, no andar térreo da casa da Câmara, onde estavam
empocilgados mais de cem homens.
Alexandre não se conformara com a
promiscuidade entre criminosos dos mais abjetos. Havia ali assassinos,
condenados a penas máximas, envelhecidos naquele recinto miasmático; ladrões
que narravam, com repugnante bravata, façanhas deprimentes; moços impulsivos,
culpados de crimes passionais, cometidos sob a influência nefasta de paixões
incoercíveis, e alguns idiotas, maníacos que apodreciam caquéticos, roídos de
moléstias, vegetando, como plantas daninhas, conservados naquela sórdida estufa
de podridão e de vício. No ambiente escuro da prisão cruzavam-se redes em todas
as direções, umas sobre outras, paralelas ou atravessadas, todas sujas e
nauseabundas. A um canto estava o barril d'água; noutro, a cuba do despejo; e,
defronte do amplo portão, das quatro janelas largas, abertas para a praça,
protegidas por dupla grade de grossos vergalhões de ferro, trabalhavam os
sentenciados em sapatos, chapéus de palha e obras de funileiro. Essas janelas
eram o parlatório e o balcão dos negócios. Diante delas estavam, continuamente
aglomerados, agentes de comércio, ou pessoas da família, mulheres, mães, irmãs
ou amantes dos reclusos no ergástulo fedorento e imundo, que a piedade dos
comissários ia extinguir, construindo a penitenciária no morro do curral do
Açougue.
Dentro de dez dias de
prisão, Alexandre foi acometido de fortes dores de cabeça e imensa fadiga
física e moral. Privado de sol, a tez do rosto perdera o vivo colorido, fez-se
pálida e baça; a barba e os cabelos castanhos pareciam pardacentos como erva
crestada, e os olhos amortecidos, e se encovaram nas órbitas roxeadas. Toda a
sua pele estava seca e fria, coberta de descamação esbranquiçada, que lhe
zebrava o corpo quando se coçava. Queixou-se ao carcereiro, ao juiz da prisão,
que era o Galucho, antigo cangaceiro, portador de um rosário de crimes.
– É assim mesmo –
respondeu-lhe o facínora – Nos primeiros tempos, a gente estranha; fica
banzeira. Depois se acostuma. Estou aqui há dez anos; ainda me faltam quatro e
pretendo, se Deus não mandar o contrário, sair com forças para liquidar contas
velhas. Olhe, moço, para essas dores de cabeça só há um remédio: sair, pela
manhã, com a faxina...
Mas, a Alexandre
repugnava o carregar a infecta cuba de resíduos e secreções, ligado a um
criminoso por comprida corrente de ferro, atada ao pescoço pela gargalheira,
fechada a cadeado. Mil vezes a morte, intoxicado no ambiente mefítico, à vida
maculada pela infâmia, que lhe custaria alguns momentos ao ar livre.
As noites infinitas,
cruciantes, ele as passava encolhido perto de uma das janelas, o sono cortado
pelos brados de alerta das sentinelas e contando as horas pelo sino do relógio
da matriz fronteira, até ao toque de alvorada, que lhe repercutia no coração,
evocando a ânsia de tornar a ver Luzia com informações do processo, e talvez
mensageira da liberdade.
Quase todos os dias ela
passava pela casa do promotor, sinceramente interessado na sorte de Alexandre,
para se consolar com promessas. A última fora que, terminado o balanço dos
gêneros armazenados, o inquérito seria rapidamente concluído.
Até então nada se havia
adiantado para esclarecer a justiça. Permanecia a situação indecisa de
presunções, meras suspeitas, indícios pouco veementes; e nenhuma prova de
alcance jurídico fora colhida, além dos depoimentos dos soldados e de duas
mulheres de má vida, a Romana e a Cangati. O fato de ser Alexandre depositário
das chaves deixava de ter importância por se haver verificado que a fechadura
da porta do armazém, antes tão corrente, estava perra, denotando a introdução
de outra chave ou de qualquer instrumento de violência. Nada ocorrera,
entretanto, para encaminhar a ação da polícia em direção a outro responsável,
tendo sido infrutífera a vigilância, secretamente feita, em volta de Crapiúna.
E, nessa incerteza, dias
de penar, noites maldormidas sucederam-se: Alexandre estiolado na prisão, como
planta silvestre, privado de ar e luz; Luzia nutrida de esperanças, que se
adelgaçavam em quimera fugitiva.
Num dia desses, regressando a casa, ela
respondeu com um gesto de desânimo aos olhares interrogativos da mãe e de
Teresinha:
– Por ora... nada...
amanhã... amanhã...
– Ah! – suspirou
Teresinha – Se eu tivesse dois mil-réis!...
– Para quê? – inquiriu
Luzia impacientada pelo estribilho, repetido toda a vez que se queixava da
ineficácia das diligências para libertar Alexandre.
– Mortifica-me com essa
cantiga... Já vendi os meus brincos de ouro; a vara de cordão, que havíamos
reservado para um aperto, também passara a outras mãos... Nada mais temos, nem
com que comprar um par de chinelas... Veja?... As minhas já estão com boca de
sapo...
– A você, – tornou
Teresinha à puridade – nada devo ocultar – Eu queria os dois mil-réis para o
responsio...
– O responsio?!...
– Sim, para comprar duas
velas de libra... A Rosa não reza sem isso...
– Como há de ser? Onde
irei achar tanto dinheiro!...
– Fosse eu você, Luzia,
era só pedir por boca....
– Que fazia?
E cravou na companheira,
um perscrutador e sereno olhar, desses que traspassam o corpo e devassam a
alma.
– Eu – balbuciou a moça
confusa e dominada – Eu?... Não fazia nada... Foi uma asneira que me veio à
cabeça... Não pode ser... não se faz a reza... E eu que tinha uma fé... É
melhor tirar daí o juízo...
– E acredita que Rosa
Veado é capaz de descobrir?...
– Ora... ora... ora!...
É dito e feito... Tenho fé cega em Santo Antônio. Em casa de meu pai havia um
deste tamaninho e milagroso como ele só. Quando se perdia alguma coisa, bastava
prometer-lhe dois vinténs; a gente achava logo sem saber como. E, não se cumprindo
a promessa, era castigo certo. De uma feita, desapareceu uma vaca leiteira. Meu
pai, desconfiando que a houvessem furtado, chamou o pai Pedro, negro velho ladino
e rastejador, e disse-lhe: “Não quero saber de histórias; vosmecê dá-me conta
da vaca, ou come relho.” Quando o velho falava assim, era aquela certeza. O
negro coçou a cabeça, lastimou-se e saiu resmungando. Bateu capões de mato;
esgravatou grotas e já estava desesperado, pensando no que lhe aconteceria, por
voltar com as mãos abanando, quando se lembrou de prometer dois vinténs a Santo
Antônio. Mal tinha feito a promessa, olhou para uma banda e o que havia de ver?
A vaca pastando muito de seu, no lugar onde escondera o bezerro. Pedro pulou de
contente, laçou a vaca, e partiu. Em caminho, entrou a pensar que o santo nada
havia feito; ele é que estava banzando sem prestar atenção. Por que, então, lhe
havia de dar o dinheiro?... Nisto, o animal deu um safanão; arrancou e deitou a
correr como um desesperado. Percebendo o castigo, o negro pôs boca no mundo:
Que santo desconfiado!... Eu estava caçoando... Pago os dois vintém e até
mais!... A vaca voltou ao curral com os pés dela e foi o que valeu ao pai
Pedro. Olhe, Luzia, tenho visto verdadeiros milagres...
– Amanhã – afirmou Luzia
jubilosa como se lhe houvesse ocorrido o meio de resolver a dificuldade –
amanhã arranjarei os dois mil-réis...
– Como? Que vai
fazer?... Ah! Luzia, não se guie pela minha ruim cabeça...
– Não se arreceie...
– Que é que vocês tanto
conversam? – perguntou a velha.
– Nada, tia Zefinha –
respondeu Teresinha – Bobages de moças. Eu dizia que se pudéssemos pagar um
doutô para soltar Alexandre...
– Não há, então, uma
criatura que faça de graça essa caridade?...
– Qual!... Neste mundo
tudo se move a peso de dinheiro...Doutô é como padre que não diz missa sem
dinheiro... O saber é a foice e o machado deles...
– Não são todos –
observou Luzia – O promotor é um doutô muito bom... Tem feito o que pode pelo
pobre que está penando naquele inferno... Amanhã... Amanhã...
Teresinha preparou a
candeia de azeite de carrapato; espevitou o pavio de algodão torcido;
acendeu-o, soprando com força num tição, e colocou-a no caritó, donde,
bruxuleando, vacilante e fumarenta, iluminou em tons melancólicos, em firmes e
vagarosos contrastes de claro e escuro, como nas telas imortais de Rembrandt e
Espanholeto, um quadro admirável e emotivo, cena íntima da pobreza sofredora e
resignada.
IX
Apagavam-se no céu
pálido os astros e a estrela-d’alva desmaiava, lívida, quando Luzia deixou a
rede. Espreguiçando, estremunhada ao fresco terral da manhã, que lhe agitava o
traje com suave carícia, desfez os cabelos impregnados de forte fragância de
mulher amorosa, como se a própria essência da força e da saúde evolasse deles
em capitoso filtro sensual; e, tomando de um largo pente de chifre, começou a
desembaraçar as densas madeixas, que se afofavam e intumesciam crespas e
lustrosas. Aos seus ouvidos, chegavam os clangores vibrantes do toque de
alvorada, recordando-lhe Alexandre encerrado na prisão infecta e escura, entre
celerados, àquela hora despertados do profundo sono perturbado pelos sonhos de
remorsos implacáveis.
Nos arredores, até onde
o olhar podia chegar fendendo a vaporosa nebrina da madrugada, surgiam massas
pardacentas de moitas desgrenhadas em gravetos ressequidos, espectros de
árvores, a terra poeirenta e as casas ainda fechadas, donde partia o surdo
rumor de choro de crianças, ranger de chaves nas fechaduras perras, prolongados
bocejos, resmungando frases de vago, quase imperceptível queixume.
No quarto próximo, a
velha mãe ressonava com intermitentes gemidos. Teresinha dormia ainda, estirada
na esteira, seminua, num abandono ingênuo, debuxando-se-lhe as formas delgadas
e graciosas. No alpendre esmoreciam, na extremidade dos grossos tições, grandes
brasas rubras, sob tênue camada de cinzas brancas.
Ao espetáculo do
alvorecer sem alegria, o campo desolado, sem cânticos de pássaros e rumores
harmoniosos do trabalho venturoso e fecundante, ela revia a infância, na
fazenda Ipueiras: a campina verdejante umedecida de orvalho congregado no
côncavo das folhas em gotas trêmulas, os cabeças-vermelhas gorjeando nos mais
altos ramos dos juazeiros frondosos; caraúnas airosas papeando em volatas
vibrantes nos leques das carnaubeiras esguias; rolas arrepiadas e friorentas
aguardando, aos casais quietos, bem juntinhas, os primeiros raios do sol. Ouvia
o mugir lamentoso das vacas presas nos currais, o gemido soturno e tímido dos
bezerros e monjolos famintos; o balir das ovelhas irrequietas no fumegante chiqueiro;
o gaguejar dos bodes lúbricos, ébrios de luxúria; e o relincho triunfante do
fogoso cavalo castanho, a galopar peado das mãos, de crinas eriçadas, de
orelhas espetadas e de rúbidas narinas acesas. E com o cheiro do pasto florido,
dos aguapés flutuantes na lagoa azulada, nenúfares de caçoilas entreabertas,
sentia o fartum da prodigiosa terra exuberante, e o bafio agro dos rebanhos
fecundados. Recordava-se do banho na lagoa, que espelhava o céu, e a paisagem
pitoresca, e onde ela nadava como as marrecas ariscas; mergulhava e voltava a
flux, espadanando a água com o açoite de cangapés acrobáticos, espantando os
paturis e jaçanãs medrosos, os graves socós pousados sobre uma perna e os
bandos de alvas garças elegantes. Como era saboroso o leite morno, espumando
nas cuias; o tassalho de carne-de-sol chiando no espeto, o cuscuz vaporoso e os
queijinhos de cabra, em forma de peito de moça; as merendas e o mel de rapadura
e macaxeira, o munguzá com coco da praia, a coalhada escorrida e os fofos manuês
assados em folha de bananeira?!...
Nessa evocação saudosa
de um passado morto, ressurgiram as adoráveis peripécias da infância, os
episódios da vida de adolescente na penumbra da puberdade, salteada pelas
primeiras investidas dos instintos; as festas, os Sãos Gonçalos, os
Bumba-meu-boi, as vaquejadas, as caçadas de avoantes nos bebedouros, a colheita
dos ovos que elas, abatendo-se em nuvens sobre as várzeas, punham aos milhões,
junto dos seixos, das touceiras de capim, ou nas barrocas feitas, durante o
inverno, pelas patas do gado. Sentia ainda zumbir o vento nos ouvidos, quando,
em desapoderada carreira, o castanho perseguia, através dos campos em flor, as
novilhas lisas ou os fuscos barbatões, que espirravam dos magotes; o ecoar da
voz gutural do pai, cavalgando, à ilharga, o melado caxito, e bradando-lhe,
quente de entusiasmo: Atalha, rapariga!... Não deixes ganharem a caatinga!... E
quando ela, triunfante das façanhas do campeio, o castanho a passarinhar nas
pontas dos cascos, garboso, vibrátil de árdego, as ventas resfolegantes, os
grandes e meigos olhos rutilantes, todo ele reluzente de suor, como um bronze
iluminado, o enlevo do pai a contemplá-la, orgulhoso, e indicando-a aos outros
vaqueiros: Vejam, rapaziada!... Isto não é rapariga, é um homem como trinta, o
meu braço direito, uma prenda que Deus me deu... E as moças, suas companheiras,
murmuravam espantadas: Virgem Maria! Credo!... Como é que a Luzia não tem
vergonha de montar escanchada!...
Paisagem, fatos, coisas,
criaturas queridas perpassavam, confundidos, sós, ou em torvelinhos
fantásticos: tudo ao longe, num horizonte de neblinas, como recordações
truncadas e vagas de um delicioso sonho interrompido.
...........................................................................................................
O sol surgia rubro, sem
pompas de nuvens, destoldado.
Teresinha apareceu à
porta do quarto, bocejando e fazendo cruzes sobre a boca escancarada:
– Credo!... – murmurou –
Pegou-me o sono que não foi graça... Bom-dia, Luzia... Você é muito faceira com
esses cabelos...
– Bom dia, Teresinha! –
respondeu Luzia com uma das madeixas presa aos dentes para lhe poder
desembaraçar a extremidade. – E mãezinha?...
– Está dormindo,
coitadinha, que nem uma criança. Que santo remédio!... Somente – já reparou? –
de vez em quando ela a modos que se engasga...
– É da moléstia...
– Que inveja tenho dessa
cabeleira! Que é que você fez para crescer assim?
– Nada... Água do pote e
pente duas vezes por dia...
– Qual! Isso é do
calibre da gente... Eu tenho usado tudo quanto me ensinam: óleo de coco,
enxúndia de galinha, uma porção de porcarias... Cheguei até a botar nos meus,
remédio de botica... Foi mesmo que nada... Sempre ficaram nestes rabichos que
nem me chegam às cadeiras...
– Veja só. Ninguém está
contente com a sua sorte... Eu, por mim, não se me dava que os meus fossem como
os seus. Dariam menos canseira para os desembaraçar e alisar todos os dias...
– Enfim, cada um como
Deus o fez...
– Por que não os
ensaboas com raspa de juá? Todas as moças, na redondeza das Ipueiras, têm
cabelos lindos, que crescem depressa – dizem – por causa da água de lá, que é
virtuosa, e da tal raspa...
– Vou experimentar.
Houve longa pausa.
Teresinha, de olhos apertados, sufocada pela fumaça, soprava os tições. Luzia
subjugava os cabelos em grande cocó, no alto da cabeça.
– Às vezes – disse Luzia
– tenho vontade de cortar os meus bem rente. Para que pobre quer cabeleira?...
– Que horror! – exclamou
Teresinha – Ficar sura?!... Nem falar nisso é bom.
– Não faz mal. Cabelo é bem
de raiz: quanto mais se corta mais cresce. Assim foi com os meus.
– Há gente que usa
cabelos postiços. A Maria Caiçara, aquela cara de lua cheia, que é caseira do
Belota, tem um enchumaço, que parece dela mesma. Algumas moças brancas e ricas
também gostam disso. Dizem até que compram cabelos de defuntas, cortados pelos
coveiros do cemitério... Credo!... Eu teria um nojo...
Nessa ocasião, chegou
Raulino, sertanejo muito afamado, alto, todo músculos, de cabelos vermelhos e
olhos azuis, genuíno tipo de bretão, bravo e meigo, contador de histórias
maravilhosas de grande voga. Trazia, em balança, nos ombros, uma grande toalha
de algodão da terra, com uma trouxa em cada extremidade.
– Bons-dias, meninas!
Como vai tudo por esta casa?
– Assim, assim – respondeu
Luzia – E você?
– Eu? Como pobre. Não
estou bem em pé, mas encostado, e vou furando, como Deus é servido, o oco deste
mundo, até topar na morte. Estão aqui as rações: a sua, sá Luzia, e mais a da
velha. Como você não pôde ir trabalhar o capitão José Silvestre me perguntou se
eu podia trazê-las. Então respondi: Que é que eu não farei por semelhante
gente? Era para vir ontem de tarde, mas porém fui pegar um veado de estimação,
que fugiu da casa do doutor e só pude dar com o bicho à boca da noite, lá perto
do córrego da Roça. Então resolvi vir agora de manhãzinha.
– Deus lhe pague.
– Ainda não lhe paguei
eu, sá Luzia, a esmola que me fez... Se não fosse você, abaixo de Deus, o boi
me desgraçava daquela feita...
– Ora, ora, ora...
Grande coisa!...
– Mangando, mangando, eu
ia, mas era sendo varado pelas galhadas do bicho traiçoeiro... Ainda estou com
este pé meio esnocado, mas já lhe piso em riba com vontade...
Luzia desatou as
trouxas, e arrumou, cuidadosamente, os víveres, que elas continham, sobre o tosco
jirau, enquanto Teresinha torrava café em um caco de pote, mexendo os grãos que
se coloriam de castanho, exalando saboroso cheiro.
– Bom, agora vou para a
obra – disse Raulino – Até mais ver...
– Espere o café. A Luzia
pila num instantinho.
– Café é comigo. Não
posso enjeitar – respondeu o sertanejo, com mesuras de agradecimento – Não
bebendo de manhã, passo todo o dia com a cabeça dolorida e as fontes
latejando...
Teresinha despejou o
café fumegante no pilão, e Luzia tomando da mão pesada de pau-d’arco, em poucos
minutos, a golpes firmes e cadenciados, reduziu os grãos a leve pó inebriante.
Pouco depois Raulino
sorvia, a largos tragos, o adorado líquido, que ele entornava no pires e
soprava, tão quente estava. Ao terminar, puxou do cós da ceroula um grande corrimboque
de retorcido chifre de carneiro, cuja tampa, de casco de cuia, estava presa
pelas correias a um velho lenço vermelho; sorveu enorme pitada do caco, e
partiu troteando em ligeiro chouto de andarilho.
A velha, cujo sono já causava estranheza
à filha, despertou muito melhorada. Havia muito, não lhe fora dado dormir uma
hora a fio.
– É do remédio, mãezinha
– dizia-lhe Luzia com alegria infantil, beijando-lhe a mão, trêmula e
descarnada. – Se Deus for servido, vai ficar boa, aliviada desse martírio.
Também já basta, tanto tempo dentro de uma rede!... Mais dias, menos dias,
estamos de viagem...
A velha, sorriu-se,
complacente e irônica.
– A demora – continuou a
filha – é soltarmos Alexandre...
Às nove horas, partiu
ela para a cidade, levando a comida do preso. Já estava quase na volta do
caminho, quando Teresinha gritou por ela:
– Não esqueça o que me
prometeu ontem.
– Deixa estar –
respondeu Luzia, fazendo de longe, um gesto de certeza, e desapareceu.
A entrevista na grade da
prisão foi a de todos os dias: palavras de consolações de esperança. Alexandre
desanimado e doente, para espairecer as amarguras da reclusão, trabalhava para
um sentenciado sapateiro que lhe dera, em pagamento do salário, um par de
chinelos de marroquim verde para Luzia, presente muito oportuno, porque os dela
já os não podia quase sustentar nos pés, tão estragados estavam.
Depois da refeição –
disse-lhe o moço à puridade:
– Tenho que lhe dizer;
mas só quando não estiverem outros presos perto de nós...
– O que é?...
– Uma intrigalhada...
Imagine que levantaram...
A confidência foi
interrompida pela aproximação de Crapiúna, que estava de serviço.
– Vamos com isso –
bradou ele, afetando energia, e piscando sensualmente o olho para a moça. – Não
quero paleios com os presos. Aqui não é lugar de namoro, nem de bandalheiras. É
fazer o que tem de fazer e moscar-se. São as ordens...
Luzia, perturbada com a
súbita presença do terrível soldado, não ousou proferir palavra; compôs a
trouxa, e partiu, rapidamente, para não ouvir as graçolas, que lhe dirigia a
meia voz:
– Ingrata! Não se zangue
comigo, meu benzinho... Tenha pena de seu mulato, feiticeira da gente...
Alexandre tiritava de
raiva, murmurando entre os dentes cerrados:
– Deixa estar,
miserável!... Não hei de ficar preso toda a vida... Nossa Senhora há de me
tirar daqui e então aprenderás a respeitar os outros... Peste!...
– Não quero conversa com
presos e, de mais a mais, gatunos...
A injúria feriu certeira
o coração de Alexandre, que se conteve para se não agravar.
O promotor recebeu Luzia
com a benevolência com que sempre lhe ouvia as queixas, as censuras, com
ingênuo desembaraço feitas à morosidade da justiça e das diligências,
principalmente o tal balanço que nunca mais se acabava.
– Você tem razão, em
parte – dizia-lhe, com brandura, o jovem bacharel. – Mas a justiça é cega, não
pode correr; deve andar com muita cautela, e, por não tropeçar, muito devagar.
Além disso, essa demora, que a impacienta, é favorável a Alexandre, para que
ele saia limpo de tão malfadado incidente. Tenha paciência, espere mais alguns
dias. Há uma pequena complicação por esclarecer.
Luzia ouvia em silêncio,
torcendo e destorcendo a ponta do lençol...
– Noto que está hoje
muito preocupada. Que lhe aconteceu?...
– Nada... – respondeu
ela de olhos baixos, hesitante. – Sempre que topo com aquele soldado, o coração
me bate ao pé da goela e fico meio sufocada... É preciso ter muita paciência...
– Fez-lhe alguma?...
– Fez... Mas não é disso
que eu queria falar a vossa senhoria... Era...
– Diga sem hesitação...
– Eu queria pedir-lhe um
favor, pelo bem que quer a sá dona...
– Fale...
– Lembrei-me que achou
os meus cabelos bonitos...
– Sim, é verdade –
afirmou o promotor corando. – E... depois?...
– Então vim aqui para
lhe vender...
– Vender os cabelos,
Luzia?!...
– Não tenho mais o que
vender... É a necessidade... Contento-me com dois mil-réis por eles... Não é
caro...
– Dois-mil réis por esse
tesouro?!... Eis um bom negócio, Matilde – disse, dirigindo-se à esposa, formosa
senhora, que, em adorável traje matinal, um roupão de cambraia e rendas,
entrava no gabinete. – Esta moça quer vender os cabelos...
– Oh! É horrível –
exclamou Matilde penalizada.
Deslumbrada com a
presença da senhora, cujos belos olhos, claros e suavíssimos, se fitavam nela
compassivos, ergueu-se e arrancando o pente, deixou caírem as fartas, fulvas
madeixas encaracoladas.
– Magníficos – continuou
Matilde – Mas... para que serviriam? São muito diferentes dos meus...
– Faça-me esta esmola,
minha dona. Veja, não é por me gabar, parece cabelo de branca... Pegue neles,
não tenha nojo...
Matilde, após curta
hesitação, tomou as madeixas nas mãos alvas e delicadas; fixou nelas os finos
dedos, com unhas de nácar, e apertou-os a rangerem como meadas de retrós.
– Que belos, que
extraordinários cabelos!... Com que os trata?
– Pente e água do pote.
Então? Fique com eles que tenho muito gosto nisso...
– Fico, sim... –
respondeu Matilde, tomando súbita resolução. – Dou-lhe cinco mil-réis por eles;
mas... imponho uma condição.
– Quer cortá-los já?...
– atalhou Luzia, vivamente.
– Ao contrário –
continuou a senhora – não os cortará. São meus, mas ficam na sua cabeça.
Iluminou-se o semblante
de Luzia de irrepressível alegria; seus olhos se umedeceram e os lábios,
trêmulos, murmuraram:
– Deus lhe pagará, santa
criatura!... Nossa Senhora lhe dê uma boa sorte... Oh! a senhora não parece
deste mundo... Perdoe-me!... Eu tinha um grande aperto aqui, no coração...
Faz-me bem chorar...
– Aqui tem o dinheiro –
disse o promotor, entregando uma nota a Luzia. – Amanhã, talvez tenhamos boas
notícias...
– Amanhã?... – perguntou
Luzia, guardando o dinheiro no seio e compondo os cabelos.
– Sim. Creio que teremos
novidade... Vá descansada, que aqui fica o seu advogado – disse ele, indicando
Matilde.
E voltando-se para ela,
enquanto Luzia partia, alastrando agradecimentos, disse-lhe em tom de afetuoso
carinho, muito enternecido:
– Bom negócio fizeste,
meu amor! Belíssima ação praticaste... És um anjo de bondade...
X
Rosa Veado voltara
extenuada de penosíssimo trabalho. Sentada à porta da casa de taipa, onde
morava com os filhos entre o cemitério velho e a Fortaleza, contava o caso às
vizinhas atentas, acocoradas em redor dela, curiosas e admiradas.
– É o que digo a vocês.
As outras comadres não lhe puderam dar volta e não tiveram remédio senão me
procurarem, porque, não é por me gabar, todo o mundo sabe que eu sou a
tira-teimas. Que horror! A mulher tinha a criança atravessada, lá nela; era
cheia de dengues; e, quando vinham as dores, não havia meio de ter mão nela.
Eram gritos, exclamações!... E botava a boca no mundo, que não era para
graças... Também era a primeira barriga, coitada!... Eu lhe dizia: Tenha
paciência, comadrinha... É assim mesmo. – Mas eu já não posso mais, sinhá Rosa.
Estas dores me arrebentam – respondia ela, com as mãos fincadas nas cadeiras. –
Ai... ai... ai... que estou me acabando!... – É porque vosmecê não está
afeita... A primeira vez custa um bocado... Nisto, vinha-lhe o sono... Ela
passava por uma modorra, como se não tivesse nada. De repente, estremecia... –
Lá vem... lá vêm elas – repetia espantada.– Ai... ai... Minha Santa Virgem!...
–Ah, meu maridinho... da minha alma... Ai!... Ai!... E eram ais de cortar o
coração de quem não labuta, como eu, desde rapariga. Estava eu já esfalfada;
não sabia mais como enganar a pobre, quando ela teve um puxo forte e
quebraram-se as águas. Então eu disse: daqui a um nadinha, se Deus quiser, está
aí a criança. – As dores foram amiudando, umas em riba das outras e... nada...
Por fim a mulher não tinha mais forças: os puxos se espaçaram muito escassos,
estava lavada em suores, branca como um pano, os olhos revirados e o nariz
afilado... Credo! Parecia uma defunta... – Tenha coragem, minha comadre. Mais
uma vez e estará livre... Ela não falava; berrava como uma bezerra. Peguei-me,
então, com o Senhor São Raimundo e rezei o Magnificat. Já estava para
mandar tocar, no sino da matriz, sinal de mulher de parto, quando me veio uma
fé... Mandei sujicá-la por outra mulher, que estava junto, e vistoriei-a à fina
força, porque, toda cheia de luxo e de vergonhas, me dava com os pés como uma
desesperada. O menino estava mesmo atravessado. – Vão ver uma botija, minha
gente – disse eu. Trouxeram uma botija de zinebra vazia, onde eu mandei que ela
assoprasse com toda a força. – Sopre... sopre de verdade... Vamos... vamos...
mais... mais um bocadinho... Agora... agora... Nisto dei um jeito que só eu
sei... A mulher largou um grito rasgado e a criança pulou!... Estava roxo como
uma berinjela... Mal se viu aliviada, era só arremetendo para ver o filho...
Eu, com medo de dizer que a criança parecia morta, tinha mão na mãe... A
criança não dava sinal de vida. Amarrei-lhe o embigo; arrumei-lhe quatro
palmadas fortes; meti-lhe o dedo na boca cheia de gosma... Foi dito e feito:
chorou logo com força, pois era um menino macho, com a graça de Deus... A
mulher ficava cada vez mais branca e com uma sede de engolir quartinhas d’água.
Era um frouxo danado. Parecia que se havia sangrado um boi... Então mandei
assoprar outra vez na botija. E, como as párias não se despregassem, chamei o
marido, mandei que botasse o pé em cruz na barriga da mulher enquanto esta
rezava comigo: “Minha Santa Margarida, não estou prenha, nem parida, mas de vós
favorecida.” Ao cabo da terceira vez, estava tudo acabado. Arre! Que nem com
dez mil-réis me pagavam o trabalho e o susto... Ainda tenho uma dor aqui, na
ponta da costela mindinha, de uma feita que ela me empurrou o pé para fazer
firmeza... Credo!...
– Vosmecê tem muita
sorte, tia Rosa!...
– Qual! O que eu tenho é
fé em Deus.
– Não sei como, em
semelhante sequidão, ainda há quem se lembre de ter filhos...
– Você não vê como estão
cheios de crianças os abarracamentos de retirantes?!... Até parece imundície,
tanto menino...
– É só o que Deus dá aos
pobres...
– É um morrer de
crianças que até parece praga...
– Se não morressem,
mulher, o mundo já não cabia mais a gente. Depois, anjinhos, não faz mal
morrerem... Vão para o céu rezar pelos pais...
– Assim mesmo – retorquiu
uma gorda matrona que tinha junto quatro crianças – eu não quero que os meus
morram... Já que nasceram é melhor que se criem...
– Pois eu tive cinco –
atalhou outra – que Deus chamou à sua santa glória. Foram para o céu
direitinho, só passaram pelo purgatório para vomitar o leite pecador...
Em meio da conversa,
chegou Teresinha.
– Que fim levou você? –
perguntou-lhe Rosa.
– Ando por aí mesmo.
Boas-tardes a vosmecês todas...
As mulheres
corresponderam, friamente, à saudação de Teresinha; e, desconfiando que vinha
tratar de algum particular, foram saindo, uma a uma. Era muito comezinho
receber a parteira visitas misteriosas, em busca das suas artes, das suas
maravilhas.
Trago aqui os dois
mil-réis – dizia Teresinha quando se acharam a sós.
– Hoje talvez não possa
fazer a reza – disse Rosa, tomando a cédula e examinando com os olhos
pequeninos e cinzentos, armados duns óculos de cangalha, remendados com cera. –
Estou que não posso me mexer de cansada de um trabalho que me pôs sal na
moleira...
E repetiu o caso com
peripécias novas, apesar da impaciência da moça.
– Enfim – condescendeu a
parteira – como você tem pressa, vou ver se, com a ajuda de Deus, posso fazer
hoje alguma coisa...
– Faça, sá Rosa. É em
beneficio de um pobre que já não se astreve com a cadeia...
– E tem razão. Preso nem
para ganhar doce. Só d'eu pensar naquela sepultura, tapa-me o fôlego...
– Podia fazer a esmola
de experimentar hoje...
– Eu tinha de servir uma
dona, separada do marido, que foi para o Amazonas e nunca mais se soube dele;
nem novas, nem mandados... Ela, que esperou tanto tempo, pode esperar mais
alguns dias... Vamos lá... Entra para dentro de casa...
E conduziu Teresinha a
um quarto estreito, sombrio, atravessado de frechas esguias de sol que, das
fendas do telhado, iriadas de dourado pó irrequieto, o iluminavam, e marcavam
no chão mornos discos pálidos. No centro, sobre uma esteira, havia um banco,
envernizado pelo uso e marcado com pingos de cera. Tirou, depois, de uma velha
mala, carcomida e desconjuntada, duas velas e uma pequena imagem de Santo
Antônio, tão amarrado e enrolado em fitas de cores tantas, que só lhe aparecia
a cabeça tonsurada e o microscópico Menino Jesus, nuzinho, sentado sobre o
livro vermelho e estendendo os bracinhos para abraçar o santo.
Um gato negro, de olhos
fulvos, veio lentamente, a passos tardos e preguiçosos, encolher-se perto do
banco.
Dominada por secreto
terror do contato com o mistério, Teresinha acompanhava, com o olhar espantado,
os preparativos. Quando a parteira acendeu as velas, que espargiram mortiça
claridade no ambiente, e aspergiu os quatro cantos do quarto com uma palha
benta, molhada na água do copo, colocado defronte da imagem, se sentiu
aniquilada e caiu de joelhos, baixando os olhos para não encontrarem os dela, pequeninos
e vivos como os do gato, a fitarem-na com insistência e energia, como se lhe
perscrutassem a alma.
– Reze o Creio em Deus
Padre – ordenou Rosa Veado, com voz soturna.
Enquanto a moça repetia,
maquinalmente, a oração, ela murmurava o responsório, que terminou implorando a
Santo Antônio, deparador do perdido àqueles que recorriam à sua intercessão
junto do trono do Altíssimo, fizesse a graça de indicar o ladrão por quem
estava padecendo um inocente.
Rosa Veado saiu, então,
do quarto, como um espectro, a deslizar sem ruído, e fechou a porta
cautelosamente.
Teresinha ficou só no
sítio de mistério e esconjuro. Seus olhos esgazeados acompanhavam os movimentos
sensuais do gato, que entrou a caminhar de um para outro lado, farejando e
chamando a feiticeira com plangentes miados. Havia, no ambiente enfumarado,
sombras adejantes, a atravessarem céleres, os traços luminosos das frestas,
como enormes pássaros negros. Toda ela tremia em arrepios aflitivos. Um
formigueiro subia-lhe pelas pernas frias, entorpecidas. Gelado suor colava-lhe
às têmporas, as loiras madeixas. Arfava-lhe o seio, angustiado por mortal
compressão. Quis gritar, mas a voz esbarrou na garganta, embargada por um nó.
Fixou o olhar fascinada no brilho do copo e viu se moverem nele, como em uma
câmara clara, confusas figuras humanas, mulheres e homens, arrebatados por um
furacão, com doidos volteios de dança macabra. Ao mesmo tempo, experimentava a
impressão de alar-se do chão, sorvida pelo enorme e poderoso hausto de colossal
boca invisível. Cresciam as figuras; tinham feições de pessoas conhecidas; riam
com esgares ferozmente sarcásticos; envolviam-na; arrastavam-na no galope
diabrino... Ela desmaiava de gozo, à deliciosa sensação de adejar no espaço,
subtraída à gravitação, como um floco de nuvem, alma sem corpo.
Em plena alucinação, não
perdera, todavia, os sentidos e a idéia, fixada e dominante em seu cérebro
conturbado: o crime imputado a Alexandre e a infamação do castigo. As
suspeitas, que lhe haviam cavado largo sulco no espírito, se acentuavam com o
testemunho dos olhos, porque via, nos vultos cabriolantes em redor, autores e
cúmplices do delito, indicados por Santo Antônio. O responsório produzira o
apetecido efeito. Quando, entretanto, empregava enorme esforço por apreender
bem os traços dos semblantes deformados por horríveis caretas, tênue fumaça, de
cheiro inebriante, começou a invadir o quarto. As figuras mais se adelgaçaram,
imergiram outras nos rolos vaporosos, para surgirem, depois, mais confusas,
mais disformes e misturadas, até desaparecerem em treva densa.
Teresinha despertou,
sacudida por forte acesso de terror,e vomitou um bolo de saliva efervescente.
As velas ardiam,
lacrimejantes, ao lado do pequenino santo. De um fogareiro de barro, cheio de
brasas amortecidas, subia tênue fio de fumo, cheiroso, dum azul delido. Rosa
Veado, de joelhos, fitava nela os olhinhos fulvos como os do gato negro, que
ressonava, então, estirado na esteira.
– Não se assuste... –
observou baixinho, a feiticeira. – O incenso consagrado foi-lhe aos
grogomilhos...
– Vosmecê não saiu
daqui?... – perguntou a moça, com voz magoada e débil, esfregando os olhos
lacrimosos e congestos.
– Saí, sim. Fui buscar o
fogareiro e o incenso...
– E não viu?!...
– O quê?!...
– Eles... pelo ar...
– Vi, mas foi você, de
queixos cerrados e olhos esbugalhados, sem responder às minhas perguntas... Que
rapariga medrosa!... Credo!... Nem que lhe houvesse aparecido alguma
visagem!...
– Pois vi mesmo... Estou
bem certa... Dê-me uma pinga d’água... que tenho uma coisa... aqui... na boca
do estômago. Um entalo...
– Tome um golinho deste
copo...
– Deste, não!... –
atalhou vivamente Teresinha, com um gesto de repugnância. – Não quero, está
enfeitiçada... Ai... que tenho as pernas bambas, sem ossos...
– É o que eu digo. Tudo
isso é medo... Bem se vê que você nunca assistiu a responso. Daí, bem pode ser
que o glorioso Senhor Santo Antônio tivesse feito o milagre...
– Fez... fez... Eu vi
tudo, muita coisa; mas não lembro bem... Espere... Era uma porção de gente
maluca; era... Oh! tenho a cabeça a andar à roda e besouros nos ouvidos...
Rosa Veado apagou as
velas, guardou-as com o santo e conduziu Teresinha, que mal podia caminhar,
vacilante, trêmula, para fora do quarto. À impressão violenta da claridade e do
ar livre, ela esfregou, de novo, os olhos, e espreguiçou-se fatigada, em
contorções felinas...
– Quando estiver com o
juízo assentado – ponderou a feiticeira – há de recordar tudo... Agora é
esperar com fé, e verá como a coisa se descobre, quando menos pensar. Quando pilhar
uma ocasião, farei a adivinhação da urupema, que nunca falhou... Deixe por
minha conta... Já sei que, nessa história, anda metida alguma mulher...
Confusa, envergonhada,
todos os seus membros desmantelados, Teresinha partiu perseguida pelos olhares
matreiros do mulherio da vizinhança, mal podendo arrastar as pernas trôpegas e
doloridas, com as articulações a estalarem de perras e as virilhas traspassadas
por alfinetadas pungentes.
Quando se viu longe da
casa da Rosa, murmurou, irada e suspeitosa:
– Aquela bruxa me botou quebranto...
XI
Contra a expectativa de
Luzia, Teresinha regressou desanimada e lânguida, sem a natural vivacidade e
rapidez de movimentos, que lhe assinalavam a índole instável, a indiferença,
quase inconsciente, da torpeza a que a fatalidade a arrastara. Tinha
amortecidos e sombrios os olhos faceiros, e a comissura dos lábios, sempre
arqueada pelo hábito do sorriso desdenhoso e irônico, se dilatava, desgraciosa,
em torvo traço de sofrimento.
– Então?... – inquiriu
Luzia, com ânsia.
– Quase morro... –
respondeu ela, comprimindo os quadris magoados. – Nunca mais... me meto em
outra... Credo!... Quem de uma escapa...
– Que houve?... Que te
aconteceu?...
– Um horror!...
– E o responso?...
– A Rosa rezou...
– O ladrão não é
Alexandre...
– Não sei...
– Fala, mulher, pelo
amor de Deus. É preciso que a gente esteja a te espremer...
– Ainda tenho a cabeça
meia atordoada e as pernas lassas... Sinto ainda uma dor aqui nas cadeiras...
