LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio
eletrônico
O Ateneu, de
Raul Pompéia
Edição
referência:
A Biblioteca Virtual do Estudante
Brasileiro
I
"Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à
porta do Ateneu. Coragem para a luta." Bastante experimentei depois a
verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada
exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico, diferente
do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados
maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível
a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da
vitalidade na influência de um novo clima rigoroso. Lembramo-nos, entretanto,
com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje,
sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora e não viesse de longe a
enfiada das decepções que nos ultrajam.
Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas,
igual aos outros que nos alimentam, a saudade dos dias que correram como
melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a
compensação dos desejos que variam, das aspirações que se transformam,
alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica de
esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das horas, um pouco
de ouro mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao crepúsculo — a paisagem é
a mesma de cada lado beirando a estrada da vida.
Eu tinha onze anos.
Freqüentara como externo, durante alguns meses, uma
escola familiar do Caminho Novo, onde algumas senhoras inglesas, sob a direção
do pai, distribuíam educação à infância como melhor lhes parecia. Entrava às
nove horas, timidamente, ignorando as lições com a maior regularidade, e
bocejava até às duas, torcendo-me de insipidez sobre os carcomidos bancos que o
colégio comprara, de pinho e usados, lustrosos do contato da malandragem de não
sei quantas gerações de pequenos. Ao meio-dia, davam-nos pão com manteiga. Esta
recordação gulosa é o que mais pronunciadamente me ficou dos meses de
externato; com a lembrança de alguns companheiros — um que gostava de fazer rir
à aula, espécie interessante de mono louro, arrepiado, vivendo a morder, nas
costas da mão esquerda, uma protuberância calosa que tinha; outro adamado,
elegante, sempre retirado, que vinha à escola de branco, engomadinho e radioso,
fechada a blusa em diagonal do ombro à cinta por botões de madrepérola. Mais
ainda: a primeira vez que ouvi certa injúria crespa, um palavrão cercado de
terror no estabelecimento, que os partistas denunciavam às mestras por duas
iniciais como em monograma.
Lecionou-me depois um professor em domicílio.
Apesar deste ensaio da vida escolar a que me
sujeitou a família, antes da verdadeira provação, eu estava perfeitamente
virgem para as sensações novas da nova fase. O internato! Destacada do conchego
placentário da dieta caseira, vinha próximo o momento de se definir a minha
individualidade. Amarguei por antecipação o adeus às primeiras alegrias; olhei
triste os meus brinquedos, antigos já! os meus queridos pelotões de chumbo!
espécie de museu militar de todas as fardas, de todas as bandeiras, escolhida
amostra da força dos estados, em proporções de microscópio, que eu fazia formar
a combate como uma ameaça tenebrosa ao equilíbrio do mundo; que eu fazia
guerrear em desordenado aperto, — massa tempestuosa das antipatias geográficas,
encontro definitivo e ebulição dos seculares ódios de fronteira e de raça, que
eu pacificava por fim, com uma facilidade de Providência Divina, intervindo
sabiamente, resolvendo as pendências pela concórdia promíscua das caixas de
pau. Força era deixar à ferrugem do abandono o elegante vapor da linha circular
do lago, no jardim, onde talvez não mais tornasse a perturbar com a palpitação
das rodas a sonolência morosa dos peixinhos rubros, dourados, argentados,
pensativos à sombra dos tinhorões, na transparência adamantina da água...
Mas um movimento animou-me, primeiro estímulo sério
da vaidade: distanciava-me da comunhão da família, como um homem! Ia por minha
conta empenhar a luta dos merecimentos; e a confiança nas próprias forças sobrava.
Quando me disseram que estava a escolha feita da casa de educação que me devia
receber, a notícia veio achar-me em armas para a conquista audaciosa do
desconhecido.
Um dia, meu pai tomou-me pela mão, minha mãe beijou-me
a testa, molhando-me de lágrimas os cabelos e eu parti.
Duas vezes fora visitar o Ateneu antes da minha
instalação.
Ateneu era o grande colégio da época. Afamado por
um sistema de nutrido reclame, mantido por um diretor que de tempos a tempos
reformava o estabelecimento, pintando-o jeitosamente de novidade, como os
negociantes que liquidam para recomeçar com artigos de última remessa; o Ateneu
desde muito tinha consolidado crédito na preferência dos pais, sem levar em
conta a simpatia da meninada, a cercar de aclamações o bombo vistoso dos
anúncios.
O Dr. Aristarco Argolo de Ramos, da conhecida
família do Visconde de Ramos, do Norte, enchia o império com o seu renome de
pedagogo. Eram boletins de propaganda pelas províncias, conferências em diversos
pontos da cidade, a pedidos, à substância, atochando a imprensa dos lugarejos,
caixões, sobretudo, de livros elementares, fabricados às pressas com o ofegante
e esbaforido concurso de professores prudentemente anônimos, caixões e mais
caixões de volumes cartonados em Leipzig, inundando as escolas públicas de toda
a parte com a sua invasão de capas azuis, róseas, amarelas, em que o nome de
Aristarco, inteiro e sonoro, oferecia-se ao pasmo venerador dos esfaimados de
alfabeto dos confins da pátria. Os lugares que os não procuravam eram um belo
dia surpreendidos pela enchente, gratuita, espontânea, irresistível! E não
havia senão aceitar a farinha daquela marca para o pão do espírito. E
engordavam as letras, à força, daquele pão. Um benemérito. Não admira que em
dias de gala, íntima ou nacional, festas do colégio ou recepção da coroa, o
largo peito do grande educador desaparecesse sob constelações de pedraria,
opulentando a nobreza de todos os honoríficos berloques.