Teresinha gemia as
palavras e contorcia-se em requebros lascivos e dolentes. Depois, fixando, com
esforço, as idéias, que lhe giravam dispersas no cérebro, como reminiscências
de fatos remotos, fez a narrativa dos episódios da bruxaria, com minúcias
exageradas, tocadas do forte colorido de fetichismo e alucinação.
– Quando vi, minha
negra, as horrendas figuras crescerem e dançarem como demônios do inferno, são
os ladrões – disse comigo – mas não lhes pude divisar bem as feições, tantas e
tão feias era as caretas que me faziam. Parecia um bando de papangus.
– E não os
reconheceu?...
– Qual!... Aquilo foi,
por força, arte do cão... Que horror!.. Disse-me a Rosa que esperasse com fé...
Vamos ver...
– Descansa... É possível
que, depois de assentares o juízo, te lembres melhor...
– Ninguém me tira da
cabeça que aquela esconjurada, meu Deus perdoai-me, botou-me coisa ruim no
corpo...
– Não pensa nisso,
criatura... Você está nervosa.
– Isto é doença de moça
rica...
– Doença não quer saber
de branco nem de preto, não respeita fortuna nem pobreza... Venha cá –
acrescentou, empolgante, com o olhar áspero e desconfiado. – Você viu alguma
coisa, mas não que ser franca...
Teresinha fez com a
cabeça um gesto negativo, e sentou-se acabrunhada. Luzia continuava a
contemplá-la ansiosa. Seus olhos reluzentes de aflição, exprimiam a esperança
no milagre e a revelação anelada para restaurar a honra de Alexandre, e
restituí-lo à liberdade...
Quanto tempo teria ainda
de esperar? Quantos dias e quantas noites seria ainda o mísero obrigado a
passar entre aquelas quatro paredes infectas?... E se não fosse possível
salvá-lo; se a justiça descobrisse provas contra ele; se, na verdade, fosse o
culpado de tão feio crime?!...
Tais dúvidas empanavam,
como nuvens fugaces, o atribulado espírito de Luzia.
Alexandre teria energia
para suportar a prisão, o vilipêndio da pena infamante; ela, porém, não se
podia conformar com a idéia de reconhecê-lo criminoso, acusado de ladrão e
maculado para sempre. Preferiria vê-lo morto, estirado no chão, fulminado por
um corisco.
– Ninguém me tira da
cabeça – acentuou Teresinha, emergindo da prostração que a subjugara – que
aquilo é obra de soldado...
– Também eu – ajuntou
Luzia – já pensei nisso... Um homem, como Alexandre, não teria astúcia para
tanto... Além disso haviam de, por força, desconfiar dele...
– Com efeito... Era
preciso ser muito besta para furtar coisas do armazém, fazendas, mantimentos,
dinheiro...
– Sim, coisas que davam
logo na vista... Quem só vive do trabalho, que mal dá para o de-comer e
arranjar um molambo para cobrir, não poderia esconder semelhante furto...
Quando aparecesse com roupa nova ou fizesse gastos...
– É mesmo.
Perguntava-se: onde foi o fogo, onde arranjou isso?... Quem cabras não tem e
cabrito vende... Eu, por mim, não se me dava de jurar que não foi Alexandre...
Gente que tem furto na consciência não olha direito para os outros... Cara de
ladrão não me engana...
– Ah! Teresinha!... É
Santo Antônio quem está falando pela tua boca... Os anjos digam amém...
– Tanto hei de teimar
que descobrirei tudo... Não é a primeira nem será a última vez que eles fazem
das suas e botam a culpa nos outros...
Ocorreu, então, a Luzia
o que lhe havia dito Alexandre, aludindo em termos vagos, a uma intriga que não
queria revelar diante dos outros presos. O promotor também lhe falara, com
meias palavras, de uma pequena complicação, naturalmente alguma coisa
desfavorável, algum indício de culpa... Que seria?... Que intervenção diabólica
frustra o milagre, perturbando a visão de Teresinha, lhe ofuscando a memória?
Quem sabe se ela não vira o ladrão e, por natural delicadeza, se esquivava de
lhe patentear a dolorosa realidade para não a magoar, privando-a do inefável
conforto da esperança com a desilusão e a tristeza esmagadora de deparar a
verdade fria e implacável?!
A razão é a luz; a
dúvida é a treva, congeminação de contrastes engendrados pela mesma causa.
Felizes os irracionais, porque não duvidam.
Apesar da sua energia
máscula, ela se sentia aniquilada, num colapso de nervos enrijados à contínua
tensão de tantas amarguras e cuidados, vexames, a pobreza, duras privações de
haveres, a moléstia da mãe, o pressentimento de perdê-la a qualquer momento e a
obsessão do soldado, além da orfandade, o desamparo pela prisão de Alexandre, a
única pessoa que a poderia ajudar a viver.
Não lhe bastavam para
tormento constante, as próprias aflições? Para que se mortificar com a sorte
dele? Não era seu parente; nada os ligava, a não ser recíproca troca de
favores, a gratidão, orvalhando o gérmen da simpatia instintiva e um projeto
vago, a proposta de se aliarem pelo matrimônio.
Quem sabe – pensava ela
– se, em vez de partir de impulso do coração, não fora feita por generosidade,
compaixão, ou desejo sensual de possuí-la, onerá-la com a responsabilidade da
família, filhos, que aumentariam os vexames já oprimentes, para depois, como
tantos outros, abandoná-la, inflingir-lhe a abjeção de ser preterida por outra
mulher, crime que os homens cometem como um direito do sexo, ou divertimento
cruel, igual ao de matar rolas e desmanchar ninhos?!
Culpado e punido,
ficaria livre de penar por ele, do compromisso de gratidão e das conseqüências
funestas do triste consórcio de dois pobres. Sozinha no mundo, poderia, com a
graça de Deus, e os seus músculos, trabalhar para viver, ou emigrar para a
praia em busca da proteção e amparo do padrinho José Frederico.
Tais pensamentos, bons e
maus, perversos ou generosos, acudiam, em tumulto, disparatados e
contraditórios, ao seu cérebro perturbado pela dúvida. Acariciava-os ou lutava
para expungi-los; e vinha-lhe, por fim, o remorso de haver pecado por soberba,
por falta de caridade, julgando mal Alexandre, quando, em verdade, os
sofrimentos dele repercutiam no seu coração com dobrada intensidade, como se
ele fora parte de seu ser, porção de sua alma.
Seria isso bem-querer,
como imaginava; duas criaturas confundidas de corpo e alma em harmonia
ininterrupta de afetos e idéias, vivendo da mesma nutrição moral, dos mesmos
anelos, eternamente ligados no prazer e na dor, na vida e na morte?!
Sentia-se incapaz de
amar; carecia-lhe a fraqueza sublime, essa languidez atributiva da função da
mulher no amor, a passividade pudica, ou aviltante da fêmea submissa ao macho,
forte e dominador, irresistível, como aprendera na intuitiva lição da natureza;
essa comovente timidez de novilha ante a investida brutal do touro lascivo, sem
prévios afagos sedutores, sem carícias de beijos correspondidos, como nos
idílios das rolas mimosas. Não; não fora destinada à submissão. Dera-lhe Deus
músculos possantes para resistir, fechara-lhe o coração para dominar, amando
como os animais fortes: procurar o amor e conquistá-lo; saciar-se sem implorar,
como onça faminta caindo sobre a presa, estrangulando-a, devorando-a. Não era
mulher como as outras, como Teresinha, para abandonar a família, o lar, a
honra, por um momento de ventura efêmera, escravizando-se ao homem amado,
contente do sacrifício, orgulhosa do crime, insensível ao vilipêndio, sem olhar
para trás onde ficaram os tranqüilos afetos, para sempre perdidos; e, por fim,
consolada à torpeza do repúdio infame, à margem da estrada da vida, como um
resíduo inútil, condenado a vis serventias, trapo que foi adorno cobiçado,
molambo que vestiu damas formosas, casca de fruto saboroso e aromático.
Não; não fora feita para
amar. Seu destino era penar no trabalho; por isso, fora marcada com estigma
varonil: por isso, a voz do povo, que é o eco da de Deus, lhe chamava
Luzia-Homem.
XII
A velha dormia
tranqüilamente, e as duas moças continuavam a conversar no alpendre.
– Queria você muito bem
ao Cazuza? – perguntou Luzia a Teresinha, de súbito emergindo de um vago
cismar.
– Se queria!... –
respondeu-lhe ela, com saudoso suspiro. – Por ele larguei pai, mãe e irmã de
quem eu era um ai-Jesus! Era o seu tudo e sentia-me tão feliz com ele que,
desde o dia em que Deus o levou, fiquei insensível como uma pedra, vivendo por
viver, rolando à toa pelo mundo...
– Nunca teve inclinação
para outro?
– Eu, não. Vendo-me
sozinha e desacostumada a trabalhar para comer, não tive remédio senão me
resignar à minha sorte e estar por tudo. Quando algum homem se engraçava de
mim, eu fingia gostar dele. Encontrei um desalmado que me queria como uma fera;
tinha maus bofes e me trazia, ciumento como o demônio, que nem negra cativa.
Aquilo não era homem; era o cão em figura de gente. Por qualquer suspeita
ficava danado como se me quisesse comer viva. De uma feita, arranchou-se na
casa em que morávamos como marido e mulher, um moço rico e bonito, que se pôs a
olhar muito para mim; e eu, ao levar-lhe o café, caí na asneira de sorrir para
ele. Ah! Luzia, se você me visse naquele tempo!... Não é por me gabar, alva
como uma imagem, com duas rosas nas faces e carnes rijas como pau!... Meus
cabelos pareciam de ouro e meus olhos eram azuis e claros como duas contas. O
mundo e a pobreza estragam a gente. Hoje, veja como estou murcha, engelhada,
cheia de sardas... Mas, para encurtar razões, quando o moço foi embora, o homem
pôs-me de confissão; e, não sabendo eu o que lhe dizer para me desculpar de
falta que não me passara pela cabeça, disse-me uma porção de desaforos porcos,
nomes de mãe; chamou-me sem-vergonha, safada, deslambida, e, agarrando-me pelos
cabelos, deu-me tabefes...
– E você? – perguntou
Luzia, indignada.
– Eu chorei muito;
lamentei a minha desgraça; jurei por todos os santos do céu, que era inocente,
até que ele, com um pontapé, me atirou para dentro da camarinha, berrando
possesso: “Anda, peste!... Amanhã não me ficas aqui em casa; ponho-te fora na
estrada, onde te apanhei como uma cachorra vadia...” E fechou, com estrondo, a
porta. Fiquei na escuridão, maginando no que faria de mim, quando amanhecesse.
Ao mesmo tempo que me fervia o coração, estava contente com ver-me livre de
semelhante bruto; mas tive medo de apanhar outra vez, e esperei quieta o que
desse e viesse. – Que me importa – disse comigo. – Hei de achar quem me
queira... E, pensando no moço causador daquela desgraceira, peguei no sono,
deitada numa rede velha que ali estava armada. Quando os galos estavam
amiudando, ouvi bulir na porta; levantei-me de um pulo; fui deitar-me no mesmo
lugar onde havia caído e pus-me a soluçar baixinho. Abriu-se a porta, e a
claridade do copiar, alumiado por uma vela, deu em cheio sobre mim. Eu estava derreada, no chão, sustendo o
corpo com a mão esquerda, enquanto tapava os olhos com as costas da direita,
olhando por baixo. O desalmado entrou devagarinho; chegou perto de mim; ficou
alguns minutos parado e disse-me, depois, em voz sumida e zangada: “Vá se
deitar no seu quarto...” Eu não respondi, nem me mexi; entrei a soluçar mais
forte. Tocou-me, então, de mansinho, no braço, dizendo, já com outra voz,
manhosa e adocicada. – “Teresa, você está zangada comigo?” Repeli o agrado com
um safanão do cotovelo. Ele continuou, procurando abraçar-me:– “Este meu
gênio!... Às vezes faço coisas!... Veja: estou arrependido... do que fiz...”
Estava quase acocorado junto de mim. “Só o que falta – resmunguei, soluçando
mais forte – é mandar-me surrar pelos seus vaqueiros com um nó de peia.” –
“Perdoa, coração – continuou, tentando ainda me abraçar – Eu não sou mau, mas o
ciúme me tira o juízo. Esqueça tudo, minha cunhãzinha da minha alma... Prometo
nunca mais te ofender. Pede o que quiseres, benzinho; serei teu escravo...” E,
suspendendo-me do chão, levou-me ao colo como uma criança... Todo ele tremia;
eu sentia-lhe o baticum do coração; suava e bufava como um novilho... Eu, nem
como coisa: zangada, gemendo e soluçando. No outro dia, enquanto ele se
derretia e se babava em agrados e promessas, eu maginava no moço e no Cazuza
que, lá do céu, me pedia vingança...
– Você não abandonou
logo esse malvado?!...
– A falar a verdade, não
era de todo mau. Fiquei por medo e por não ter coragem de começar a vida de
novo... Já tinha padecido tanto, que mais um pouco não me fazia mossa. Mal com
ele, pior sem ele, que, tirante as venetas de ciúme, era bom para mim; dava-me
tudo: era só pedir por boca, como dona de casa... Maridos, casados na igreja,
batem nas mulheres, quanto mais... Ora, deixei-me estar, mas pensando sempre
que o meu adorado Cazuza nunca me havia maltratado, e que eu devia, mais cedo
ou mais tarde, tomar desforra; porque, apesar de franzina, ninguém mas faz, que
não as pague, tão certo como Deus estar no céu.
– Vingou-se então?...
– Ora, ora, ora!... Eu
lhe conto. Seu Berto (ele se chama Bartolomeu, mas todos o tratavam assim) foi
em fins d’águas fazer a ferra em uma fazenda dos Crateús. O outro parece que
soube disso, e se apresentou uma tarde, debaixo de um pé d’água, que se diria
vir o céu abaixo. Eram relâmpagos e trovões de encandear e ensurdecer a gente.
Aboletou-se e passou a noite. Soube, então, que era um tal capitão Bentinho, de
família muito rica e poderosa. Trajava bem, gibão, guarda-peito, e perneiras de
couro de capoeiro, muito macia, bordadas de flores, pospontadas à sovela, com abotoadura
e esporas de prata. Não imagina como tinha a cor fina e branca, e uma barba
parecida, comparando mal, com a de Jesus Cristo. Como estou falando com o
coração aberto, não tenho vergonha de confessar que me engracei dele, acho que
por capricho ou por ser em tudo diferente do outro. De madrugada, ainda
chuviscando e antes que a gente da casa acordasse, arrumei algumas peças de
roupa e meti-as em sacos com alguns patacões dados pelo Berto; e fugimos: ele
montado num possante quartau pedrês, eu à garupa. Arre! que foi uma viagem de
arrebentar. Tivemos de atravessar muitas léguas de sertão, passando rios a
nado, dormindo no mato e comendo de alforje até chegarmos a uma povoação, perto
da fazenda onde moravam os pais dele. Aí fui aboletada em casa de uma velha.
Passamos três dias como noivos: ele, fino como seda; eu, cheia de denguices e
manhas, como rapariga donzela. E contudo, Luzia, você não é capaz de acreditar
que, amimada pelo Bentinho, todo delicadezas e cerimônias, tinha saudades do
Berto com o seu sangue na guelra, aqueles olhos devoradores, aquela
brutalidade...
– É possível?!... Pai do
céu!...
– Você não sabe de
quanto o bicho mulher é capaz, quando vira a cabeça.
– Anda; conta o resto.
– Eu fazia idéia da
fúria, da danação dele, quando deu por falta de mim, da cunhãzinha ruça.
Imaginei os berros, os despropósitos, as pragas, que me irrogou, as ameaças de
desforra, pois sabia que não era homem para se conformar com o roubo da mulher.
Meu dito, meu feito. Um dia chegou Bentinho muito assustado, recomendando que
me escondesse, porque lhe haviam inculcado gente do Berto nos arredores da
povoação. Fiquei mais morta do que viva. Não me podia levar para a fazenda,
porque a família, que tudo ignorava, não consentiria nisso. A velha que quase
não dava fé de mim e vivia muito ocupada na criação, entrou a tomar precauções
para ninguém suspeitar a minha estada em sua casa. Um dia, era dia de, feira, e
eu tinha um desejo doido de ver a reunião de gente de uma redondeza de vinte
léguas, vendendo legumes, farinha, rapadura e outras produções da lavoura; mas
a megera não consentiu que eu botasse o nariz de fora. Ali por volta de
meio-dia, ouvimos tiros de bacamarte e uma algazarra dos demônios, um bate-boca
desadorado. Pouco depois soubemos que houvera um pega entre cangaceiros,
desconhecidos no lugar, e a gente do Bentinho, e que já havia morrido um
homem... Que seria?... Fiquei numa aflição, tremendo de susto, mas
experimentava uma secreta satisfação que fosse por minha causa a briga e o
sangue derramado.
– Que horror!...
– Estava num pé e noutro
para ter notícias certas do barulho, quando, entrou, de repente, Bentinho.
Vinha muito amarelo, com a mão enrolada em um pano e acompanhado por dois
cabras, armados até os dentes. – Que foi? – perguntei-lhe assustada. – “Nada,
um arranhão no pulso, respondeu com voz sacudida – amarre-me, endireite-me
isto, sá Quitéria.” Enquanto a velha punha mezinha na ferida, um talho que ia
da palma da mão esquerda ao meio do braço, Bentinho, fora do seu natural, com
os olhos espantados, a voz surda e seca, ainda trêmulo de raiva, contou-me que,
chegando à feira, fora desfeiteado por uns cabras, novatos na terra, já muito
encachaçados e intimando com todo o mundo. Chamou a gente para amarrá-los, mas
um deles, saltando como um gato sobre o ginete, disse-lhe: – Você pensa, seu
alvarinto, que amarrar homem é furtar, à traição, mulher alheia? Nisto chegou,
à toda, o João Brincador com três homens escolhidos, e eu disse-lhe: – Amarra
essa cambada de desordeiros. – Em cima das minhas palavras, riscou o Berto, e
foi dizendo: – Você, pode amarrá-los seu filho desta, filho daquela, mas depois
de me pagar e ajustarmos as contas. – Eu e os meus, demos de rédea para sairmos
do meio do povo; eles, rente, atrás da nossa poeira. A certa distância rodamos
sobre os pés os animais, e os cabras que também estavam bem montados, quase
esbarram em riba de nós. – Agüenta, rapazes! – disse ao João, que me respondeu
sorrindo: Não há novidade, capitão. Deixe eles para nós. Palavras não eram
ditas, o Berto papocou-me fogo. Abaixei-me, e a bala tirou um taco da beira do
chapéu do João. – O cabra mata seu Bentinho! – gritou ele. – Os outros
cangaceiros atiraram, e os meus responderam com uma descarga. O cavalo de um
deles empinou-se e rodou morto por cima do cavaleiro, também ferido. O Berto,
então, veio seco em cima de mim, e correu dois palmos de faca do Pasmado.
– Tenha mão, capitão Berto – disse-lhe eu, aparando o golpe, com a minha Parnaíba.
– Tenha mão que se desgraça. Mas o homem estava roxo de raiva; espumava como um
touro feroz. Avançou outra vez num ímpeto, que não era para graças. Suspendi o
ruço-pombo passarinhando como um gato; salto pra aqui; pulo pra acolá, e o
homem decidido atravessando-se na minha frente, com o cavalo preto e ligeiro
que nem um tigre. Na terceira investida, meteu-me o ferro com vontade. Rebati
com a mão; mas quando senti o aço ranger-me na carne e o sangue espirrar,
saquei da garrucha. O homem estava cego, arremeteu de novo e meteu-me o ferro
outra vez aqui na aba do gibão. Vendo, então, que o diabo me matava mesmo, e
que eu não podia com vantagem brigar com ele a ferro frio, perdi as cerimônias,
e lasquei-lhe fogo... O homem soltou um berro; abriu os braços como se quisesse
abraçar o vento, e derreou pra trás. O cavalo, sentindo falta de rédea, deu
quatro galões e meio, como um poldro brabo e desembestou desapoderado,
arrastando Berto enganchado no estribo. Morreu?!... – perguntei, tiritando de
frio, e batendo os dentes como se tivesse sezões. “Não sei. Foi batendo por
troncos e barrancos até desaparecer de nossa vista com os dois cabras restantes
metidos em uma nuvem de poeira. Dois dos dele ficaram no barro. Da minha
rapaziada, o Chico Pintado levou uma bala aqui na coxa – lá nele; o Borburema
perdeu o gibão, e foi ferido com um pontaço nas cruzes; o Brincador ficou com o
chapéu, novo em folha, estragado. Todo o mundo sabe que ele tem o corpo
fechado. Enquanto brigávamos, o povo fazia um barulho medonho. Todos viram que
me defendi o mais que pude, negaceando, para lhe poupar a vida. O diabo do
ferro cortava como navalha. O talho está doendo de verdade.” E voltando-se para
mim, disse: – “Não chores, Teresa. Isto, com sumo de angico ou de maçã de
algodão, sara depressa.... É uma arranhadura de nada.” Supunha que eu chorava
por ele; mas, naquela ocasião, meu pensamento acompanhava Berto, desfigurado
pelos encontrões, coberto de sangue e pó, arrebatado pelo Moleque, cavalo de
estimação que eu bem conhecia. Minha vontade era correr atrás do pobre, apanhar
os pedaços da sua carne, arrancados pelos tocos e pedras. Talvez o encontrasse
ainda vivo para pedir-lhe perdão... Desde esse dia, ficou decretada a minha
desgraça. Bentinho me achava sempre triste e sucumbida. Eu tinha repugnância
daquele homem manchado com o sangue do outro. Não era já a mesma mulher... Ele
parece que percebeu isso, e foi também esfriando, até que me participou o seu
casamento com uma prima bonita e rica. Eu respondi que lhe fizesse bom
proveito... Deu-me um maço de dinheiro e não voltou mais à casa da velha
Quitéria.
Luzia, embebida nas
palavras de Teresinha, acompanhava a narrativa com intenso interesse, intenso
abalo.
– E... depois? –
perguntou.
– Depois? Enquanto durou
o dinheiro, quase um ano, fiquei com a tal velha que foi a minha asa-negra.
Tomou conta de mim como de uma besta de carga; fazia de mim o que queria;
mandava e eu me sujeitava, calejada, estando por tudo sem protestar, sem me
aborrecer. A velha, que era toda agrados enquanto eu estava rica, virou para me
insultar e, uma vez por outra, me atirava à cara que era necessário ganhar com
que pagar o pirão que eu comia, porque não era minha escrava...
– Não prenderam
Bentinho?...
– Qual prisão, qual
nada!... Ficou solto, e respondeu o jurado quando muito bem quis. O pai dele, o
coroné Manel Fernandes era o maioral dono da terra.
– Ficou um ano, dizia
você...
– Pouco mais ou menos,
contando do dia da briga, até quando a velha morreu de um nó na tripa. Dei
graças a Deus por me haver livrado de semelhante bruxa, e resolvi voltar para a
casa de meu pai, embora ele, que era teimoso e ríspido, me matasse; mas, em
caminho, tentou-me o demônio e fui rolando de um lado para outro, de povoação
em povoação, até que a seca me apanhou. E aí está, minha camarada, como vim
bater aqui.
Ela, com efeito,
peregrinara pelo vasto sertão, de miséria em miséria, rastolhando, perdida como
um pedaço de pau arrastado pela correnteza do rio, caindo nas cachoeiras,
mergulhando nos rebojos, surgindo adiante, para bater de novo sobre pedras,
tornando a ser arrebatado, até que, ao baixar das águas, pára, coberto de paul
e ervas secas, garranchos e flores, que transportou de longe, esperando a
enchente na próxima estação, e continuando a trágica jornada, até apodrecer em
ribas desoladas, ou perder-se na imensidade do oceano.
É essa a história da peregrinação
mundana das desgraçadas, que se desterram no seio amigo da família, quebrando o
suporte dos afetos puros, e vagando sem rumo, na ebriedade de gozos efêmeros, à
mercê da fatalidade intangível e cega.
XIII
Esteve-se Luzia absorta,
fitando em Teresinha demorado olhar aceso de admiração, como se lhe ela se
revelasse sob a forma estranha e sugestiva de uma heroína provada nos mais
rudes lances da luta pela vida, e conservando ainda o coração sensível aos
nobres impulsos de ternura, de dedicação e piedade do infortúnio alheio. Os
episódios romanescos, que ouvira num enlevo de surpresa e espanto, como as
crianças ouvem, tímidas, maravilhosas histórias de fadas e princesas
encantadas, ou as proezas de lobisomem e cavalos-sem-cabeça, vagando pelos
campos, nas noites tétricas em que os jacurutus sinistros piam à beira dos
rios; todos aqueles casos da paixão dominadora arrastando, lentamente, para a
voragem, a rapariga franzina, indiferente ao perigo, sem saudades da casa
paterna e sem remorso da culpa que a poluíra, incapaz de resistir, e
reincidindo no pecado como um vicioso na absorção de licores capitosos que o
intoxicam, flutuando na embriaguez da volúpia e despertando maculada e
resignada à própria vergonha, assumiam, na sua imaginação excitada, proporções
gigantescas de feitos valorosos, extraordinárias façanhas de uma criatura
forte, disfarçada sob ilusórias aparências de debilidade doentia. Disseram-lhe
que o sofrimento embotava as delicadas fibras do coração; que o pecado o
esterilizava, como o sol esteriliza a terra, e estiolava as florações sadias da
semente do bem; entretanto, Teresinha era a negação viva dessas verdades
afirmadas por uma moral de convenção, sentimental e absurda. Tinha a
superioridade da mulher contente de sofrer pelo seu amor, como um crente pela
sua fé, o martírio ultrajante do desprezo, o vilipêndio de viver execrada;
aceitara, com resignação de forte, as conseqüências todas do primeiro passo,
dado no enlevo de um sonho delicioso, para o declive fatal, onde ninguém mais
se detém e se equilibra. Deveriam ser fortes, admiráveis, as mulheres que
sobrevivessem às provações do opróbrio, com a alma imaculada; e Luzia, apesar
de seus músculos exuberantes, se sentia aniquilada, ao pensar em ser colhida
por um só dos incidentes da pitoresca vida de Teresinha; morreria extenuada
como um pássaro cativo na arapuca. Seria horrível ver morrer o homem amado, o
abandono, o ser surrada pelo amante, brutalmente sensual, e, todavia,
lamentar-lhe a morte... Seria horrível, seria monstruosa essa escravidão da
mulher desbriada ao senhor do seu corpo, essa passividade de animal, de coisa a
mudar de dono. Ocorria-lhe, então, que não havendo experimentado essa abjeção,
não tinha direito de maldizer da sua sorte, incomparavelmente mais propícia que
a de Teresinha, a heróica rapariga que se não queixava.
Surgia no horizonte o
Cruzeiro rutilante, reclinado nos coxins nebulosos da via-láctea e a bafagem
morna da madrugada parecia o arfar da terra extenuada, sucumbida de cansaço,
quando, interrompendo a conversa, as duas se entreolharam espantadas: tinham
percebido algo de suspeito, estalidos de galhos secos, rumor de passos
precavidos, vozes abafadas, sumidas, muito perto da casa, na direção das
touceiras de mandacarus que defendiam, com intransponível cerca de espinhos, o
pequeno quintal abandonado.
– Ouviu? – perguntou
Luzia.
– É talvez – respondeu
Teresinha, que escutava atenta – o barulho do terral nos galhos, algum animal
roendo o mandacaru.
– Não é a primeira vez
que ouço esses passos furtados, fora de horas, ali pela cerca e no terreiro...
Parece que alguém nos espia.
– Tens medo,
fracalhona?...
– Não tenho medo, não;
mas é melhor irmos lá para dentro.
– Pois sim. Não se me
dava de ver o que é.
Recolheram ao quarto.
Luzia abeirou-se da rede onde, encolhida como uma criança, a velha ressonava
tranqüila. Teresinha ficou a espreitar, cosida à porta entreaberta em estreita
fenda; com um aceno de alvoroço, chamou a outra,e viram, ao lusco-fusco, um
grupo.
– Parece que são
soldados – observou-lhe Teresinha.
– Talvez a ronda... –
balbuciou Luzia.
– Não: são dois homens e
uma mulher. Espera... Olha: estão conversando...
Então, muito juntas e
apavoradas, ouviram:
– Eu não dizia que estão
dormindo?!...
– Qual – teimou uma voz
feminina – estão acordadas. Juro que ouvi, ainda agorinha, falação de gente no
alpendre...
– Também ouvi – afirmou
outra voz mais clara e forte. – Deixemos de histórias. É melhor não teimar.
Elas botam a boca no mundo e estamos perdidos... Nada. Aquilo, aquela bruta, não
é mulher de brincadeira...
O conselho foi aceito
pelo grupo, que se esgueirou sorrateiro, apressadamente.
– O diabo roncou-lhe na
tripa – disse Teresinha triunfante, mostrando a Luzia, a lâmina nua do grande
canivete de mola. – Era tocarem na porta, eu fisgar logo um deles, para não ser
atrevido.
– Parece que ouvi a voz
de Crapiúna.
– Pode ser; mas não
estava fardado. Só queria saber quem foi a safada que veio com eles...
– Que intenções teriam?
Olha, Teresinha, não é a primeira vez que ouço esses passos suspeitos. Há muito
tempo, desconfio que andam rondando a nossa casa.
– Também ouvi, mas não
maginei que fosse gente. Não maldei nada.
– São capazes de tudo.
– Lá isso é verdade.
– Várias noites,
Crapiúna e Belota andaram a cantar fora de horas, aqui por perto...
– Só me dá que pensar a
mulher... Será possível que viessem botar feitiço? E... não é outra coisa; é
mandinga...
– Outro dia, quando abri
a porta de manhã cedo, topei, mesmo na soleira, um saquinho com penas de
galinha pretas arrepiadas...
– E não o abriu para ver
o que continha?...
– Deus me livre. Eu não.
Tive nojo e varri tudo com o cisco para dentro daquele buraco, cheio de
carrapateiras e que foi barreiro.
– Pois eu não resistia.
Havia de revistar tudo, pegasse-me, embora, o malefício.
– E você acredita
nisso?...
– Não sei o que é, se
feitiço ou obra do cão; mas, tenho visto casos de pôr tonto o juízo da gente.
Há malefício para abrandar coração, curar ciúmes e até para produzir moléstias.
Lá em casa havia um velho, que curava bicheiras dos bezerros pelo rasto...
– Abusões...
– Busões?!... Conheci um
moço que foi enfeitiçado por uma rapariga, embelezada por ele. A criatura, de
repente, ficou toda torta, como se lhe desse o ar... Ave-Maria; foi murchando,
secando até ficar pele e osso. Parecia mais um defunto em pé, que gente viva.
Desenganado de remédios de botica, foi se receitar ao padre João Crisóstomo;
chupou chave de sacrário do Santíssimo, mandou fazer orações fortes... Foi
bobage... A felicidade dele foi topar uma cigana, que lhe deu contrafeitiço,
uns poses para beber com leite de peito... Santo remédio, menina!... Uma coisa
é ver outra é dizer, como ele se levantou, já tendo os pés na cova.
– Bem, fecha a porta e
vamos dormir que é quase de madrugada.
– É mesmo... E eu que
estou moída... Parece que levei uma surra...
Fechada a porta com
precaução para não despertar a doente, Teresinha despiu-se rapidamente; coçou o
vinco do cordão das saias na cintura; enrolou, espreguiçando-se, em gestos
felinos, os cabelos; persignou-se e derreou-se na esteira.
Lentas passaram as horas
para Luzia, sentada na rede, estremecendo ao menor ruído do vento nas folhas da
latada, e aguardando, ansiosa, o quebrar das barras, com os primeiros fulgores
da aurora. Seu olhar compassivo flutuava entre a doente, a moça adormecida e a
candeia a crepitar melancólica, no caritó enfumarado.
Renascia-lhe, no
coração, a esperança de melhoras da mãe adorada; e, ao mesmo tempo, suspeitava
que aquele prolongado sono fosse efeito de dormideiras, que lhe houvesse dado o
médico. Meditava na tranqüilidade angélica de Teresinha, seminua, apenas
coberta por uma leve camisa de esguião, preciosa relíquia de antiga abastança,
e acreditava que lhe houvera Deus perdoado as culpas, porque era boa na
essência, e as purgara neste mundo. Entretanto, ela, que nunca havia feito mal
a ninguém, que não abandonara os pais, nem traíra, nem ocasionara a morte de
homens que a amassem, ela que tudo sacrificara, aspirações de moça e prazeres,
que resistira aos instintos de mulher, para manter, em meio do paul, a sua
pureza imaculada, ali estava, acabrunhada de pensamentos tristes, cruciantes
como remorsos, com a alma inquieta e o coração latejando de susto, à previsão
de perigos tremendos.
Que havia feito para
sofrer tanto? Que funesta influência exercia sobre as pessoas que lhe queriam?
Fora, talvez, ela que trouxera desgraça a Alexandre. Bastou que ele lhe desse
os cravos rubros, crestados ao calor de seu seio, para lhe imputarem um crime
infamante e ser preso como um réprobo.
Teria má sina, mau olhado?... Seria
dessas criaturas fatídicas, cujo contato desorganiza e destrói? Conhecera uma
formosa moça, em cujas mãos, ovos batidos para mal-assadas, não cresciam e
desandavam em aguadilha choca; talhava o leite; definhava e morria a planta de
que ela colhesse uma flor, ou matava com o olhar ninhadas de pintos espertos e
lindos, como macias borlas de veludo? Havia, então, criaturas, predestinadas
para o bem e para o mal?... Nasciam umas para o sofrimento, outras para o gozo,
da mesma forma que as havia destinadas ao céu ou ao inferno?... E Deus, Deus,
pai de misericórdia, permitia isso, essa iniqüidade revoltante?!...
E o seu espírito,
flutuando à mercê de noções incompletas do bem e do mal, das causas e efeitos
reguladores da vida, se rebelava, em assomos impotentes, contra as injustiças
do destino cego e louco.
XIV
Uma surpresa auspiciosa
assinalara o amanhecer: a velha enferma erguera-se, sozinha, da rede; e,
escorada a um pequeno cacete de cocão, envernizado pelo uso, apareceu à porta
do quarto.
– Deus seja louvado –
exclamou Luzia, em gárrula expansão alvoroçada.
– Seja bem-vinda, tia
Zefinha!... – disse Teresinha, com largos ademanes maneirosos. – Abanque-se
aqui, no alpendre, que está mais fresco. Ora, até que enfim... Não há mal que
sempre dure...
– É a minha promessa a
São Francisco das Chagas, de Canindê – observou a enferma – que me restituiu a
saúde... Eu tinha uma fé...
E o seu rosto de
pergaminho, retalhado de rugas e dobras, se dilatava em meigo sorriso.
– Olhem – continuou,
caqueando no seio do cabeção, bordado de cacundês, onde imergiam confundidos,
entrelaçados, os rosários, bentinhos e medidas de santos, que lhe pendiam do
pescoço; e mostrando uma caçoila com a imagem do milagroso padroeiro em péssima
gravura, cujos milagres admiráveis atraíam os fiéis, vindos de longínquas
paragens, em contínua romaria à sua bela igreja cheia de ex-voto, pernas,
braços, mãos e cabeças, modelados em cera, ou toscamente esculpidos em madeira,
vistosamente coloridos e marcados de chagas hediondas, muito sarapintados de
sangue e arrouxeados de equimoses e alguns verdadeiros aleijões,
monstruosidades repugnantes; muletas e ligaduras de pano velho, duras de sânie
embebida; todas essas relíquias de piedade, penduradas, em simetria, às paredes
da nave, rememorando curas, obtidas pela intercessão do santo, a quem Jesus
Cristo concedera a graça de marcar com o estigma das cinco chagas.
Também fizera uma
promessa a São Gonçalo da Serra dos Cocos e a outros patronos celestiais, não
menos afamados pelo prestígio de sarar enfermos, desesperados da saúde. Estava
em verdadeiro apuro para dar conta de todas elas; mas, o padre Antônio Fialho,
ouvindo-a em confissão, lhas comutara em leve penitência, impondo-lhe a
obrigação de rezar algumas coroas, terços e o ofício de Nossa Senhora, hino
mirífico, que, quando é cantado na terra, os anjos se ajoelham no céu. Nas
horas de alívio, ela se penitenciava debulhando, entre vagos fulgores de
esperança, as contas luzidias de um rosário bento pelo santo missionário frei
Vidal.
– Não sinto quase o
puxado, minhas filhas, e aquele entalo, que me sufocava, também desapareceu.
Dormi, que nem um passarinho, louvado Deus.
– Eu bem lhe dizia, tia
Zefinha, que o remédio, abaixo de Deus, havia de ser a sua salvação.
– Agora – observou Luzia
– é continuar com ele: estamos de viagem.
– E tu a dar-lhe, filha.
Espera mais um pouco. Estou tão afeita a sofrer que, se não fosse falta de fé,
desconfiava ser isso visita da saúde...
– Qual, vosmecê vai
arribar mesmo – afirmou Teresinha, com muita convicção.
A velha sentou-se,
acariciada pela filha, que lhe endireitou as dobras da saia e o lenço da
cabeça, enquanto Teresinha preparava o chá de erva-cidreira, que ela tomava
todas as manhãs.
– Agora, disse a velha,
com um suspiro de alívio – vocês podem cuidar do trabalho, que ficarei tomando
conta da casa. Se não fosse esta pobreza, tomaria uma menina para fazer-me
companhia, varrer o terreiro, dar-me um caneco d’água, enquanto estivessem fora
labutando... Já passei, aqui, dias e dias sem ver vivalma, até que a Luzia
voltasse da obra... Que dias compridos!...
– Dias que não voltarão,
tia Zefa, porque aqui estou eu, que a não largo mais...
– Se houvesse por aí –
continuou a velha – uma pasta de algodão, fiaria um novelo para não estar
banzando sem fazer nada... e só pensando na moléstia...
Às nove horas Luzia,
ansiosa por saber o que lhe começara a contar Alexandre, a revelação
interrompida pela sobrevinda insolente de Crapiúna, partia com o almoço para o
desconsolado preso, que, mal terminada a refeição, lhe perguntou se sabia
alguma coisa de novo; e, pois lhe a rapariga respondesse com simples gesto
negativo, disse, à puridade, suspeitar da interferência maligna de algum
interessado em desgraçá-lo.
– Sabe o que me fizeram –
continuou, amargurado. – Levantaram-me uma calúnia... Você conhece a Gabrina,
aquela moça morena, que perdeu a mãe, há pouco tempo?...Pois não inventaram que
eu lhe havia dado dinheiro e dois cortes de vestido?...
– O quê?!... – exclamou
Luzia, franzindo os sobrolhos, e encarando no moço.
– Eu que nunca alevantei
meus olhos para semelhante criatura senão para salvá-la, quando nos
encontrávamos no trabalho.
– Quem disse isso?
– Há gente para tudo,
até para levantar falsos contra os seus semelhantes.
– Mas... quem inventou
esse aleive?... Ela?!... É possível que uma rapariga tão moça tenha maldade
para tanto?...
– Disse que eu andava há
muito tempo atrás dela, seduzindo-a com promessas de casamento e que, sozinha
no mundo, sem ter quem se doesse dela, não se lhe dera de consentir... Veja que
mulherzinha mais desalmada... E eu, disse ela, lhe dera os mimos para que ela
saísse logo de casa comigo...
– E você jura que isso é
mentira?...
– Eu?... Eu não preciso
jurar; basta, Luzia, que lhe afirme...
– Por certo... Demais,
que tenho eu com os seus particulares?... Você não tem necessidade de
negar...Mentira ou verdade, é livre, desimpedido, senhor da sua vontade para
empregar o bem-querer em quem for do seu agrado. Isto não é da minha conta...
– Mas... queria
explicar...