Nas ocasiões de aparato é que se podia tomar o
pulso ao homem. Não só as condecorações gritavam-lhe do peito como uma couraça
de grilos: Ateneu! Ateneu! Aristarco, todo era um anúncio. Os gestos, calmos,
soberanos, eram de um rei — o autocrata excelso dos silabários; a pausa
hierática do andar deixava sentir o esforço, a cada passo, que ele fazia para
levar adiante, de empurrão, o progresso do ensino público; o olhar fulgurante,
sob a crispação áspera dos supercílios de monstro japonês, penetrando de luz as
almas circunstantes — era a educação da inteligência; o queixo, severamente
escanhoado, de orelha a orelha, lembrava a lisura das consciências limpas — era
a educação moral. A própria estatura, na imobilidade do gesto, na mudez do
vulto, a simples estatura dizia dele: aqui está um grande homem... não vêem os
cavados de Golias?!... Retorça-se sobre tudo isto um par de bigodes, volutas
maciças de fios alvos, torneadas a capricho, cobrindo os lábios fecho de prata
sobre o silêncio de ouro, que tão belamente impunha como o retraimento fecundo do
seu espírito, — teremos esboçado, moralmente, materialmente, o perfil do
ilustre diretor. Em suma, um personagem que, ao primeiro exame, produzia-nos a
impressão de um enfermo, desta enfermidade atroz e estranha: a obsessão da
própria estátua. Como tardasse a estátua, Aristarco interinamente satisfazia-se
com a afluência dos estudantes ricos para o seu instituto. De fato, os
educandos do Ateneu significavam a fina flor da mocidade brasileira.
A irradiação da réclame alongava de tal modo os
tentáculos através do país, que não havia família, de dinheiro, enriquecida
pela setentrional borracha ou pela charqueada do sul, que não reputasse um
compromisso de honra com a posteridade doméstica mandar dentre seus jovens, um,
dois, três representantes abeberar-se à fonte espiritual do Ateneu.
Fiados nesta seleção apuradora, que é comum o erro
sensato de julgar melhores famílias as mais ricas, sucedia que muitas,
indiferentes mesmo e sorrindo do estardalhaço da fama, lá mandavam os filhos.
Assim entrei eu.
A primeira vez que vi o estabelecimento, foi por
uma festa de encerramento de trabalhos.
Transformara-se em anfiteatro uma das grandes salas
da frente do edifício, exatamente a que servia de capela; paredes estucadas de
suntuosos relevos, e o teto aprofundado em largo medalhão, de magistral
pintura, onde uma aberta de céu azul despenhava aos cachos deliciosos anjinhos,
ostentando atrevimentos róseos de carne, agitando os minúsculos pés e as
mãozinhas, desatando fitas de gaza no ar. Desarmado o oratório, construíram-se
bancadas circulares, que encobriam o luxo das paredes. Os alunos ocupavam a
arquibancada. Como a maior concorrência preferia sempre a exibição dos
exercícios ginásticos, solenizada dias depois do encerramento das aulas, a
acomodação deixada aos circunstantes era pouco espaçosa; e o público, pais e
correspondentes em geral, porém mais numeroso do que se esperava, tinha que
transbordar da sala da festa para a imediata. Desta ante-sala, trepado a uma
cadeira, eu espiava. Meu pai ministrava-me informações. Diante da arquibancada,
ostentava-se uma mesa de grosso pano verde e borlas de ouro. Lá estava o
diretor, o ministro do império, a comissão dos prêmios. Eu via e ouvia. Houve
uma alocução comovente de Aristarco; houve discursos de alunos e mestres; houve
cantos, poesias declamadas em diversas línguas. O espetáculo comunicava-me
certo prazer respeitoso. O diretor, ao lado do ministro, de acanhado físico,
fazia-o incivilmente desaparecer na brutalidade de um contraste escandaloso. Em
grande tenue dos dias graves, sentava-se, elevado no seu orgulho como em um
trono. A bela farda negra dos alunos, de botões dourados, infundia-me a
consideração tímida de um militarismo brilhante, aparelhado para as campanhas
da ciência e do bem. A letra dos cantos, em coro dos falsetes indisciplinados
da puberdade; os discursos, visados pelo diretor, pançudos de sisudez, na boca
irreverente da primeira idade, como um Cendrillon malfeito da burguesia
conservadora, recitados em monotonia de realejo e gestos rodantes de manivela,
ou exagerados, de voz cava e caretas de tragédia fora de tempo, eu recebia tudo
convictamente, como o texto da bíblia do dever; e as banalidades profundamente
lançadas como as sábias máximas do ensino redentor. Parecia-me estar vendo a
legião dos amigos do estudo, mestres à frente, na investida heróica do
obscurantismo, agarrando pelos cabelos, derribando, calcando aos pés a
Ignorância e o Vício, misérrimos trambolhos, consternados e esperneantes.