– Para quê? São
desnecessárias para mim essas explicações. Deve dá-las ao delegado...
– Luzia – continuou
Alexandre, fitando-lhe uns olhos pisados de mágoa. – Você tem sido, abaixo de
Deus, minha protetora, meu anjo da guarda nesta desgraça, que me apanhou. Não
tenho outra pessoa que puna por mim... se me abandonar...
– Abandonar!... Não
penso em semelhante ingratidão. Além disso, é obrigação fazer o que tenho feito
pelo senhor e ainda mais, se necessário for, muito embora, depois de solto,
satisfaça o capricho do seu coração. Serei sempre a mesma, somente não estou
para levar fama sem proveito, como já me tem acontecido...
– Sei quanto tem sofrido
por minha causa...
– Não vale a pena. Fui
eu quem lhe truxe caiporismo. Mas, só peço a Deus que me ajude a tirá-lo
desta cadeia. Depois, o senhor toma o seu rumo e eu o meu. Será melhor assim
para ambos...
Houve prolongada pausa.
Alexandre, conturbado àquelas palavras secas e cruéis, contemplava, num misto
de espanto e mágoa, a figura da moça, enleada, e de olhos cerrados, quase
absorta em torturantes pensamentos. Rompeu ele, a custo, o oprimente silêncio.
– Que rumo tomarei,
Luzia, senão o seu? Para onde for, hei de acompanhá-la como a minha estrela, a
minha guia, segui-la como o cachorro vai atrás do dono que o abandonou e o
despreza. Se eu entulho o seu caminho, se quer ver-se livre de mim, não me tire
daqui; não empregue mal os seus passos... Deixe-me entregue à minha sorte,
apodrecendo nesta sepultura de vivos, infamado... esquecido como um malfazejo,
que nem compaixão merece. Só lhe peço a esmola de não desconfiar da minha
inocência... Caiu-me em cima uma infelicidade que não sei explicar, uma
vingança de mulher, de inimigos miseráveis; mas não sou ladrão...Nunca!...
– Vingança de mulher!...
– murmurou Luzia, num grande entono de cólera indomável.
– Atenda-me. Essa,
Gabrina, além de má, é ingrata. Quando a mãe caiu doente e foi desenganada, foi
comigo que se achou para arranjar remédios e um caldo chilro para a infeliz. Eu
sabia que a filha era uma doida, que apressara a morte da mãe com desgostos,
arrebates e más respostas, por isso tive somente em mira fazer obra de caridade
para não a deixar morrer à míngua. Você sabe que morreu mesmo; e, então, a
filha foi para a companhia da Chica Seridó; e nunca mais me ocupei com a vida
de semelhante desmiolada... É verdade que não faltou quem atribuísse os meus
atos a embelezamento pela moça, que dava cabo ao machado, inculcando-se...
– Já lhe disse que nada
tenho com isso, nem desconfio do senhor...
– Então por que me
ameaça com a separação?...
– Quem sou eu?... Quero
evitar as más línguas, que não me poupam. Em homem nada pega, mas, em moça,
tudo tisna. Eu confio em Deus acabar os meus dias, limpa como nasci do ventre
da minha mãe... A pobreza não me afronta, porque tenho forças para trabalhar e
ainda não cansei de sofrer. Sabe o que temo? Que façam pouco de mim, que me
frechem com ditérios e caçoadas. Às vezes, tenho ímpetos de estraçalhar uma
dessas criaturas perversas que me olham pelo rabo do olho, rindo pelo canto da
boca, como se eu fora uma ridícula... Quando o senhor for para a sua banda e eu
para a minha, tudo acabará...
– Como acabaria, se nos
casássemos.
– É impossível... Nasci
com má sina...
– Bem, Luzia... Vejo que
me suspeita, embora não o diga francamente... Paciência... Será como for do seu
agrado.
Luzia amarrou, lentamente, a toalha com
os pratos da refeição, que Alexandre mal encetara. Havia nos seus gestos,
aparências de calma fria, resoluta. Toda ela, entretanto, vibrava com o abalo
estranho, indefinido, que a invadira como um frio pérfido de moléstia.
– Até amanhã – disse
ela, secamente.
– Não venha mais,
Luzia... – murmurou o preso. – Não vale a pena fazer mais sacrifícios por
mim... Arranjarei aqui mesmo o de-comer. Basta. Não mereço tamanha dedicação...
Deixe-me de mão, já que não quer ser ridícula...
Ela não lhe respondeu.
Retirou-se, de manso, com o andar lento e fatigado de quem vai a contragosto.
Alexandre acompanhou-a, com os olhos desvairados, até que ela dobrou a esquina
do João Padeiro, e desapareceu no beco do coronel Braga. Pungia-lhe o coração
imensa saudade, o pressentimento de nunca mais tornar a vê-lo, remorso de haver
provocado a separação com o excesso de brio, ressumante nas palavras cruéis com
as quais se desonerara da piedosa tarefa de visitá-lo todos os dias, para
levar-lhe, talvez, o melhor quinhão da magra despensa de pobre, o precioso
quinhão do pobre, que se priva do apenas suficiente para não morrer à fome.
Súbito, ele estremeceu de pasmo, de dolorosa surpresa, ao fitar a parede, onde
se fincavam os vergalhões de ferro da dupla grade... Estavam ali, entre
migalhas da comida, murchos e ressequidos, os cravos rubros que ele havia dado
a Luzia...
XV
Tão preocupada
regressara Luzia da cadeia, que não reparou em dona Matilde, debruçada sobre
uma das janelas da casa do promotor. Foi preciso que a formosa senhora a
chamasse para arrancá-la da funda meditação absorvente, em que imergira o
espírito, como num antro caliginoso.
– Aonde vai tão apressada,
Luzia?...
– Desculpe-me, dona –
respondeu ela, estacando, confusa e enleada, como se lhe houvessem surpreendido
a tortura moral. – Estava tão atarantada que não vi vosmecê, quando era minha
intenção falar com o seu doutô a respeito do processo.
– Entre. Estou com
saudades dos meus bonitos cabelos...
– Aqui estão sempre bem
tratados e muito mais cuidados do que quando eram meus – disse Luzia,
libertando a opulenta cabeleira do pente que a sustinha.
– Que lindos!... –
exclamou Matilde, acariciando, com mimo, as bastas madeixas. – Como estão
macios... Oh! nunca vi coisa igual...
Luzia agradecia, com um
sorriso contrafeito de melancolia.
– Você – continuou a
senhora – parece contrariada... Que lhe aconteceu?... Sua mãezinha vai
melhor?...
– Muito melhor...
– E Alexandre?...
– Como preso, quase sem
esperança de se ver livre da enxovia...
– Tenho grande dó de
você, Luzia, moça capaz, merecedora de melhor sorte. Mas, que significa esse ar
sombrio, esses olhos amortecidos?...
Luzia não respondeu.
– Diga-me – continuou a
senhora, com meiguice – quer muito a Alexandre?...
– Por que me pergunta?
– A sua dedicação
ilimitada àquele infeliz só pode ser inspirada por um grande afeto, desses que
não esmorecem ante os maiores sacrifícios.
– Não sei se lhe quero
muito... Sei que lhe devo muita gratidão por ter sido bom para nós, o protetor
e amigo, que nos ajudou...
– E é somente por
gratidão, que o defende com tanta dedicação?...
– Só por gratidão. Por
que, então, havia de ser?...
Luzia respondia com esforço.
As palavras irrompiam de seus lábios, ásperas, aos pedaços, com uma falaz
aparência de calma e indiferença.
– Você não é sincera,
Luzia; não confia, talvez, em mim. Ninguém é superior ao próprio infortúnio; e
mais humano, mais nobre, é confessá-lo que o sufocar ou esconder. Sofre-se mais
no repúdio à consolação e ao lenitivo... É possível que não tenha consciência
do estado do seu coração, ou não saiba explicar o que, nele, se passa? Não é
crime amar, e Deus abençoa o amor das criaturas honestas, como um sagrado
impulso da natureza, tanto mais forte quanto mais contrariado. Você é mulher
forte. Os seus afetos devem ser mais intensos e impetuosos que os das outras,
frágeis e passivas, entre quem vive deslocada, sempre como estranha, porque não
foi feita para nascer e viver entre essa gente. Nisto consiste a sua
infelicidade. Você sente que, em volta, entre os seus amigos e conhecidos,
ninguém a compreende e a estima como merece. Daí, é fácil imaginar quanto
sofreria se viesse a amar algum indigno de você... É um desastre que,
vulgarmente, acontece, causando desgraças irremediáveis...
– Por que me diz isto?
– Sabe que, nesse trama,
contra Alexandre, aparece uma rapariga que o acusa?
– A Gabrina...
– Como soube?...
– Alexandre, ainda há
pouco, contou-me tudo...
– Ah!... Ele lhe falou
nisso?!... E você?...
– Que importa... Tanto
se me dá que ele queira bem a ela como a outra qualquer...
– Empenha-se ainda em
libertá-lo?...
– Por certo. Não penso
noutra coisa...
– Admirável!...
– Puno por ele porque me
diz o coração que está inocente. Ainda que fosse culpado, confessasse o crime,
eu não era capaz de abandoná-lo na desgraça...
– Mesmo tendo cometido o
crime por causa de outra mulher?
– Que tem isso?... Ele é
senhor do seu coração, pode dá-lo a quem quiser. Demais, querer bem não é
obrigação. Eu não poderia exigir que ele me pagasse alguns serviços de amizade,
ligando-se a mim, ele um moço branco, eu uma pobre mulher de cor, sem eira nem
beira, com a mãe doente às costas, neste tempo de seca e carestia de tudo. Além
disso, ninguém gostaria de casar com uma criatura, que tem o apelido de
Luzia-Homem, como esse que o meu fado ruim me deu...
– De homem só tem a
força; é bem bonita rapariga... Que pretende, então, fazer?...
– Quando Alexandre for
solto, pego em minha mãe, que está melhor, e marcho para a praia, como os
outros retirantes.
– Você é uma
extraordinária criatura, Luzia. Cada vez mais interesse me desperta...
– Reconheço que faz isso
por bondade de santa... Só lhe peço que se empenhe com seu doutô para acabar
esse tal de inquérito, para libertar Alexandre e a mim, que não devo me arredar
daqui, enquanto ele padecer...
– Fique descansada.
Farei o possível... Aqui para nós... Meu marido não acredita na história da tal
Gabrina; desconfia mesmo que ela foi insinuada...
– Ah! Não acredita, não
é?!.. acudiu Luzia, com estranha vivacidade, iluminado o rosto, num fulgor de
vitória.
– Pobre coração, que te
atraiçoas – observou dona Matilde, sorrindo, deliciosamente irônica.
– Gabrina é ingrata e vingativa
como uma cobra...
– Meu anelo é que você e
meu marido tenham razão, mas desconfiarei até verificar a verdade... Oh! os
homens...
– A senhora é
ciumenta?...
– Como uma leoa, como
toda a mulher apaixonada até a loucura...
– Luzia espetara na bela
senhora, os olhos espavoridos, onde havia algo de surpresa e prazer, ante a
revelação, que estalou vibrante.
– Deve ser assim –
murmurou como se monologasse. – Raiva de onça contra quem lhe bole na carniça,
ou lhe rouba os filhos... Fui má; ofendi Alexandre. Agora é tarde... O que está
feito não está mais por fazer...
– Não desespere, Luzia.
É bem possível que tudo acabe do melhor modo e você seja recompensada de tantas
aflições e cuidados. Tenha coragem. Não se amofine. Não quero que os meus belos
cabelos embranqueçam por muito apurar o juízo em coisas tristes...
– A senhora é do céu,
dona Matilde.
– Vá sossegada que, hoje
mesmo, à tardinha, cuidarei da sua causa.
– Faça isso. Será obra
de caridade, que não cairá no chão.
Luzia, retendo as
lágrimas, rorejantes nos negros olhos ansiosos, e muito grata, beijou-lhe as
mãos brancas, duma maciez fina de camurça, e partiu.
Na rua, atravancada por
enormes e pesados carros toscos, arrastados por muitas juntas de bois magros,
escapados da devastação do gado, carros de pesadas rodas inteiriças e oblongas
para que as excrescências do círculo, os tombadores, diminuíssem o esforço da
tração, sobrecarregados de fardos, caixas de víveres e mercadorias, amarradas
entre os altos fueiros; por entre eles e os bois, deitados, rendidos de fadiga,
e ruminando tranqüilos, sonolentos, e os lábios cinzentos, lubrificados de baba
espessa, deslizava a intérmina torrente de retirantes andrajosos, esquálidos,
torpemente sórdidos, parando de porta em porta, a mendigarem uma migalha,
ossos, membranas intragáveis, os resíduos destinados a repasto de cães.
No largo da feira, a
aglomeração asfixiava em redor das vendas ambulantes de mantimentos, expostos
em caixões, sacos, sob os tamarineiros, trapiás frondosos, à sombra de toldos de
estopa, manchada de largos remendos variegados.
Magotes de crianças
nuas, de hedionda magreza de esqueleto, de grandes ventres, obesos e lustrosos
como grandes cabaças, lançavarn olhares, terríveis de avidez, sobre pilhas de
rapaduras, grandes medidas de quarta, desbordantes de farinha e feijão, pencas
de bananas, rimas de beijus, alvíssimas tapiocas, montes de laranjas pequeninas
e vermelhas, colhidas na véspera, nos pomares murchos da Meruoca.
Os míseros pequenos,
estatelados ao tantálico suplício da contemplação dessas gulodices, atiravam-se
às cascas de frutas lançadas ao chão, e se enovelavam, na disputa desses
resíduos misturados com terra, em ferozes pugilatos. Era indispensável ativa
vigilância para não serem assaltadas e devoradas as provisões à venda, pela
horda de meninos, que não falavam; não sabiam mais chorar, nem sorrir, e cujos
rostos, polvilhados de descamações cinzentas, sem músculos, tinham a
imobilidade de couro curtido. Quando contrariados ou afastados pelos mercadores
aos empuxões e pontapés, rugiam e mostravam os dentes roídos de escorbuto. Eram
órfãos quase todos, ou abandonados pelos pais; não sabiam os próprios nomes,
nem donde vinham. Privados de memória, bestificados pela carência de carinhos,
anestesiados pelo contínuo sofrer, eram esses pequeninos mendigos gravetos de
uma floresta morta, despedaçados pelos vendavais, destroços de famílias,
dispersadas pela ruptura de todos os laços de interesses e afetos.
Às vezes, a morte os
surpreendia durante o sono, junto de um tronco ou na soleira de uma porta.
Trespassavam como pássaros, sem contorções, sem estertor, sem um gemido,
silenciosos, tranqüilos, num sossego de morte, num sossego de liberdade.
Luzia atravessou,
rapidamente, o largo da feira, evitando o contato e desviando os olhos dos
grupos de mendigos nauseabundos, pois se ainda não habituara ao pungente
espetáculo da miséria ínfima, degradada e feroz. Empolgada pela comoção da
entrevista com Alexandre, pelas palavras de conforto da sua adorável protetora,
rememorando o que esta lhe dissera sobre o amor e o ciúme, quase esbarrou em
Crapiúna, que a saudou cortês; e, bamboleando em ademanes amáveis, arriscou:
– Adeus, feitiço...
A moça estremeceu de
susto, fez um gesto de cólera, e seguiu mais depressa.
– Você não tirou ainda o
juízo da Luzia-Homem? – perguntou a Crapiúna o Cabecinha, que fazia com ele, o
serviço de policiar a feira.
– Qual o quê!... –
respondeu o soldado, carregando a caraça, muito despeitado. – Aquilo é uma
fera, braba como cascavel; mas hei de amansá-la por bem ou por mal...
– Aquela mesma não cai
com duas razões...
– Há de ser como as
outras: muita soberba, muito luxo... tudo bobages. A demora é a gente teimar e
esperar com paciência. Já lhe teria dado uma ensinadela se o estupor do
delegado não estivesse atravessado comigo...
– Eu acho que você faz
mal em se meter com a vida daquela mulher...
– Já agora é impossível
recuar. Por causa daquela não-sei-que-diga tenho perdido noites de sono,
maginando na raiva que ela tem de mim, só porque me engracei dela...
– Só faltava dar o
Crapiúna, em namorado sem ventura.
– Não caçoe, Cabecinha.
Há mulheres mandingueiras, que põem na gente um veneno que só elas podem tirar.
Fica-se tomado por dentro de uma dor que não dói, mas sofre-se sem saber
porquê; não se tem onde botar o corpo; não há cama nem rede, que caiba a gente;
finge-se não fazer caso; procura-se distrair com outras mulheres, como quem se
embebeda para ficar valente, ou para esquecer... Tudo peta... O veneno
vai queimando o sangue, faz febre, dor de cabeça e fastio. E o coração vai
inchando, crescendo, até que estoura...
– Você, então, cabra
velho, está mesmo ervado?... Tibes! Que cobra te mordeu!...
– Não tenho a vida para
negócio; nem conheço a cor do medo; nunca fiz caso da morte, e queria ter de anjos
para acompanharem a minha alma, as vezes que tenho visto boca de bacamarte e
faca de ponta em cima de mim... mas, fico mesmo mole diante dessa mulher
encantada; fico sem ação e aluado, quando ela passa por mim, e me repugna...
– O melhor, já lhe disse,
seu Crapiúna, é pensar noutra coisa.
– Isso é bom de dizer...
Nem que queira não posso. É uma desgraça. A você, que é amigo, posso falar a
verdade. Tenho feito tudo para reduzi-la. Lembrei-me até de botar dormideira na
jarra d’água...
– E se ficar doente; se
morrer?!
– Não há perigo. A Joana
Cangati sabe fazer a mandinga. Mas o diabo da velha Zefinha não dorme; passa a
noite tossindo e gemendo; e, agora, havia a Teresinha de se meter de gorra com
elas para me atrapalhar. Tem-me dado vontade de torcer o pescoço daquela
galinha...
– Você está se metendo
numa rascada...
– Saberei manobrar para
me desapertar, quando for preciso. Agora, estou esperando que ela se desengane
do ladrão do Alexandre...
– Qual! Mulher, quando
principia a querer bem, fica viciada: larga um, arranja outro.
– Aquela não é dessas.
Luzia é séria...
– Ora, adeus, seu
Crapiúna. Quando dorme...
– E honrada...
– Só se for na testa.
– Já lhe disse.
– Está bom; está bom!...
Não vale se zangar por tão pouco. Nada tenho com isso. Você mesmo é quem está
puxando conversa... Arrume-se com a sua donzela, ruim de amansar, e seja muito
feliz. Faça-lhe bom proveito aquela jóia.
– Também maldei que
aquilo tudo era soberba, luxo ou aleijão da natureza, mas entrei a especular a
vida, os particulares dela, e, verifiquei que é mesmo dura como pedra. Quanto
mais certeza tenho, de ser ela bem procedida, mais o diacho da rapariga se me
encravilha na cabeça. Eu não gosto de mulher que me azucrine, mas também
refugar como aquela é da gente desesperar.
– Por que não lhe
prometes casamento?
– Se ela não me quer ver
nem pintado... Além disso, por mal dos meus pecados, sou casado.
– E a mulher?...
– Sei lá. Não combinava
com o meu gênio, nem pegava do meu jeito... Era um demônio em figura de gente,
rezinguenta e respondona. Um dia, brigamos mesmo de verdade: dei-lhe uns
pescoções, e o diabinho anoiteceu e não amanheceu. Levantei as mãos para o céu.
Boi solto, lambe-se todo...
– Por essas e outras, é
que nunca fiz semelhante asneira. Para peso, basta a granadeira e a mochila.
– Deixe lá... Sempre é
bom ter quem pregue botões na farda, engome as calças, a tempo e à hora.
– Se contas com aquela,
ficas desabotoado toda a vida. Tome o meu conselho, seu Crapiúna. Quem me
avisa, meu amigo é. Deixe a Luzia de mão. Olhe que lhe acontece desgraça,
quando menos pensar. Você tem sangue na guelra e o coração perto da goela. Tome
cuidado.
– Sei o que hei de
fazer, e ando de rédeas tesas. Quando a vejo, ardo por dentro; dá-me vontade de
reinar, mas fico quieto e mudo como cascavel de tocaia, esperando a minha vez
para dar bote certo. Então nem reza de cigano, nem oração de padre velho a
livra de mim. Eu cá sou homem de tenência. Quando viro a cabeça para uma banda,
nem o diabo a endireita...
Crapiúna sacou da ilharga
uma grande faca, fina e pontiaguda, e pôs-se a cortar um pedaço de fumo
mapinguim para fazer um cigarro.
– Que bonita faca! –
observou Cabecinha.
– Pasmado
verdadeiro. Traspassa uma moeda de dois vinténs – disse Crapiúna, fazendo
vibrar com a unha o gume afiado. – Ah! se este ferro falasse!...
– Vamos ali, ao Antônio
Benvindo, tomar uma terça?
– Vamos lá, mas só tomo
zinebra.
– Está feito.
Os dois soldados se
dirigiram para a bodega, continuando a conversar.
O sol dardejava, a pino,
intensa luz sobre o largo da feira, coalhado de gente. Redemoinhos
intermitentes revolviam o pó cálido, que se elevava em espirais, envolvendo
retirantes e mercadores em bulcões amarelados e sufocantes.
XVI
Desde esse dia, cessaram
as visitas de Luzia à cadeia. Teresinha tomou a si, com prazer, a piedosa
incumbência de levar comida ao prisioneiro, que a recusou tenazmente.
– Deixe-se de asneiras,
seu Alexandre – disse-lhe ela. – Isto até parece desfeita. A Luzia não vem
afetiva como dantes, porque não pode mais faltar ao serviço; e, agora, que a
tia Zefinha vai melhor, não há mais desculpa para estar recebendo a ração sem
trabalhar. Poderia vir à tarde, mas você sabe que, depois das quatro horas, não
deixam mais falar com os presos.
– Não me iludo –
respondeu-lhe o moço, em tom de funda tristeza – Luzia desconfiou de mim.
Acreditou, talvez, na história da Gabrina, ou supõe que tenho alguma coisa com
aquela grande mal-agradecida.
– Não suponha que ela
esteja amuada... Qual o quê!... Aquela não se afoga em poucas águas, e a prova
é que continua a fazer o possível para obter a sua soltura...
– Sei; mas somente para
mostrar agradecimento e não por merecimento meu. Sinto que está tudo acabado
entre nós. Luzia é decidida, e bem percebi que não tinha mais nada que esperar
quando me disse, francamente, aí, nesse lugar em que você está agora: – quando
for solto, cada um de nós tomará o seu rumo.
– Mas, por isso, não
deve recusar o de-comer, que ela mesma preparou com tanto gosto.
– Não há mais razão para
repartir comigo a porção, que mal chega para ela e a mãe.
– Pensei que só nós,
mulheres, éramos caprichosas.
Desenganada de vencer a
formal recusa de Alexandre, Teresinha distribuiu a comida pelos meninos, que
estavam ali de visita aos pais presos, generosidade que lhe valeu
agradecimentos de uns e, de outros.
Luzia voltara, com
efeito, a trabalhar na penitenciária do morro do curral do Açougue.
As paredes mestras
estavam quase concluídas: trabalhava-se com afinco no madeiramento da coberta,
e já estava em construção a muralha em volta do edifício, formando um recinto,
onde os sentenciados pudessem trabalhar ao ar livre, ou sob telheiros
destinados às oficinas. Nas barracas improvisadas mourejavam carpinteiros, de
troncos nus e suarentos, no preparo das grandes vigas das amendoeiras e
tacaniças do tabuado para o soalho e portas e da obra de esquadria. Ao ruído
das enxós, falquejando o rijo pau-d’arco, ao sibilar das plainas e cepilhos
raspando das pranchas de cedro, longas espirais encaracoladas e cheirosas,
misturavam-se a dos malhos nas bigornas sonoras, onde grossos vergalhões de
ferro, candentes nas extremidades, disparavam chispas de encontro aos aventais
de couro dos ferreiros, enegrecidos de fumaça e carvão, fabricando grades
invencíveis, junto dos grandes foles ofegantes, como pulmões de um monstro.
A negra torrente de
retirantes operários deslizava pela encosta áspera, em marcha de cobra,
conduzindo materiais. Era o mesmo vaivém ininterrupto de homens, mulheres e
crianças envoltos em rolos de pó sutil, magros e andrajosos, insensíveis à
fadiga, ao calor de fulminar passarinhos, taciturnos uns, os semblantes
deformados por traços denunciadores de íntima revolta impotente; outros,
resignados, como heróis, vencidos pela fatalidade; muitos, alegres e
sorridentes, cantavam e brincavam, como criaturas felizes de encontrarem
refúgio do assédio angustioso da fome, da miséria, da morte.
Quando Luzia se
apresentou ao apontador, houve um movimento geral de surpresa e curiosidade.
Ninguém a esperava ver de novo; era considerado morto ou emigrado o trabalhador
que desaparecia da obra. Notavam que estava mais esbelta, graciosa, a cor mais
clara pelo repouso de alguns dias. Havia misteriosa alteração no seu semblante.
As vigorosas linhas de energia máscula se contraíam em curvas melancólicas, e,
nos olhos meigos, flutuava a sombra do ideal morto entre chispas fulvas de
anelos incontentados. As atitudes lânguidas e os gestos lentos denunciavam
fadiga moral, ou a preguiça voluptuosa das felinas amorosas. Dir-se-ia que se
lhe haviam atenuado os tons varonis, e, da crisálida Luzia-Homem, surgira a
mulher com a doçura e fragilidade encantadora do sexo em plena florescência
suntuosa. Irradiavam dela fluidos de simpatia, empolgando os companheiros de
infortúnio, como prestigiosa transfiguração. Estes não experimentavam já a
repulsa que lhes causava a moça bisonha, arredia, taciturna, sempre enrolada no
amplo lençol de mandapolão branco.
– Como está mudada! –
murmuravam as mulheres.
– E não é que a Luzia
está ficando bonita! – diziam os rapazes, mutuando olhares sensuais.
– Parece que esteve
doente.
– Só se foi de mal de
amores.
– Quem sabe? Amor não
mata, mas maltrata.
– Qual, mulher! Aquilo é
o cansaço de estar fazendo quarto à mãe, que estava vai-não-vai. Não há nada
para escangalhar uma criatura como labutar com doentes...
– Ela é um tanto
soberba, mas é boa filha até ali.
– Quem é bom filho, é
bom em tudo o mais – observou um velho.
Os comentários chegavam aos ouvidos de
Luzia, como ecos do murmúrio de maldição, que a perseguia por toda a parte, até
na igreja, no trabalho, quando atravessava a multidão de retirantes.
E ela, que antes os
afrontava em retraimentos de cólera mal contida, estremecia, agora, pálida e
tímida, em angustioso sobressalto de consciência perturbada por inteira e
desconhecida mácula, estranha sombra de homem projetando-se no vácuo, que a
inocência lhe deixara no coração, como a pegada de um crime, ou o espectro de
um remorso. Devia ser assim cruciante, o primeiro momento após o pecado: a alma
escondida, envergonhada e temerosa, nos mais íntimos refolhos das entranhas
profanadas, aguilhoadas pelos instintos insaciados, aguçados pelo gozo
revelado, traída por eles, delatores impudicos e implacáveis. Através do corpo
diáfano, penetrariam depois olhares da turba, compassivos ou rancorosos,
devassando as peripécias e os destroços da secreta luta, e condenando a vítima,
que não pudera vencer.
Luzia só se confessava
culpada de haver perdido a energia inflexível, que a preservara até então, como
invulnerável couraça, sem a qual não tinha já integridade moral para resistir a
si mesma, varrer do coração essa indelével imagem de homem, libertar-se do
tormento de senti-la transfundida no seu ser, misturada com o seu sangue e os
seus pensamentos. Ímpetos de rebeldia, assomos de reação esmoreciam na delícia
de capitular, e sucumbir aniquilada. E se lhe figurava que toda a gente em
derredor, amigos, indiferentes, adversários maliciosos, grandes e pequenos,
testemunhavam os seus impotentes esforços, de passarinho fascinado pela cobra,
a luta desigual, o prazer com que ela se deixava vencer, apoucada e débil.
O administrador da obra,
seu protetor, percebera a transformação por que passara, designando-a para
trabalhar com as costureiras.
– Sabe, Luzia –
disse-lhe ele – a senhora do promotor pediu-me que não lhe desse serviços
braçais. Ela se interessa muito por você, como eu, como todos que a conhecem.
Era também intenção minha deixá-la repousar. Está-se vendo quanto a fatigaram
os cuidados, os vexames sofridos pela saúde de sua mãe.
Luzia baixou os olhos, e
corou humilhada. Preferira à ocupação sedentária de costureira, continuar na
faina de carregar água nos grandes potes, que estavam servindo de depósito,
conduzir telhas em companhia daqueles infelizes, que vergavam ao peso de uma
dúzia delas, ir às caieiras longínquas buscar tijolos nas altas tulhas, que ao
Paulo, francês, se haviam afigurado paredes na cabeça de uma mulher, rolar
pesados madeiros, grandes pedras, trabalhos que lhe exercitassem os músculos e
lhe produzissem o atordoamento da fadiga.
Acudiu-lhe, então, à
memória, a quadra da infância, passada no Ipu, em casa da mestra que lhe
ensinara ler; os cocorotes
e castigos sofridos por não resistir ao sono, quando condenada a ficar dias
inteiros sentada diante de uma almofada a trocar bilros crepitantes,
entretecendo delicadas rendas e curtindo a nostalgia do ar livre e puro nos
campos verdejantes e floridos da fazenda Ipueiras.
Mas... era forçoso
submeter-se à ordem do administrador, tão bom e compassivo, que lhe dera muitos
dias de licença para tratar a pobre mãe enferma.
Na maioria das barracas,
em forma de meia-água, coberta de folhas de carnaubeira, dona Inacinha, que,
desde as missões do padre Ibiapina, renunciara os efêmeros gozos
mundanos, para se fazer beata professa, distribuía o serviço de agulha em
tarefas. A Luzia, coube um enrolado de algodãozinho, onde estava cravada uma
agulha, atravessando um molho de linha e sustentando, subposto, umdedal de
cobre.
– Cosam com muito
cuidado – recomendou ela às costureiras – que isto é trabalho especial para a
comissão de senhoras, que me mandou seis peças de fazenda para desmancharmos em
roupa. Não quero obra de carregação como a dos sacos. Vejam que as mãos estejam
bem lavadas, pois tenho singular implicância com a costura suja.
Luzia ocupou o primeiro
lugar vago, distanciada das outras, surpreendidas com o vê-la ali, quando
trabalhava sempre com os homens; enfiou a linha na agulha e estava muito
atrapalhada com o adaptar e alinhavar peças já cortadas, quando dona Inacinha
se acercou, como sempre, enfezada e rabugenta.
– Você parece que nunca
viu costura – rosnou, em tom de áspero remoque. – Tamanha mulher, e não sabe
por onde há de começar um par de ceroulas de homem.
Luzia sentiu subir-lhe
ao rosto, impetuosa onda de sangue.
– Olhe – continuou a
beata, armando sobre o nariz rubro e adunco, grandes óculos de latão com as
hastes ligadas em torno da cabeça por um cadarço preto, lustroso de banha –
primeiro as pernas pospontadas e sobrecosidas; depois o gavião em separado,
terminando nesta tira que serve de cós. Você ajunta as duas pernas, cosendo-as
no gavião com as preguinhas que forem necessárias para dar certo. No meu tempo,
dava conta de duas por dia sem me cansar.
As companheiras de
trabalho sorriam, ironicamente, da lição e do desazo de Luzia, confusa e
amesquinhada, injustamente, porque sabia coser bem e depressa, mas não estava
habituada a fazer roupas masculinas.
Aquela tarefa, escolhida ao acaso, era
um prolongamento da obsessão que a torturava; avivava-lhe, a cada ponto da
agulha, a lembrança do prisioneiro a pungir-lhe o coração com o remorso de o
haver abandonado num ímpeto de despeito, ciúme ou capricho pueril que ela
tentava em vão justificar com o pretexto de preservá-lo da influência funesta com
que a marcava o destino. Causava-lhe, também, imenso dó o haver deixado, com
desdém, no parapeito da grade da cadeia, os cravos vermelhos, emurchecidos nos
seus cabelos, ao calor do seu seio, onde os guardara carinhosamente, como um
talismã prestigioso.
E assim passou o dia, até que o martelo
do mestre-de-obra anunciou a terminação do trabalho, batendo, rijo, cadenciados
golpes secos, vibrantes, sobre uma das tábuas dos andaimes.
Luzia ergue-se aliviada,
entregou a tarefa concluída, e partiu, ansiosa por ver a mãe e Teresinha, que
lhe daria notícias de Alexandre, notícias más porque ele devera ficar magoado,
vendo-se tratado com tanto rigor por quem lhe devia, pelo menos, favores
inestimáveis, desses que impõem o suave jugo de gratidão imperecível.
Justificando-se, ela
ponderava que, em consciência, o reconhecimento não a obrigava ao extremo passo
de consagrar-se para sempre a um homem preso, sob a imputação de um crime
grave, envolto em densa atmosfera de suspeita, quando ela tinha outros deveres
sagrados que cumprir, velar pela mãe e conservar a própria vida, ameaçada pelo
assédio, cada vez mais apertada de privações e miséria. Estava pagando a dívida
de gratidão com o empenho sincero em libertá-lo. Demais, não se expusera, todos
os dias, ao vexame de encontrar o soldado maldito? não repartira com ele o seu
pão minguado? não chegava ao extremo sacrifício de afrontar a vergonha de
vender os cabelos por causa dele?
Não, a consciência não a
acusava; mas outra vez, mais forte, vibrava dentro de seu peito, em acentos
dolorosos, exprobando-lhe a covardia cruel de só haver abandonado o desditoso
moço, quando, entre os dois, surgiu a figura odiada da mulher delatora, amante
impudica, que apregoava a própria infâmia, carícias pagas com o produto do
crime, e se vangloriava de haver provocado a ruína de um homem de bem. E a
sinistra voz, que a vergastava, prosseguia em tom mais brando e carinhoso: seja
ele, embora, culpado; tenha sucumbido à tentação em momento de síncope do senso
moral; ame outra menos digna; é um desgraçado, cuja sorte está ligada à tua por
laços fatais, inquebrantáveis. O teu lugar seria junto dele, consorte do
infortúnio, ajudando-o a carregar, o peso da sua falta, a arrastar a calceta,
deprimente... porque o amas... Entretanto, Alexandre é inocente e sofre
duplamente, porque lhe infringiste a tua desconfiança. Vai, mulher caprichosa e
bárbara, prostra-te aos seus pés; unge-lhe as mãos impolutas com o bálsamo das
tuas lágrimas, com os teus beijos de virgem, e pede-lhe perdão da tua fraqueza
vil. Não lutes, debalde, contra o destino inexorável. Aquelas pobres flores
murchas se radicaram no teu duro coração, como o cardo à rocha, e revivem
enseivadas com o suor da tua angústia, coloridas com o teu sangue,
envenenando-te com o filtro mágico e inebriante, que destila emanações de
fragrância suavíssima.
Luzia acelerou a marcha
para chegar a casa, encontrar pessoas amigas e evitar a sugestão daquela voz
íntima e eloqüente, que lhe derrubava todos os meios de defesa, engendrados
para resistir ao secreto impulso, preservá-la da sorte de Teresinha, pranteando
o homem cruel que a maltratava e relembrando, com saudade, a sua sensualidade,
impetuosa e brutal como a dos touros bravios; para ficar livre de eleger,
oportunamente, aquele que deveria completá-la, que lhe abriria as portas do céu
às aspirações de moça; ou o homem que ela empolgaria num atrevido lance
poderoso, como o dos gaviões arrebatando a presa, conquistando-o vitoriosa.
No seu espírito inculto,
essas idéias se chocavam em confusão, aterrando-a; sobre o tumulto, ardido
fragor de peleja encarniçada, permanecia, dominando-o, inconfundível como um
clangor de clarim, a sedutora, a máscula voz do demônio tentador...
XVII
O beco da Gangorra
terminava na várzea, que o rio Acaracu inundava nas cheias, em um renque de
casas velhas habitadas por michelas e soldados do destacamento. Belota ocupava
uma delas, paredes-meias com o quarto de Teresinha, que só ali aparecia,
raramente, para mudar de roupa, ou, consoante ela dizia, vigiar os seus teréns,
um baú tauxiado de pregos dourados, uma pequena mesa desconjuntada, o pote
d'água e alguns objetos de cozinha.
À porta de Belota, quase
ao escurecer, Romana, Joana Cangati e Maria Caiçara conversavam acocoradas e
cigarreando, muito desenvoltas e palradeiras. Romana, sempre roliça, com os
cabelos duros de pomada cheirosa, aljofrada de empolas de suor adiposo, a ponta
do nariz curto e arrebitado, e mostrando os dentes pontiagudos, contava casos
escandalosos, que as outras contestavam, ou ampliavam e comentavam com
insinuações picantes e grosseiras, ou se espraiavam em mexericos triviais sobre
a crônica da ralé. Joana Cangati, a mais séria das três, metida a rezas e
bruxarias, desde que por uma praga, irrogada pela mãe, ficara com o útero
escangalhado de um aborto, obra do demônio, porque a consciência não a acusava
de haver feito por onde, dava-se certo recato e modos de mulher séria, muito
temente a Deus. Maria Caiçara, bem conformada, galante rapariga, a qualquer
graçola de Romana, despejava o riso em gargalhadas estrídulas.
– Então – dizia Romana –
o tal Alexandre está cada vez mais embrulhado.
– Não sei – observa a
Cangati – Quem havera de dizer?! Eu, meu Deus, perdoai-me, não vi ele furtar;
por isso não digo nada; mas há coisas que só pintadas pelo cão...
– Qual o quê! –
continuou Romana – a Gabrina que o diga. Quando soube que ele estava todo
babado pela Luzia-Homem, desembuchou e contou tudo...
– O que ciúme não
fizer...
– E fez muito bem, sá
Joaninha. Você, comparando mal, quer bem a um homem, tem confiança nele, nas
suas promessas, se ele não lhe corresponde e atraiçoa, não tem mais obrigação
de guardar fidelidade. Não é?... Não faltava mais que estar empatando a
rapariga com outra de olho e já de casamento tratado. Iam embora juntos e,
muito que bem: a Gabrina que ficasse com os beijos com que mamou ou com cara de
besta...
– Pois eu – atalhou a
Caiçara – só quero quem me quer. Entojou de mim?... Melhor!... Homens não
faltam.
– É porque você, mulher,
nunca teve paixão de fazer a gente perder noites de sono...
– Paixão é bobage, sá
Joana...
– Então você não sabe
que a Gabrina queria bem ao Alexandre, calada, sem dar demonstração. Andava
atrás dele bebendo ares; ficava horas esquecidas na porta do armazém da
Comissão, olhando pra ele com olhos melados de piedade que parecia quererem
engolir vivo o moço?...
– Histórias...
– É o que lhe digo, por
esta luz. Deus dê muitos anos de vida a quem ela pediu uma oração forte, a do
“Santo Amâncio te amanse”, para amolgar coração de homem ingrato.
– E aquela bestalhona
acredita na virtude dessas bruxarias?
– Bruxarias?!... Bata na
boca, Romana, para não ser castigada. Com santo não se faz mangação.
E a Cangati entrou a
contar casos assombrosos, que não conseguiram dominar o ceticismo de Romana.
– Mas – ponderou Caiçara
– se ela estava mesmo caída pelo Alexandre, como é que foi contar a história do
dinheiro e dos cortes de vestido dados por ele, e agora anda toda derrengada
com o Crapiúna?
– Tudo por pique. Ciúme
faz reinação do demônio, e torna uma pessoa boa, malvada como uma cascavel.
Depois ela e Crapiúna se entendem; sofrem do mesmo mal; andam os dois com o
juízo entornado: ela pelo Alexandre, ele pela Luzia-Homem. Não sei como isso
acabará. Talvez nalguma desgraça...