Um discurso principalmente impressionou-me. À
direita da comissão dos prêmios, ficava a tribuna dos oradores. Galgou-a firme,
tesinho, O Venâncio, professor do colégio, a quarenta mil-réis por matéria, mas
importante, sabendo falar grosso, o timbre de independência, mestiço de bronze,
pequenino e tenaz, que havia de varar carreira mais tarde. O discurso foi o
confronto chapa dos torneios medievais com o moderno certame das armas da
inteligência; depois, uma preleção pedagógica, tacheada de flores de retórica a
martelo; e a apologia da vida de colégio, seguindo-se a exaltação do Mestre em
geral e a exaltação, em particular, de Aristarco e do Ateneu. "O mestre,
perorou Venâncio, é o prolongamento do amor paterno, é o complemento da ternura
das mães, o guia zeloso dos primeiros passos, na senda escabrosa que vai às conquistas
do saber e da moralidade. Experimentado no labutar cotidiano da sagrada
profissão, o seu auxílio ampara-nos como a Providência na Terra; escolta-nos
assíduo como um anjo da guarda; a sua lição prudente esclarece-nos a jornada
inteira do futuro. Devemos ao pai a existência do corpo; o mestre cria-nos o
espírito (sorites de sensação), e o espírito, é a força que impele, o impulso
que triunfa, o triunfo que nobilita, o enobrecimento que glorifica, e a glória
é o ideal da vida, o louro do guerreiro, o carvalho do artista, a palma do
crente! A família, é o amor no lar, o estado é a segurança civil; o mestre, com
amor forte que ensina e corrige, prepara-nos para a segurança íntima
inapreciável da vontade. Acima de Aristarco — Deus! Deus tão-somente; abaixo de
Deus — Aristarco."
Um último gesto espaçoso, como um jamegão no vácuo,
arrematou o rapto de eloqüência.
Eu me sentia compenetrado daquilo tudo; não tanto
por entender bem, como pela facilidade da fé cega a que estava disposto. As
paredes pintadas da ante-sala imitavam pórfiro verde; em frente ao pórtico
aberto para o jardim, graduava-se uma ampla escada, caminho do andar superior.
Flanqueando a majestosa porta desta escada, havia dois quadros de alto-relevo;
à direita, uma alegoria das artes e do estudo; à esquerda, as indústrias
humanas, meninos nus como nos frisos de Kaulbach, risonhos, com a ferramenta
simbólica — psicologia pura do trabalho, modelada idealmente na candura do
gesso e da inocência. Eram meus irmãos! Eu estava a esperar que um deles,
convidativo, me estendesse a mão para o bailado feliz que os levava. Oh! que
não seria o colégio, tradução concreta da alegoria, ronda angélica de corações
à porta de um templo, dulia permanente das almas jovens no ritual austero da
virtude!
Por ocasião da festa da ginástica, voltei ao
colégio.
O Ateneu estava situado no Rio Comprido, extremo ao
chegar aos morros.
As eminências de sombria pedra e a vegetação
selvática debruçavam sobre o edifício um crepúsculo de melancolia, resistente ao
próprio sol a pino dos meios-dias de novembro. Esta melancolia era um plágio ao
detestável pavor monacal de outra casa de educação, o negro Caraça de Minas.
Aristarco dava-se palmas desta tristeza aérea — a atmosfera moral da meditação
e do estudo, definia, escolhida a dedo para maior luxo da casa, como um
apêndice mínimo da arquitetura.
No dia da festa da educação física, como rezava o
programa (programa de arromba, porque o secretário do diretor tinha o talento
dos programas) não percebi a sensação de ermo tão acentuada em sítios
montanhosos, que havia de notar depois. As galas do momento faziam sorrir a
paisagem. O arvoredo do imenso jardim, entretecido a cores por mil bandeiras,
brilhava ao sol vivo com o esplendor de estranha alegria; os vistosos panos, em
meio da ramagem, fingiam flores colossais, numa caricatura extravagante de
primavera; os galhos frutificavam em lanternas venezianas, pomos de papel
enormes, de uma uberdade carnavalesca. Eu ia carregado, no impulso da multidão.
Meu pai prendia-me solidamente o pulso, que me não extraviasse.
Mergulhado na onda, eu tinha que olhar para cima,
para respirar. Adiante de mim, um sujeito mais próximo fez-me rir; levava de
fora a fralda da camisa... Mas não era fralda; verifiquei que era o lenço. Do
chão subia um cheiro forte de canela pisada; através das árvores, com
intervalos, passavam rajadas de música, como uma tempestade de filarmônicas.
Um último aperto mais rijo, estalando-me as
costelas, espremeu-me, por um estreito corte de muro, para o espaço livre.
Em frente, um gramal vastíssimo. Rodeava-o uma ala
de galhardetes, contentes no espaço, com o pitoresco dos tons enérgicos
cantando vivo sobre a harmoniosa surdina do verde das montanhas. Por todos os
lados apinhava-se o povo. Voltando-me, divisei, ao longo do muro, duas linhas
de estrado com cadeiras quase exclusivamente ocupadas por senhoras, fulgindo os
vestuários, em violenta confusão de colorido. Algumas protegiam o olhar com a
mão enluvada, com o leque, à altura da fronte, contra a rutilação do dia num
bloco de nuvens que crescia do céu. Acima do estrado balouçavam docemente e
sussurravam bosquetes de bambu, projetando franjas longuíssimas de sombra pelo
campo de relva.
Algumas damas empunhavam binóculos. Na direção dos
binóculos distinguia-se um movimento alvejante. Eram os rapazes. "Aí vêm!
disse-me meu pai; vão desfilar por diante da princesa." A princesa
imperial, Regente nessa época, achava-se à direita em gracioso palanque de
sarrafos.
Momentos depois, adiantavam-se por mim os alunos do
Ateneu. Cerca de trezentos; produziam-me a impressão do inumerável. Todos de
branco, apertados em larga cinta vermelha, com alças de ferro sobre os quadris
e na cabeça um pequeno gorro cingido por um cadarço de pontas livres. Ao ombro
esquerdo traziam laços distintivos das turmas. Passaram a toque de clarim,
sopesando os petrechos diversos dos exercícios. Primeira turma, os halteres;
segunda, as maças; terceira, as barras.
Fechavam a marcha, desarmados, os que figurariam
simplesmente nos exercícios gerais.
Depois de longa volta, a quatro de fundo,
dispuseram-se em pelotões, invadiram o gramal e, cadenciados pelo ritmo da
banda de colegas, que os esperava no meio do campo, com a certeza de amestrada
disciplina, produziram as manobras perfeitas de um exército sob o comando do
mais raro instrutor.
Diante das fileiras, Bataillard, o professor de
ginástica, exultava envergando a altivez do seu sucesso na extremada elegância
do talhe, multiplicando por milagroso desdobramento o compêndio inteiro da
capacidade profissional, exibida em galeria por uma série infinita de atitudes.
A admiração hesitava a decidir-se pela formosura masculina e rija da plástica
de músculos a estalar o brim do uniforme, que ele trajava branco como os
alunos, ou pela nervosa celeridade dos movimentos, efeito elétrico de lanterna
mágica, respeitando-se na variedade prodigiosa a unidade da correção suprema.
Ao peito tilintavam-se as agulhetas do comando,
apenas de cordões vermelhos em trança. Ele dava as ordens fortemente, com uma vibração
penetrante de corneta que dominava a distância, e sorria à docilidade mecânica
dos rapazes. Como oficiais subalternos, auxiliavam-no os chefes de turma,
postados devidamente com os pelotões, sacudindo à manga distintivos de fita
verde e canutilho.
Acabadas as evoluções, apresentaram-se os
exercícios. Músculos do braço, músculos do tronco, tendões dos jarretes, a
teoria toda do corpore sano foi praticada valentemente ali, precisamente, com a
simultaneidade exata das extensas máquinas. Houve após, o assalto aos
aparelhos. Os aparelhos alinhavam-se a uma banda do campo, a começar do
palanque da Regente. Não posso dar idéia do deslumbramento que me ficou desta
parte. Uma desordem de contorções, deslocadas e atrevidas; uma vertigem de
volteios à barra fixa, temeridades acrobáticas ao trapézio, às perchas, às
cordas, às escadas; pirâmides humanas sobre as paralelas, deformando-se para os
lados em curvas de braços e ostentações vigorosas de tórax; formas de
estatuária viva, trêmulas de esforço, deixando adivinhar de longe o estalido
dos ossos desarticulados; posturas de transfiguração sobre invisível apoio;
aqui e ali uma cabecinha loura, cabelos em desordem cacheados à testa, um rosto
injetado pela inversão do corpo, lábios entreabertos ofegando, olhos semicerrados
para escapar à areia dos sapatos, costas de suor, colando a blusa em pasta,
gorros sem dono que caíam do alto e juncavam a terra; movimento, entusiasmo por
toda a parte e a soalheira, branca nos uniformes, queimando os últimos fogos da
glória diurna sobre aquele triunfo espetaculoso da saúde, da força, da
mocidade.
O Professor Bataillard, enrubescido de agitação,
rouco de comandar, chorava de prazer. Abraçava os rapazes indistintamente. Duas
bandas militares revezavam-se ativamente, comunicando a animação à massa dos
espectadores. O coração pulava-me no peito com um alvoroço novo, que me
arrastava para o meio dos alunos, numa leva ardente de fraternidade. Eu batia
palmas; gritos escapavam-me, de que me arrependia quando alguém me olhava.
Deram fim à festa os saltos, os páreos de carreira,
as lutas romanas e a distribuição dos prêmios de ginástica, que a mão egrégia
da Sereníssima Princesa e a pouco menos do Esposo Augusto alfinetavam sobre os
peitos vencedores. Foi de ver-se os jovens atletas aos pares aferrados,
empuxando-se, constringindo-se, rodopiando, rolando na relva com gritos
satisfeitos e arquejos de arrancada; os corredores, alguns em rigor, respiração
medida, beiços unidos, punhos cerrados contra o corpo, passo miúdo e vertiginoso;
outros, irregulares, bracejantes prodigalizando pernadas, rasgando o ar a
pontapés, numa precipitação desengonçada de avestruz, chegando estofados, com
placas de poeira na cara, ao poste da vitória.
Aristarco arrebentava de júbilo. Pusera de parte o
comedimento soberano que eu lhe admirara na primeira festa. De ponto em branco,
como a rapaziada, e chapéu-do-chile, distribuía-se numa ubiqüidade impossível
de meio ambiente. Viam-no ao mesmo tempo a festejar os príncipes com o risinho
nasal, cabritante, entre lisonjeiro e irônico, desfeito em etiquetas de
reverente súdito e cortesão; viam-no bradando ao professor de ginástica, a
gesticular com o chapéu seguro pela copa; viam-no formidável, com o perfil
leonino rugir sobre um discípulo que fugira aos trabalhos, sobre outro que
tinha limo nos joelhos, de haver lutado em lugar úmido, gastando tal veemência
no ralho, que chegava a ser carinhoso.