– Qual desgraça, qual
nada. É uma coisa que se vê todos os dias. Desenganados, cada um vai para a sua
banda cuidar em outra coisa... Amor desencontrado.
– É porque você não
conhece o Crapiúna, nem a Gabrina. Ele é o que se sabe, capaz de tudo, até de
mandar gente desta para melhor; ela, uma bichinha teimosa como uma mosca, e
ruinzinha que faz dó. Não se me dava de jurar que ela inventou aquela história
para desgraçar Alexandre... Ronha não lhe falta.
– O quê?!...
– Cala-te boca... Não
está mais aqui quem falou... Façam de conta que não ouviram nada.
– Você que diz isso, sá
Joana, é porque sabe alguma coisa.
– Não sei nada. É uma
cisma que tenho.
– Ela não tinha astúcia
para inventar uma história tão bem contada, tão cheia de circunstâncias. Se não
foi do furto, quem lhe deu dinheiro para comprar um par de brincos de ouro?
– Sei lá! Não quero
esmiuçar a vida dela, nem a de ninguém; mas vocês não a conhecem, repito: é
capaz de dizer que Deus não é Deus e não há ninguém mais manhosa debaixo
daquela sonsidão de menina!
– O quê, sá Joana; você
parece que inticou com a rapariga!
– É muito arrebitada e
mal-ensinada; mas eu até gosto dela...
– Olhem quem está ali –
exclamou Maria Caiçara, apontando para Teresinha, que abria a porta do quarto.
– Bons olhos a vejam –
disse a Cangati, com modos amáveis.– Por isso é que a tarde está tão bonita!...
– Boas-tardes –
respondeu Teresinha, secamente.
– Por onde tem andado,
que mal pergunto?
– Por aí mesmo... –
tornou Teresinha, entrando para evitar bisbilhotices, e dar trela às três
vadias, muito do seu conhecimento como catanas, que nada poupavam.
Belota mantinha
tavolagem freqüentada por parceiragem de ínfima condição e mal-afamada, Zé
Zoião, Cândido da Bertolina, exímios artistas da vermelhinha, operosos
contribuintes da estatística criminal e heróis de todos os distúrbios que
agitavam a paz da cidade. Eles se encarregavam de atrair as vítimas:
comboieiros e matutos ingênuos; e, depois, como viciosos de raça, repartiam, ao
jogo, as quotas das extorsões.
Crapiúna era
freqüentador assíduo, principalmente quando se jogava o monte, partida de sua
predileção.
Os outros parceiros não
se davam bem com ele, por ser muito rezinguento. Por qualquer pretexto, armava
barulho e, muita vez, estivera a pique de fazer água suja, inconveniente aos
créditos da casa.
Desde que tomara a peito
quebrar o encanto de Luzia-Homem, andava-lhe a sorte arrevesada. Perseguia-o um
caiporismo incessante, que o tornava ainda mais irritadiço e trêfego,
principalmente quando Belota, chasqueando, insinuava que ele estava contra o sentido
do rifão, sendo infeliz no jogo e no amor, e atribuía as perdas consideráveis,
que ele sofria, ao fato de andar com o juízo passeando, em vez de fixá-lo nas
cartas ensebadas e sujas do baralho, recurvado em forma de telha pela pressão
do partir, repetindo-lhe a cada pexotada, que jogador não guarda cabras.
Nessa tarde, o jogo
fervia lá dentro, e as três mulheres continuavam a grasnar, aguardando as
gorjetas dos afortunados, e fazendo de vigias para avisarem aos jogadores a
aproximação do sargento Carneviva, que era um duende para os soldados. Em
achando banca armada, podiam os viciosos contar com os mais severos castigos, o
serviço dobrado com mochila às costas em ordem de marcha e sarilho, quando não
eram esfregados com surra de espada de prancha, ou de cipó de raposa.
Crapiúna estava num dos
seus piores dias. Perdera já quantia tão avultada, que os parceiros procuravam,
surpreendidos, atinar onde arranjara ele tanto dinheiro. Os prejuízos montavam
a vinte mil-réis que haviam passado, suavemente, para os bolsos do Zoião e do
Cândido, nos quais Crapiúna
encarava desconfiado, atribuindo a batota, em que eram useiros e vezeiros,
tamanha fortuna.
– O senhor – disse-lhe
Zoião, cravando-lhe, de esguelha, os grandes olhos esbugalhados – parece que
está maldando de nós!
– Não estou maldando –
resmungou Crapiúna – mas tanta sorte junta é de fazer a gente desconfiar...
– Pois se desconfia –
avançou o Vicente, em jeitos arrogantes – o remédio é não jogar mais nós. Veja
o seu Belota se se queixa...
Cândido, velhaco e pouco
expansivo, não falava, exasperando com um sorriso irônico, o soldado infeliz.
– Não me queixo –
observou Belota – porque estou com o juízo no jogo. Você, Crapiúna, não tem
razão. Estou com um olho no padre e outro na missa, e não admitiria trapaça...
principalmente em minha casa.
– Nem nós seríamos
capazes de abusar... – acrescentaram, quase ao mesmo tempo, os outros
parceiros, com uma vasta exibição de escrúpulo.
– Vocês são capazes de
tudo! – tornou Crapiúna, irritado.
– Veja como fala!
– Tenho visto o que
fazem com os matutos. Comigo fia mais fino... Se eu perceber qualquer
tramóia...
Foi-se azedando a
discussão até falarem todos, em tumulto, trocando injúrias e doestos, apesar da
intervenção conciliadora de Belota, para evitar um conflito.
Teresinha, que fechara a
porta da rua para mudar de roupa, foi atraída pelo rumor e não resistiu à
curiosidade de saber donde provinha. Dirigiu-se, cautelosamente, ao pequeno
quintal; e, firmando os pés nas fendas dos tijolos carcomidos, guindou-se acima
do muro que dava para a casa vizinha. Daí descortinou a tumultuosa cena, a
fúria de Crapiúna, as ameaças dirigidas aos parceiros venturosos, as réplicas
destes, cheias de malícia irônica, audaciosos, porque, aliados como estavam,
não se arreceavam do insolente soldado, nem eram homens que morressem de
caretas, mesmo das mais pintadas.
Chegou o momento em que
esteve iminente a conflagração. Vicente, sempre calmo, sempre sorridente,
considerava, que tanto direito tinha Crapiúna de desconfiar deles quanto estes;
entretanto não o faziam, porque não queriam cascavilhar na vida alheia.
– Para saber – atalhou o
Cândido – onde você desenterrou botija para ter tanto dinheiro para perder.
– Olhe – acrescentou
Zoião – se eu quisesse falar era capaz de o desgraçar...
Crapiúna estremeceu, e
levou, de repente, a destra ao cabo da faca, escondida debaixo da farda.
– Pois fale, seu
miserável – bradou ele, ganindo de raiva – que te hei de obrigar a morder a
língua danada.
– Olha Zoião, meu amigo
Crapiúna – implorava Belota, entre os dois. – Nós somos todos amigos velhos.
Para que este baticum de boca... Daqui a nada ouvem lá fora... Pelo amor de
Deus... Seu Candinho, você que é mais moderado tenha mão no Zoião, mais no
Vicente...
– Pois então, seu Belota
– ajuntou Zoião, com os olhos faiscantes – era o que faltava, um indivíduo...
– Depois digam que sou
eu quem está intimando!...
– Que – continuou Zoião
– não pode levantar a cabeça diante de homens de mãos limpas, querer ter voz
altiva para insultar os outros!... Tenha mão nele, que é soldado como você e
deve respeitar a farda...
Crapiúna rosnava,
acovardado, como fera acuada, subjugado pela serenidade do adversário. Lívido,
de olhar fulvo, ensangüentado, resmoneava surdas ameaças, e Zoião, com
inquebrantável energia, continuava:
– Não pense que digo
isto por estar em companhia e aqui na casa de Belota... Sou homem para o senhor
em toda a parte, e como quiser. Se tem Pasmado, eu tenho Pajeú, ferro de
qualidade que nunca me envergonhou... Se o seu já quebrou o preceito, o meu
também não está em jejum...
– Pelo amor de Deus –
suplicou o Belota, com lágrimas na voz – Basta!... Basta!... Está acabado por
hoje, meus amiguinhos da minh’alma... Vocês parecem crianças...
– Olha, cabra, toma a
bênção ao Belota...
Depois desta ameaça,
Zoião deixou-se conduzir pelo Cândido, que chofrou esta pilhéria:
– Até mais ver, seu
Crapiúna, quando quiser a desforra... Damos lambuje...
Teresinha, espiando
ansiosa, por cima do muro, lamentava o desenlace pacífico da contenda.
– Você sempre arma cada
rascada, seu Crapiúna – observou Belota, ainda agitado.
– Aquele homem é um
precipício – murmurou o soldado – Se não fosse você... Deixe estar que os
desaforos não caíram no chão...
– O melhor é você não
fazer caso...
Belota, com maneiras
manhosas de consumado velhaco, tinha enorme predomínio no camarada, que tanto
era agressivo e rixoso, quanto covarde, quando entestava um adversário
considerável. Isto sucedera no caso da Quinotinha, a que o Alexandre defendera,
com uma coragem evidente, bonita...
Depois de muitos
conselhos e exortações, Belota pretextou necessidade de ir ao corpo da guarda,
prometendo voltar sem demora.
Vendo que Crapiúna se
dirigia para o quintal, Teresinha desceu, ligeiro, do posto de observação, e
correu. Mal teve tempo de chegar à porta, atrás da qual se escondeu, trêmula de
terror.
O soldado, destro como
um gato, saltou por cima do muro, e dirigindo-se para o fundo, suspendeu um
velho caixão, atulhado de coisas imprestáveis, tirou de sob o qual uma bolsa de
couro de onça, cheia de dinheiro.
Enquanto o soldado
contava, umedecendo os dedos na língua, as notas miúdas, dilaceradas e
sórdidas, Teresinha, no esconderijo, procurava, em vão, conter as pernas
vacilantes, quase a vergarem. Pelos seus olhos espavoridos, passou a visão do
responsório, em casa de Rosa Veado. Uma das sombras, aquela que, com esgares de
louco, a arrebatava em volteios macabros pelo ar, em nuvens de fumaça
sufocante, estava ali corporizada, bem nítida, contando o dinheiro furtado. O
glorioso Santo Antônio operara o milagre. Por precaução criminosa, talvez para
arriscá-la, Crapiúna escondera o furto, denunciá-la-ia mais tarde, e ela seria,
como cúmplice de Alexandre, vítima de uma prova esmagadora.
Entre o terror de se
achar a sós com o soldado em tão estreito espaço, ser por ele pressentida e
descoberta, testemunhando o terrível segredo, e o prazer de haver colhido
certeza da autoria do crime, Teresinha vacilava na resolução por tomar, sem se
embaraçar nas malhas da rede, em que pretendia apanhar o criminoso. Teve
ímpetos de gritar, de surpreendê-lo em flagrante, e arrastá-lo à presença do
delegado. Isso, porém, seria perder-se, sacrificar-se, inutilmente, porque
Crapiúna seria capaz de eliminá-la, estrangulá-la, sem piedade. Ela não poderia
lutar, frágil como era e aberta dos peitos, contra um homem vigoroso e armado
de uma faca hedionda, cujo cabo de chifre, incrustado de arabescos de ouro,
surgia-lhe da ilharga. Ah! se tivesse os músculos de Luzia!
As pernas lhe tremiam,
cada vez mais bambas; os dentes se chocavam com estalidos secos, toda ela
tiritava inundada de suor gelado, que lhe empapava os cabelos na fronte, e lhe
corria pelo dorso, como vermes pegajosos. A cabeça andava-lhe à roda; e, na
visão perturbada, o soldado se afigurava desdobrado em outros iguais e
pequeninos, que avançavam para ela com trejeitos de palhaços. A mísera
debatia-se para fugir, implorar socorro, como na angústia de um pesadelo.
Os rápidos instantes que
se ali demorara o soldado lhe pareceram infindáveis; e quando recobrou a posse
de si mesma, saindo do esconderijo, pé ante pé, com meticulosas precauções,
lívida, espavorida, viu que o quintal estava deserto. Nada denunciava a
presença dele: o caixão estava no mesmo lugar, onde permanecia, havia muito
tempo; não viu pegadas no chão, nem o mais leve vestígio.
E a bolsa?... Ela não
ousava verificar se fora reposta onde a vira.
– Seria realidade ou
sonho? – inquiria ela, procurando despertar a memória, fixar idéias e recompor
o fato, em todas as suas minúcias. – Teria, na verdade, visto Crapiúna transpor
o muro, suspender o caixão e contar o dinheiro?...
Seria a revelação efeito
da intervenção do santo?...
Nessa dolorosa
incerteza, esgotadas as forças, com os quadris doloridos, como se os houvesse
traspassado a faca do soldado, marchou trôpega, para o interior do aposento,
então quase escuro, e, subjugada de inelutável torpor, derreou-se na rede,
armada a um canto.
Era quase noite. Não se
ouvia mais o grazinar das três mulheres, que haviam partido para a delícia de
um gozo, fariscando, numa insaciedade, a fortuna dos jogadores.
XVIII
O relógio da matriz dava
oito horas, quando Teresinha despertou sobressaltada, tomando pela claridade da
aurora, o luar que se coava pelas frestas do telhado. Seu primeiro movimento
foi para erguer-se, ir ter com Luzia, dar-lhe, como costumava, notícias de
Alexandre, e contar-lhe a excelente novidade. Mas, o corpo enlanguescido de tão
violentas comoções, do torpor do sono, recusou obedecer. Ela permaneceu
encastoada na rede, encadeando idéias dispersas, e fixando bem, na memória, o
episódio que duvidava ainda fosse sonho, ou realidade. Por fim, assaltou-a o
medo de estar só na penumbra do quarto, povoado de fantasmas, rumores suspeitos
que se lhe figuravam passos de homem aproximando-se, hálitos ansiosos, como a
sua própria respiração ofegante.
Com esforço voluntarioso
ergueu-se, espreguiçou-se para distender as articulações entorpecidas, e abriu,
de manso, a porta.
O beco estava deserto,
banhado de luz intensa, suavemente argentina. Na casa fronteira, alumiada pela
frouxa luz de uma vela de carnaúba, chorava, em magoados vagidos, uma criança
enferma, acalentada pela mãe, que murmurava monótonas cantigas, cortadas de
suspiros. Era a angústia do coração a estourar de pranto.
Teresinha espreitou
todos os lados; fechou a porta sem estrépito, e partiu, dirigindo-se para a
várzea, por uma estreita senda, cavada no solo, ladeado de cisqueiros,
farejados, afocinhados de cães magros e murchos, que se esgueiravam
desconfiados. Ela passou, depois, cosida aos altos muros do fundo dos quintais,
até chegar à encruzilhada das ruas, cheias de escravos, retirantes, gente suja,
gente esquálida, carregando potes d’água, colhida nas cacimbas abertas na areia
do rio, a conversar, rezingando, em voz alta, com rasgadas desenvolturas de
chufas, de arregaços obscenos, com risos estridentes de malícia.
Ao chegar à rua,
suspirou libertada do pavor aflitivo; e, outra vez, gozando uma doce serenidade
de ânimo, seguiu na direção da igreja do Rosário, relembrando os incidentes
daquela tarde, a cena do jogo, a covardia no esconderijo, e o terror que lhe
não permitia verificar se Crapiúna deixara a bolsa de couro de onça debaixo do
caixão. Em todo caso, estava satisfeita com o haver logrado a certeza do verdadeiro
criminoso, indicado pelo infalível, pelo glorioso Santo Antônio, e a convicção
de concorrer para a libertação de Alexandre e a felicidade inteira de Luzia. E
reputava-se engrandecida por essa boa ação, renovada do passado de culpas, de
crimes talvez, dos quais fora responsável inconsciente, e, sobretudo, a
principal vítima. Entidade diminuída e inútil, flutuando sobre uma suja
torrente de vícios incontinentes, sentia-se valorizada, sentia-se forte e
sentia-se prestante. Duas criaturas, pelo menos, neste mundo de ingratidão, de
perfídia e de miséria, seriam reconhecidas à sua dedicação.
Enlevada no doce
conforto do beco, Teresinha foi subindo a rua do Rosário até ao largo. Em redor
do cruzeiro, erguido defronte da igreja, sobre um sólido pedestal de alvenaria,
crentes, ajoelhados, rezavam padre-nossos, ave-marias e o terço, murmurado,
nuns tons soturnos de devota cadência.
Do piedoso burburinho,
sobressaía a voz de dona Inacinha, ao recitar, com solenidade de padre, o gloria
patris, respondido pelos fiéis, numa algaravia, um mistifório de latim e
português: – Os que perderem em princípio, agora im sempre por todos os
séculos, seculoro. Amém, Jesus.
A moça prostrou-se,
comovida, abeirando-se do grupo, pouco e pouco engrossado pelos transeuntes, de
uma reverência grave, na maioria mulheres, de alvos mantos, a espelharem ao
luar, claro como o dia. Havia muito, seus lábios se não entreabriam à
florescência da prece consoladora, nem despertava, aos eflúvios puríssimos da
fé, sua alma agrilhoada ao pecado. Dos hábitos piedosos da infância, apenas
conservava o de persignar-se antes de dormir, antes de tomar banho. Não se
recordava da última vez que rezara, a não ser a oração sacrílega em casa da
Rosa Veado.
Terminados os mistérios
do terço, dona Inacinha entoou, com pompa, numa voz fanhosa e áspera, o canto
de contrição. – “Oh! Senhor Deus bem-amado...,” acompanhado por todos os
devotos, com uma dissonância aparatosa, irremediável. Aos derradeiros
versículos, houve uma contrita, houve uma longa pausa. Recolheram-se todos com
Deus, curvados e humildes, preparando-se para o solene epílogo do ato
religioso, a súplica comovente de misericórdia. Quando, esta ecoou, entoada
pela beata, em acentos plangentes, as pessoas, afastadas da igreja, reunidas em
roda, na calçada, tanto que ouviam a súplica, ajoelhavam e batiam também nos
peitos, repetindo, em leve, em sentido balbucio, a invocação à misericórdia
divina. Teresinha curvou-se, compungida, e pediu a Deus, sinceramente, perdão
dos seus pecados.
Ergueram-se os devotos,
como um rebanho de ovelhas, espantado na malhada noturna, e debandaram em todas
as direções, depois de beijarem o pedestal da grande cruz negra, que o luar
destacava, com melancólicos fulgores.
Ao toque de nove horas,
desmancharam-se as rodas de confabulação amistosa; trocaram-se saudações
habituais e arrastaram-se as cadeiras para o interior das casas, cujas portas
se fechavam com estrépito.
Naquele tempo,
terminavam a tal hora, com exceção das raras casas da fidalguia da terra, as
visitas, fossem de cerimônia, fossem íntimas. É considerável esta nota.
Luzia passeava,
impaciente, sob a latada, cujas palhas, muito secas, farfalhavam ao violento
embate das rajadas tépidas.
– Que horas são estas?!
– exclamou, avistando Teresinha.
– Fui ao meu quarto –
respondeu esta – mudar a roupa e peguei no sono.
– Pensei que te havia
acontecido desgraça... Tardaste tanto... Estava num pé e noutro ansiosa... E...
Alexandre?...
– Na mesma. Poucas
palavras e muito sucumbido... Mete dó ve-lo, coitado!
– Perguntou por mim?
– Não. Eu é que falei de
você. Disse-me que não lhe podia pagar o que tem feito por ele; entrou a
repetir que já está desesperado... Sempre a mesma ladainha.
– Tem razão. Há quase um
mês que padece...
– Deixe estar que, mais
dias, menos dias, se descobre a verdade. Deus há de permitir que isso seja
breve, talvez amanhã...
– Amanhã?!... Dessa
esperança estou farta.
– Não desespere, Luzia.
Quem espera sempre alcança. Você nem pode adivinhar o que vai acontecer.
– Sabe, então, alguma
novidade?...
– Não. É um palpite.
– Um palpite à-toa?...
– Lembra-se, Luzia da
minha alma, lembra-se do responso?
– Sim. E depois?...
– Não lhe dizia eu que
tinha fé no milagre? Pois é por ter fé que prevejo a próxima libertação de
Alexandre. Diz-me o coração que ele está ali e está na rua. Ainda há
instantinho rezei o terço no cruzeiro do Rosário, e uma voz interior dizia-me,
com segurança: Deus tarda, mas não falha...
– Então ele nem
perguntou por mim!?
Luzia perscrutava, com
olhares insistentes, o pensamento de Teresinha, suspeitando que ela lhe
ocultasse a verdade, ou que soubesse algo que, por compaixão, lhe não queria
revelar. Essa reserva mental devera influir naquele ar de mistério, velado de
ironia, palavras vagas, em completa discordância do gênio expansivo e alegre da
rapariga, uma deleitosa criatura sem aspirações, resignada ao seu quinhão
minguado da partilha das coisas boas deste mundo, feita pela Providência.
Entretanto, ela testemunhava, com funda mágoa, a ansiedade, o desconcerto de
Luzia.
Esteve a pique de
revelar-lhe o descobrimento do dinheiro; mas, por um justo egoísmo, desejava
reservar para si, exclusivamente, a caridosa iniciativa da libertação do
prisioneiro, se bem que não houvesse ainda atinado como tirar partido do que
vira, ou tornar valioso o seu testemunho único, porque não ousara verificar se
a bolsa ficara no lugar onde Crapiúna a escondera.
Era por medo, por
covardia indesculpável que se não houvera assegurado dessa circunstância
importante, ela que tinha afrontado perigos e estava calejada de suportar as
vicissitudes da vida? E se ele houvesse tirado o dinheiro? Tornar-se-iam
inúteis o descobrimento, o tormento daqueles angustiados, daqueles inolvidáveis
instantes, porque nada valeriam as suas afirmações.
Seria possível que assim
se desvanecessem as esperanças da iminente vitória da verdade à calúnia, urdida
contra o pobre moço!...
Luzia por sua vez,
meditava, com os claros olhos fitos na clara lua, a librar-se no céu, de um
fino e doce azul. Seu pensamento adejava em redor de Alexandre, que,
indiferente, não perguntara por ela, merecedora do castigo desse desdém, e
rendida à voz diabólica que, das entranhas, lhe bradava, com insistência
lancinante: “és, culpada pelo teu excessivo amor-próprio, pela tua soberba!...”
Seguia-se a revolta, com
assomos fanfarrões de defesa inconsistente, fútil.
– Não quer saber de mim?
– pensava ela. – Melhor. Fosse eu outra, faria o mesmo. Deixá-lo-ia entregue à
sua sorte, desobrigando-me de tamanha canseira, pois muito tenho feito para
demonstrar-lhe a minha gratidão. Talvez isso lhe conviesse para desembaraçar-se
do compromisso de ligar à sua vida, uma mulher pobre com a mãe doente, duas
bocas a reclamarem de-comer, neste tempo de carestia, e maior soma de trabalho.
Seria uma loucura pensar em casamento em semelhante crise. Ele, sozinho,
poderia suportar privações, vencê-las ou sucumbir consolado de não fazer falta
a ninguém, como defunto sem choro...
E Gabrina?... – Não iria
esta ou outra igual ocupar, no coração vazio, o lugar que Luzia abandonara? Não
procuraria ele, na triste conjunção do naufrágio das suas esperanças, uma
afeição que o consolasse, um refúgio carinhoso, embora impuro de lascívia, onde
se abrigasse para espairecer, como quem se intoxica de bebidas capitosas para
curar dissabores, ou se afoga na vasa infecta de um pântano?
Seria horrível. E Luzia
estremecia, sob um pavor, como se fora ameaçada do espólio de um bem
inestimável, de coisa a que tinha direito sagrado, coisa que ela criara, e à
qual transmitira parte da sua alma, planta que tratara com desvelado carinho,
regada com o suor das suas aflições e o orvalho das suas lágrimas, ameaçada de
ser desarraigada por mão criminosa, quando lhe desabrochavam, pujantes de viço,
coloridas e perfumosas, as primeiras flores. Não tinha energias varonis,
músculos poderosos para defender o seu bem querido, e esmagar o espoliador!?...
Não tinha o indeclinável dever de lutar pelo que era seu, e constituía, já,
elemento essencial da sua existência, como se defendesse a própria vida, o
patrimônio inexaurível dos tesouros do coração, o precioso quinhão da inefável
ventura que, neste mundo, só no amor se encontra?
Como puas lancinantes,
esse egoísmo, que é a suma de todos os instintos da espécie, tanto mais
veementes e indomáveis quanto menos culto é o espírito da mulher, não
contaminada de pecado, na exuberante razão do organismo sadio, assanhava-lhe as
iras, a lhe morderem como cobras, o coração, que lhe projetava nas veias uma
torrente abrasada de ódio a Gabrina, a todas as mulheres que lhe disputassem a
presa adorada, contra si mesma, que o abandonara, contra as coisas que a
cercavam, testemunhando o seu penar, contra aquele astro radiante a iluminar a
luta travada no âmbito escuro da sua alma, como lâmpada tristonha a revelar o
monstro de paixão acuado na caverna das entranhas, latejantes de desejos...
Passava-lhe, então, pela
mente alucinada, a torva idéia de vingar-se, rebaixando-se, de poluir-se, de
atolar-se no charco da lascívia, saciando-se até à embriaguez, ao primeiro
encontro, fora embora cúmplice do imundo crime, o mais hediondo dos homens.
Crapiúna, outro qualquer, ainda mais vil e detestável, contanto que a sua
depravação, com requintes de despejo, fizesse sofrer Alexandre, o desalmado, o
frio homem, que não perguntara por ela, a Teresinha.
E a voz diabólica,
vibrando em místicas melodias, de um tom angélico, e dominando o tumulto da sua
alma atribulada, repetia: “Por que te golpeias assim? por que te maceras nessa
luta mortificante e estéril, frágil criatura?... Vai; curva-te, como escrava,
aos pés do ente adorado, beija-lhe as mãos, unge-as com o bálsamo do teu
pranto, porque o amas...” Uma exortação de alto romantismo, a dessa voz de anjo
e diabo...
Despertou-a do cismar
torturante, a voz de Teresinha:
– Que bonito luar,
Luzia. Dá vontade à gente de passar a noite em claro. Como está bem visível!
São Jorge e o cavalo empinado. Dizia-me um tapuio velho da Serra Grande
que a lua protege a quem quer bem. Quando uma tapuia gentia tinha saudades do
marido ausente, olhava para ela, e lá lhe aparecia o retrato da criatura
querida, ou nela casavam, conduzidas pelos olhares, as almas do par, separado
por léguas de distância.
Luzia, maquinalmente,
olhou para a lua a navegar serena no céu nítido, e pensou que, àquele momento,
Alexandre também a contemplava, triste e só, por entre as grades do cárcere
infecto.
– A lua – continuou
Teresinha , com melancolia – leva recados e juras dos noivos, e amolece o corpo
da gente. E o tapuio dizia que ela era mãe da terra, das coisas e das criaturas
vivas; protegia as plantações, mandando chuva e orvalho, aquecia os ninhos
chocos, dava cheiro às flores em botão e cio aos animais. Também tirava o juízo
à gente, quando se zangava... Ah! que saudades me faz o luar! Foi por uma noite
destas, que conheci o Cazuza pela primeira vez... Ai, ai... Deus... meu pai...
E ela se esticava, num
grande bocejo de volúpia, deitada sobre a esteira, desalinhadas, pelo vento, as
roupas leves, os olhos quase cerrados à imortal saudade do primeiro amor,
sempre vivo no inquieto coração devastado.
– Tomara que já amanheça
– continuou, bocejando. – Como custa a passar a noite!... Em que está você tão
embebida, Luzia?
– Eu!... Estou maginando
na minha triste vida...
– Arre lá com tanto
disfarce! Você, minha negra, não se abre comigo. Estava, mas era longe daqui,
rezando à lua como as tapuias.
– Você tem coisas,
Teresinha!?...
– Não chorei na barriga
da minha mãe, mas adivinho. Por que não diz logo que está com o juízo em
Alexandre?
– Como hei de pensar em
quem não faz caso de mim!... Nem perguntou a você, por mim...
– Não perguntou por
quê?... Porque você, por pique, não foi mais à cadeia. Você é caprichosa, ele
também... Mas não se me dava de apostar como ambos os dois estão
arrependidos...
– Acha, então, que
depois do que houve, eu deveria entreter uma... coisa sem fundamento, sem
esperança?
– Qual o quê! A gente
faz de um argueiro um cavaleiro, fica amuada, jura por quantos santos, faz
finca-pé... É o mesmo que nada. Quem quer bem não tem vergonha. Eu, ralada
neste mundo, que o diga.
– E a história da
Gabrina?
– Mentira, tudo mentira.
Não duvido que ela levantasse, com aquela cara de santa, toda denguices e
inocências, o falso testemunho. É uma rapariga bem-parecida, bem-feita de
corpo, mas tem a alma deste tamanhinho. A Chica Seridó tem comido candeias,
desde que tomou conta dela. É capaz de tudo, meu Deus perdoai-me. Não duvido
que tenha feito esse malefício por ciúme...
– Por ciúme?...
– Pensa que todos os
homens se babam por ela, e, como Alexandre não lhe deu trela...
– Demais, que tenho eu
com isso? Tanto se me dá que ela goste dele, como que não goste. Só me empenho
para ele ser livre. O mais... está acabado...
– Que soberbia, Luzia!
Você ainda é castigada.
– Por quê? Se não faço
mal a ninguém...
– Deixe estar. Quem for
vivo verá... Não há mal que sempre dure... Amanhã!... Ah! miserável; tenho aqui
o fio da meada!
Teresinha, como se
falasse a um ente miserável, estendeu, com ar triunfante, o punho cerrado.
– Bem dizia eu –
exclamou Luzia – que você sabe alguma coisa...
– Ora se sei... Vai
ver... Amanhã, se Deus quiser... Não; o melhor é não dar à língua... Espere...
E Teresinha, muito
lenta, muito lânguida, entrou a murmurar, baixinho, com uma ternura tiritante,
uma canção, da qual Luzia distinguiu bem esta quadra:
A traição, meu bem,
ature:
Diga que é cega e não
sabe,
Não há mal que sempre
dure,
Nem bem que nunca se
acabe...
XIX
Teresinha voltou, no dia
seguinte, ao beco da Gangorra, à hora da revista, quando os soldados estavam
reunidos no quartel, estabelecido em uma velha casa fronteira à cadeia. No
sobressalto de quem se esconde, esgueirando-se para evitar a curiosidade da
vizinhança, entrou no quarto, e se fechou por dentro. O silêncio aumentava-lhe
o susto. Foi preciso repousar para adquirir coragem.
A porta, que dava para o
quintal, estava entreaberta, como ficara na véspera. O caixão velho lá estava,
regurgitando de troços, lavado de luz intensa, um contraste da penumbra do
aposento, sem o menor sinal de haver sido desviado, ou da presença de ser
humano naquele sítio.
Com o peito ofegante,
pálida de aflição, o ouvido atento ao menor ruído, a moça ajoelhou, e, com um
esforço sobreposse, ergueu um dos ângulos do caixão, muito pesado, muito cheio;
e, sustentando-o de encontro ao ombro, fendeu com mão trêmula, o espaço entre o
fundo e o chão. Seus dedos crispados experimentaram repugnante contato.
Retirou, rapidamente, a mão, como se a houvesse passado pela polpa ascorosa de
um réptil. Um calafrio varou-lhe os membros, as forças abandonaram-na, e o caixão
caiu, percutindo o solo com um som cavo.
Transida de pavor, ela
esperou alguns momentos, imóvel e atenta, sempre de joelhos, apoiada ao muro.
Recobrado o ânimo limpou com a fímbria da saia o copioso suor que lhe inundava
o rosto, respirou agoniada, como se lhe faltasse ar; abanou-se com o vestido,
movendo de um para outro lado a cabeça, quase desfalecida. A bolsa de Crapiúna
estava ali. Não havia dúvida; ela havia sentido o contato eletrizante dos pêlos
do couro de onça. Aguilhoada pela curiosidade de examinar-lhe o conteúdo, não
ousou de fazê-lo: seus músculos flácidos e fatigados não poderiam repetir a
exploração. Além disso, começou a sentir a dolorosa junção inguinal e o aperto
do peito, que a acometia toda vez que era assaltada por fortes abalos.
– Ah!... Se eu fosse
mulher de talento, como Luzia – murmurou, desalentada, erguendo-se a custo.
Certa da permanência da
prova do crime, restava escolher meio de utilizá-la. Seria necessário
surpreender Crapiúna ali, quando voltasse em busca de dinheiro e obter o
auxílio de um homem bravo e forte, capaz de entestar com o soldado, prendê-lo e
conduzi-lo à presença da autoridade. Lembrou-se de Raulino Uchoa que era
vigoroso e arrojado, quando menos pela brava fascinação das histórias que
contava da vida aventurosa. Era, demais disso, amigo de Alexandre e devotado a
Luzia, que o salvara dos chifres do touro sanhudo. Era, porém, indispensável
que ela e ele ficassem escondidos de tocaia, esperando, horas, talvez dias
inteiros, a ocasião propícia.
Ocorreu-lhe, então,
procurar o sargento Carneviva, que ela o sabia em excesso rigoroso para com os
soldados, e andar muito prevenido com Belota e Crapiúna, por serem jogadores
incorrigíveis. A essa idéia, duma felicidade que farte, ela vibrou de júbilo,
ela vibrou de cólera, misturados, na mesma expansão impetuosa, os nobres anelos
de vitória e antegozo cruel da vingança.
– Hás de pagar o novo e
o velho – exclamou ela, com ameaças, e triunfante. – Hei de mostrar, ladrão
safado, quem é tábua de bater roupa e quanto vale esta cachorra!...
E partiu em busca do
sargento.
A essa hora, estava
Luzia trabalhando na oficina de costuras do morro do curral do Açougue.
Confiara-lhe dona
Inacinha a superintendência das meninas taludas, depois de verificar a sua
perícia, o seu exemplar procedimento, o recato de maneiras e linguagem, tão
raros naquela quadra de carência de nutrição física e moral. Seria ela um
exemplo vivo para aquelas pobrezinhas, condenadas à mendicidade, órfãs ou
abandonadas pelos pais, expostas ao contágio da infecção, que diluía as baixas
camadas da sociedade, desfibradas pelo inominado flagelo.
Entre elas estava
Quinotinha, um futuro de formas, em cujas linhas, ainda angulosas, se
debuxavam, nuns longes de curvas graciosas, os primeiros sinais da puberdade.
Luzia acolheu-a com simpatia; e, quando soube que era a menina libertada por
Alexandre da sanha monstruosa de Crapiúna, dedicou-lhe os mais carinhosos
cuidados. Fruía deliciosa sensação ao contato dela, ao exercitar-lhe as
pequeninas mãos delicadas no manejo da agulha e no ajustamento das peças de
costura, sensação de mãe testemunhando a florescência da força e da
inteligência nos tenros rebentos do seu ser. Ela a distinguia das outras
meninas, desasseadas, esgrouvinhadas, como pombas privadas do arminho das penas
cândidas, de olhos toldados, como se por eles já houvesse passado a sombra
funesta do crime; muitas indiferentes às carícias, aos conselhos, de grandes
olhos parados, ardendo num brilho fulvo de febre, e sempre voltados para o
telheiro onde roncavam, fumegando, os enormes caldeirões de comida. Quase todas
pareciam esgalhos enfezados, condenadas ao estiolamento precoce, a se
consumirem, varas estéreis, na coivara
de vícios, que se ia alastrando, como incêndio em matagal ressequido, e mais
não era outra coisa essa massa de famílias, erradicadas dos lares, desagregadas
e descompostas.
Contemplando Quinotinha
a trabalhar, Luzia se embebia no enlevo de um sonho, onde se dissolviam as
amarguras, as tristezas do presente, e surgia, entre resplendores suaves de
aurora, o desejo da maternidade, dar-lhe Deus uma filha assim, formosa e sadia.
E já considerava, num gozo, em toda a sua sublimidade, esse prazer inefável de
mãe, quando a estreitava ao seio fremente, lhe amimava os cabelos de menina e a
beijava com afã, com a meiguice, o doce frenesi das mães amorosas.
Evolava-se o sonho, e
ela considerava que a rapariguinha poderia servir de companheira à mãe enferma
e a ela mesma, como irmã caçula, se os tempos não fossem tão ruins; poderia
repartir, com ela, a sua pobreza, o seu quinhão parco, como fizera com
Alexandre. Chegou mesmo a falar-lhe nisso, mas Quinotinha respondeu-lhe que era
a mais idosa de oito irmãos, uma escadinha de meninos que terminava num de
peito, e não podia abandonar a mãe, coitada, já abandonada pelo marido.
Depois disso, Luzia lhe
teve mais amor, e mesmo mais sorrisos, e mesmo mais cuidados. Havia, entre
ambas, a solidariedade do mesmo infortúnio, de sentimentos idênticos, dedicação
e amor filial, com a diferença de ser a menina uma criatura ingênua e feliz,
pela inconsciência da miséria, e ela mulher rebelada contra a sorte, assaltada
de absurdas aspirações, tendo o coração apertado entre mágoas, dissabores,
esperanças desfeitas, murchas como os cravos rubros de Alexandre.
Uma tarde, terminada a
tarefa, Quinotinha saiu acompanhada de Luzia, que lhe notava algo estranho no
semblante, de ordinário tranqüilo e risonho.
Caminharam em silêncio,
algum tempo.
– Há muitos dias – disse
a menina, enleada e hesitante –
que ando para lhe dizer uma coisa.
– Você?! – exclamou
Luzia, com interesse, com surpresa.
– Sim, eu mesma...
– Vamos lá... Diga...
– Vosmecê conhece seu
Alexandre? Aquele moço que está preso por causa do furto da Comissão?...
– Conheço, sim.
– Quero muito bem a
ele... Sá Luzia também gosta dele?
Luzia não respondeu; e a
menina continuou:
– Todo o mundo gosta
daquele homem...
– Mas... a que vem isso?
– Eu lhe conto. Sá Luzia
sabe onde é a casa de Chica Seridó? Pois fui lá, outro dia, buscar um remédio,
que a mamãe mandou pedir e estava esperando entretida com a Gabrina, aquela
mocinha bonita, que também gosta de seu Alexandre, quando ela me largou de
repente, e foi para o terreiro conversar com uma pessoa. Espiei para fora e
fiquei tremendo de medo: era o Crapiúna, aquele soldado que de uma feita, quase
se pegou com seu Alexandre... Fiquei quieta e, então, ouvi ele falar muito
zangado: ralhava tanto, que fiquei com pena de Gabrina. Ele dizia: – Você não
tem palavra. Ficou de ir lá em casa e me enganou! Ela respondeu por aqui assim:
– A Chica estava com os olhos em riba de mim, que não me deixou um instante. –
Você está mentindo, menina – tornou ele a dizer-lhe com muita má-criação. – Nem
por eu lhe dar o par de brincos de ouro e os cortes de chita... – Mas eu não
fiz o que você disse? – respondeu a rapariga, também com maus modos. Não fui
jurar em casa do delegado?...
– Vamos. Conte-me tudo –
irrompeu Luzia, ansiosa e alvorotada, devorando a menina com o olhar em fogo. –
Vamos, diga a verdade.
– Não estou mentindo –
balbuciou Quinotinha, espavorida pelo gesto ardente da mestra. – Creia-me por
esta luz...
– Não tenho receio. É
para bem dele, do pobre, que está penando inocente...
– Espere. Deixe-me
lembrar. Ela disse mais: – “Que queria você, seu Crapiúna?” – “O que me prometeu...