O figurino campestre rejuvenescera-o. Sentia as
pernas leves e percorria celerípede a frente dos estrados, cheio de
cumprimentos para os convidados especiais e de interjetivos amáveis para todos.
Perpassava como uma visão de brim claro, súbito extinta para reaparecer mais
viva noutro ponto. Aquela expansão vencia-nos; ele irradiava de si, sobre os
alunos, sobre os espectadores, o magnetismo dominador dos estandartes de
batalha. Roubava-nos dois terços da atenção que os exercícios. pediam;
indenizava-nos com o equivalente em surpresas de vivacidade, que desprendia de
si, profusamente, por erupções de jorro em roda, por ascensões cobrejantes de
girândola, que iam às nuvens, que baixavam depois serenamente, diluídas na
viração da tarde, que os pulmões bebiam. Ator profundo, realizava ao pé da
letra, a valer, o papel diáfano, sutil, metafísico, de alma da festa e alma do
seu instituto.
Uma coisa o entristeceu, um pequenino escândalo.
Seu filho Jorge, na distribuição dos prêmios, recusara-se a beijar a mão da
princesa, como faziam todos ao receber a medalha. Era republicano o pirralho!
Tinha já aos quinze anos as convicções ossificadas na espinha inflexível do
caráter! Ninguém mostrou perceber a bravura. Aristarco, porém, chamou o menino
à parte. Encarou-o silenciosamente e — nada mais. E ninguém mais viu o
republicano! Consumira-se naturalmente o infeliz, cremado ao fogo daquele
olhar! Nesse momento as bandas tocavam o hino da monarquia jurada, última verba
do programa.
Começava a anoitecer, quando o colégio formou ao
toque de recolher. Desfilaram aclamados, entre alas de povo, e se foram do
campo, cantando alegremente uma canção escolar.
À noite houve baile nos três salões inferiores do
lance principal do edifício e iluminação no jardim.
Na ocasião em que me ia embora, estavam acendendo
luzes variadas de Bengala diante da casa. O Ateneu, quarenta janelas,
resplendentes do gás interior, dava-se ares de encantamento com a iluminação de
fora. Erigia-se na escuridão da noite, como imensa muralha de coral flamante,
como um cenário animado de safira com horripilações errantes de sombra, como um
castelo fantasma batido de luar verde emprestado à selva intensa dos romances
cavalheirescos, despertado um momento da legenda morta para uma entrevista de
espectros e recordações. Um jacto de luz elétrica, derivado de foco invisível,
feria a inscrição dourada ATHENÆUM em arco sobre as janelas centrais, no alto
do prédio. A uma delas, à sacada, Aristarco mostrava-se. Na expressão olímpica
do semblante transpirava a beatitude de um gozo superior. Gozava a sensação
prévia, no banho luminoso, da imortalidade a que se julgava consagrado. Devia
ser assim: — luz benigna e fria, sobre bustos eternos, o ambiente glorioso do
Panteão. A contemplação da posteridade embaixo.
Aristarco tinha momentos destes, sinceros. O
anúncio confundia-se com ele, suprimia-o, substituía-o, e ele gozava como um
cartaz que experimentasse o entusiasmo de ser vermelho. Naquele momento, não
era simplesmente a alma do seu instituto, era a própria feição palpável, a
síntese grosseira do título, o rosto, a testada, o prestígio material de seu
colégio, idêntico com as letras que luziam em auréola sobre a cabeça. As
letras, de ouro; ele, imortal: única diferença.
Guardei, na imaginação infantil, a gravura desta
apoteose com o atordoamento ofuscado, mais ou menos de um sujeito partindo à
meia
noite de qualquer teatro, onde, em mágica beata,
Deus Padre pessoalmente se houvesse prestado a concorrer para a grandeza do
último quadro.
— Conheci-o solene na primeira festa, jovial na
segunda; conheci-o mais tarde em mil situações, de mil modos; mas o retrato que
me ficou para sempre do meu grande diretor, foi aquele — o belo bigode branco,
o queixo barbeado, o olhar perdido nas trevas, fotografia estática, na aventura
de um raio elétrico.
É fácil conceber a atração que me chamava para
aquele mundo tão altamente interessante, no conceito das minhas impressões.
Avaliem o prazer que tive, quando me disse meu pai que eu ia ser apresentado ao
diretor do Ateneu e à matrícula. O movimento não era mais a vaidade, antes o
legítimo instinto da responsabilidade altiva; era uma conseqüência apaixonada
da sedução do espetáculo, o arroubo de solidariedade que me parecia prender à
comunhão fraternal da escola. Honrado engano, esse ardor franco por uma empresa
ideal de energia e de dedicação premeditada confusamente, no calculo pobre de
uma experiência de dez anos.
O diretor recebeu-nos em sua residência, com
manifestações ultra de afeto. Fez-se cativante, paternal; abriu-nos amostras
dos melhores padrões do seu espírito, evidenciou as faturas do seu coração. O
gênero era bom sem dúvida nenhuma; que apesar do paletó de seda e do calçado
raso com que se nos apresentava, apesar da bondosa familiaridade com que
declinava até nós, nem um segundo o destituí da altitude de divinização em que
o meu critério embasbacado o aceitara.