Olha, diabinho, tu me tens custado os olhos da cara e... se não fosse
porque...” – Aqui, ela fastou pra trás, e disse-lhe: – “Se é por causa da
porqueira destes brincos e daqueles molambos, pode levar tudo. Basta a dor de
consciência de ter levantado um falso... Ainda quer mais?!...” – Crapiúna,
estava-se vendo, ficou fulo de raiva e em termos de arremeter para ela...
– Está bem certa do que
dizes, Quinotinha?!...
– Eu? Como em Deus estar
no céu... Por sinal que ele abandonou, quando ela disse que, se duvidasse, não
se dava de contar tudo; que mentira por pique, para se vingar de
Alexandre... que não fazia caso dela... O soldado ficou calado um instantinho e
pediu-lhe que não fosse mazinha, que se falasse, seria presa com ele,
desgraçando-se os dois para fazerem benefício a um homem que, além de tudo, a
desprezava por causa de outra mulher. Se ficasse quieta e fizesse o que ele
queria, poderiam viver, sem ninguém desconfiar, como Deus com os anjos. – “Olhe
– disse ele por fim – se eu fosse malvado, poderia encalacrá-la... Mas não faço
isso, porque você é o meu único amor da minha alma.” Continuaram a conversar,
mas tão baixinho, que não pude ouvir, até que a Chica Seridó gritou lá de
dentro por ela... Então, eu disse comigo: Que gente malvada! Vou contar tudo a
sá Luzia. Não contei logo, porque tive medo que ralhasse comigo por eu andar
escutando conversa de gente grande...
– Ralhar contigo?!...
Pois se foi Deus quem te colocou ali para seres testemunha da verdade...
Fizeste muito bem, Quinotinha; assim é que faz uma menina bem-ensinada. Nem
podes imaginar o bem que fazes a duas criaturas: a ele e a mim. A mim, que
libertaste de um grande peso que me esmigalhava o coração.
E enlaçou a menina nos
braços robustos; conchegou-a ao peito, convulso, que arfava, com alvoroço,
desesperadamente; beijou-a em febril transporte de ternura, como beijam aos
filhos as mães amorosas.
– Agora – disse a
menina, libertando-se dos afagos de Luzia – deixe-me ir que é tarde... Não diga
nada, nem que lhe contei...
– Vai descansada...
Quinotinha partiu a
correr, e Luzia continuou o caminho para casa.
A lucidez da narrativa,
duma segurança minuciosa, atestava a sinceridade da menina. Alexandre, pensava
Luzia radiante, está salvo, salvo da infâmia e reabilitado para ela, por sua
vez libertada das sombras cruéis da suspeita. Ele ressuscitara, e, da prisão
nojenta, ascendia para o céu das suas aspirações, aureolado pelo sofrimento. E
ela abençoava a voz demoníaca, aquela voz sedutora e íntima, que lhe falava com
a sonoridade mística de um canto angelical, e a impelia docemente para o
mártir, repetindo: “Vai, curva-te como escrava e culpada, unge as suas mãos
generosas com as tuas lágrimas, porque o amas.”
Se Alexandre a amasse, ele
perdoar-lhe-ia; ela era, agora, culpada de haver desconfiado, por mesquinho
impulso de despeito, por ter recusado ao pobre a consolação da sua presença, a
caridosa visita diária à prisão, e por não resistir, à crueldade pueril de
devolver-lhe as pobres flores murchas, símbolo triste de afetos mortos.
XX
Teresinha conversava com
a tia Zefinha, numa rútila impaciência de olhos alegres, quando Luzia chegou a
casa. Falava de Alexandre, amaldiçoando a justiça que o conservava na cadeia,
havia mais de um mês, por causa de imputes feitos pelo hediondo soldado, de
parceria com a Gabrina, doidivanas, positivamente, quase a despencar-se no
mundo, arrastada pela falta de juízo e os péssimos exemplos, porque a morada da
Chica Seridó era lugar de reunião de gente mal reputada, fregueses de suas
mezinhas e feitiçarias.
O semblante claro e,
claramente, expansivo de Luzia, denunciou-lhe a vontade que lhe alvoroçava o
coração.
– Como vem mudada! –
exclamou Teresinha. – Você parece que viu passarinho verde?
– É porque tenho de quê,
respondeu Luzia, beijando as mãos descarnadas da mãe.
– Vamos lá. Conte-nos
isso, que também tenho boas novidades.
– Já sei quem é o
ladrão...
– Ora! Isso é velho para
mim, como a serra dos Cocos.
– Sabia então?...
– Olé! Não sabia, mas
suspeitava.
– Pois eu sei. Foi mesmo
uma coisa mandada por Deus.
E repetiu, sem reservas,
a revelação de Quinotinha.
– Franqueza por
franqueza – disse – Teresinha, resoluta. – Eu também tenho muito que dizer,
coisas que me andam embuchando há muitos dias. Primeiro que tudo, fiquem
sabendo: Crapiúna está preso...
– Preso?!... –
exclamaram, a um tempo, Luzia e a velha.
– A onça deste pasto
está muito bem guardada no xilindró...
– E quem conseguiu isso?
– Esta sua criada –
afirmou Teresinha, com ênfase, batendo no peito, com largo gesto de contentamento.
Contou, então, como
descobrira o esconderijo do dinheiro, as aflições suportadas com heroísmos,
fanfarroneou a coragem, o sangue-frio, apesar de fraca, não era mofina, e mais
não morrera de terror quando se viu a sós com o malfazejo soldado, e passeou a
narrar a entrevista com o sargento Carneviva.
– Que quer você? – disse
ele, apurado, riscando com proficiência grave, mapas e tabelas.
– Vim aqui dar parte...
– respondeu, perturbada pela severidade do homem de má cara, muito barbada e
muito fechada.
– Anda depressa, que
estou muito ocupado. Comando o destacamento na ausência do tenente, que foi
fazer uma diligência, e não tenho tempo para trelas.
Teresinha, muito
sobressaltada, denunciou-lhe a cena do jogo em casa de Belota e a briga de Crapiúna
com os paisanos.
– Bem desconfiava eu que
aqueles malandros tinham casa de jogo na Gangorra – rebentou o sargento, com
cólera, cheio de censura disciplinar. – Deixa estar essa corja que os
arranjarei... É só isso?
Logo que a moça começou
a narrar o episódio de ter descoberto o dinheiro no quintalzinho do seu quarto,
o sargento, em crescente interesse, largou a régua, tirou cautelosamente o
tira-linhas da boca, onde o sustinha atravessado, e pejado de tinta, e cravou
indagadores olhos na delatora.
– Como é isso? –
inquiriu, com surpresa. – Então aquele homem que está preso?...
– Inocente, meu senhor;
limpo como saiu da barriga da mãe...
– Dele – atalhou,
rapidamente, Carneviva, que não queria dúvidas. – Veja o que está dizendo
mulher...
– Vossa senhoria, se
quiser, pode ver com os seus próprios olhos... Depois, eu não tenho necessidade
de mentir...
– Lá isso é história. De
enredos de mulheres estou farto. Vocês, quando têm raiva dos soldados inventam
e mentem como deslambidas. Enfim, vou indagar o caso da jogatina. Oh!
Cabecinha!...
– Pronto, seu cadete.
– Que é do Crapiúna?
– Está na guarda da
cadeia.
– E o Belota?
– Também.
– Mande rendê-los e que
venham já à minha presença.
Cabecinha partiu, e
Teresinha fez um movimento para retirar-se e evitar a acareação com os
soldados.
– Não senhora – ordenou
Carneviva. – Fique para deslindarmos já esse negócio.
Poucos minutos
decorreram. Crapiúna entrou primeiro, e não pôde disfarçar a surpresa de
encontrar, na sala do sargento, a moça, transida de susto pelo vexame. Belota
chegou, depois, com ares humildes, tímidos.
– Que história foi essa
– perguntou-lhe Carneviva – do jogo em sua casa? Já lhe não havia dito que, à
primeira denúncia, você, seu Belota, ajustava comigo novos e velhos?
– Saberá vossa senhoria
– balbuciou Belota – que é menas verdade... Até tenho andado doente...
– Qual doente!... Você
quando faz maroteira, dá-lhe logo na fraqueza...
– Por Deus, seu
cadete...
– Vamos lá. Quero saber
tudo... E, se mentir, arranco-lhe com a chibata, o couro do lombo...
– Vossa senhoria me
perdoe... Foi, foi... uma brincadeira... a... a leite de pato
– Bom. E o senhor? –
perguntou o sargento, voltando-se para Crapiúna, que dardejava sobre Teresinha,
olhos ferozes.
– Eu não sei nada – respondeu ele, secamente, e sem
hesitação.
– Ah!... Então você não
esteve jogando em casa de Belota com os vagabundos Zoião, Candinho e Vicente da
Henriqueta?
– Vossa senhoria não
ande atrás de histórias desta mulher, que mente como uma cadela vadia.
– Então o senhor –
atalhou Teresinha, pulando, irritada pela injúria – não esteve quase se pegando
com os outros? Não foi aqui o seu Belota, quem apartou a briga!?... Não é
verdade que, quando eles foram embora, saltou para o meu quintal
paredes-meias?...
O sargento impôs-lhe
silêncio, com um gesto rápido e enérgico. Crapiúna empalideceu, e Belota,
espantado, sem atinar com a significação da palavra da moça, interrogava o
camarada com o olhar.
– Vamos seu Belota –
ordenou o sargento – Bote para fora o que sabe. Vamos que temos panos para
mangas...
Belota, sempre cheio da
intransigência das ameaças do sargento, acovardou-se e contou o caso,
amenizando-o com disparatadas justificativas. Fora uma brincadeira de amigo,
uma coisa à-toa, que terminara num bate-boca.
– E aqui este mestre?
Crapiúna olhava, de
soslaio, para Belota.
– Saberá vossa senhoria
– respondeu este – que o seu Crapiúna não estava...
– Você está mentindo seu
diabo...
– Quero dizer... sim
senhor... Não estava não, senhor...
– Veja bem o que está
dizendo.
– Não estava no... no...
princípio; chegou... quase no fim... Mas, juro que não vi ele saltar o muro...
– Bom. Chegou no fim,
hem!?
– É menos verdade –
interrompeu Crapiúna, num ímpeto de audácia insolente. – Este homem diz isto
para se desenrascar.
– Não negue, seu
Crapiúna – retorquiu Belota. – O senhor estava. Eu, mesmo contra mim, falo a
verdade como homem. Se porém, eu disser que vi você saltar o muro, minto porque
deixei o senhor sozinho em minha casa, e fui ao quartel.
– E você, seu Crapiúna,
o que foi fazer ao quintal vizinho?...
– Já disse a vossa
senhoria que é mentira dessa língua danada.
– Também será mentira
que tirou debaixo de um caixão, uma bolsa de couro de onça?...
Crapiúna ficou lívido, e
atirou, desesperadamente, um gesto de ameaça a Teresinha.
– A bolsa? – exclamou
ele, maquinalmente, tomado de pasmo.
– Sim, senhor – afirmou
o sargento, com ironia. – A bolsa onde guarda o seu dinheiro, a sua botija
encantada.
Traído pela inesperada
revelação e irritado pelos contínuos gestos afirmativos de Teresinha, Crapiúna,
a custo, sofreava os estos da cólera que lhe queimava o coração.
– Eu sei lá dessa
história de bolsas... – respondeu, aparentando serenidade. – É verdade que
cheguei no fim do divertimento; tive uma turra com o Zoião, uma bobage...
Mas...
Carneviva levou o apito
à boca, e tirou dele três trilos agudos e violentos. Apareceram imediatamente,
quatro soldados.
– Bem. Vamos pôr isso em
pratos limpos. Ah! Eu bem suspeitava que havia falcatrua... Todos os dias uma
queixa. Furtinho para aqui, gatunagem para acolá...Cambada que é a vergonha da
farda!... Corja de ordinários...
Depois, pondo à cinta
uma garrucha, ordenou aos soldados:
– Vamos! Acompanhem-me
com estes dois homens: desarmem a esses coisas ruins.
À aproximação dos
camaradas, Crapiúna recuou, e levou imediatamente a mão ao sabre, mas, o
sargento lho arrebatou com um movimento rápido, com um movimento enérgico.
– Olha lá!... Não se
engrace comigo, seu Crapiúna... – observou ele. – Vamos e muito direitinho...
Comigo não se brinca, vocês sabem...
Partiram em escolta,
acompanhados por magotes de pessoas, no trajeto pela rua. Chegando ao quarto de
Teresinha, Carneviva ordenou que se afastassem, e entrou com os soldados
ficando à porta uma sentinela. Nessa ocasião, chegou o subdelegado, atraído
pelo ajuntamento e informado da ocorrência, passou a dar a busca.
A bolsa foi retirada
debaixo do caixão e aberta. Havia nela dinheiro, jóias e alguns fragmentos de
papel escrito, versos de canções populares e o rascunho de uma carta a Luzia.
O subdelegado inquiriu,
então, Crapiúna:
– De quem é esta bolsa?
– Não sei – respondeu o
soldado, impávido de furor. – Pergunte a essa mulher que é a dona da casa...
Os camaradas presentes
afirmaram que a bolsa era muito conhecida; pertencia a Crapiúna.
– Bem – concluiu a
autoridade. – Vou levar o fato ao conhecimento do delegado, a quem está
entregue o inquérito, para lavrar o auto. O senhor sargento terá a bondade de
mandar recolher os homens incomunicáveis, e comparecer com as testemunhas na
delegacia.
Luzia e a mãe ouviram a
narrativa, num enlevo de alegria, num enlevo de pasmo, com as almas nos olhos,
como se lhes revelassem casos fabulosos, casos sobre-humanos. Era possível que
Teresinha houvesse realizado tão assombrosa façanha?
– Vocês não imaginam –
continuou ela – como tinha povo na rua. Parecia procissão, quando levaram os
soldados para o xadrez. E a cara do Crapiúna?... Ficou verde, amarelo,
encarnado como uma pimenta; botava-me uns olhos ensangüentados que me
varavam... Eu, que vi o bicho bem seguro, ferrei também os olhos nele como quem
diz – arre diabo!... Quando passou por mim, resmungou: – “Deixa estar sua
aquela, que me pagará... Diz à tua parceira Luzia-Homem, que não hei de ficar
toda a vida preso...” Senti um frio no coração, quando o malvado disse isto.
– E agora – perguntou
Luzia – vão soltar já Alexandre?
– Sei lá... Disseram-me
que comparecesse amanhã na delegacia para a trapalhada de depoimentos e não sei
quê mais.
– Ah! Teresinha – gritou
Luzia, com um abraço veemente, radiante – Você é um anjo, um anjo!
– Que anjo, que nada!...
Sabe o que sou? Mulher e bem mulher, de cabelo na venta. Ninguém mais faz, que
não pague com língua de palmo. Chegou o meu dia... com dois proveitos num saco:
Crapiúna preso e Alexandre limpo de pena e culpa... Foi uma sorte! Viva o
glorioso Santo Antônio! Ah!... se eu tivesse foguetes! Xii... tô... tô!...Viva
Santo Antônio!... Vivô... Vivô!...
E, lestes, escarnicando
do celerado, saciada de vingança, fazendo piruetas que lhe agitavam os seios,
contorciam os quadris e enrolavam, em espirais, as saias em torno do corpo
esbelto, desnudando as pernas ágeis, toda ela palpitando, toda ela a se mexer
em requebros sensuais de dança, com sapateados frenéticos, e vastas chibanças
de triunfo, e rindo e cantando, numa alegria louca, a sua figurinha escanzelada
de retorta providencial se destacava, evidente, no fundo iluminado pelo rubro
disco da luz cheia, a surgir, lentamente, em magnífica ascensão.
XXI
Propagou-se,
rapidamente, a notícia da prisão de Crapiúna, como verdadeiro autor do roubo do
armazém da Comissão de socorros. Não havia dúvida. Um conjunto de provas
esmagadoras: a bolsa reconhecida por todos os camaradas; as declarações de
Belota que, insistindo em ignorar o fato, confessava causar-lhe admiração o
dispor ele de tanto dinheiro para perder ao jogo grandes somas e fazer
prodigalidades com raparigas e pagodes; o depoimento de Teresinha, confirmado,
de uma irrefutabilidade minuciosa; o rascunho da carta ameaçadora, entregue por
Luzia ao delegado, no dia da prisão de Alexandre, e os testemunhos de Chica
Seridó e Gabrina, encerraram o soldado numa culpa evidente, indiscutível.
Seridó confessou que
nutrira sempre instintiva repugnância ao soldado, por seus modos atrevidos com
as mulheres, muita falta de respeito, caçoadas inconvenientes; nunca, porém,
lhe passara pela cabeça que ele fosse capaz de tão feia ação, como essa de
levantar um impute que clamava aos céus e – o que lhe parecia ainda mais grave
– reduzir uma rapariga inocente e bestalhona, como Gabrina, para ajudá-lo na
obra nefanda de culpar um inocente.
– A pobrezinha fez isso
– dizia ela ao delegado, na sala de audiência da câmara municipal, apinhada de
curiosos – sem maldade; e (para que hei de estar com histórias mal contadas?)
porque andava inclinada para seu Alexandre, depois dos benefícios que dele
recebeu. Ponha o caso em si, meu senhor. Vossa senhoria sabe que mulher, quando
vira a cabeça, é capaz de tudo. Quem quer bem não toma conselhos; não enxerga
desgraças, nem se importa com perigos. Ela tinha no coração aquele amor
encoberto e não me disse nada. Esta bichinha que aqui vê, esta não-sei-que-diga
disfarçou tão bem que eu, macaca velha, nada maldei. Metia a mão no fogo por
ela, creia-me... Aquele malvado homem, percebendo que a pobre estava enciumada,
seduziu-a, com promessas de mimos, a tomar uma vingança do moço. Eu sabia que
seu Crapiúna gostava de Luzia-Homem, tanto assim que, uma noite, me pediu para
ir fazer uma reza, na casa dela para abrandar-lhe o coração. Fui com ele e mais
o seu Belota, muito contra a minha vontade; mas (para que hei de negar?) fui e
não pudemos fazer nada, porque estiveram acordadas até fora de horas. Saberá
vossa senhoria que sou mulher de propósito; mesmo contra mim, falo a verdade. Fui
fazer a reza, mas não há mal nisso. É com as minhas orações e mezinhas que
arranjo o bocado para a boca, sem ser pesada a ninguém, Deus louvado.
– Que oração forte era
essa? – perguntou-lhe o promotor.
– Se eu disser sem ser
rezando, mesmo de verdade e com fé, ela perde a virtude.
– E acredita nela?
– Ah! seu doutô, queria
ter de anjos para acompanharem minha alma, as pessoas beneficiadas por ela. Não
foi uma nem duas... Muita senhora dona de família e consideração...
Enquanto a Seridó
falava, Gabrina, de pé, ao lado dela, cravava os olhos sombrios na fímbria do
casaco de cassa, cujas rendas enrolava e destorcia maquinalmente, entre os
dedos hirtos. Os músculos do seu rosto, lindamente oval e duma cor lindamente
morena, emoldurados em cabelos negros e crespos, não traíam abalos violentos:
estavam imóveis, e apenas se percebia pelas narinas dilatadas e palpitantes, a
sua respiração entrecortada de suspiros abafados.
Contemplavam todos a
mocinha de formas flexíveis e delicadas, apenas livres das linhas incompletas
da infância e desdobrando-se em contornos graciosos; e, lastimando achar-se ela
complicada no crime, todos a envolviam numa atmosfera de simpatia que os
impulsos passionais despertam.
Por fim, perguntou-lhe o
promotor:
– É verdade o que diz esta
senhora?
– É, sim senhor –
respondeu com voz que mais parecia um sopro.
– Foi Crapiúna quem lhe
insinuou esta calúnia?
– Foi, sim senhor...
– Por que não resistiu?
Gabrina ficou calada.
– A senhora amava
Alexandre?
Como se o coração, muito
tímido, lhe despejasse no seio a repousada torrente de lágrimas, ela prorrompeu
em convulso pranto, escondendo o rosto no seio da Seridó, que a amparou, que a
enlaçou nos braços, com maternal carícia.
– Bem, bem – concluiu o
promotor. – Não a martirizarei mais. Sossegue...
E, voltando-se ao
delegado, disse-lhe, em voz baixa:
– Realizaram-se as
minhas previsões. Temos a eterna história, um drama de amor...
Nesse momento, entrou
Alexandre no recinto, fechado por uma balaustrada, e destinado aos jurados. Seu
olhar aceso de febre, luzindo na sombra das pálpebras roxeadas, fixou-se
piedoso na febril rapariga; e, no rosto macilento, assomou um ligeiro sorriso
amargurado.
– Aproxime-se – ordenou
o delegado.
Ele deu alguns passos
vacilantes para a frente, perturbado pelas mal contidas exclamações de dó, que
chegavam aos seus ouvidos sequiosos, naquele instante, do caricioso eco de
vozes amigas. Os que ali estavam eram todos curiosos, enviscados pelo
escândalo, ou indiferentes e desocupados, procurando diversão no desenlace do
inquérito policial, à exceção de Teresinha, que o contemplava silenciosa,
sentada a um canto.
Muitos comentavam os
estragos que a infecta enxovia produzira na saúde do moço.
– Senhor Alexandre –
disse-lhe o promotor, a voz sonora e grave – um conjunto de indícios, de
elementos de prova bem acentuados e persuasivos, determinou o vexame que
sofreu. Ia sendo vítima de um desses erros que, infelizmente, não são raros na
história dos tribunais e que, por lamentável lacuna, não encontram nas leis, meios
completos de reparação. Órgão da justiça, lamento, sinceramente, fosse
recolhido por infundadas suspeitas de tão grave imputação; teve, porém, a
ventura de sair ileso dessa provação suportada com heroísmo. O verdadeiro
criminoso está descoberto. Nada impede, agora, que a justiça proclame a sua
honra restaurada com a liberdade que, neste momento, lhe é concedida.
Perpassou pelo ambiente,
um sussurro de aprovação unânime, porque, desmascarado o ardil do soldado,
ninguém nutria dúvidas sobre a autoria do crime.
Não era possível que um
moço bem procedido e de abonados precedentes fosse capaz de tão vil ação. Por
outro lado, todos confessavam, então, justificadas suspeitas contra Crapiúna,
quando não fosse por qualquer motivo definido, nela má cara do homem, seus
costumes dissolutos, ou por mero palpite. Não fora, entretanto, o feliz acaso
de surpreender Teresinha o esconderijo do dinheiro, ou, como ela afirmava
sinceramente, a intervenção do glorioso Santo Antônio, o inocente seria
denunciado, processado e condenado. E toda aquela gente aprovaria, com igual
entusiasmo, a justiça inexorável.
O delegado, voltou-se
para o carcereiro e, indicando-lhe a Seridó e Gabrina, ordenou:
– Recolha aquelas
mulheres.
– O quê?!... – exclamou
a Seridó apavorada. – Pois eu sou presa por falar a verdade? Que culpa tenho,
seu delegado, do malefício dos outros? Eu, que não matei, não roubei, que nunca
fiz mal a ninguém... que não tenho rabo-de-palha!...
Gabrina olhava em torno
espantada, como se despertasse atordoada pelo nevoeiro de mau sonho.
Estancaram-se-lhe as lágrimas e sucederam-lhes violentos soluços.
Quando o carcereiro se
aproximou, e a intimou com a frieza fulminante do ofício, dizendo: “Vamos”,
acometeu-a o terror da prisão. E enquanto a Seridó implorava piedade,
justificando-se com protestos de inocência, lamentos e súplicas, ela, com
desenvoltura de criança que se refugia no seio paterno, agarrou-se a Alexandre.
– Perdoe-me, seu
Alexandre – suplicava, com gritos vibrantes. – Não deixe que me levem presa!
Que vergonha!...Não, não é possível!... Peça por mim; valha-me pelo amor de
Deus!... Ai!... ai!... que eu morro!... Quem me acode!... Minha gente, tenha
pena de mim, de uma pobre filha sem mãe?... Ah! seu Alexandre da minha alma,
pelo leite que mamou, peça por mim que lhe quero tanto bem...Valha-me, valha-me
por tudo quanto há de mais sagrado. Peço por alma de sua mãezinha, pelas cinco
chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo... Sim, por tudo, pela luz dos seus olhos,
pela vida de... de... Luzia!...
Esgotadas, nesse esforço
sobre-humano, as derradeiras energias, a pobre inteiriçou-se; seus braços
frouxos penderam dos ombros de Alexandre; a cabeça, escondida nos cabelos
desgrenhados, inclinou-se sobre o seio e ela caiu emborcada, como um corpo
desarticulado e morto, aos pés do moço, transido de espanto e piedade.
Acercaram-se da mísera
algumas mulheres e a Seridó, que pedia um caneco d’água, um capucho de algodão
queimado, e a esfregava, com força, sobre o peito.
Alexandre dirigiu-se ao
promotor:
– Se lhe mereço alguma
coisa, seu doutô, tenha compaixão daquela pobre. Ela não soube o que fez... É
quase uma criança...
– Tem razão – observou o
promotor, convindo docemente. – É possível evitar... Demais seria uma violência
inútil.
XXII
Para se arrancar à
comoção forte daquela cena que o amolecia, e apertava o seu tão chupado
organismo, Alexandre deixou o salão das audiências, seguindo-o, de perto,
Teresinha, muito zangada pelo ato de generosidade que ele praticara em favor de
Gabrina.
– Com aquela carinha de
enfinta, – murmurava ela – de alfenim, que com qualquer coisa se derrete, não
me engano. É muito mazinha de bofes. Com aquela parte de gostar de você, não se
lhe dava de ser causa do muito que penou na cadeia. O amor deu-lhe pra maldade.
Era bem-feito que ela fosse gemer e chorar no xadrez para saber se é bom
levantar falso testemunho aos outros. Não há nada melhor que a gente ser
fingida: faz quanta perversidade há e no fim de contas, basta se derreter em
choro e ter um vágado para ser perdoada. Eu, não me importa de dizerem
que tenho más entranhas. Quem me fizer paga, tão certo como dois e dois serem
quatro. E então a Chica Seridó? Como ficou piedosa e inocente, ela que é a alma
danada de tudo... Aquilo tem mais artes e ronhas que diabos nas profundas do inferno...
Fosse comigo, ficavam as duas ensinadas para toda a vida.
Alexandre não se
justificou. Continuaram a caminhar: ele silencioso, ela resmoneando a censura.
Quase ao pé do armazém da Comissão, ele perguntou, inesperadamente:
– E Luzia?
– Foi trabalhar –
respondeu Teresinha, amuada.
– Por que não veio com
você?
– Porque teve vergonha
de se expor diante de tanta gente. Disse-me que estava alcançado o que
desejava: a sua liberdade; nada mais tinha que fazer. Não pregou olhos a noite
inteira, esperando que amanhecesse o dia de hoje. A tia Zefinha não cessava de
agradecer a Deus. Se visse como a pobre alminha estava contente... Nem parecia
a enferma que conhecemos, engelhada, encolhida, cortada de dores...
– Coitadinha! E...
Luzia? Ainda está zangada comigo?
– Que zangada!... Aquilo
foi um repiquete de ciúmes. Quis, à fina força, fingir de coração duro e forte,
mas desenganou-se. Uma penca de corações não vale um grão de milho. Deu-lhe a
paixão na fraqueza, e aquela criatura, forte como um boi, entrou a fazer coisas
de criança: ficou logo meia lesa e capionga; deu-lhe para maginar, olhando para
o tempo e querendo sustentar capricho, mesmo depois de haver sabido, pela
Quinotinha, do aleive da Gabrina.
– E... depois?
– Depois?... Entrou a
repetir que nada tinha feito em seu favor, que a mim, somente a mim, se devia
tudo, quando foi ela que me deu o dinheiro para a Rosa Veado rezar o responso.
– Que pretende ela fazer
agora?
– Diz que espera poder
ir, em breve, para as praias, logo que a mãe possa viajar.
– Sempre essa idéia.
– Teimosa é ela. Isso é
verdade.
– Sabe, Teresinha? Ainda
estou meio encandeado e parece um sonho estar livre daquele inferno. Toda essa
gente a andar aqui pela rua, a me olhar espantada, causa-me tonturas. Como que
me falta o chão debaixo dos pés.
– Isso passará...
– Tenho, aqui no nariz,
o fedor da cadeia, a inhaca dos presos. Que horror! Cem anos que eu viva, nunca
esquecerei esses dias de martírio.
Alexandre falava
lentamente, falava fatigado, com profunda impressão de mágoa no rosto
macilento, que a barba crescida e inculta tornava ainda mais triste. Queixou-se
de dores ao lado direito, debaixo da costela mindinha, de falta de ar e de uma
tosse seca que o acometia quando respirava, mesmo a curto fôlego.
– Aquela cadeia – dizia
ele – matou-me. Nunca mais hei de ter saúde.
A Comissão de socorros o
recebeu com demonstração de compassivo afeto, lamentando os vexames sofridos
pela infame imputação. Foi-lhe pago o ordenado integral: e, como reparação,
teve acesso para o posto de administrador dos depósitos de víveres, percebendo,
além da ração, sessenta mil-réis em dinheiro, uma riqueza naqueles apertados
tempos.
Teresinha comentava o
fato, os males que vêm para bem, e, logo, achou muito justo esse procedimento
da Comissão; e, todavia, observava que o dinheiro lhe não pagaria as ruínas da
saúde, os incômodos e, mais que tudo, a vergonha de ser apontado como ladrão,
como um infame que havia roubado o de-comer dos pobres famintos, para saciar
vícios abjetos, tudo por causa de suspeitas que ela, mulher ignorante, mal
sabendo ler por cima e assinar o nome, repelira desde o primeiro momento,
porque o coração lhe dizia que ele não tinha cara de se sujar com o alheio.
Admirava como os homens da justiça, que sabiam ler em grandes livros de letras
embaraçadas, homens de óculos, que sabem tudo, não tinham logo percebido que o
criminoso não era outro senão Crapiúna. Quantos inocentes não estariam pagando
culpas alheias por causa da cegueira da justiça! Quantos não ficam livres de
pena e culpa, apesar de autores de crimes escandalosos, perpetrados perante
Deus e o mundo, à luz do dia, como aquele nefasto Bentinho que matara Berto,
como quem mata um cão, e apenas ficou recolhido alguns dias à sala livre, por
ser capitão e filho do maioral da terra!
E suspirou entristecida,
sucumbida à dolorosa recordação do bárbaro amante, arrastado pelo cavalo
desembestado, deixando nos tocos, pedras e cardos, farrapos sangrentos do corpo
esfacelado.
Aglomeravam-se
retirantes à porta do armazém para verem Alexandre, cujo prestígio de mártir
aumentava com as novas atribuições de administrador. Uns, sinceramente,
lamentavam o fato; outros o adulavam com fingidas lamúrias, para serem
preferidos na distribuição de rações bem medidas, com lavagem, como eles diziam,
porque outros empregados de coração duro mediam farinha e feijão sem caculo,
rapando a boca do litro, poupando, como usurários, os dinheiros do governo e o
de-comer que a rainha mandara dar de esmola aos pobres.
Alexandre procurou fugir
à curiosidade da multidão, recolhendo-se ao fundo do armazém, onde ficou,
apesar dos insistentes rogos de Teresinha para irem juntos à casa de Luzia, que
estaria ansiosa por vê-lo; e, como ele recusasse obstinadamente, ela se
despediu, enfadada, dizendo-lhe:
– Vou embora. Já que
teima em não me acompanhar, irei sozinha. Direi a Luzia que você está doente e
aparecerá amanhã. Não falte, não negue essa consolação àquela pobre criatura
que, abaixo de Deus, só pensa em você, seu ingrato. Capricho não se fez só para
mulheres.
– Pobre de mim.
– Pobre, não. Bata na
boca. Diga rico, bem rico, porque uma prenda igual a ela só encontram os
afortunados. Você fala de farto. Os homens todos são assim, cheios de luxos e
desdéns quando são queridos. A demora é saberem que agente gosta deles: começam
logo a botar cafangas.
– Diga o que quiser,
Teresinha. Está no seu direito. Não me zango com isso, nem exijo nada; basta o
muito que tem feito por mim. Mas, não posso acreditar que Luzia me queira, como
você diz. Que faria no lugar dela?
– Cada um sabe de si e
Deus de todos. Eu faria o que sempre fiz, e por isso apanhei muito na minha
ruim cabeça. Hoje, torço as orelhas, que não botam sangue. Ah! quem ama não tem
tico de vergonha. É verdade que você, agora, está melhorado de sorte, quase rico...
– Prefiro o trabalho na
ladeira da Meruoca, às vantagens que tenho aqui.
– Deixe-se de luxos.
Veja se é ou não como eu digo: este quer se meter no cafundó da serra, a outra
só pensa em sumir-se para o lado das praias.
– Histórias!... O que
vocês querem sei eu... Deixa-me ir que é quase de noite... Até amanhã... Veja
bem, seu Alexandre, o que me prometeu!... Até amanhã... Agora vá fazer feio
comigo...
XXIII
Nunca estivera Luzia
mais atenta, mais solícita na ocupação de diretora das meninas costureiras.
Fingindo indiferença aos comentários e informações, resmungados de grupo em
grupo, sobre o extraordinário caso do dia, às perguntas indiscretas, alheia aos
gracejos inofensivos, levemente maliciosos, das companheiras de trabalho,
respondia com meias palavras, com evasivas curtas de quem se não quer
importunar de olhares impertinentes, de mexericos, de insinuações. Mas, as
meninas mais taludas cochichavam a respeito da mestra; trocavam gracejos
contemplando-a, de soslaio, muito espantadas de que ela não acompanhasse o
contentamento dos amigos de Alexandre, que eram, então, muitos, quando devera
ser a mais interessada no desfecho do aleive urdido pelo celerado Crapiúna.
Notava-se-lhe, no
entanto, certo cuidado excepcional no arrumo dos cabelos em grossas tranças
luminosas, dum brilho escuro de cobras negras, a escolha do vestido de chita
cabocla, guarnecido de rendas, e as posturas faceiras, a disfarçarem o alvoroço
do coração. Seus olhos, onde brilhavam lampejos fugaces, se fitavam, a curtos
intervalos, na foz da larga estrada da cidade, e seus ouvidos, com avidez
aguçada, colhiam frases soltas, palavras esparsas dos trabalhadores que
chegavam, e traziam notícias últimas dos últimos acontecimentos.
– Estive na casa da
Câmara – dizia um. – Tem gente que faz medo. A sala estava atopetada, e os
soldados não deixavam mais entrar o povo que se espalhava por fora, pela escada
do rendengue abaixo, até à rua. Ouvi dizer que a Chica Seridó contou tudo...
– Eu vi o Crapiúna –
afirmava outro. – Estava como uma onça acuada. Os olhos pareciam duas brasas.
– Não viste a Gabrina? –
inquiriu uma mulher. – Pois eu tive pena dela. Fazia apertos no coração. Tão
moça, tão bonitinha e faceira e implicada na história do roubo. Eu, Deus me
livre de tal, se me visse em semelhante vergonheira, era capaz de morrer.
– Foi sempre uma
desmiolada – acentuava uma velha. – Conheço-a desde menina. Era um diabinho em
figura de gente. Também a mãe, Deus perdoe os seus pecados, não se importava
com ela; fazia-lhe todas as vontades... Sempre digo que essa criação de agora
não presta. Filhos muito senhores de si, por qualquer descuido, se desgarram.
Os meus não punham pé em ramo verde. Muito amor, mas muito respeito e cabresto
curto.
– Nestes tempos de
miséria – ponderou um carpinteiro idoso – ninguém tem folga para cuidar da
criação dos filhos. Vão se criando ao deus-dará, como filhos de pobre.
– Os mais bem-criados
não estão livres de uma desgraça. Não valem cuidados, nem vigilâncias; a
miséria entra pelas gretas das fechaduras, empesta o ar e tira o juízo.
– Quando saí – informou
um recém-chegado – a Chica ainda estava falando. Ela, que tem partes com o
demônio, estava se vendo para explicar a embrulhada das sacas de feijão e de
farinha recebidas de Crapiúna, os cortes de vestido e os brincos de ouro.
Imaginem vocês que aquela inocente, passada pelos corrimboques, não maldou. Se
eu fosse delegado, ela ia, mas era pra cadeia, para não se fazer de besta,
pensando que os outros têm um tê na testa.
– Ladina como ela só...
Quem a ouvir, não a leva presa.
Luzia não perdia uma
sílaba do que se dizia. Colhia, aqui e ali, fragmentos de narrativas,
observações, notícias incompletas, que devorava na ânsia de saber tudo,
principalmente o que concernia a Gabrina e a Alexandre, de quem não haviam
ainda falado. E Teresinha? Onde se metera? Por onde andava que não vinha para
dar-lhe, como prometera, informações seguras, anunciar-lhe a feliz nova da
libertação do preso, ou trazê-lo?
Correram horas de
ansiedade, da pungente tortura de esperar, suportada de rosto sereno, onde não
havia uma contração de impaciência.
As sombras informes da
penitenciária, das grandes paredes de andaimes complicados, se alastravam pela
encosta do morro; o anilado perfil das serranias se esfumava em turva neblina
de mormaço, e a viração, caída como um hálito de febre, revolvia o pó em torno
das moitas mortas, rugia nas palhas dos alpendres e barracas, anunciando o
pendor do sol para o ocaso flamejante.
Do alto do morro ela
divisava a faixa de oiticicas seculares, marcando o contorno do leito do rio
estanque, e a cidade, como um enorme crustáceo farto à sesta, as torres da
matriz alvejando em plena luz, o vermelho, o vasto telhado da casa da Câmara,
no qual, tanta vez, demorara o olhar saudoso e compadecido do homem querido,
sofrendo, ali, aviltante prisão, e donde ela, enternecida, esperava, agora, ver
alar-se o anjo da esperança triunfante. Mas, não partia de lá, nem o eco de uma
voz de alvíssaras, nem um sinal auspicioso animava a paisagem, tocada de tons
quentes de brasa, numa imobilidade de coisa morta, num silêncio triste de sítio
desolado, quando ela desejava que a natureza, as coisas vivas, as coisas mortas
participassem da sua ansiedade, do seu desejo quase raro, quase ignorado.
As meninas cosiam,
diligentes, agrupadas em derredor da mestra, numa garrulice de passarada
inquieta. Ranchos de operárias davam a última demão ao trabalho do dia;
retirantes fatigados da derradeira caminhada se aliviavam das cargas de
material, e os feitores contavam e notavam em cadernos apolegados, o pessoal
que vinha chegando lentamente.
Apareceu por último,
Raulino, rúbida figura de bretão, muito alto, muito magro, de músculos túmidos,
os revoltos cabelos ruivos empoeirados, erguidos em trunfa sobre a fronte
tostada.
– Então? – inquiriu
Luzia, erguendo-se a encontrá-lo.
– Está solto. Não o vi,
porque havia gente como formiga defronte do armazém. Teresinha saiu com ele.
Estava desfigurado, dizem, como quem se levanta da cama de moléstia maligna.
Credo! Parecia um defunto em pé.
– Não falou com ele?
– Fiz o possível; mas
tinha pressa de chegar aqui antes do ponto.
– Está mesmo livre. Não
é, seu Raulino?
– Tão livre como eu, que
lhe estou falando. Também não foi sem tempo, porque se o pobre ficasse mais
alguns dias na cadeia, talvez fosse desta para melhor. Saía dali para a cova.
– E agora?...
– Agora... é cuidar da
saúde, e trabalhar. Pobre não tem direito de ficar doente. Barco parado não
ganha frete...
– Acha que ficará bom?
– Alexandre é rijo e
moço. Com alguns dias de ar livre, fica capaz de outra, do que Deus o livre.
Aquilo é madeira de lei; o cupim da moléstia há de custar a roê-la.
– Ainda bem.
Luzia voltou-se para as
meninas, e ordenou-lhes que dobrassem as costuras, embora não soasse ainda a
hora de terminar a tarefa. Pensou, então, em abandonar o trabalho, voar a casa,
onde, talvez, a estivesse Alexandre esperando, ansioso. Mas, primeiro a
obrigação, o cumprimento do dever remunerado pelo pão de cada dia. E ficou,
aparentemente, calma, resignada à lentidão do tempo, porque o sol, que o
governava, como que havia parado, desceu escandescido, na calma imensidade de
ouro alastrado.
Dona Inacinha errava,
rabugenta, entre as turmas de costureiras, resmoneando censuras graves, cheias
de desgosto.
– Tudo muito malfeito,
obra albardeira, mal-acabada e feita à pressa: não paga o pirão que custa.
– Vocês mesmas –
continuava, com asperezas fanhosas de voz, traindo a irritação incoerente de
celibatária – não se emendam. O que lhes digo sobre o serviço entra por uma
orelha, e sai pela outra. Estas costuras encardidas bem mostram que foram
feitas por porcalhonas. Vejam as da Luzia. Dá gosto lidar com uma pessoa assim
cuidadosa e cumpridora dos seus deveres. Os pospontos parecem feitos por
máquina. Vocês me põem doida. Estou vendo a hora de perder a paciência e o
juízo. Se vivem grazinando na conversa, em vez de olharem para o que estão
fazendo.
E mais rubro se acendia,
riscado de veiazinhas tensas, o grande nariz da beata, montado de grandes
óculos cintilantes.
Quando chegou a turma de
Luzia, estranhou que as peças costuradas já estivessem todas arrumadas em
pilhas.
– Como? Tão cedo, e já
acabada a tarefa?
– É que eu – observou
Luzia, enleada – desejava sair hoje mais cedo...
– Por que não me disse
há mais tempo? Pode ir. Você merece contemplações. Dá conta do serviço, como
uma moça de vergonha.
Acrescentou depois,
sorrindo, com ironia, e cravando nela os pequeninos olhos maliciosos:
– Hoje é dia grande para
você, sua sonsa. Já me disseram: sei tudo. Vá, ande, e seja bem-sucedida. Como
é para bom fim, não me importa de dar-lhe um suetozinho...
Luzia corou; agradeceu o
favor, e partiu veloz, açoitada pela ventania morna e violenta que lhe relevava
as formas, colando-lhe, como uma túnica de estátua, o vestido ao corpo, mal
disfarçando os graciosos contornos, modelados por inspirado escopro.
O coração pulsou-lhe
inquieto, ao avistar o teto da casinha, vergando ao peso das telhas enegrecidas
pelas intempéries, deslocadas pelos tufões. Naquele abrigo, onde gemia a mãe
doente, e que ela amava como lugar do sofrimento dos fortes resignados e dos
crentes; naquele sítio, onde Alexandre lhe propusera viverem eternamente
juntos, ligados pelo mesmo afeto espontâneo e sincero, e lhe dera os cravos
vermelhos que lhe haviam envolvido o coração com raízes vigorosas, e o
inebriaram com o seu perfume suavíssimo; sob aquele teto velho, a vacilar sobre
as forquilhas de aroeira, passara dias de amargura, noites de vigília
torturantes, e os momentos mais venturosos de sua existência humilde, ignorada;
e ali, àquela hora melancólica, contrastando com as pompas deslumbrantes do
crepúsculo, encontraria a satisfação dos seus supremos desejos.
Exausta da caminhada,
estacou para tomar fôlego e consertar as vestes, como quem se aparelha para um
lance de efeito. Prosseguiu, lívida e trêmula, com precauções de menina
criminosa na iminência de castigo merecido.
A latada do alpendre
estava deserta. Sobre a trempe fumegava uma grande panela de barro. Os
utensílios domésticos estavam arrumados no jirau. O silêncio, um silêncio
triste de abandono, era interrompido pelo queixume triste dos ganchos de ferro,
donde pendia a rede, em que a mãe se balouçava, defronte da porta do quarto
escancarada.
– Que é isto? –
perguntou-lhe a velha. – Supus que viesses com Alexandre...
– Não – respondeu ela. –
Vim do morro.
– Não foste à cadeia?
– Fui trabalhar.
– Que modos, filha?
Esperava ver-te alegre e ditosa...
– Quem sou eu para
merecer tanto?
– Tens alguma coisa?
Estás cansada, não é?... Sempre digo que te matas sem proveito com os teus
excessos de labutação.
– Teresinha não
apareceu?
– Não.
– Sabe que Alexandre já
está livre?
– Deus seja louvado!
– Agora vamos cuidar de
nós – concluiu Luzia, atirando o manto branco sobre a corda atravessada ao
canto do quarto. E, voltando ao alpendre, tratou do jantar da doente, que a
seguia com os olhos carinhosos, olhos de mãe.
– Bem mereço este
castigo. Sou eu a culpada. Abandonei-o por soberba, capricho... Teve razão. Não
devia perguntar por mim – murmurou, enchendo de caldo a tigela. – Eu, no lugar
dele, não viria atrás de uma ingrata feroz... Ah! Os homens nada desculpam; não
perdoam... São vingativos porque não são capazes de querer bem como nós, que,
por eles, esquecemos tudo...
– Que tens, filha? –
repetiu a velha, recebendo o caldo fumegante. – Choraste?
– Não – respondeu ela, a
voz salteada, comovida. – É a fumaça que me faz arder os olhos...
E sentou-se à soleira da
porta, desmanchando, lentamente, as bastas tranças, do lustre fulvo da asa da
caraúna, as tranças que vendera por causa dele, dessa criatura ingrata, que os
seus olhos, flébeis de decepção e de saudade, procuram, em vão, topar, de
súbito, surgindo onde o caminho torcia, encoberto de moitas mortas de mofumbos
e juremas, a cujos galhos, desordenadamente hirtos, contorcidos, a ventania
vulturna dava movimento, gestos de aflição, nuns silvos de estertor.
XXIV
Separando-se de
Alexandre, Teresinha começou de sofrer a extenuante reação do esforço empregado
para salvá-lo. Essa generosa empresa, que a seqüestrara à influência deletéria
dos hábitos de viciosa passiva, que lhe despertara afetos adormecidos no
coração, encrostado ao atrito do infortúnio e lhe deparava a inefável
satisfação de ser útil, fora, muitos dias, o pólo da gravitação do seu
espírito. Nesse período de agitação do cérebro ocioso e vazio, ela só pensava
na iniqüidade do constrangimento de um inocente, no martírio da enxovia imunda,
na arrogância petulante de Crapiúna e no cruel insulto, que a chicoteara como
um relho. Alcançado o anelo de justiça e vindita, parecia faltar-lhe a razão de
viver. As pétalas de sua alma, sob um fino, um suave orvalho do bem, se
contraíam tristonhas, como folhas que, saciadas de luz e oxigênio, se encolhem
para adormecerem ao avizinhar da treva, e se expandem viçosas ao raiar da
seguinte aurora. Ela, porém, se sentia sepultada em noite sem esperança de
alvorecer, sem o consolo delicioso do sonho a dourar a ignomínia da realidade,
onde imergira, como num tremedal de lama gulosa.
Restava, entretanto, o
remate da obra meritória, a felicidade de Alexandre e Luzia; vê-los casados,
muito amigos um do outro; e fruir o saboroso quinhão de venturado lar
abençoado. Mas, os dois pareciam separados pela teia de aranha de melindres
fúteis ou amarrados ao poste de caprichos injustificáveis. Seria mais nobre,
mais humano, se estreitarem em decisivo amplexo, como faria ela, sem ponderar
conveniências, escrúpulos, circunstâncias, num arroubo de paixão vitoriosa.
As reservas de Luzia
irritavam-na como estulta resistência. E murmurava, caminhando a esmo, injúrias
contra ela, recriminações a Alexandre, um mazanza, que ficava no armazém
embiocado de fadiga, quando a liberdade e o amor deveriam restituir-lhe as
forças, dar-lhe asas para voar, como um passarinho evadido para junto da
criatura querida.
– Arre lá! – exclamava
indignada. – Que se arranjem, que se separem, cada um para o seu lado. Que me
importa!... Bem-querer não é obrigado, nem eu tenho nada com isso. Eu me
intrometi demais em negócios alheios... Chega a meter-me raiva tamanha cerimônia
entre pobres diabos, que não têm onde caírem mortos, quanto mais vivos...
Considerava depois, que
não mudaria o seu destino se eles fossem felizes. Ela seria esquecida, porque o
dia do benefício é véspera da ingratidão. Na embriaguez de gozos divinos, não
se lembrariam dela que havia sofrido por eles; não teriam uma palavra de dó da
pobre Teresinha, mulher à-toa, desprezada como vil trapo humano, atirado ao
monturo dos resíduos sociais, vagabunda sem rumo, sem triste vintém para
comprar um bocado, carecendo de tudo e não sabendo onde buscar cinco patacas do
aluguel do quarto, abandonado, havia mais de mês.
À recordação dessa dívida, surgia a
horrível idéia de ser forçada a volver ao poste da infâmia, onde passara noites
acocorada à soleira da porta, fumando cigarros, mutuando gracejos torpes com as
vizinhas; ou, solitária, bocejando, a lutar com o sono, aguardando o inesperado
amante, que a provesse de alimento para o dia seguinte deixando-lhe o imundo
bafio hírcico de homem luxurioso, impregnado na sua pele. Vinha-lhe, então,
invencível nojo à passividade abjeta de coisa que se vende, tábua de lavar
roupa, como dissera Crapiúna; assaltava-a o terror de volver àquele lamaçal
infecto, como se o contágio da pureza, o exemplo da honestidade impoluta e forte,
em combate com a miséria, lhe houvessem infundido no coração, fechado aos
afetos sãos e benfazejos, um nobre impulso de amor-próprio. Faltava-lhe, porém,
coragem para resistir ao pendor criminoso, volver a trabalhar como as outras
desgraçadas, nas obras da Comissão, carregar água, tijolos, areia. Que poderia
fazer para ganhar, além da ração, algum dinheiro, uma criatura franzina,
desacostumada a esforços musculares, e, por cúmulo de males, aberta dos
peitos?...
– Como há de ser, Deus
do céu? – exclamava, aflita. – Como hei de viver agora, sozinha, sem parentes e
aderentes nessa desgraceira!...
E seguia, lentamente, na
direção da casa de Luzia, contornando os quintais e as casas extremas da
cidade, para evitar o trajeto nas ruas cheias de gente, mendigos, enfermos e a
praga de meninos esfomeados.
Na várzea, varada de
trilhos claros que riscavam o chão negro, ela encontrou, àquela triste hora da
tarde, magotes de retirantes, cobertos de pó, marchando em filas tortuosas, das
quais, como de um rastilho de suplício marcado pelas vítimas, se destacavam
indivíduos ou famílias, que paravam emaciados, rendidos de cansaço e se
sentavam para repousarem, recobrarem alento e comporem os andrajos, antes de
penetrarem na cidade.
Esse espetáculo de todos
os dias, na sua monotonia sinistra, não a impressionava mais, porque se
habituara à vizinhança da miséria nas formas mais lúgubres e vis. Vira
crianças, a sugarem os seios murchos das mães mortas; cadáveres desses
entezinhos abandonados sobre a
estrada, devorados por urubus e cães vorazes: criaturas, ainda vivas e
exangues, torturadas pelas bicadas de carcarás a lhes arrancarem, aos pedaços,
as carnes ulceradas e podres. Vira mães desnaturadas ocultarem em crateras de
formigueiros, o fruto de amores criminosos, ou traficarem com filhas impúberes;
pais desalmados, incestuosos e delinqüentes dos mais torpes crimes, como se o
concurso de todas as dores e de todas as baixezas, condensando-se em enorme e
fantástico suplício, os houvera transformado em monstros hediondos, rebalsando-se
em lances trágicos de ferocidade inconsciente. Diante dela haviam tombado,
fulminados pela fome, indivíduos de aparência sadia e robusta, estrebuchando no
chão como epilépticos a tragarem terra aderente aos dedos sangrentos e
blasfemarem contra o Deus impassível que os desamparava, os renegava filhos
pecadores, condenados, em vida, às torturas daquele inominável inferno da
miséria.
Milhares de criaturas
haviam sido provadas nesses transes inenarráveis; no entanto, ela havia apenas
sofrido o ferrete da ignomínia. Era, pois, incomparavelmente, mais feliz que
aqueles pobres alquebrados, que passavam lentamente, restos de uma raça de
trabalhadores heróicos e fortes, desbaratada sob o látego do castigo do céu. Se
devia cair mais, descer mais fundo no sorvedouro da infâmia, padecer como
aqueles mártires, desejaria ser levada por uma moléstia para a vida onde
ninguém sofre.
À sua imaginação desvairada volviam, com
esses pensamentos tristes, as figuras de Alexandre e Luzia: ela caminhando para
a praia, confundida no êxodo, conduzindo a mãe estropiada; ele, feliz, bem
colocado no emprego e apoiado na confiança dos comissários. E não se conformava
com o romance passional sem desenlace, empatado pelo egoísmo de ambos.
Desviando-se,
insensivelmente, Teresinha foi ter ao sopé da encosta íngreme cerrada pelos
rochedos, chamados Fortaleza, nos quais terminava o renque de casas da Leonor,
onde morava Rosa Veado. Aí o caminho, que era uma breve ladeira cavada entre
pedrouços, estava obstruído por um grupo de três indivíduos, uma família que
subia a passo tardo, tangendo um velho burro, pelado e esquelético, carregando
duas malas e, no meio da carga, os utensílios domésticos e o oratório de cedro
envernizado, cheio de santos. Um velho, de longas barbas brancas, puxava o
animal pelo cabresto; ao lado, ia a mulher, também idosa, de formas cheias;
atrás, marchava uma rapariga loura, de corpo franzino e flexível, acusando o
despontar da adolescência. O burro, de grandes orelhas bambas, vacilava a cada
passo, e era animado pelos seus condutores com palmadas carinhosas nas ancas,
estalidos de lábios soando como largos beijos, e vozes de estímulo. Mas o
mísero bufava, arquejava, e mal se podia equilibrar sobre as patas corridas de
suor, trêmulas, hesitantes.
– Que maçada! –
resmungava Teresinha, obrigada a seguir o moroso grupo, parar quando ele
parava, a marchar com ele, bem chegada à mocinha loura. – Esta só a mim
acontece...
Entretanto, o animal,
vergado de fadiga, tirava-lhe funda piedade. O oratório, encimado pela pequena
cruz singela, a balançar surgindo dentre o amarradio de cordas de crina,
evocava meiga saudade, fantasmas de anjos esvoaçando através de sua memória
obscurecida, recordações vagas, místicas comoções, talvez provocados pela parte
dos santos no infortúnio dos adoradores, aquela família de crentes, que não os
abandonava, como tutelares do lar vazio.
– Vamos, vamos! – dizia
a mocinha ao animal. – Caminha mais um bocadinho; estamos quase em riba.
Essa voz tinha
sonoridade consoante às recordações de Teresinha; era a de uma pessoa querida,
morta, ou, havia muito, ausente, depois de feliz encontro na sua carreira
aventurosa pelo mundo. Quem seria? Onde ouvira falar aquela criatura, que lhe
alvoroçava o coração? E à revolta contra o obstáculo, sobreveio intensa
curiosidade de ver a mocinha, de saber quem era.
O burro, com supremo
esforço, deu mais alguns passos e chegou ao cimo da pequena ladeira, junto dos
grandes molhes de granito retangulares e erguidos a prumo, como ameias de uma
fortaleza. Aí, como se houvesse esgotado o alento, vacilou, respirou com força;
soltou um surdo gemido doloroso e caiu aniquilado, contemplando com os grandes
olhos súplices, o velho que puxava o cabresto para lhe suspender a cabeça, ao
passo que a moça tentava erguê-lo pela cauda.
– Aliviemo-lo da carga –
ordenou o velho. – Está afrontado, pobre Macaco... Também há três dias que nem
retraços tem comido.
O caminho estava
desobstruído e franco; mas Teresinha apiedada do pobre animal, estacara trêmula
e lívida, cosida aos rochedos, numa postura de horror, pregando o olhar
esgazeado no grupo sugestivo, a poucos passos de distância.
– Macaco! Será possível!
– gaguejou ela, espavorida.
Vendo-a ali parada, a
mocinha se dirigiu a ela:
– Minha senhora, faça a
esmola de nos dar uma mãozinha para tirarmos a carga daquele pobre.
– Maria da Graça! –
bradou Teresinha.
– Sá dona conhece-me?
Minha Nossa Senhora!... É... é...
Maria recuou, transida
de susto, malconfiando nos seus olhos.
– Que é?... –
perguntaram, a um tempo, os dois velhos, muito empenhados em tirar o oratório
de cima do burro, imóvel, estirado no chão.
– É... é a Teresa –
respondeu a mocinha, com um grande gesto de espanto.
– Teresa! minha
filhinha!... – exclamou a velha, num grito de surpresa alegre, no qual
retumbava a ternura toda do coração de mãe. – Tu!... tu aqui?
E, atirando-se à filha,
enlaçou-a nos braços, beijando-a com apaixonado frenesi na face, na fronte, nos
cabelos, como quem sacia longa e cruel sede de amor.
Hirta e gelada,
desfigurado o rosto por violentas contrações de estupor, e lívida como um
morto, Teresinha não pôde fazer um gesto; mas, a carícia maternal lhe agitava
todas as febras do coração, e todo o seu corpo tremia convulsionado. Só os
olhos espantados, viviam, cintilando com uma lucidez ingênita.
– Teresa, filha da minha
alma, – continuou a mãe – Deus te abençoe! Minha Virgem Santíssima, é ela
mesma!... Seu Marcos, veja, é a nossa filha!...
O velho erguera-se. As
grandes barbas, alvejando à luz do sol poente, davam venerando relevo ao esquálido
rosto, macerado, tostado pelo mormaço do sertão. Os pequenos olhos azuis, de um
azul de céu empoeirado de neblinas, brilhavam no fundo das órbitas sombrias,
com um bruxuleio de lâmpada de santuário. Na postura, nos andrajos e na voz
soturna e firme, corporizava a nobreza da miséria resignada, da miséria
superior.
– Teresa de Jesus! –
murmurou ele, com um suspiro, que lhe assomou aos lábios, como um silvo de
tormenta. – Já pedi a Deus que perdoasse os seus pecados. Estes santos, que nos
acompanham, sabem que rezei por ela, como um pai reza por uma filha ingrata,
perdida e morta.
Ao choque destas
palavras de condenação implacável, Teresinha cambaleou, e caiu prostrada de
dor, nos braços da mãe angustiada.
Maria da Graça
contemplava, muito aflita, o pai e a mãe, e, no transe incompreensível,
considerava a intensidade da cena, dolorosa, inconsiderável.
– É nossa filha, seu
Marcos – continuou a velha, acariciando a filha e conchegando-a ao seio. –
Tenha dó dela, meu marido do coração! Veja como está acabada a nossa
filhinha!...
– Você sabe, mulher –
gemeu Marcos – que já padeci por ela todas as dores deste mundo...
– Também ela tem
sofrido... É uma infeliz...
– Infeliz! assim foi de
sua vontade...
– Seu Marcos...
– Sabe que mais, mulher?
Vamos cuidar deste pobre animal, nosso amigo velho, que não nos abandonou e
está aqui morrendo por nossa causa... Ah! os bichos têm, às vezes, mais coração
que as criaturas.
– Meu pai! – soluçou
Teresinha, como se as duras palavras lhe estrangulassem as entranhas.
Ele, porém, parecia
intangível. A súplica da filha, queixumes de alma penitenciada a estorcer-se no
cilício da vergonha não ecoou no coração, donde ele arrancara, num paroxismo de
opróbrio, a poluída imagem da pecadora, que não podia volver a profanar o tabernáculo
do culto incondicional à honra e à integridade da família. No peito lhe ficara
um buraco lúgubre, o ninho vazio transformado em cova, encerrando, para sempre,
um sublime afeto estiolado.
A um gesto imperativo do
pai, Maria da Graça, despertada da estupefação que lhe gelava o sangue nas
veias, o ajudou a desatar a trouxa de redes, as aselhas dos dois baús, cobertos
de couro cru e tauxiados de pregos dourados e, por último, as cilhas da
cangalha que, retirada do suarento dorso do burro, lhe expôs as mataduras da
espinha, as chagas rubras dos omoplatas, sobre as quais vieram adejar,
zumbindo, grandes varejeiras, de asas nacaradas e revestidas de cintilantes
couraças, oxidadas de verde metálico. No espaço voavam, em largas espirais,
urubus famintos, dos quais alguns mais ousados se despenhavam, de asas quase
fechadas, até perto dos rochedos, onde pousavam, aguardando o abundante repasto
da carniça ainda viva.
Macaco, aliviado da
carga, tentava erguer-se sobre as pernas dianteiras, rolando um olhar de terror
para os lúgubres pássaros, que pontuavam de negro as arestas das rochas, mas,
faltavam-lhe as forças e recaía ofegante.
– Se ao menos – dizia
Marcos – houvesse por aqui uma pouca d'água e alguns retraços...
Clara, indiferente à
sorte do animal, acariciava e consolava a filha desditosa:
– Tem paciência, meu
coração. Teu pai tem ímpetos de crueldade, mas passam, porque a alma é de ouro.
Coitado! Sofreu tanto por ti...
– Tem razão... tem
razão, mamãe – gemia Teresinha. – Sou uma ingrata, uma doida, mas... assim
mesmo... não sou tão ruim que mereça menos compaixão que este animal...
E entrou a chorar em
convulsão, murmurando frases inteligíveis, que o pranto e os soluços
entrecortavam.
– Seu Marcos, meu marido
da minha alma – suplicava a mãe. – Tenha pena desta pobre.
– Ah! papai – balbuciou,
trêmula, Maria da Graça – tenha compaixão dela... Coitadinha de Teresa...
– Era melhor – resmoneou
o velho, abalado pelas lágrimas da mulher e da filha caçula, que era o seu
ídolo. – Melhor seria que essa mulher, em vez de estar aí a chorar, ela que
conhece a cidade, nos ajudasse, mostrasse que ainda tem préstimo...
Teresinha ergueu-se de
repente; enxugou o rosto na saia e partiu. Sabia que Rosa Veado morava perto,
no renque de casas da Leonor, e foi procurá-la, seguida pelos olhares da mãe e
irmã, tomadas de surpresa, ao passo que o velho teimava em reanimar o burro com
palavras afetuosas.
Pouco depois ela voltou,
trazendo uma grande cuia cheia d’água... Pressentindo o precioso líquido,
Macaco nitriu surdamente, como se sorrisse de satisfação; ergueu a cabeça e,
agitando os grandes lábios negros e ávidos, a sorveu, a longos, a ruidosos
tragos.
– Deus lhe pague – disse
o velho, restituindo a Teresinha, cuia vazia. – Disseram-me que era possível
encontrar aqui uma pousada, um teto caridoso, onde pudéssemos descansar da
viagem através desse sertão ingrato.
– Deram-me – balbuciou
Teresinha, hesitante de medo – chave daquela casa, a casa da fortaleza, onde
ninguém mora há muitos anos, porque é mal-assombrada...
– Virgem Maria!...
Credo! – exclamaram Maria da Graça e Clara, numas projeções espavoridas de
olhos sobre a velha casa desaprumada, cujas paredes, esburacadas e marcadas de
grandes chagas de reboco, pareciam apoiadas nos rochedos. Ervas mortas pendiam
das goteiras desdentadas, donde esguichavam piando, em desordenado vôo, grandes
morcegos, estonteados pela tênue luz crepuscular.
Pouco depois, o grupo
estava cercado de moradores da vizinhança, cada qual mais curioso e empenhado
em socorrê-lo. Vieram em seguida, e quase sobre os passos de Teresinha, Rosa
Veado e o Chico, um guapo tipo de homem; a Marciana que mantinha, nas
proximidades, uma bodega bem sortida e possuía já algumas libras de ouro em
obra, comprado aos retirantes a troco de gêneros alimentícios; e,
esgueirando-se por entre os circunstantes, o bando infalível, barulhento de
meninos, os mais pequenos nus, os outros enrolados em trapos, em molambos.
– Anda, Francisco –
ordenou Rosa ao filho – dá um adjutório a estas criaturas... Abre a
casa; leva as malas...
– Amanhã – exclamaram os
meninos, tripudiando em volta do burro – urubus têm festas! Este mesmo está
aqui e está no céu das formigas!...
Rosa Veado tomou o
oratório; beijou-o, com reverência, que outras mulheres, outras devotas,
imitaram, silenciosamente.
– O senhor – observou
ela ao velho Marcos – tem coragem. Eu não passava a noite naquela casa
amaldiçoada, nem que me matassem.
– Eu só tenho medo dos
vivos – ponderou o velho.
– É que vossa mercê não
sabe o que nela se tem dado, coisas de arrepiar couro e cabelo...
– Que me importa
visagens e almas do outro mundo, ou artes do demônio? Por ora, eu careço, que
me arranjem alguma coisa para matar a fome deste animal...
– Não é difícil –
atalhou Marciana. — Mas, o senhor deve saber que o milho está pela hora da
morte...
– Ainda tenho meios,
graças a Deus, e, além da paga, ficaria agradecido.
Marcos desatou da
cintura uma faixa elástica, tecida de algodão, e tirou dela alguns patacões de
prata. À vista das moedas, desapareceram as hesitações de Marciana, que se
desmanchou logo em cumprimentos e palavras de pesar pela sorte da família e
prometeu provê-la, sem demora, do necessário, preparando a casa mal-assombrada
para aboletá-la com a possível comodidade naquela noite.
Não era raro aparecerem,
entre os retirantes, famílias abastadas que haviam abandonado os lares, levando
dinheiro e jóias sem valor por não terem o que comprar, mesmo a preços
exorbitantes. Marcos, depois de inútil resistência, viu-se nessa triste
situação. De esperança em esperança de mudança de tempo, vira os gados morrerem
nos campos devastados; consumira, com parcimônia cautelosa, as provisões
acumuladas, os surrões de farinha de mandioca, os paiós de milho, arroz em
casca e feijão; as matalotagens em salmoura ou empilhadas se esgotaram por
encanto, porque não tivera coragem de recusar esmola aos famintos que passavam
pela sua fazenda. Os vaqueiros, agregados e pessoal de fábrica, empregados na
labutação de criadores e agricultores, na maioria escravos velhos e crias de
casa, não tinham que fazer; eram bocas inúteis. Alforriou-os; deu-lhes
liberdade para ganharem a vida.
Cansado de resistir e
lutar, aguardando, em vão, sinais de inverno, viu-se, afinal, só, sem um amigo,
um companheiro, um vizinho, numa redondeza de dez léguas, exposto aos assaltos
de bandidos, que enchiam a região, e resolveu emigrar. Arrumou em algumas malas
o indispensável, a roupa da família e algum dinheiro, enterrando o resto com a
prataria, velha baixela e jóias numa brenha de serrotes ásperos e pedregosos.
Organizou o comboio com três burros e outros tantos cavalos de sela, e partiu
na direção de Sobral, a cidade intelectual, rica e populosa, empório do
comércio do norte da província, na qual o governo estabelecera opulentos
celeiros.
Na longa e penosa travessia,
à falta d'água e pasto, morreram os cavalos, depois dois burros. Foi forçado a
abandonar malas, reduzir as cargas a uma só para que Macaco, o animal
sobrevivente, a pudesse agüentar. Pela primeira vez na vida, tiveram de viajar
a pé, a curtas jornadas, para não fatigarem o animal e poderem suportar, sem se
estropiarem, a penosa marcha de exílio.
Muita vez, arranchados à
sombra de oiticicas frondosas, oferecera um patacão por uma cuia d'água. Os
raros bebedouros subsistentes ficavam longe da estrada real: era preciso fazer
enormes desvios para os alcançar. Cortava– lhe o coração ver a filha, a meiga
Maria da Graça, descorado o rosto de criança na moldura dos cabelos de ouro,
rendido o frágil corpo, os pezinhos dilacerados pelas agruras dos caminhos e
veredas, os rubros lábios ressequidos e rachados, as entranhas devoradas pela
sede, adormecer no regaço da mãe, também mortificada, mas resistindo resignada,
com esse valor divino que torna invencíveis as mães aflitas.
Ele sofria a tortura
inigualável de não a poder socorrer, mesmo com o sangue de suas veias; de
pedir, em vão, ao céu luminoso, impassível, sorridente, a gota de orvalho que
alentasse aquele lírio, nascido nas ruínas de sua alma, a vergar emurchecido,
tostado pelo sol inexorável, quando, no delírio da febre, a pobrezinha, com
ânsia, balbuciava: "Água... água, papai!"; e ele via dos olhos da
mãe, resignada e heróica, a implorar misericórdia ao Deus de amor e justiça,
por intercessão daqueles santos companheiros de infortúnio, rolarem grossas lágrimas
silenciosas.
Quando algum comboieiro
lhe cedia, de graça, a metade da sua borracha d'água salobra, recusando
a pródiga paga por não ter ânimo de vendê-la a cristãos, Marcos, superior às
dores físicas, sorria de alegria de ver saciadas e salvas da morte horrível as
criaturas idolatradas e o fiel animal, e apenas umedecia os lábios e sentia
alentarem-se-lhe as indômitas energias para chegar ao termo da dolorosa viagem
pelo sertão combusto.
– Deus é grande! –
exclamava, em arroubos de fé inquebrantável. – Coragem, mulher, ânimo
filhinha!... Vamos para adiante, parar aqui é morrer!... Mais alguns dias,
estaremos salvos!...
A salvação estava em
Sobral, na cidade formosa e opulenta, o oásis hospitaleiro anelado pelas
caravanas de pegureiros esquálidos.
E chegaram, padecendo
todas as inclemências da jornada, caminhando à noite para evitarem a torreira
do sol. Por inculcas, souberam que no subúrbio da cidade, poderiam encontrar um
rancho, modesto abrigo, onde pudessem esperar dias menos aflitivos.
A casa mal-assombrada
era quase uma tapera. O repuxo das paredes; os esteios esconsos, cobertos de
colmeias abandonadas; o teto, velado sob empoeiradas colgaduras de teia de
aranha; o telhado desfalcado, invadido de ervas mortas; as portas emperradas e
o chão, aluído por túneis de formigueiros, sinalavam longo abandono. Essa
vivenda maldita, preservada pela superstição, estivera sempre fechada. Ninguém
lhe conhecia já o proprietário, cujo procurador, morto havia muitos anos,
deixara a chave à custódia de Marciana.
Ao penetrar no asilo de
duendes, onde se ouviam, à noite, gemidos lancinantes, rumores de correntes
arrastadas, assobios diabólicos, Rosa Veado, que se encarregara de prepará-la
para aboletar os hóspedes, persignou-se, balbuciou uma Ave-Maria e acostou-se
às outras mulheres, apiedadas da família de Marcos. Mal acenderam a vela, uma
coruja espantada esvoaçou, gaguejando pavorosa gargalhada de louco, e enormes
vampiros agitaram a luz, o ar deslocado pelo remígio das grandes asas
desvairadas.
– Credo! – gritaram as
mulheres, recuando de medo. – Te desconjuro, pé-de-pato!
Passado o susto,
entraram e vasculharam, num instante, a sala, impregnada de forte cheiro de
estrume de morcego.
Uma levou as redes e as
atou aos cantos nos armadores enferrujados; outra sobraçou, reverente, o
oratório que foi colocado sobre uma das malas conduzidas pelo Chico, que foi
depois à venda da Marciana buscar um pote d'água e um caneco de
folha-de-flandres novo. Apareceu, por sua vez, a bodegueira, trazendo um bule
com café, três casais de xícaras de ruim louça, esmaltada de flores vermelhas,
um pires com açúcar escuro mascavado, e algumas roscas e bolachas, duras como
pedra.
– Aí está, seu capitão –
disse ela a Marcos. – Já tem onde encostar o corpo e o que foi possível arranjar
para entreter a barriga. Até amanhã. Vossa senhoria deve ter o corpo pedindo
rede... Com Deus amanheça. Se percisar de alguma coisa, é só bater na
derradeira porta da esquina.
Marcos contemplava,
penalizado, o burro, que Teresinha alimentava com punhados de milho amolecido;
tomou Maria da Graça pela mão, e recolheu-se.
– Vai dormir,
filhinha...
– E mamãe?
– Está com a outra,
tratando o Macaco. Virá mais tarde.
Clara ficara ao lado da
filha infeliz, amimando-lhe os cabelos, dirigindo-lhe palavras de amor e
conforto, e recomendando-lhe que suportasse, com paciência, as explosões da
cólera paterna, até conseguir ser abençoada.
– Ele tem razão, mamãe –
balbuciava a moça, com voz embargada pelo hercúleo esforço para conter o
pranto. – É o castigo, castigo merecido pelos meus pecados, que são muitos. Não
peço que me perdoe, mas tenho padecido tanto com o abandono, que não poderei
mais viver sozinha no mundo. Rogue a papai que não me bote para fora de casa.
Embora não me tenha mais como filha, porque morri para ele, deixe que eu fique,
como negra cativa. Tratarei o Macaco, carregarei água, tomando conta da
cozinha, da roupa, pois não me desprezo de fazer todo o serviço.
– Sei que não és má,
filha do coração. Foi aquele malvado, meu Deus perdoai-me, que te botou a
perder... Eras uma criança...
– Não o culpe, mamãe.
Cazuza era bom e me quis bem até morrer. Só depois de ficar sem ele foi que me
senti na desgraça, por não ter vivalma caridosa que me amparasse.
– Por que não voltaste?
– Tive medo e... vergonha.
Faltou-me coragem para afrontar a ira do papai...
Passaram as duas horas
conversando, e alimentando, aos poucos, o precioso muar desfalecido. Por fim,
teve Clara de obedecer aos repetidos chamados do marido para não o exasperar.
– Anda – disse ela. – Teu
pai já está impaciente. Vem comigo.
– Não preciso de
descanso. Vá, mamãe, que ficarei vigiando este pobre.
Clara imprimiu-lhe na
fronte um longo beijo, e partiu, murmurando: – Pobre filha! Deus te abençoe.
Parece que lhe quero ainda mais por ser infeliz.
O rígido velho, curtido
de preconceitos e fechado o coração nas resoluções inabaláveis, como num
túmulo, não podia conciliar o sono. A espaços, erguia-se da rede, ia à porta,
sempre aberta; contemplava a filha culpada, acocorada ao lado do burro enfermo;
e, no misterioso silêncio da noite estrelada, ouvia um murmúrio dolente, um
estertor de fonte, que se estanca, o pranto de Teresinha velando o animal para
que os urubus, postados nas arestas dos rochedos, como vedetas sinistras, não o
devorassem vivo.
XXV
Com irrepressível
impaciência, esperou Luzia que algum dos raros conhecidos lhe trouxesse as
últimas notícias dos acontecimentos do dia. A cada momento, se lhe afiguravam
vultos de homem, esboçados nos cúmulos da poeira, que o vento rijo da tarde
revolvia, em redemoinhos, pela estrada, como um sinal do vento baixo, rasteiro,
sinal de seca. Talvez Alexandre livre, remido da infâmia, radiante de ternura a
lhe sorrir com amor. Tinha estremecimentos de júbilos comedidos; a efêmera
visão fugia com as colunas de pó desfeitas, e a pobre recaía desiludida numa
dolorosa apatia de quem espera em vão.
Ninguém aparecia.
Alexandre, cheio de brio, magoado pela crueza com que ela o tratara, não viria,
contido pelo mesmo propósito que a condenava a estar ali, a estorcer-se em
voluntário suplício, estimulada de fútil obstinação em resistir ao impulso de
correr a recebê-lo no limiar do cárcere.
Nem vivalma. Estavam
todos, àquela hora, recebendo, em ração, o salário da semana, pago aos sábados,
nos postos de distribuição de socorros, ou na obra da penitenciária. Ela via as
suas meninas amadas, Quinotinha e outras da tenda de costuras, sobraçando
saquinhos cheios de víveres; as suas companheiras de trabalho aguardando a
chamada, a tagarelarem com a garridice de maracanãs nos roçados; outras
tristes, desconsoladas, recebendo os quinhões que deveriam passar às mãos de
atravessadores, em paga de adiantamentos usurários; muitas agrupadas em torno
da figura hercúlea, vermelha e ruiva de Raulino Uchoa, com a distinção de tipo
de outra raça, entre os ouvintes, emaciados de privações, minados pelos tóxicos
das raízes de mucunã, de pau-de-mocó, esboroadas em farinha. Ele costumava
matar o tempo com a narrativa pinturesca das façanhas inverossímeis de
amansador de animais bravios, orelhudos que nunca tinham visto gente, as
áfricas de vaqueiro de fama, temido dos barbatões mais ferozes das catingas e
carrascões impenetráveis, as proezas de caçadas de onças acuadas em furnas
sombrias, onde ele as agredia, armado de uma simples azagaia. Contava das
viagens extraordinárias, aventurosas pelo sertão inundado, da intrepidez com
que afrontava o ímpeto dos rios desbordantes, nadando em cavaletes de molungu
no tempo – até parecia sonho – em que Deus ainda se lembrava, piedoso, do
Ceará, para dar-lhe chuvas copiosas e fertilizadoras dos campos, trombas d'água
devastadoras, rotas nas cumeadas das serras, descendo em catadupas raivosas,
invencíveis, pelos telhados, encostas verdejantes, arrastando rochedos,
árvores, plantações, até se espraiarem na planície, à maneira de um mar,
arrombando açudes, soterrando bebedouros, cavados durante a seca. Descrevia com
a linguagem fantasiosa, ardente, de vigoroso colorido, com as imagens vivas,
sugestivas do rude estilo sertanejo, o fragor das correntes raivosas de
concerto como ribombo ininterrupto da trovoada, o relampear das nuvens negras e
maciças, os ziguezagues fulvos a riscarem o céu, com letras cabalísticas,
ameaçadoras, traçadas pela ira de Deus; o estrondo horrível dos coriscos, o
pavor do gado, haurindo, a largos sorvos; o ar saturado de ozona, reunido, em
magotes, nos cômoros da planície encharcada.
Presos aos lábios do
narrador imaginoso, os retirantes mal continham lágrimas, ouvindo-o evocar,
entre episódios da vida sertaneja, fatos e coisas, dons do céu, para sempre
perdidos, água, verdura, roçados, safras opimas, alegria e fartura, cortados os
corações pela amarga saudade de recordar tempos felizes.
Luzia meditava, fitos os
olhos, com uns gestos de sufocado pranto, nas rubras chamas vacilantes,
desprendidas dos tições, quase apagados, espevitadas pelo vento e crepitando
nuns feixes de centelhas intermitentes.
– Ninguém – murmurou
ela, magoada pelo abandono. – Nem vivalma! E Teresinha? Que será feito daquela
cabeça de vento? Onde se meteria? Nem pensa em mim, que a espero... Ah! se ela
soubesse... Qual... está com ele, e eu, coitada de mim...
Cada vez mais espessa, a
neblina da tarde, com uns restos de calor, entrava a redondeza. Casas, árvores
mortas confundiam-se desconformes, no esboço da paisagem, esfumada em
claro-escuro. As manchas das sombras alastravam, como um líquido negro,
devorando os tons luminosos. No céu, puríssimo, piscavam, espertas, álacres,
como uns pequeninos olhos, estrelas e constelações. Papa-ceia, o astro da
melancolia, librava-se no poente ainda claro, como lúcida lágrima, mensageira
da dor ignota, oculta nas profundezas misteriosas do espaço, tremeluzia
prateada como pólo das esperanças e das mágoas dos tristes, e parecia vacilar
atraída pelo sol, atufado em nuvens purpúreas.