Verdade é que não era fácil reconhecer ali,
tangível e em carne, uma entidade outrora da mitologia das minhas primeiras
concepções antropomórficas; logo após Nosso Senhor, o qual eu imaginara velho,
feiíssimo, barbudo, impertinente, corcunda, ralhando por trovões, carbonizando
meninos com o corisco. Eu aprendera a ler pelos livros elementares de
Aristarco, e o supunha velho como o primeiro, porém rapado, de cara chupada,
pedagógica, óculos apocalípticos, carapuça negra de borla, fanhoso, onipotente
e mau, com uma das mãos para trás escondendo a palmatória e doutrinando à
humanidade o bê-á-bá.
As impressões recentes derrogavam o meu Aristarco;
mas a hipérbole essencial do primitivo transmitia-se ao sucessor por um mistério
de hereditariedade renitente. Dava-me gosto então a peleja renhida das duas
imagens e aquela complicação imediata do paletó de seda e do sapato raso,
fazendo aliança com Aristarco II contra Aristarco I, no reino da fantasia.
Nisto afagaram-me a cabeça. Era Ele! Estremeci.
"Como se chama o amiguinho?" perguntou-me
o diretor.
— Sérgio... dei o nome todo, baixando os olhos e
sem esquecer o "seu criado" da estrita cortesia.
— Pois, meu caro Sr. Sérgio, o amigo há de ter a
bondade de ir ao cabeleireiro deitar fora estes cachinhos... Eu tinha ainda os
cabelos compridos, por um capricho amoroso de minha mãe. O conselho era
visivelmente salgado de censura. O diretor, explicando a meu pai, acrescentou
com o risinho nasal que sabia fazer: "Sim, senhor, os meninos bonitos não
provam bem no meu colégio..."
— Peço licença para defender os meninos bonitos...
objetou alguém entrando.
Surpreendendo-nos com esta frase, untuosamente
escoada por um sorriso, chegou a senhora do diretor, D. Ema. Bela mulher em plena
prosperidade dos trinta anos de Balzac, formas alongadas por graciosa magreza,
erigindo, porém, o tronco sobre quadris amplos, fortes como a maternidade;
olhos negros, pupilas retintas, de uma cor só, que pareciam encher o talho
folgado das pálpebras; de um moreno rosa que algumas formosuras possuem, e que
seria também a cor do jambo, se jambo fosse rigorosamente o fruto proibido.
Adiantava-se por movimentos oscilados, cadência de minueto harmonioso e mole
que o corpo alternava. Vestia cetim preto justo sobre as formas, reluzente como
pano molhado; e o cetim vivia com ousada transparência a vida oculta da carne.
Esta aparição maravilhou-me.
Houve as apresentações de cerimônia, e a senhora
com um nadinha de excessivo desembaraço sentou-se no divã perto de mim.
— Quantos anos tem? perguntou-me.
— Onze anos...
— Parece ter seis, com estes lindos cabelos.
Eu não era realmente desenvolvido. A senhora
colhia-me o cabelo nos dedos:
— Corte e ofereça à mamãe, aconselhou com uma
carícia; é a infância que ali fica, nos cabelos louros... Depois, os filhos
nada mais têm para as mães.
O poemeto de amor materno deliciou-me como uma
divina música. Olhei furtivamente para a senhora. Ela conservava sobre mim as
grandes pupilas negras, lúcidas, numa expressão de infinda bondade! Que boa mãe
para os meninos, pensava eu. Depois, voltada para meu pai, formulou
sentidamente observações a respeito da solidão das crianças no internato.
— Mas o Sérgio é dos fortes, disse Aristarco, apoderando-se
da palavra. Demais, o meu colégio é apenas maior que o lar doméstico. O amor
não é precisamente o mesmo, mas os cuidados de vigilância são mais ativos. São
as crianças os meus prediletos. Os meus esforços mais desvelados são para os
pequenos. Se adoecem e a família está fora, não os confio a um
correspondente... Trato-os aqui, em minha casa. Minha senhora é a enfermeira.
Queria que o vissem os detratores...
Enveredando pelo tema querido do elogio próprio e
do Ateneu, ninguém mais pôde falar...
Aristarco, sentado, de pé, cruzando terríveis
passadas, imobilizando-se a repentes inesperados, gesticulando como um tribuno
de meetings, clamando como para um auditório de dez mil pessoas, majestoso
sempre, alçando os padrões admiráveis, como um leiloeiro, e as opulentas
faturas, desenrolou, com a memória de uma última conferência, a narrativa dos
seus serviços à causa santa da instrução. Trinta anos de tentativas e
resultados, esclarecendo como um farol diversas gerações agora influentes no
destino do país! E as reformas futuras? Não bastava a abolição dos castigos
corporais, o que já dava uma benemerência passável. Era preciso a introdução de
métodos novos, supressão absoluta dos vexames de punição, modalidades
aperfeiçoadas no sistema das recompensas, ajeitação dos trabalhos, de maneira
que seja a escola um paraíso; adoção de normas desconhecidas cuja eficácia ele
pressentia, perspicaz como as águias. Ele havia de criar... um horror, a
transformação moral da sociedade!
Uma hora trovejou-lhe à boca, em sangüínea
eloqüência, o gênio do anúncio. Miramo-lo na inteira expansão oral, como, por
ocasião das festas, na plenitude da sua vivacidade prática. Contemplávamos (eu
com aterrado espanto) distendido em grandeza épica — o homem sanduíche da
educação nacional, lardeado entre dois monstruosos cartazes. As costas, o seu
passado incalculável de trabalhos; sobre o ventre, para a frente, o seu futuro:
a réclame dos imortais projetos.