Pela estrada, abeirada à
casa, passavam mulheres e meninos conduzindo as rações. Vinham da cidade ou do
morro do curral do Açougue; deviam de saber de Alexandre e Teresinha, mas Luzia
não ousou interrogá-los. Apareceu, depois, Romana à frente do grupo de
bandoleiras desenvoltas. A roliça cabocla, de dentes aculeados não ria dessa
vez. Lamentava, com as outras, a sorte de Crapiúna, que se desgraçara, apanhado
na arapuca armada ao outro. Metia-lhes intenso dó o Belota, tão bom para elas,
uma vítima da amizade, ou das más companhias. Nada diziam em defesa de
Crapiúna; consideravam, entretanto, injustiça prenderem o outro, homem incapaz
de fazer mal e sempre, bem procedido no serviço. Só tinha o defeito de jogar,
mas o governo devia saber que ele não se podia manter com o reles soldo; era
homem como os paisanos. Ninguém vive enchendo a barriga de vento como os
camaleões.
– Olha a Luzia! –
observou uma. – Nem parece que o homem dela foi solto!
– Vote! – atalhou outra.
– A modos que estaria mais alegres e ele ficasse na cadeia toda a vida.
– Qual o quê! – ponderou
Romana. – Aquilo é soberbia. Quer mostrar que não faz caso de nada neste mundo.
Impáfia ali é mata. Deixa estar que há de ser castigada.
– Aquilo, mulher, é
calibre do sangue. Nem o demônio tira. Por isso é que vive sempre apartada das
outras, metida com ela cheia de coisas como se fora uma senhora-dona.
– Conheço muitas mais
melhores que não se desprezam de tratar bem e falar com a gente.
– Só a Teresinha lhe
caiu em graça. As duas se entendem. Deus as fez...
Esses comentários eram
feitos em voz alta, para que Luzia os ouvisse; esta, porém, minada embora de
rancor surdo a Romana que não a poupava com insinuações perversas, duma ironia
picante, e passava por ali de propósito para molestá-la, fingia não ouvir,
resistindo ao impulso de assaltá-la, arrancar-lhe a língua danada, esmagá-la
aos pés, como réptil nojento e venenoso.
O grupo desapareceu.
Passaram depois desconhecidos que, confundidos ao lusco-fusco, a saudavam com
boa-noite.
A velha mãe reclamava os
seus cuidados, para iluminar o quarto e dar-lhe o remédio, que, abaixo de Deus,
a salvara.
– Tiveste notícias de
Alexandre? – perguntou-lhe ela, interrompendo o terço, rezado a meia voz.
– Não – respondeu Luzia,
com fingida indiferença. – Depois de saber que estava solto, fiquei
descansada... tirei dele o juízo...
– E Teresinha?
– Sei lá!...
– Estou tão acostumada
com ela, que já lhe sinto a falta quando se demora...
– Ainda é cedo. Virá
quando a lua sair...
– Sabes que mais, filha?
Acho-te hoje tão mudada!
– É que estou maginando
no que devemos fazer, agora que não temos já obrigação de velar por ele. O
coração me pede que vamos embora; mas não podemos. Não há remédio senão
ficarmos. Será como Deus quiser. Eu terei sempre forças para trabalhar e
viver... sem ser pesada a ninguém, apesar de me desprezarem e fazerem pouco de
mim.
– Não fales assim,
filha. Os fortes também enfraquecem quando Deus os desampara.
– Deus! Deus já não se
lembra de nós, que somos cristãos, que o adoramos e amamos...
– Tem fé nele, que é pai
de misericórdia.
– Para falar a verdade,
mãezinha, eu, às vezes, não acredito em nada. A desgraça endurece o coração.
Por causa dela, os pais abandonam os filhos; maridos desprezam as mulheres e as
criaturas viram bichos, ou ficam piores que eles. Para o fim do mundo, só falta
que as mulheres não tenham mais filhos, pois já ninguém ama.
– E eu que pensava...
– Em quê?
– Não te quero pôr de
confissão, mas... sempre desejava saber se Alexandre nunca te falou em casamento.
– A mim?
– Pensei que se
engraçara de ti. Fiquei com a mosca na orelha desde aquele mimo dos cravos.
– Os cravos! É verdade
que, um dia, ele me disse: “se casássemos, iríamos viver juntos em uma casinha
da ladeira da Mata-fresca.” Não respondi sim, nem não. Depois apareceu o
impute, e foi preso. Sofri mais com essa desgraça do que ele; até parecia que
todos me olhavam como ladra, e só o abandonei quando suspeitei que era igual
aos outros homens, queria bem a outra e me enganava cruelmente. A última vez
que vi ele, deixei-lhe os cravos na grade da cadeia. Essas pobres flores,
guardadas no meu seio, como um breve milagroso, não podiam mais ficar comigo.
Ele que as desse a outra. Mais tarde arrependi-me: revoltei-me contra esse
ciúme à-toa, que não me envergonhava, porque as mulheres ricas também se
enciúmam; mas era uma fraqueza. Tive ímpetos de pedir-lhe perdão. Uma voz, que
vinha daqui, do coração, aconselhava que eu quebrasse a teima de abandoná-lo e
fugir dele... Seria rebaixar-me, fazer como essas que continuam a querer bem ao
homem que as despreza, surra e maltrata; seria contra o meu gênio de não dar
braço a torcer, de não dar parte de fraca, de sofrer calada.
– E é por isso que tens
andado capionga? Ah! coração de mãe adivinha.
– Era...
– Pois foi muito feia
ação desconfiar dele.
– A gente não suspeita
por querer.
– Quando se quer de
verdade, não há suspeita que entre no coração. Eu nunca maldei do defunto teu
pai, quando ele passava meses ausente, comprando garrotes no Piauí. Só pensava
que poderia apanhar moléstias, morrer sem confissão e em não estar eu a seu
lado para tratar dele.
– Era seu marido.
Alexandre não é nada meu. Ninguém me tira da cabeça que, agora, limpo de pena e
culpa e por ser bom, caridoso e bonito homem, todas as mulheres querem bem a
ele. Homem que sofre é, comparando mal, como Jesus Cristo. As mulheres andam
atrás dele.
Houve, então, longa
pausa. Nos pequeninos olhos parados da velha, desanimados, demorava uma funda
impressão de surpresa, com um brilho gasto de mágoa.
– Além disso – continuou
Luzia, com um ligeiro movimento dos ombros. – Elas têm o mesmo direito que eu.
Mas não me conformo... Pode mais do que a minha vontade essa suspeita, que me
põe o coração escuro e mau... Sabe, mãezinha, em que estou pensando agora?...
Um horror, que até tenho vergonha de dizer... Antes uma boa morte que descobrir
a outra pessoa o que me passa pela mente...Olhe...
E sussurrou, com voz
soturna, como um sopro de cansaço, ao ouvido da velha:
– Imagino que, neste
momento , ele está com
Teresinha...
– Credo! filha!
– É um horror, não é?...
Parece que estou vendo eles juntos, alegres e satisfeitos. Ele todo
agradecimentos; ela cheia de si... Sim, porque se está solto a ela o deve...
Ela tem direito à recompensa. É justo que não se lembrem de mim...
– Que maldade, filha de
minha alma...
– Sim, como não hei de
ser má, de ter más entranhas, se uma cobra venenosa me morde o coração! E sou
culpada de tudo por ser desconfiada... soberba... maldita... Luizia-Homem é o
que eu sou... uma bruta desalmada...
– Que coisa sem pé nem cabeça? Estou
estranhando isso... Sossega... Teresinha, tão boa para nós, não tarda aí,
quando a lua nascer.
– Veja aquele clarão...
Já está fora.
– Ela foi cheia
tresantontem. Aquilo é fogo no pasto.
Havia, com efeito, no
horizonte, um clarão de incêndio, onde surgia, lentamente, um enorme disco.
– Qual – exclamou Luzia,
com uns gestos violentos, e um amargo tom de sarcasmo. – Aquela mesma? Onde
está, está muito bem... gozando o que muito lhe custou ganhar... Não se me dava
de apostar...
– Não faças juízo à toa
– disse a velha, com energia – maldando da outra...
– Não maldo por querer.
É uma coisa que me vem à cabeça e que me tira o juízo... Ah! Eu não era assim.
Não era. Em nada pensava, nada tinha, que me afligisse ou me tirasse noites de
sono. Não fora o seu puxado, vivia sossegada, pensando somente no dia de
amanhã, em ganhar a vida. Era feliz, consolada com a minha sorte.
– Não eras, não. Nunca
te vi assim... São repiquetes de mau gênio que passam depressa. Agora, se não
te dás bem aqui, se te sentes mal, iremos, como querias, para as praias.
Raulino irá conosco...
– Para a praia! Não vou
mais, não... posso. Hei de ficar aqui até quando Deus permitir... Até...
morrer. Quem sabe?
– Aí está! Não te
entendo. Há bocadinho, falavas nessa viagem que não te saía da cabeça...
Agora...
– Pensei melhor.
– Qual, filha! Andas tão
atarantada que já não pensas coisa com coisa.
– É mesmo, mãezinha. Até
parece que estou lesa. Ah! se eu pudesse esquecer tudo como se fora um sonho,
desses que a gente dá graças a Deus e cria alma nova, quando se acabam... ou se
desperta...
– Tu estás, mas é muito
alterada. Vem dormir, anda, que Teresinha rebenta por aí sem demora, e as duas
vão levar a noite grazinando como duas amigas.
A velha Josefa benzeu-se
ao terminar o terço, interrompido pelo diálogo com a filha. Ergueu-se apoiada
ao portal, e gemendo, tanto lhe custava distender as articulações emperradas;
e, arrastando as grandes chinelas, dirigiu-se, claudicante, para a rede. O quarto
estava iluminado pela candeia mortiça, crepitando na cantoneira, asseado, muito
arrumado; as malas encostadas à parede, duas redes armadas nos ângulos, e, no
chão, a esteira de Teresinha, a pele de carneiro, um simples tapete para se não
resfriarem os pés da enferma. De uma corda, pendiam várias peças de roupa.
– Deixa-me – disse a
velha, arfando de fadiga e afastando a filha que pretendia ajudá-la. – Deixa-me
andar sozinha para experimentar as minhas forças. Se me acostumo a estar
sentada e a andar pelas mãos dos outros, fico mesmo enferrujada de todo... Ah!
Se Nossa Senhora me tirasse esta canseira, podia eu dizer que estava sarada...
Isto vai devagarinho... Moléstia é como preaca de frecha: entra no corpo
de repente, e custa a sair.
Tenho fé – disse Luzia,
mais calma e com meiguice, abrindo a rede para que ela se sentasse – isto vai
passar.
Quem a viu e quem a vê,
nota logo grande melhora.
– Tenho esperança de
rolar mais alguns dias por este mundo, e só peço a Deus que me não faça sofrer,
quando chegar a minha hora. Bem sei que não hei de ficar para semente... Tu,
que és o meu sangue, tomarás o meu lugar, sendo o que eu fui, uma mulher de
bem, trabalhadeira e temente a Deus.
– Não fale nisso.
– Como não falar, se não
me sai da cabeça o pensamento de morrer, deixando-te sozinha, sem encosto, sem
proteção.
– Quando tal
acontecesse, quando Deus me castigasse com essa desgraça, eu teria coragem para
suportá-la. O trabalho não mete medo a Luzia-Homem.
– Bate na boca, filha.
Luzia, mulher e bem mulher, fraca como as outras, é o que tu és.
Ela sentia a verdade das
palavras da mãe. A ansiedade, as dúvidas, as suspeitas cruéis em tumulto
absurdo e monstruoso comprovavam a sua debilidade de mulher amorosa.
Compreendia, então, a perversidade de Gabrina, vingando-se de Alexandre por
meio da declaração falsa; compreendia porque havia mulheres criminosas, que se
rebaixavam satisfeitas, que se depravavam despudoradas, arrojadas, por impulsos
de paixão irresistível, fora da senda do dever, olvidando honra, família e o
decoro, que é o esmalte das almas boas, para tombarem, desfigurados o corpo e a
alma, até a lama do enxurro humano, como nojentos dejetos do vício.
Havia, entre essas
míseras, culpadas por depravação moral, desviadas pela educação, contaminadas
pelo contágio do exemplo. A enorme maioria, porém, era de inconscientes, sem
imputação, dignas de perdão como pensava ela, que não podia expungir do coração
os maus instintos, que o dominavam e ali grelavam, como ervas daninhas, à
sombra propícia da suspeita e do despeito. E Luzia que padecera pela prisão do
homem amado, que sentira nas próprias carnes o estigma com que o pretendiam
marcar, que seria capaz de fazer por ele o extremo sacrifício da própria vida,
seria capaz de estrangulá-lo, de arrancar-lhe as entranhas, de cevar-se no seu
sangue, à simples idéia de vê-lo nos braços de outra mulher.
– Eu morreria descansada
– disse a mãe, suspirando – se te deixasse casada com Alexandre, que seria
incapaz de te dar má vida.
– Casada! – retrucou a filha, arrancada,
de súbito, às tristes idéias. – Quem quererá se casar comigo?...
Não digas semelhante
coisa, tamanhas asneiras... A mim, me palpita o coração que amanhã terás
vergonha dessas suspeitas, porque Alexandre virá e tudo passará, como se nada
houvesse acontecido. Tu, então, arrependida, reconhecerás que, quando moça está
influída para casar, não tem o juízo assente; vê tudo pelo avesso, de pernas
para o ar, e fica mouca aos conselhos.
No meu tempo, as
raparigas não pensavam nisso; quando davam fé estavam na igreja com o moço
escolhido pelos pais. Hoje, está tudo mudado... Meninas, que ainda cheiram a
cueiros, já têm opinião e caprichos como qualquer mulher feita. Deus louvado,
sempre foste muito
bem-procedida e obediente. Veio-te, agora, essa influência de querer
bem... Já não veio sem tempo... já tardava e não tem nada de mal; mas, é
preciso ter juízo para não desmanchar o que esta tão bem principiado. Vê bem o
que te digo; deixa-te de histórias e teimas. Se procurares com uma candeia, não
encontrarás outro tão do meu gosto.
– E se ele não me falar
mais em casamento?
– Paciência! É porque
não tinha de ser.
– E eu?...
– Tu!... Pois não és
mulher forte, capaz de viver sozinha, sem ser pesada a ninguém, trabalhando
para comer?... Não és Luzia-Homem?...
– Eu não sou nada –
murmurou Luzia, abraçando a mãe e escondendo-a quase na onda de cabelos
revoltos. – Sou uma infeliz, que está sendo castigada, sou uma doida, que não
sabe o que faz... Perdoe-me, mãezinha da minha alma...
– Ai que me tiras o
fôlego – gemeu a velha, sufocada pela veemente carícia da filha. – Não reparas
que só tenho de gente a figura com a pele sobre os ossos? Deixa estar que tudo
há de sair bem, se Deus não mandar o contrário... Dá-me outra colher de
remédio. Quero ver se pego no sono. Fecha a porta e vem dormir.
– E Teresinha?
– Deixa estar que ela
não se perde. Sabe de olhos fechados o caminho da casa.
– Tem razão, mãezinha. O
melhor é esperar sossegada o que tem de acontecer.
Depois de dar o remédio
à mãe e acomodá-la para passar a noite, Luzia saiu ao terreiro a passear em
roda da casa, a contemplar a lua, que ascendia em pleno esplendor. Interrogou o
céu e a terra, silenciosos, impassíveis; espreitou em todas as direções, até
aonde a sua vista alcançava, e perscrutou os mais leves rumores que a viração
lhe trazia em rajadas violentas. Nada correspondia à sua ansiedade. A solidão
lhe recusava alento às débeis esperanças e conforto às mágoas, que os conselhos
maternais não conseguiram aplacar de todo. Entretanto, a confidência à mãe
idolatrada, fora um transbordamento salutar, e ela experimentava a sensação de
desafogo, como se o coração, libertado de cruciante aperto, pudesse pulsar sem
se contentar em estreito âmbito. Ligeiro torpor lhe invadia os membros que ela tentava
em vão estimular, distendendo-os em contorções preguiçosas a lhe desenharem,
com harmonioso relevo, as linhas vigorosas, exuberantes de graça.
– Não teimes em esperar,
filha – observou a mãe – até fora de horas. – Anda, e fecha bem a porta. Eu não
descanso enquanto estiveres aí a rondar de um lado para outro, como quem está
malucando.
– Amanhã é domingo,
mãezinha. O luar está tão bonito que a gente tem pena de se deitar. Parece
dia...
– Que horas são?
– O Sete-strelo já está
alto e as Três-marias estão descambando. Ainda agorinha tive um susto! Correu
uma zelação, que parecia uma tocha.
– Deus a guie. É sinal
de desgraça. Anda, anda, vem para dentro, que a friagem te pode fazer mal.
Luzia obedeceu. Depois
de fechar a porta, tomou a bênção à mãe; e, desatando os cordões da saia
branca, estirou-se, extenuada, na esteira, onde Teresinha dormira tantas
noites. E, todavia, mole de fadiga, não pôde conciliar, calmamente, o sono.
Torcia-se, mudava de postura, como se o seu corpo robusto excedesse ao molde
ali deixado pela amiga ausente, cuja recordação, engastada em seu cérebro, era
o carvão da suspeita, comburente, agora, em brasa de remorso.
Ela imitava as
desenvolturas da outra, da criatura dedicada, que renunciara a todos os seus
hábitos para participar, com a placidez de uma consciência satisfeita, da
pobreza e das tristezas daquele mísero lar. Julgava ouvir passos cautelosos,
abafados pelo ruído das folhas agitadas pelo vento, e Teresinha e Alexandre lhe
apareciam como espectros, exprobando-lhe a injusta desconfiança, e exigindo
reparação. Acusada por si mesma, Luzia não se podia defender; a culpa era
demasiado evidente. Abandonada pelas energias musculares, que eram o seu
estigma, oberada de vergonha, ela suplicou, em atrição, lhe perdoassem; e, como
se um filtro purificador lhe lavasse a alma da mácula do cruel pecado,
adormeceu no delicioso enlevo de um sonho de ventura inefável.
XXVI
Não acabara Luzia de
pentear os cabelos que, depois de vendidos eram tratados com maior carinho,
quando chegou Raulino, conduzindo a trouxa de mantimentos e uma grande cabaça
d’água.
– Muito bom-dia, sá
Luzia!
– Bom-dia, seu Raulino.
Você vem hoje carregado.
– É que aumentei a
trouxa com a cabaça e contrapeso que lhe mandaram.
– Para mim?
– Sinharsim. Meti os pés
da rede quando vinham quebrando as barras e maginei que vosmecês estariam
carecidas d'água. Como estou morando, agora, na cadeia nova, para botar sentido
nas obras, de noite, enchi a cabaça na jarra e fui à cidade receber as rações
porque as do armazém da Comissão são melhores e medidas com lavagem. Foi uma
lembrança mandada por Deus, porque, chegando lá, topei na porta o Alexandre...
– Alexandre!
– Em carne e osso.
Depois de dar-lhe mão de amigo, pedi-lhe que me aviasse depressa para poder eu
chegar aqui cedinho. Ele, meio banzeiro, perguntou por vosmecê, pela tia
Zefinha e pelos outros conhecidos. Coitado! Está branco, com a cara encerada,
que mete dó ver, tão desfeita uma criatura, que vendia saúde...
– Está doente?
– Como quem passou obra
de um mês enterrado naquela prisão porca e fedorenta que mais parece um
chiqueiro que morada de cristãos.
– É horrível!
– Mas a demora foi dar
notícias de vosmecê, ficou ligeiro e alegre que não parecia o mesmo. Mediu...
Mediu é um modo de falar: fez a olho, as rações. Era o que a mão dava. Ele por
uma banda e eu pela outra. E não fomos mais longe porque já era uma dor de
consciência. O homem quer bem a vosmecês mesmo de verdade. Fez perguntas e
reperguntas; quis saber do puxado da tia Zefinha; se sá Luzia ainda estava na
obra, se passou lá trabalhando o dia de ontem, um horror de coisas que fui
respondendo só para dar-lhe gosto. Agora está como quer. Há males que vêm para
bem. Melhorou no emprego e recebeu uma dinheirama de couro e cabelo.
Luzia desembrulhava os
gêneros e os arrumava, aparentando indiferença à loquacidade de Raulino, que
falava pelos cotovelos. Os sertanejos ladinos são, em geral, admiráveis
narradores, de imaginação acesa, fecundos em descrição, cujos menores
incidentes são debuxados com vigor.
– Que é isto? –
perguntou Luzia, indicando um guardanapo de linho amarrado nas quatro pontas.
– Isto é pães –
respondeu Raulino. – Quando eu vinha vindo, a dona do promotor chamou-me e
deu-me essa trouxinha, dizendo por aqui assim: “Leve isto para Luzia, seu
Raulino, diga-lhe que estou muito agradecida pelo trabalho da roupa para os
pobres, uma perfeição de costura. Diga-lhe mais que apareça: desejo muito ver
os meus bonitos cabelos.”
Luzia baixou os olhos, e
estremeceu ligeiramente.
– Ora, – continuou o
sertanejo – eu não entendi bem o que a dona queria dizer, mas fiquei malinando
que também gosta, como todo o mundo, dessa sua cabeleira, comparando mal,
parecida com as das mães-d’água encantadas, lavando-se na lagoa em noite de
luar, com os cabelos de vara e meia boiando e embaraçando-se nos aguapés
cheirosos, como eu vi com estes olhos, que a terra fria há de comer, de uma
feita, que eu estava de tocaia, esperando patarrões brabos. A noite estava
clara que nem dia. Cansado de esperar e resfriado pela fresca do sereno, passei
por uma modorra.
Quando dei fé, ouvi o
barulho de um corpo espalhando a água; levei a lazarina à cara, e, pensando que
eram os patos, ia papocar fogo. Divulguei, então, o corpo de uma mulher,
luzindo molhado e nadando como uma marreca. Ainda fico frio quando me lembro
dessa visagem. Os meus cabelos se arrepiam como espinho de cuandu. Quis gritar,
mas tinha um nó na garganta. Passou-me uma névoa pelos olhos e deixei cair a
espingarda. Quando dei acordo de mim, afirmei bem a vista para ver o que era. A
lagoa estava serena como um espelho. Tudo quieto. Só ouvia sapos ateimando:
foi, não foi, e os cururus roncando. Não quis mais saber de histórias; apanhei
a arma e meti o pé na carreira. Só tomei fôlego quando avistei a casa. Sá Luzia
modos que não me acredita?
Luzia sorriu, com branda ironia.
– Pois fique sabendo –
continuou Raulino, com muita convicção – que não foi só a mim que ela apareceu.
O Isidro, rapaz destemido e caçador de fama, também viu a mãe-d’água de uma
feita que estava tarrafeando curimatãs. Por sinal que não apanhou uma triste
piaba naquela lagoa, que tinha mais peixe do que água. Voltou da pescaria com
as mãos abanando, capiongo, meio leso e contou o caso à noiva, moça (falando
com o devido respeito) bonita como uma imagem. Ela ficou desconfiada e quis,
por fina força, ir , fora de horas, à lagoa. O rapaz fez todo o possível para
tirar-lhe da cabeça semelhante doidice; disse-lhe que era um perigo porque as
mães-d’água são ciumentas das moças que estão para casar, que houvera muita
desgraça por causa disso; pediu, rogou por tudo quanto havia de mais sagrado.
Ela prometeu não ir, mas cada vez mais desconfiada teimou, porque mulher,
quando malda, não chega ao mourão com duas razões. Fugiu de casa quando estavam
todos recolhidos e foi à lagoa. Não lhe conto nada. Ao amanhecer, deram por
falta da moça. Foi um deus-nos-acuda. Ninguém dava notícias dela. O noivo ficou
como um doido; mas, lembrando-se da história da mãe-d’água, pôs-se a rastejar e
encontrou o rasto da chinelinha da infeliz, bem marcado no caminho orvalhado.
Acompanhou-o com outras
pessoas, também rastejadoras, e foram bater na beira d'água. Estavam maginando
no que teria acontecido, quando ouviram uma risada de mangação. Pensaram que
era a moça escondida para zombar deles. Bateram o mato em redor, o pacoval,
cheio de ninhos de azulões e papa-arroz. Nada. Os passarinhos fugiam
espavoridos, e um bando de garças, alvas como capuchos de algodão, voava
remando no ar. Os homens olharam uns para os outros sem saberem o que fizessem.
O Isidro, mais morto do que vivo, numa aflição de meter dó, encarou n'água como
se quisesse ver-lhe o fundo. Quem dera a risada? Aonde fora a moça parar? Onde
se escondera? O rasto ali estava provando que ela não voltara para trás...
– Mas... é verdade isso?
– inquiriu Luzia, com terror.
– Acredite, como se
estivesse vendo. Eu não sou homem de inventar, nem de dizer uma coisa por
outra. Ouça o resto. Um vaqueiro velho foi buscar uma cuia, pregou dentro uma
vela acesa e largou-a em cima d'água. A cuia vagou à toa, de um lado para
outro, conforme assoprava o vento; foi, depois, seguindo para o centro, até que
ficou parada, obra de cinqüenta braças de distância. Nisto, o Isidro, num abrir
e fechar d’olhos, tirou o gibão de couro e largou o braço n’água. Chegando ao
lugar, onde a cuia estava parada, mergulhou, e... Que horror!... Nem gosto de
me lembrar... Num instantinho, voltou à flor d’água; tomou fôlego e mergulhou
outra vez... Quando deram fé, ele surgiu com um corpo nos braços e nadou para a
terra como um desesperado. Vinha como um bicho feroz, arquejando, enlameado,
coberto de ervas e raízes encharcadas. Os outros foram ao seu encontro para
ajudá-lo. Trazia a noiva morta. Os olhos azuis da defunta estavam esbugalhados
e vidrados. A boca meia aberta, parecia querer falar. Tinha as mãos juntas
sobre o peito, aqui, lá nela, e amarradas em nó cego, com as duas tranças de
cabelos loiros, compridos como os seus, sá Luzia...
– Que desgraça! Credo!
Morreu de ciúmes!...
– Que ciúmes! Foi
afogada pela mãe-d’água. A malvada amarrou-lhe as mãos para que a pobre se não
pudesse salvar, pois nadava como uma piaba. Era dela a risada que ouviram; ria
da sua obra maldita... Depois dessa tragédia, os comboieiros, que navegam para
aquelas bandas e passam de noite pela beira da lagoa, ouviram arrepiados de
medo, aquela risada medonha.
– Isso é busão! – disse
do quarto a velha, atenta à história.
– Ah! tia Zefa, vosmecê
estava acordada?
– Desde madrugada.
– Busão ou não –
ponderou Raulino – o caso é verdadeiro. Quando a gente não pode explicar as
coisas diz que é busão; mas o fato é que há no oco deste mundo velho muita
coisa, que nem doutores, nem padres conhecem. E, com esta, vou andando.
Habituada às histórias
extraordinárias do imaginoso sertanejo, Luzia experimentou, todavia, forte
abalo, ouvindo a reprodução da lenda, sempre viva nas recordações da infância,
dura quadra despercebida, de gozos facilmente olvidados, porque é bem verdade
que só o sofrimento tem o poder de cavar na memória sulcos indeléveis. É por
isso que há estranho encanto, espécie de amargura e de saudade em exumar
tristezas, em reviver lances de desgraça, como narrar crises de moléstia, lutas
entre a vida e a morte, os dissabores, as desilusões, as mágoas suportadas com
resignação, com heroísmo, que se nos afiguram obstáculos transpostos, vitórias
alcançados contra a fatalidade, os cruéis inimigos ocultos, intangíveis, à
maneira das tiranias onipotentes das forças misteriosas que engendram, nas
terríveis profundezas do infinito, as calamidades, os cataclismos e os
assombrosos fenômenos que assinalam o eterno combate entre o que destrói e o
que produz.
– Espere pelo café, seu
Raulino – disse Luzia.
– Estava quase
requerendo – tornou o sertanejo. Por essa bebida, sou como macaco por banana.
No tempo da fartura, eu era capaz de tomar uma canada de café por dia.
– Não viu, por aí,
Teresinha?
– Nharnão, pensei que
ela estava aqui.
– Esperei-a toda a
noite.
– Deixe estar que aquela
não se perde com duas razões.
– Sempre estou com
cuidado nela.
– O Alexandre disse-me
que ela esteve com ele desde que foi solto até à tardinha, quando o deixou com
promessa de se encontrarem aqui hoje.
– Aqui! – exclamou
Luzia, alvoroçada.
– Sinharsim. Pelo menos,
foi o que ouvi da própria boca dele – afirmou Raulino, tirando uma grande
pitada de caco do corrimboque de chifre de carneiro.
– É para dar que pensar
– observou a velha.
– O mais certo –
considerou Raulino – é ter ela ficado no quarto da Gangorra, pensando, talvez,
que, preso Crapiúna, vosmecês não precisassem mais de companhia. Poderiam
dormir descansadas sem receio de alguma traição do excomungado.
– Se soubesse onde era a
casa, iria buscá-la, tanta falta me faz... Coitada! Aquilo só é ruim para si.
– É pena, sá Luzia,
porque ela teve bons princípios e foi bem afamilhada. Mas, caiu-lhe em cima a
desgraça. Eu também tive a mesma sorte. Meus avós eram gente de consideração,
bem arranjada; e, como me vê, poderia comerem pratos de ouro, se não... Para
que lembrar tristezas que não pagam dívidas? Tive currais cheios de vacas de
leite; apanhava meus oitenta bezerros por ano; possuía bons cavalos de sela, e
o demônio, em figura de mulher, levou tudo. Hoje, ando a trabalhar para não
morrer de fome, com vergonha de me dar a conhecer à parentalha que tenho aqui
mesmo em Sobral. Fui nascido e criado na ribeira do Jaguaribe. Ainda é do meu
sangue essa gente de Xerez. Somos todos Furnas...
– Que feio nome?
– É meio esquisito, mas
é de gente muito graúda, de muitas posses e honrarias, espalhada por estes sertões
numa parentalha, que nunca mais se acaba, como a gente dos Olhos-d’água do
Pajé, os Rochas e os Cavalcantes... Agora, vou mesmo que já tocou a primeira
vez da missa do dia.
– Se mãezinha tivesse
com quem ficar, iria também à missa.
– Não seja essa a
dúvida, filha – observou a enferma. – Basta que me deixes ao alcance da mão um
caneco d’água.
– E vou mesmo. Há muito
que não piso na igreja. É mesmo um pecado...
Raulino despediu-se,
sorvendo, com estrépito, outra pitada, e partiu no seu passo de andarilho,
bamboleando num chouto mole, miúdo, o corpo ereto e musculoso.
Preparada a refeição da
mãe, Luzia ataviou-se, com o seu melhor vestido, um roupão de cassa lisa, que,
amarrado à cintura, lhe desenhava as formas graciosas, e saiu na direção da
cidade.
Não era a missa um
pretexto para sair; mas, ao profundo sentimento religioso se aliava a
casquilhice inocente de exibir os belos vestidos, as últimas fantasias da arte
decorativa da mulher, importadas do Recife, uns trajes vaporosos de renda e
cambraia, feitos com requintes convencidos de elegância, com raro gosto, pelas
adoráveis criaturas que os vestiam. Nada havia de censurável em que as moças da
cidade, metidas durante toda a semana em casa, ocupadas em trabalhos
sedentários de renda e labirinto, se desforrassem desse retraimento nas festas
religiosas, celebradas, sempre, com extraordinário esplendor. Imitando à gente
rica, Luzia, além do intuito de cumprir um piedoso dever, nutria a esperança de
encontrar Teresinha ou Alexandre, obter notícias deles, ou, pelo menos,
encurtar a distância que os separava.
Ao passar pela rua do
Menino Deus, ela esmoreceu a marcha; aproximou-se do armazém da Comissão e
olhou atentamente para dentro, erguendo-se nas pontas dos pés, para ver,
através da multidão de indigentes, aglomerados à porta, a criatura querida.
Quando avistou a cadeia,
cujas grades negras estavam cheias de presos emaciados e lívidos, sentiu-se a
moça cortada de terror. Crapiúna estava ali dentro, como fera cativa,
devorando-a, talvez, naquele momento, com os olhos injetados por uma congestão
de cobiça e raiva impotente.
– Moça, ó! moça! – disse
um menino que se aproximou dela correndo. – Ali tem um preso que quer falar com
vosmecê.
Luzia repeliu, com um
gesto enérgico de negação, o esperto pequeno, que insistia no chamado, e
apressou o passo para distanciar-se da sinistra prisão, onde uma voz rouca e
vibrante, como um rugido, a voz de
Crapiúna, bradava suplicante, e amaldiçoava:
– Luzia, Luzia!... Meu
coração, meu amor da minha alma, tem pena de mim! Perdoa-me pelo amor de Deus!
Vem! É um instantinho... Não te farei mal. Vem! Só duas palavras!... Ah! Não me
ouves; não queres saber de mim!... Mulher do diabo!... Deixa estar, safada,
amaldiçoada, que não ficarei preso toda a vida... Nem que tu vás para o
inferno...
O soldado gritava,
estorcia-se delirante, agarrado às enormes barras de ferro do portão,
brandindo-as, abalando-as com inútil esforço para quebrá-las, arrancá-las dos
gonzos chumbados ao portal de granito...
Perseguida pelo eco dos
brados de insânia desesperada, ela penetrou no templo, como num abrigo
inexpugnável, defeso à maldade humana, à curiosidade vexatória daquela gente
que, lá fora, a considerava criatura impassível de coração, e se apiedava do
prisioneiro, cuja dor feroz lembrava a simpatia dos grandes infortúnios.
A imensa nave da matriz
desbordava de fiéis, amontoados, em confusa massa inquieta, alumiada pelos
jorros de crua luz, que se projetavam das arcadas laterais, recentemente
rasgadas nas formidáveis paredes de pedra e cal, sobre os mantos alvíssimos das
mulheres ajoelhadas. No fundo resplendia a capela-mor, o tabernáculo, esculpido
pelo cinzel do mestre João Francisco, o entalhador, com duas séries de
elegantes colunas coríntias, enleadas de parreira, a vinha do Senhor, e
rematadas de folhas de acanto, todas brancas, de figos dourados e sustendo a
arquitrave e a curva do arco que emoldurava a grande tela de Bindsay, a
Assunção de Nossa Senhora. Mais abaixo, dominando a banqueta de prata maciça e
os bustos dos Apóstolos, emergia, dentre palmas, dentre flores, a imagem da
Virgem da Conceição, a padroeira da cidade, coroada de ouro, de pedrarias,
quase escondida no amplo manto de veludo azul, marchetado de estrelas, bordado
com carinho pelas órfãs da Casa de Caridade. As chamas dos círios esmoreciam na
suntuosa claridade da manhã, como pálidas placas, dissolvendo-se em tênues fios
de fumo, a sumirem-se no ambiente saturado de incenso e de um odor agro de cera
derretida.
Luzia, sobressaltada
pela imprecação minaz do soldado, cujas palavras brutais lhe contundiam o
cérebro, pensara encontrar na casa de Deus, aos pés da Mãe Santíssima, refúgio
e conforto à sua alma atribulada. Mas, ali mesmo, a perseguia a protérvia da
multidão. De pé, hesitante na escolha do lugar para ajoelhar-se, era alvo de
olhares, que a lapidavam, trocados entre as mulheres, que desembuchavam a
malícia atroz dos ruins sarcasmos. Uma crispação de surpresa, de curiosidade
assanhada agitou a onda viva que a cercava. Raparigas e meninas, matronas e
velhas, fitaram-na com insistência, imobilizadas de pasmo, e de boca em boca
perpassou ininterrupto murmúrio, cochichado de todos os lados:
– É a Luzia!... A
Luzia-Homem!...
Prostrada à meiasombra
de um confessionário de jacarandá, salientemente adornado de arabescos estranhos,
absorta em sincera prece, ela ouviu a missa, celebrada pelo vigário Vicente
Jorge de Sousa, cuja voz sonora e forte, recitando as orações do ritual,
dominava os pigarros, as tosses incontinentes e o choro clássico das crianças
que aguardavam o batismo, ocultas sob os lençóis das mães, que ali mesmo, as
amamentavam. Rezou pela mãe entrevada, por Teresinha; rendeu graças a Deus pela
libertação de Alexandre; e quando se ergueu a Hóstia, ao ruído de peitos
percutidos, do som argentino da campainha, tangida pelo sacristão, José Fialho,
um velho doce e respeitável, pediu ao Deus sofredor e resignado, ao Deus de
amor e misericórdia, como Jesus pedira ao pai celestial perdão para os algozes
que o flagelaram e o crucificaram, se apiedasse do infeliz soldado, vítima da
insânia de uma paixão brutal. E, como se esse generoso impulso rompesse os
diques à inefável caudal de consolação, sentiu-se alvoroçada de suavíssima
alegria, desse gozo incomparável da alma purificada, expungida das sombras do
remorso. Seus olhos, fitos no doce semblante da imagem da Virgem, e aljofraram
de pranto, lágrimas de reconhecimento, porque Deus se compadecera de
Luzia-Homem, ouvira a sua prece.
As últimas palavras do
sacerdote, recitando, de cor, o evangelho de São João, os fiéis se ergueram com
sussurro, espraiaram-se pelo patamar, sob um sol intenso, e se dispersaram em
todas as direções, descendo pelo suave declive do cúmulo, onde se ergue o
templo, acrópole da cidade.
No átrio, do lado da pia
de água benta, bela concha de lioz, ereta no centro da pequena capela
consagrada a São João Batista, dezenas de mães piedosas esperavam o batismo dos
filhinhos, crianças sadias, nédias, sorridentes, espantadas, pequeninos seres
informes, moribundos, esqueléticos e arroxeados, mal podendo emitir lamentoso
vagido. Do outro lado, reunidos em grupos, estavam os nubentes, rapazes e
moças, de olhos baixos, confusos, vexados como delinqüentes de amores
criminosos, vindo pedir absolvição ao sacramento.
Luzia permaneceu, no
recinto sagrado, ajoelhada, até que se esvaziou a imensa nave; e, quando se
dispunha a sair, foi atraída pelo choro das crianças e pelo doloroso contraste
das mães venturosas e das mães aflitas: umas, radiantes de amor; outras,
tristes. acabrunhadas de mágoa, animando, desenganadas, as inocentes vítimas,
para as quais a água lustral seria a extrema-unção.
– Se lhe fosse dado –
pensava ela – casar como aquelas ditosas moças, realizando o supremo anelo da
mãe doente; se o seu amor fosse, como o daquelas mães, matronas beneméritas, sorrindo
aos filhos vigorosos, abençoado por Deus, experimentaria o inefável júbilo de
sentir-se mulher, humanizada, completa e fecunda. Não temeria que os seus
filhos definhassem: defendê-los-ia contra as moléstias traiçoeiras e as
intempéries, inimigas das criaturas tenras, as flores e as crianças. Dos seus
seios de Pomona correria perene manancial de vida, que as pequeninas bocas
rosadas sorveriam, sôfregas. E as suas entranhas virginais latejavam em
alvoroço. Havia dentro dela, a insurreição dos gérmens da vida sofreados, e um
clamor de instintos, entoando o hino de glória à maternidade vitoriosa.
– Vamos aos batizados –
disse o vigário, chegando ao átrio, revestido de roquete rendilhado e cingindo
estola roxa, de finíssimo lavor. – Os noivos não têm pressa, que esperem –
acrescentou, atirando por cima dos óculos de ouro, um olhar de ironia aos
grupos do outro lado.
Ao começar a cerimônia,
Luzia se esgueirou e saiu, buscando a casa pelo caminho mais longo e afastado
da cadeia, onde Crapiúna imprecava, ameaçador e furioso.
A mãe se arrastara até à
porta do quarto, onde vigiava a panela fumegante, sobre a trempe de pedras, e
ouvia Quinotinha ler, muito devagar, e por vezes soletrando, no jornal O
Sobralense, a notícia dos episódios da audiência da véspera.
– Tudo isso – inquiriu a
velha – está escrito aí?
– Está, sim, senhora –
respondeu a rapariguinha. – Aqui no fim tem um pé, que diz: “Alexandre, a
vítima da perversa aleivosia do soldado, que, assim, desdoura a farda dos
bravos heróis do Paraguai, companheiros de jornada gloriosa dos lendários
Sampaio e Tibúrcio, é noivo de Luzia-Homem, a extraordinária mulher, que é uma
das melhores operárias da construção da penitenciária.”