I I
Abriam-se as aulas a 15 de fevereiro.
De manhã, à hora regulamentar, compareci. O
diretor, no escritório do estabelecimento, ocupava uma cadeira rotativa junto à
mesa de trabalho. Sobre a mesa, um grande livro abria-se em colunas maciças de
escrituração e linhas encarnadas.
Aristarco, que consagrava as manhãs ao governo
financeiro do colégio, conferia, analisava os assentamentos do guarda-livros.
De momento a momento entravam alunos. Alguns acompanhados.
A cada entrada, o diretor lentamente fechava o
livro, marcando a página com um alfanje de marfim; fazia girar a cadeira e
soltava interjeições de acolhimento, oferecendo episcopalmente a mão peluda ao
beijo contrito e filial dos meninos. Os maiores, em regra, recusavam-se à
cerimônia e partiam com um simples aperto de mão.
O rapaz desaparecia, levando o sorriso pálido na
face, saudoso da vadiação ditosa das férias. O pai, o correspondente, o
portador, despedia-se, depois de banais cumprimentos, ou palavras a respeito do
estudante, amenizadas pela gracinha da bonomia superior de Aristarco, que punha
habilmente um sujeito fora de portas com o riso fanhoso e o simples modo
impelido de segurar-lhe os dedos.
A cadeira girava de novo à posição primitiva; o
livro da escrituração espalmava outra vez as páginas enormes; e a figura
paternal do educador desmanchava-se, volvendo a simplificar-se na esperteza
atenta e seca do gerente.
A este vaivém de atitudes, feição dupla de uma
mesma individualidade e contingência comum dos sacerdócios, estava tão
habituado o nosso diretor, que nenhum esforço lhe custava a manobra. O especulador
e o levita ficavam-lhe dentro em camaradagem intima, bras dessus, bras dessous.
Sabiam, sem prejuízo da oportunidade, aparecer por alternativa ou
simultaneamente; eram como duas almas inconhas num só corpo.
Soldavam-se nele o educador e o empresário uma
perfeição rigorosa de acordo, dois lados da mesma medalha: opostos, mas
justapostos.
Quando meu pai entrou comigo, havia no semblante de
Aristarco uma pontinha de aborrecimento. Decepção talvez de estatística; o
número dos estudantes novos não compensando o número dos perdidos, as novas
entradas não contrabalançando as despesas do fim do ano. Mas a sombra de
despeito apagou-se logo, como o resto de túnica que apenas tarda a sumir-se
numa mutação à vista; e foi com uma explosão de contentamento que o diretor nos
acolheu.
Sua diplomacia dividia-se por escaninhos numerados,
segundo a categoria de recepção que queria dispensar. Ele tinha maneiras de
todos os graus, segundo a condição social da pessoa. As simpatias verdadeiras
eram raras. No âmago de cada sorriso, morava-lhe um segredo de frieza que se
percebia bem. E duramente se marcavam distinções políticas, distinções
financeiras, distinções baseadas na crônica escolar do discípulo, baseadas na
razão discreta das notas do guarda-livros. Às vezes, uma criança sentia a
alfinetada no jeito da mão a beijar. Sala indagando consigo o motivo daquilo,
que não achava em suas contas escolares... O pai estava dois trimestres
atrasado.
Por diversas causas a minha recepção devia ser das
melhores. Efetivamente; Aristarco levantou-se ao nosso encontro e nos conduziu
à sala especial das visitas.
Saiu depois a mostrar o estabelecimento, as
coleções, em armários, dos objetos próprios para facilitar o ensino. Eu via
tudo curiosamente, sem perder os olhares dos colegas desconhecidos, que me
fitavam muito ancho na dignidade do uniforme em folha. O edifício fora caiado e
pintado durante as férias, como os navios que aproveitam o descanso nos portos
para uma reforma de apresentação. Das paredes pendiam as cartas geográficas,
que eu me comprazia de ver como um itinerário de grandes viagens planejadas.
Havia estampas coloridas em molduras negras, assuntos de história santa e
desenho grosseiro, ou exemplares zoológicos e botânicos, que me revelavam
direções de aplicação estudiosa em que eu contava triunfar. Outros quadros
vidraçados exibiam sonoramente regras morais e conselhos muito meus conhecidos
de amor à verdade, aos pais, e temor de Deus, que estranhei como um código de
redundância. Entre os quadros, muitos relativos ao Mestre — os mais numerosos;
e se esforçavam todos por arvorar o mestre em entidade incorpórea, argamassada
de pura essência de amor e suspiros cortantes de sacrifício, ensinando-me a
didascalolatria que eu, de mim para mim, devotamente, jurava desempenhar à
risca. Visitamos o refeitório, adornado de trabalhos a lápis dos alunos, a
cozinha de azulejo, o grande pátio interno dos recreios, os dormitórios, a
capela... De volta à sala de recepção, adjacente à da entrada lateral e
fronteira ao escritório, fui apresentado ao Professor Mânlio, aula superior de
primeiras letras, um homem aprumado, de barba toda grisalha e cerrada, pessoa
excelente, desconfiando por sistema de todos os meninos.