Luzia ouviu o último
tópico, e prorrompeu indignada:
– O quê? Pois falam de
mim nas folhas?... Era só o que me faltava.
– Sim – afirmou
Quinotinha sorridente – Veja!...
E as duas repetiram a
leitura; a menina transbordante de alegria; ela, confusa, quase não acreditando
nos seus olhos, diante dos quais dançavam as colunas e letras do jornal, mal
impresso na tipografia Miragaia, a primeira estabelecida em Sobral.
– Só vim aqui mostrar
isto a vosmecês. Agora, vou indo que saí quase fugida – disse Quinotinha,
partindo a correr.
– Vai, anda, levadinha –
murmurou a velha sorrindo. – Essa menina é uma capeta. Sabe ler letra redonda!
Vejam só!... Agora que chegaste, deixa-me descansar um pouco na rede, enquanto
me preparas um caldo.
Luzia conduziu a mãe, e
voltou a cuidar da cozinha. Atordoada ainda pela leitura do jornal, ficou algum
tempo pensativa, percebendo, então, por que toda a gente a contemplava no
trajeto para a igreja, por que tanto se arrebatava Crapiúna, e os cochichos das
mulheres durante a missa. Era uma vergonha estar na folha com aquele horrível
nome – Luzia-Homem, tanto se lhe agarrara o cruel estigma. Ao emergir desse
cismar, olhou, de soslaio, para o caminho, e, divisando um vulto de homem que
se aproximava devagar, correu para o quarto com a tigela de caldo para a mãe.
Era Alexandre que se
aproximava, a passo indeciso e lento.
– Ó! da casa!
– É voz conhecida –
observou a velha.
– É... é... – balbuciou
Luzia comovida.
– Ó! de fora! Quem é? –
respondeu a enferma, falando com esforço.
– Sou eu... tia Zefa.
– Eu quem?
– O Alexandre.
– Ah! meu filho! Não te
dizia, Luzia?... Vai ter com ele.
Alexandre, fora do
alpendre, raspava com a unha a casca seca de um dos esteios de pau branco.
Deparando-se-lhe a moça, parada, indecisa, à porta do quarto, avançou para ela
e a saudou com ligeiro sorriso.
– Adeus, sá Luzia.
– Adeus, seu Alexandre.
– As duas mãos geladas,
hirtas, mãos de autômatos, apenas se tocaram.
– Como está? – perguntou
Luzia, de olhos baixos.
– Eu! Melhor de ontem
para hoje, como quem saiu da prisão.
– É horrível!...
– Nem pode fazer idéia
do que é...
– Abanque-se...
– Estou bem. A demora é
pouca. Vinha saber como está tia Zefa e vosmecê.
– Boas, graças a Deus.
Houve pausa cruciante de
enleio e vexame para ambos. Muito pálidos, muito comovidos, não sabiam mais que
dizer. Luzia, por fim, rompeu o silêncio:
– O senhor viu por aí
Teresinha?
– Esteve, ontem, comigo,
à tardinha. Prometeu estar aqui hoje...
– Não veio desde ontem.
– É esquisito.
– É. Não acha? O senhor
não quer falar com mãezinha? Pode entrar.
Alexandre entrou no
quarto, e Luzia ficou só no alpendre, inteiriçada, imóvel, contemplando o céu,
em êxtase. E assim ouviu as ruidosas manifestações da alegria da mãe, as
perguntas precipitadas que ela dirigia a Alexandre, as palavras de consolação,
afetuosas, sinceras, embebidas de maternal carinho.
– Venha sempre ver a
gente – suplicava a velha, sorrindo.
– Virei, sim. Virei
amanhã, se Deus quiser. Só tenho medo de importunar – respondeu Alexandre, com
ligeiro tom de mágoa.
Sentindo Alexandre a seu
lado, quando ele saiu do quarto, Luzia, arrancada de súbito à meditação, fez um
gesto de susto. A atitude do moço era a de quem hesita em dizer alguma coisa,
de abrir-lhe o coração, sufocado de ternura. Vencendo, por fim, o enleio, ele
tirou do bolso os cravos murchos, e, como criança medrosa recitando um recado,
murmurou:
– Aqui estão estas
flores, que a senhora esqueceu no baldrame da grade da cadeia... Adeus... Até
outra vez...
– Até... – suspirou ela
arquejante, guardando as flores no seio, e apertando-as contra o peito, em
frenético amplexo, enquanto ele lhe voltava as costas, e partia.
– Seu Alexandre!...
O moço estacou ansioso,
não ousando encarar nela.
– Quero pedir-lhe uma
coisa – disse a moça, caminhando para ele, vagarosa e humilhada. – Não
repare... no que tenho feito... Sou má de nascença... Minha sorte é fazer os
outros padecerem... Tenha dó de mim... Peço... Peço-lhe que me perdoe...
– Luzia! – exclamou ele,
numa explosão de ternura, estendendo-lhe os braços para ampará-la, porque ela
vacilava.
– Perdoe-me – repetiu a
mísera, vencida, com voz angustiada, quase à surdina, estacando diante de
Alexandre, que sorria.
XXVII
Dias depois, soube Luzia
do paradeiro de Teresinha.
Raulino contou-lhe como
a encontrara, sucumbida, em amarga tristeza, a se penitenciar no serviço doméstico
de uma família desconhecida.
– É possível – exclamou
Luzia – que aquela pobre esteja vivendo de aluguel? Por que nos abandonou sem
motivo?
– Eu não sei dizer –
observou Raulino. – O que sei é que ela está servindo a uns retirantes ricos,
aboletados na casa da fortaleza. Não me disse porquê. Ali há coisa. Se vosmecê
se encontrar com ela, não a conhece.
– Coitadinha!
– Não é mais aquela
mulherzinha espevitada e alegre. Não fala quase. A modos que lhe botaram
mau-olhado!
– Quem sabe se não a
intrigaram comigo?
– Não duvido. Há gente
para tudo. Quando eu lhe disse que íamos trabalhar nas obras da ladeira da
Mata-fresca, ela ficou calada, maginando, e disse-me por aqui assim: “A Luzia é
feliz; vai sair deste inferno... Eu é que estou condenada por toda a vida.” E,
como eu lhe inculcasse que devia abandonar aquela gente, os patrões, para vir
conosco, abanou a cabeça, desanimada que metia pena... Ah! Sá Luzia! Imagine
que a pobre faz todo o serviço; até trata de um burro velho, pele e osso, sem
préstimo para nada.
– Se seu Raulino fosse
comigo, iria vê-la.
Ora, ora, ora!... É já.
Que não farei eu para servir ao meu anjo da guarda? Olhe, benefício no meu
coração pega de galho. Vamos por detrás do cemitério velho e num instante,
estamos lá.
Pelo caminho continuaram
a conversar. Luzia marchava ligeira movendo o corpo com flexões de faceirice, a
cabeça ereta, e o semblante sereno, rebrilhando ao júbilo de encontrar a amiga.
Raulino aligeirava a travessia, contando, com a avidez contumaz do sucesso, as
suas maravilhas, as suas histórias.
– Sabe – disse ela,
abeirando ao assunto que a preocupava naqueles dias – que vamos morar na
ladeira?
– Já sei. O Alexandre
teimou em deixar o serviço da comissão. Eu, no caso dele, não largava o certo
pelo duvidoso. Empregado, como está, não arranjará melhor arrumação. Enfim,
pode ser que melhore. Na serra, a gente está mais à fresca, tem água com
fartura.
– E vai para longe desse
povaréu de pobres, esfomeados que cortam o coração... Não é?
– Lá isso é verdade. O
doutô, engenheiro das obras pesque é inglês ou alemão. Não sei bem que língua
ele fala. Bota o Alexandre no mesmo emprego que aqui tem, com uma gratificação
de três mil-réis por dia, afora a ração. Quando é a viagem?
– Por estes dias.
Talvez, depois de amanhã.
– E eu rente...
– Também vai?
– Se estou nomeado
feitor!... De mais a mais, já resolvi não largar de mão a gente que me quer
bem. Comigo vai uma troça de rapazes de primeira ordem; homens que são mouros
no trabalho.
– E eu que tenho pena de
deixar aquela casinha, onde curti tantas amarguras!
– É assim mesmo. A gente
tem saudade quando abandona o poleiro antigo; mas, ao depois, tendo junto os
seus, se conforma depressa, e as saudades voam como folhas secas tangidas por
um pé-de-vento.
– Quero ver se Teresinha
também nos acompanha.
– Ela é meia bandoleira.
– Mas, tenho certeza de
que me quer muito bem.
– Não digo o contrário.
Experimente... E... a propósito... Sabe que o Crapiúna fez, outro dia, na
cadeia um rolo danado? Estava como uma fera. Pensavam até que havia perdido o
juízo.
Luzia sentiu
percorrer-lhe o corpo intensa crispação de terror.
– Mas eu – continuou
Raulino – disse logo que aquilo era cachaça.
– Quem sabe!... Talvez
não – arriscou Luzia.
Haviam chegado ao renque
de casas da Leonor, que terminava na casa mal-assombrada.
– É aqui – disse
Raulino, indicando o pardieiro desengonçado. – Abeiremos às pedras da
fortaleza, Teresinha deve estar nos fundos.
Junto dos rochedos a
prumo, havia uma latada de palhas de carnaúba, recentemente construída para
servir de abrigo ao burro, que ali estava de pé, sonolento, espantando,
devagar, com açoites da cauda pelada, as moscas que erravam sobre as chagas da
sarnelha e das espáduas, quase cicatrizadas numas manchas negras, lubrificadas
com azeite de carrapato. Mais adiante, alguém lavava roupa, com um lânguido
bater cadenciado de pano molhado, algumas peças enxambradas, arrumadas, em tulha,
sobre um lajedo úmido.
– Teresinha! – chamou
Luzia.
Cessou o rumor de
lavagem, e Luzia insistiu.
– Teresinha, sou eu,
Luzia!...
E, avançando de jato,
deparou-se-lhe a amiga, que se erguera, seminua, com uma saia a tiracolo,
molhada, colada ao corpo.
– Que é isto? – exclamou
Luzia, passando-lhe o braço nos ombros.
– Nada – suspirou a
amiga, baixando os olhos, quase opacos, de infinita tristeza. – Estou pagando
as minhas culpas...
– Ingrata! E eu que
esperei, que passei noites em claro, pensando em você.
– Para que afligir os
outros com a minha desgraça!
– Que desgraça! Deus
teve pena de nós.
E, com um meigo gesto de
ternura, conchegou-lhe a cabeça ao seio.
– Sou amaldiçoada...
– Amaldiçoada? Que
maluquice! E por isso está servindo de negra cativa? Como está você mudada,
magra! Como ficou outra em tão poucos dias!...
– Teresa, deixe, minha
filha; não te mates tanto – disse, dentro de casa, uma voz carinhosa.
– Quem é? – perguntou
Luzia.
– É... é... – balbuciou
Teresinha, com os olhos trêmulos, rasos de lágrimas – É... minha mãe...
– Tua mãe?!
– Sim, ela mesma.
E contou como encontrara
a família, contou as suas alegrias por se mais não achar só no mundo,
desprezada e vilipendiada, alegrias que foram efêmeras, desfeitas pela cólera
do pai que lhe recusara a bênção, e a tratava como estranha à família. Os
carinhos da mãe, o doce contato da irmãzinha, a suave Maria da Graça, que era
um anjo de bondade, mal lhe leniam a rudez fulminante do golpe, que lhe lascara
o coração, e o expusera, retalhado, à luz com as suas máculas, como chagas
sangrentas, descascadas. Desde aquele momento, horrorizada de si mesma, obrigada
a baixar os olhos diante dos entes queridos, sabedores do seu grande crime, e
evitando o frio olhar paterno, se consagrara inteira à redenção do passado
nefando, pelo castigo cruel e merecido.
– Tive ímpetos –
concluiu ela, aos soluços – de trepar naquelas pedras e atirar-me de lá de
cabeça para baixo, mas... não tive coragem de morrer...
Deixa-te disso – acudiu
Luzia, com ternura. – Aqui estou eu para te ajudar, para te pagar o muito que
me fizeste, porque se sou feliz, a ti é que devo e a Deus.
Vim atrás de ti. Iremos
juntos para a serra, onde vamos trabalhar.
– Não posso... E meu
pai?
– Teu pai, mãe, irmã
irão mais nós. Alexandre encontrará meio de arrumar todos como uma família. Não
é possível que, depois de vivermos como duas amigas, nos separemos, talvez para
sempre.
– Se conseguisse isso,
seria um alívio para mim. Pelo menos, deixaríamos esta casa maldita, onde não
se pode pregar olhos toda a noite. Já vivo com o corpo moído; doem-me as
cadeiras que, às vezes, não me atrevo a torcer-me; tenho nos ouvidos um besouro
a zunir sem parar. Quando consigo passar por uma modorra, me vêm sonhos
agoniados; sonho que me caem os dentes, o Cazuza me arrasta pelos cabelos para
me atirar num despenhadeiro, e acordo em meio da queda. Esta noite senti mãos
frias que me encalcavam o peito, mãos de defunto a me sufocarem, e ouvi uma voz
fanhosa a dizer coisas sem pé nem cabeça. Despertei com o coração a saltar pela
goela. Vi, então, um vulto branco que se desmanchava no ar, com um gemido surdo
e... gritei... Mamãe, que passa a noite a rezar, correu a ver o que era... Eu
estava, como quem perdeu o juízo, apontando para o fundo escuro do quarto...
Ah! Luzia! Nem pode imaginar o que tenho sofrido...
– Coitadinha!..
– Hoje de manhã, quando
mamãe contou o caso a meu pai, ele respondeu... Que foi que ele disse? Deixa
ver se me lembro... Ah!... Não se amofine, mulher; é o remorso. Depois,
acrescentou com voz mais branda: Veja se arranja uma retirante limpa para
certos serviços, para que ela não se mate tanto... Dando casa e comida, não
falta quem queira trabalhar.
O burro, num acesso de
impaciência, orneou.
– Está pedindo milho –
observou Teresinha. – Este malvado é os meus pecados. Estava quase morto; não
se dava nada por ele. Recobrou as forças, comendo da minha mão; e, quanto mais
o trato, mais manhoso fica. Parece de propósito para judiar comigo. Se o ponho
a andar, empaca; fica como uma pedra; não se mexe. Outro dia ao passar por ele,
mordeu-me de furto... E é só comigo que ele implica.
– Tem paciência, minha
negra. O que estás padecendo é bem recompensado pela fortuna de haveres
encontrado tua família.
Raulino, que estivera à
parte, examinando o animal enfermo, com olhares magistrais de conhecedor,
aproveitou o ensejo para encartar uma das suas anedotas sobre astúcias e manhas
de burros.
– Era por volta da era
de sessenta. Não me lembra bem o ano; só sei que eu era rapazote; pelo tope dos
doze. Andava por estes sertões uma comissão de doutores, observando o céu com
óculos de alcance, muito complicados, tomando medida das cidades e povoações e
apanhando amostras de pedras, de barro, ervas e matos, que servem para
meizinhas, borboletas, besouros e outros bichos.
Os maiorais dessa
comissão eram homens de saber, Capanema, Gonçalves Dias, Gabaglia, um tal de
Freire Alemão, e um doutô médico chamado Lagos e outros. Andavam encourados
como nós vaqueiros; davam muita esmola e tiravam, de graça, o retrato da gente,
com uma geringonça, que parecia arte do demônio. Apontavam para a gente o óculo
de uma caixinha parecida gaita de foles e a cara da gente, o corpo e a
vestimenta saíam pintados, escarrados e cuspidos, num vidro esbranquiçado como
coalhada. Uma tarde, chegaram, ao pôr-do-sol, à fazenda do velho. Iam no rumo
da gruta do Ubajarra. Aboletaram-se no copiar, derrubando o comboio, que era um
estandarte de malas, instrumentos, espingardas, na casa dos passageiros. Depois
de jantarem um bom tassalho de carne de vaca gorda que parecia um leitão,
assada no espeto, algumas lingüiças e um chibarro aferventado com pirão escaldado,
armaram as redes nos esteios. Veio a noite, clara como dia, sem uma nuvem no
céu, liso como um espelho. Convidava mesmo a gente a dormir na fresca do
alpendre. Ali pelas sete horas, disse a eles o velho: “Achava melhor vossas
senhorias passarem cá para dentro, porque vem aí um pé-d’água de alagar.” Ora, os
doutores, que sabiam tudo e adivinhavam pelas estrelas as mudanças de tempo,
zombaram do aviso; saíram para o terreiro e olharam para o céu, sempre limpo e
claro, para verem o que diziam as estrelas. O mais sábio deles, o doutô
Capanema, disse que o velho estava sonhando com chuva, mania de sertanejos, que
não pensam noutra coisa. Teimaram em ficar no alpendre, embora o velho
continuasse a assegurar que se arrependeriam. Quando estavam ferrados no sono,
ali pelas onze horas, acordaram debaixo d’água e correram com a rede nas
costas, em procura de abrigo dentro de casa, todos admirados uns dos outros,
como haviam mangado do velho. De manhã, antes de deixarem o rancho, foram
agradecer a hospedagem, e um deles perguntou ao velho: “Como é que vossa
senhoria percebeu sinais de chuva, que escaparam a nós outros científicos,
envergonhados do quinau de mestre que nos deu?” O velho sorriu, e respondeu: “É
muito simples. Tenho ali, no cercado, um burro velho que, quando se está
formando chuva, rincha de certo modo: é aquela certeza. A chuva vem sem demora.
Foi por isso que avisei a vossa senhoria.” O tal de Gonçalves Dias, pequenino,
muito ladino e esperto, começou a bulir com os outros, dizendo a eles: “Estamos
numa terra, onde burros sabem mais que astrônomos.” Foi gargalhada geral. Aí
está – concluiu Raulino – de quanto é capaz um burro velho. Ninguém se fie em
semelhante raça de bicho...
Dispunha-se a contar
outras histórias, quando apareceram Clara e Maria da Graça, que já conheciam
Luzia, por informações de Teresinha.
– A Teresa – disse Clara
com voz lenta e meiga – quer muito bem à senhora e eu já lhe quero também muito
pelas ausências que ela lhe fez.
– Esta é a Luzia-Homem?
– perguntou a ingênua Maria da Graça. – Pois é bonita moça. Não tem nada de
homem... Não é, mamãe?...
– É apelido que lhe
puseram, filhinha. Não digas mais semelhante palavra.
– Não faz mal – observou
Luzia, visivelmente enleada. – É assim que me tratam.
– Perdoe – balbuciou a
rapariga. – Pensei que era mesmo o seu nome...
E, logo, houve palestra
cordial, como se fossem conhecidas de longa data. O projeto da mudança para a
Meruoca foi acolhido com entusiástica alegria; mas faltava o essencial: o
consentimento de Marcos. Não ousando a mulher e a filha consultá-lo, Raulino e
Luzia resolveram procurá-lo para saberem a sua opinião.
Marcos estava na sala da
frente, sentado na rede branca, enfeitada a ponto de marca, com vistosas
ramagens vermelhas e largas varandas franjadas, arrastando na esteira, onde ele
deixara, em desalinho, um livro, As missões abreviadas, marcado com os
óculos de ouro, o lenço de ganga azul e uma caixa de rapé de tartaruga, restos
da abastança perdida. Com as largas mãos descarnadas, eriçadas de pêlos, sustendo
a cabeça, vergada ao peso das idéias tristes que a povoavam, o velho meditava,
balouçando-se lentamente.
Raulino chegou à porta;
Luzia após ele.
– Dá licença, seu
capitão Marcos – disse Raulino, cortesmente.
– Quem é? – respondeu o
velho tomado de surpresa.
– É de paz.
– Queira entrar...
O velho ergueu-se;
examinou-os com os pequenos olhos azuis e
profundos; demorou-os sobre Luzia alguns instantes; e, indicando as
malas que, com as redes, davam a mobília da sala, principiou, com uma pausa triste,
a voz seca, penetrante e cava:
– Abanquem-se. Não
ignorem a desarrumação, pois somos comboieiros de passagem.
– Eu e esta moça somos
muito camaradas de sua filha, dona Teresinha.
Marcos tornou-se lívido.
Raulino continuou, com a desenvoltura de homem despachado e ladino:
– E sabemos que a vossa
senhoria não se lhe daria de achar uma arrumação...
– Ainda tenho algumas
migalhas – atalhou o velho – para não morrer à fome...
– Sabemos; mas, não
seria mau ganhar alguma, ainda que só chegue para o prato.
– Contanto que seja
serviço ao alcance de minhas forças... Eu já não posso com trabalhos puxados...
– Não há dúvida. É
serviço nas posses de vossa senhoria, nas obras do governo...
– Onde é isso?
– Na Meruoca...
– Já lá estive, há
muitos anos, em compra de farinha.
– Então está feito? Nós
ficamos muito agradecidos a vossa senhoria, que nos faz um favorão. Esta moça é
sá Luzia-Homem. Ela, estava com acanhamento de falar.
– Eu não sou mau, dona –
murmurou o velho, compungido. – Os desgostos me puseram assim. Era feliz, na
minha fazenda, uma situação bem boa, que não me dava cabedais, mas produzia com
que viver sem ser pesado a ninguém. Entrou-me, um dia, de repente, a desgraça
em casa e fugiu-me para sempre, o sossego. Vi... minha santa mulher envergonhada;
ela e a filha caçula a chorarem, escondidas pelos cantos para me não
amargurarem. Eu mesmo, tão ralado na vida, parecia oco, sem alma, como se me
houvessem roubado o coração. E saía atrás dele, à toa pelo mato, como um
desmiolado, em procura da filha ingrata, que o levara. Dias e noites, passei na
aflição de sentir-me atolado na lama, estas barbas sujas, evitando os amigos e
conhecidos, que me procuravam. Eu tinha vergonha de encarar nos próprios
bichos, quanto mais em cristãos, que conheciam a infâmia... Pedi a Deus que me
matasse, e Deus não me ouviu... Conservou-me a vida para castigo meu, para que
eu ficasse no mundo como um condenado... Depois, o tempo foi roendo o que me
restava de melindre. A negra chaga fechou por fora; mas continuou alastrando
por dentro... Afinal, a gente se acostuma a tudo... Rezei por alma da ingrata e
jurei que, dali em diante, só existiria para mim a filha mais moça, essa
inocente que não tinha culpa da crueldade da outra...
A voz do velho
rangia-lhe na garganta, em vibrações metálicas; tinha as modulações pungentes
do estertor de uma alma estrangulada pelo mais querido dos afetos.
– Moça – continuou ele,
erguendo-se e dirigindo-se a Luzia, que o contemplava, comovida. – A senhora é
mulher de bem; possui mãe, tem pai?... Conserve a sua honra; defenda-a mesmo a
preço da própria vida... Há filhos que matam os pais... Pois há piores monstros
da natureza – as filhas que os desonram... Os mortos deixam de sofrer; mas, os
vivos, infamados de dor e vergonha, ficam com a alma enferma para sempre...
– Teresinha também tem
sofrido tanto – observou, a medo, Luzia.
– Não me falem nela, se
querem que os acompanhe... Se a ela perdoasse, era capaz de matar-me outra vez
– murmurou o velho, cujos olhos azuis fulgiram num relâmpago de cólera.
Clara ouvia de longe,
atrás duma porta, esse doloroso colóquio. Não ousou entrar na sala para ajudar
Luzia na defesa de Teresinha tanto conhecia as crises terríveis daquela mágoa
inextinguível; mas os seus lábios trêmulos, lábios doloridos de mãe amantíssima,
nuns estos brandos de ternura, murmuravam, súplices, desconsolados:
– Pobre da minha
filhinha!... Parece que açoitam diante de mim, a minha filha do coração.
XXVIII
O sol repontava no
horizonte, como um rubro e enorme disco, surgindo de um lago de ouro
incandescente, quando o cortejo do êxodo se pôs em marcha, pela estrada da
serra.
Luzia percorreu, com
enternecimentos de saudade, os recantos da casa vazia, onde ficavam o pilão, o
jirau da latada, a trempe de pedra, os tições extintos, enterrados sob tulhas
mornas de cinza, tristes vestígios dos habitantes que a abandonavam.
Contemplou, com lágrimas comovidas, o lar apagado, o terreiro, em torno, limpo,
varrido, as árvores mortas, os mandacarus carcomidos até ao alcance dos dentes
dos animais vorazes, a paisagem triste, coisas mudas e mestas, que se lhe
afiguravam companheiros de infortúnio, dos quais se despedia para sempre. E
partiu, conduzindo, à cabeça, uma pequena trouxa.
Seis possantes rapazes e
Raulino iam à frente, revezando-se na condução da tia Zefa, estirada na rede,
amarrada a um caibro longo e flexível. A bagagem, duas malas e os cacarecos de
serventia doméstica, foi levada na véspera por outros trabalhadores e
Alexandre, que se adiantara para preparar a nova morada, o ninho da ventura
sonhada. A família de Marcos também partira com ele.
Ao passar a rede pelas
últimas casas da lagoa do Junco, perguntavam as mulheres debruçadas sobre as
janelas:
– Vai vivo ou morto?
– Bem viva, graças a
Deus, respondia Raulino.
– Deus a conserve. Boa
viagem!
Luzia lançou demorado
olhar ao morro do curral do Açougue, onde começava de alvejar, de reboco, a
penitenciária, enleada na floresta de andaimes, quase pronta para receber a
cumeeira. E ocorreu-lhe, como recordação piedosa, a triste sina dos condenados
que ali ficavam, por toda a vida, encerrados, como em sepultura de pedra e cal.
Dentre eles, surgia o espectro minaz de Crapiúna, cujos gritos terríveis de
desespero ecoavam ainda no coração dela, por mais que se esforçasse por
varrê-los da memória, e libertar-se da implacável obsessão, que lhe toldava a
serenidade do amor vitorioso.
Desviando os olhos do
morro sinistro, que fora o seu calvário de vilipêndio, compensado pela
florescência dos instintos sagrados e do afeto redentor de Luzia-Homem, ela
resfolegou aliviada, como se dentro daquelas paredes maciças, colossais,
ficassem encarcerados o passado, as mágoas, os dissabores dos opressivos dias
de miséria.
A estrada coleava pelo
terreno ondulado, cômoros calvos e vales cortados pelos sulcos dos regatos
extintos, e alteando insensivelmente, ao passo que, com a montanha, se
aproximavam, cada vez mais nítidos, o arvoredo, as manchas peladas dos roçados
estéreis, as cintas de granito, os talhados a pique, em precipícios medonhos, e
grotões sombrios, destacados, num esmalte bronzeado de neblina vaporosa.
Madrugadores serranos
desciam para a cidade, dirigindo comboios de farinha, de rapadura, o derradeiro
produto da lavoura agonizante. Troteando à cadência do ranger das cangalhas,
eles saudavam aos viajantes, repetindo a pergunta caridosa: “Vai vivo ou
morto?” – quando, tirando chapéu, se afastavam para darem passagem à rede da
tia Zefa.
À margem da estrada,
dentre moitas de mofumbos ressequidos e juremas desgrenhadas, uns fios de fumo
azulado erguiam– se, em tênues espirais, dos ranchos de retirantes, acordados
àquela hora da manhã, e pedindo, plangentes, uma esmolinha pelo amor de Deus.
Depois de duas horas de
marcha, interrompida a espaços, para descanso dos carregadores, tornou-se o
solo mais acidentado em sucessivas colinas e contrafortes tortuosos, dilatados,
como raízes colossais pelo sertão, partido em vales profundos, refrescados
pelas filtrações da serrania, sombreados por vegetação da folhagem pardacenta,
retorcida e crestada. Mais longe, uma descida íngreme, sobre estratificações da
piçarra cortante, os levou ao sopé da montanha, onde começava a ladeira, e
apareciam as primeiras árvores, os oitizeiros frondosos, cedros, paus-d’arco e
angicos em floração estiolada, contornando o riacho da Mata-fresca, do qual
restava intermitente fio d'água a deslizar sobre lajes, e gotejando de pedra em
pedra, como vagarosa lágrima. O séquito parou ao abrigo de grandes rochedos,
rolados e amontoados em confusão, por esforço titânico. Forte aragem rumorejava
encanada pelo boqueirão, com um ruído de mar longínquo.
– Estamos quase em casa!
– exclamou Raulino. – Mas o rabo é o mais difícil de esfolar. Ainda temos um
pedaço de ladeira de suar topete. Se pudéssemos ir pelo atalho, encurtaríamos
metade do caminho, mas a rede não pode passar na vereda cheia de voltas,
troncos e barrancos que é mesmo uma escada de demônios.
– Não há dúvida, seu
Raulino – observou um dos rapazes, limpando, com o dedo, o suor que lhe
perolava a fronte. – Nem que fosse carga mais pesada; nós somos cabras de
talento; vamos bater lá num fôlego, quanto mais a tia Zefinha que é leviana
como uma pena.
– Vocês são mas é uns
prosas – tornou o sertanejo, ironicamente. – Vejam como estão melados! Com
qualquer forcinha ficam botando a alma pela boca. Vamos ver se chegamos à Cova
da Onça sem arriar. Um trago da branca está esperando a gente lá em riba.
Vosmecê, sá Luzia, que é ligeira, vá pelo atalho que é melhor. Quando chegar no
primeiro cotovelo da ladeira, quebre a mão esquerda por uma vereda trilhada,
que desce de cabeça abaixo; chega no fundo da grota; passa entre dois muros de
pedra; atravessa o riacho e sobe por dentro de um bananal. Chegando na lombada
do outeiro, avista logo a casinha no meio de laranjeiras.
– Você já esteve aqui, seu
Raulino? – inquiriu Luzia.
– Ora, ora, ora! Eu
conheço o oco do mundo. Oh! Aqui vai a Teresinha. Veja o rasto dela, pequenino,
delgado no meio que não toca no chão. Se apertar o passo ainda a pega, porque
ela vai cansada. O rasto miúdo e encalcado mostra que vai devagar... Eu
rastejo, como se lesse no chão, até por cima da pedra, folharal e até dentro
d’água...
E, voltando-se para os
carregadores:
– Vambora! Pega de
jeito; acerta o passo, cabroeira mofina!... Vamo, vamo, que é meio-dia...
Agüenta o balanço! Aonde vocês botam o pirão que comem? Até daqui a um
tiquinho, sá Luzia...
E seguiram, em festiva
algazarra, estimulando-se com gritos, graçolas que repercutiam, com fragor, nas
quebradas do boqueirão. Raulino os tangia com ordens de comando, emitidas no
tom gutural dos vaqueiros, voz retumbante, que ele pretendia fosse ouvida a
léguas.
Luzia foi subindo após
eles, sem esforço, lentamente, até à primeira volta da ladeira, daí em diante
cavada na aresta das rochas, talhadas, a prumo, sobre o grotão profundo. Desse
sítio agreste, descortinou o panorama do sertão, cinzento de mormaço,
terminando no recorte azulado das serranias, ao nascente, avultando, eretos,
denteados e finos, como agulhas de catedral gótica, os picos, que eriçam as
crateras extintas dos Olhos-d’água do Pajé. Uma faixa verde-escuro, serpeando a
perder-se no horizonte, assinalava o interminável renque de oiticicas
seculares, marcando o sulco do rio estanque; depois espelhavam ao sol glorioso
daquele dia abrasador, a cidade em agrupamento informe, apenas esboçado, as
casas das fazendas abandonadas, ponteando, aqui e ali, a planície devastada e
quieta, como um imenso pântano.
Enternecida na
contemplação daquele espetáculo extraordinário, na sua tristeza de paisagem
morta, o sertão devastado como a terra combusta do Profeta, ouvia o festivo
alarido dos silvos das cigarras escondidas nos troncos vetustos, e hauria o ar
fresco da montanha, embalsamado pelo capitoso perfume das imburanas, a
descascarem, numa exuberância magnífica de seiva.
Desse enlevo, arrancou-a
o brado longínquo de Raulino, gritando aos carregadores da rede. Do outro lado
do desfiladeiro, mais longe ainda, Alexandre, do terreiro da casinha,
respondia, radiante de alegria pela aproximação dos entes queridos.
Obedecendo à indicação
do sertanejo, Luzia desceu pela tortuosa ladeira, que ia no fundo da grota, e,
sustendo-se nos arbustos das margens para não escorregar, colhendo flores
silvestres, parando, a revezes, para desembaraçar as vestes dos espinhos que a
detinham, chegou à garganta, que Raulino designara por dois muros de pedra,
duplo dique donde se despenhava, em catadupas, o riacho, quando Deus dava ao
Ceará chuvas benfazejas e fecundantes. Erguendo a saia, ela fruiu a delícia,
havia muito não gozada, de imergir n'água sussurrante, os pés pequeninos, as
pernas roliças e musculosas, adornadas de aveludada pelúcia negra. Com as
vestes presas ao joelho, curvou-se, colheu aljôfares cristalinos nas palmas
côncavas das mãos, e banhou o rosto e os cabelos, polvilhados pela poeira do
caminho.
Interrompeu-a pavoroso
grito, e uma voz, que ela, transida de terror, reconheceu, rugiu:
– Foi o diabo que te
atravessou no meu caminho. É a última vez que me empatas, peitica do
inferno!...
Luzia, na confusão da
surpresa, tentou recuar, esconder-se nas fendas dos rochedos; mas, vencendo o
impulso de covardia, e avançando, cautelosa, deparou-se-lhe Teresinha, na outra
margem da torrente, alucinada de terror, agitando, frenética, os braços, presa
a voz na garganta e as pernas paralisadas, chumbadas ao solo. Aquém, arquejava
Crapiúna em estos de cólera, tentando galgar as pedras que os separavam.
– Desta vez – grunhia o
soldado – nem Deus te acode, ladra ordinária. Fugi, durante a faxina da
madrugada, para vir lavar o meu peito... Ah!... Vais ver para quanto presto,
cachorra!...
Em convulsão de nervos
enrijados, Teresinha estertorava agoniada, agitando, com uns acenos
epilépticos, as mãos desarticuladas.
– Deixe a rapariga, seu
Crapiúna – bradou Luzia, avançando, resoluta e destemida.
O soldado voltou-se como
um tigre, ferido pelas costas.
Diante da moça, em
postura de firmeza impávida, magnífica de vigor e de beleza, o soldado
empalideceu, fez-se lívido, e recuou, como se um prestígio sobre-humano lhe
aplacasse os ímpetos incoercíveis de cólera e de vingança.
– Luzia! – murmurou ele,
quase súplice. – Não lhe quero fazer mal... Sou um desgraçado, um miserável...
Pedi-lhe outro dia, pelo amor de Deus, um instantinho de atenção. Não fez caso;
não teve dó de mim... Agora vai se decidir a minha sorte...
– Arrede-se; deixe-me
passar!... – intimou Luzia, com força, num tom imperativo, breve e seco.
– Escute-me, meu
coração... Nenhum homem neste mundo lhe quer bem como eu.
– Deixe-me passar!...
– Passar!?...
Luzia avançou agressiva.
– Pensas – continuou
Crapiúna, recuando, transfigurado o rosto por diabólico sorriso. – Pensas que
tenho medo de Luzia-Homem? Desgraça pouca é bobage...
E atirou-se de um salto
sobre Luzia, que, empolgando-o quase no ar, o torceu, e, atirando-o ao chão,
subjugado, comprimiu-lhe o peito com os joelhos.
O séquito parara na Cova
da Onça, cerca de cem metros de altura, donde se viam, distintamente, os
lutadores.
Crapiúna gemia, espumava
de raiva, medonho, sob a pressão inexorável que o esmagava.
– Miserável, miserável!
– gritava Luzia, rubra de pudor, de cólera, procurando deter as mãos crispadas
do soldado a lhe rasgarem o vestido. – Alexandre!... Raulino!...
A voz vibrante de
angústia retumbou nas quebradas do boqueirão, como um clangor de clarim, e a de
Raulino Uchoa respondeu como um eco:
– Agüente; tenha mão
nesse malvado, que já vou!...
Aproveitando um
movimento da rapariga para compor o traje, Crapiúna ergueu-se, e recuou de
salto. Arquejava de cansaço, e da boca lhe borbulhava sangrenta espuma. Os olhos,
injetados, fulgiam de volúpia brutal, louca, fixando-se desvairados em Luzia,
desgrenhada, o seio nu e as pernas esculturais a surgirem pelos rasgões das
saias, caídas em farrapos.
Ébrio de luxúria,
exasperado pela invocação de Alexandre, o monstro, recobrado o alento,
acometeu-a, rugindo.
Luzia conchegou ao peito
as vestes dilaceradas, e, com a destra, tentou lhe garrotear o pescoço; mas,
sentiu-se presa pelos cabelos e conchegada ao soldado que, em convulsão
horrenda, delirante, a ultrajava com uma voracidade comburente de beijos.
Súbito, ela lhe cravou as unhas no rosto para afastá-lo e evitar o contato
afrontoso.
Dois gritos medonhos
restrugiram na grota. Crapiúna, louco de dor, embebera-lhe no peito a faca, e
caía com o rosto mutilado, deforme, encharcado de sangue.
– Mãezinha!... –
balbuciou Luzia, abrindo os braços e caindo, de costas, sobre as lajes.
Raulino precipitara-se
no despenhadeiro. Agarrando-se aos arbustos encravados nos interstícios dos
rochedos, escorregando onde o penhasco se inclinava em rápido declive, saltando
com energia indômita por sobre as fendas, pendurando-se nos cipós que
entreteciam a floresta, atufando-se nas frondes das árvores, passando de uma a
outra com agilidade de símio, ou deslizando pelos troncos nodosos, enleados de
orquídeas, chegou ao fundo da grota.
Lá, em cima, se ouviam
os brados dos carregadores e os grandes gemidos dilacerados da mãe angustiada:
– Meu Deus, Mãe
Santíssima, valei-a, salvai a minha filhinha!...
Momentos depois, o
sertanejo surgiu do matagal, perto das pedras do riacho, ofegante do esforço da
fantástica descida, atassalhada a roupa, escoriados os braços e pernas pelos
espinhos, as mãos feridas, ensangüentadas. Luzia, hirta e lívida, jazia
seminua. Nos formosos olhos, muito abertos, parecia fulgir ainda o derradeiro
alento. Os cabelos, numa desordem, escorriam pela rocha, forrada de lodo, e
caíam no regato, cuja água, correndo em murmúrio lâmure, brincava com as pontas
crespas das intonsas madeixas flutuantes. Na destra crispada, encastoado entre
os dedos, encravado nas unhas, extirpado no esforço extremo da defesa, estava
um dos olhos de Crapiúna, como enorme opala, esmaltada de sangue, entre
filamentos coralinos dos músculos orbitais e os farrapos das pálpebras
dilaceradas. Sobre o seio, atravessado pelo golpe assassino, demoravam, tintos
de sangue, como se reflorissem cheios de seiva, cheios de fragrância, os cravos
murchos que lhe dera Alexandre.
Raulino recuou, cortado
de terror, ante o cadáver; e, num turbilhão de cólera, rugiu, arrepiado,
apertando os dentes, e, com uns gestos, que eram crispações medonhas de fera,
esquadrinhou o terreno, buscando e rebuscando o criminoso.
Crapiúna, ganindo de
dor, estorcia-se, erguia-se, nuns movimentos loucos, comprimido, sob as mãos, o
rosto mutilado; caía e erguia-se de novo, até que rolando de pedra em pedra, se
sumiu no precipício...
Voltando, então, para
junto do corpo de Luzia, Raulino curvou-se compungido; apalpou-lhe o peito,
ainda morno; e, aproximando os lábios da divina cabeça da heroína, gemeu com
intensa amargura, as palavras doloridas de unção aos moribundos:
– Jesus!... Jesus!...
Seja contigo!... Jesus, Maria e José!...
FIM
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
Apoio
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