Durante o tempo da visita, não falou Aristarco
senão das suas lutas, suores que lhe custava a mocidade e que não eram
justamente apreciados. "Um trabalho insano! Moderar, animar, corrigir esta
massa de caracteres, onde começa a ferver o fermento das inclinações; encontrar
e encaminhar a natureza na época dos violentos ímpetos; amordaçar excessivos
ardores; retemperar o ânimo dos que se dão por vencidos precocemente;
espreitar, adivinhar os temperamentos; prevenir a corrupção; desiludir as
aparências sedutoras do mal; aproveitar os alvoroços do sangue para os nobres
ensinamentos; prevenir a depravação dos inocentes; espiar os sítios obscuros;
fiscalizar as amizades; desconfiar das hipocrisias; ser amoroso, ser violento,
ser firme; triunfar dos sentimentos de compaixão para ser correto; proceder com
segurança, para depois duvidar; punir para pedir perdão depois... Um labor
ingrato, titânico, que extenua a alma, que nos deixa acabrunhados ao anoitecer
de hoje, para recomeçar com o dia de amanhã... Ah! meus amigos, conclui
ofegante, não é o espírito que me custa, não é o estudo dos rapazes a minha
preocupação... É o caráter! Não é a preguiça o inimigo, é a imoralidade!"
Aristarco tinha para esta palavra uma entonação especial, comprimida e
terrível, que nunca mais esquece quem a ouviu dos seus lábios. "A
imoralidade!"
E recuava tragicamente, crispando as mãos.
"Ah! mas eu sou tremendo quando esta desgraça nos escandaliza. Não!
Estejam tranqüilos os pais! No Ateneu, a imoralidade não existe! Velo pela
candura das crianças, como se fossem, não digo meus filhos: minhas próprias
filhas! O Ateneu é um colégio moralizado! E eu aviso muito a tempo... Eu tenho
um código..." Neste ponto o diretor levantou-se de salto e mostrou um
grande quadro à parede. "Aqui está o nosso código. Leiam! Todas as culpas são
prevenidas, uma pena para cada hipótese: o caso da imoralidade não está lá. O
parricídio não figurava na lei grega. Aqui não está a imoralidade. Se a
desgraça ocorre, a justiça é o meu terror e a lei é o meu arbítrio! Briguem
depois os senhores pais!..."
Afianço-lhes que o meu tremeu por mim. Eu,
encolhido, fazia em superlativo a metáfora sabida das varas verdes. Notando a
minha perturbação, o diretor desvaneceu-se em afagos. "Mas para os rapazes
dignos eu sou um pai!... os maus eu conheço: não são as crianças,
principalmente como você, o prazer da família, e que há de ser, estou certo,
uma das glórias do Ateneu. Deixem estar..." Eu tomei a sério a profecia e
fiquei mais calmo.
Quando meu pai saiu, vieram-me lágrimas, que eu
tolhi a tempo de ser forte. Subi ao salão azul, dormitório dos médios, onde
estava a minha cama; mudei de roupa, levei a farda ao número 54 do depósito
geral, meu número. Não tive coragem de afrontar o recreio. Via de longe os
colegas, poucos àquela hora, passeando em grupos, conversando amigavelmente,
sem animação, impressionados ainda pelas recordações de casa; hesitava em ir
ter com eles, embaraçado da estréia das calças longas, como um exagero cômico,
e da sensação de nudez à nuca, que o corte recente dos cabelos desabrigara em
escândalo. João Numa, inspetor ou bedel, baixote, barrigudo, de óculos escuros,
movendo-se com vivacidade de bácoro alegre, veio achar-me indeciso, à escada do
pátio. "Não desce, a brincar?" perguntou bondosamente. "Vamos,
desça, vá com os outros." O amável bácoro tomou-me pela mão e descemos
juntos.
O inspetor deixou-me entre dois rapazinhos, que me
trataram com simpatia.
Às onze horas, a sineta deu o sinal das aulas. Os
meus bons companheiros, de classes atrasadas, indicaram a sala de ensino
superior de primeiras letras, que devia ser a minha, e se despediram.
O Professor Mânlio, a quem eu fora recomendado,
recomendou-me por sua vez ao mais sério dos seus discípulos, o honrado Rebelo.
Rebelo era o mais velho e tinha óculos escuros como João Numa. O vidro curvo
dos óculos cobria-lhe os olhos vigorosamente, monopolizando a atenção no
interesse único da mesa do professor. Como se fosse pouco, o zeloso estudante
fazia concha com as mãos às têmporas, para impedir o contrabando evasivo de
algum olhar escapado ao monopólio do vidro.
Este luxo de aplicação não provinha do simples
empenho de fazer atitude de exemplar. Rebelo sofria da vista, tanto que muito
tarde pudera entregar-se aos estudos. Recebeu-me com um sorriso benévolo de
avô; afastou-se um pouco para me dar lagar e esqueceu-me incontinenti, para
afundar-se na devoradora atenção que era o seu apanágio.
Os companheiros de classe eram cerca de vinte; uma
variedade de tipos que me divertia. O Gualtério, miúdo, redondo de costas, cabelos
revoltos, motilidade brusca e caretas de símio — palhaço dos outros, como dizia
o professor; o Nascimento, o bicanca, alongado por um modelo geral de pelicano,
nariz esbelto, curvo e largo como uma foice; o Álvares, moreno, cenho
carregado, cabeleira espessa e intonsa de vate de taverna, violento e estúpido,
que Mânlio atormentava, designando-o para o mister das plataformas de bonde,
com a chapa numerada dos recebedores, mais leve de carregar que a
responsabilidade dos estudos; o Almeidinha, claro, translúcido, rosto de
menina, faces de um rosa doentio, que se levantava para ir à pedra com um vagar
lânguido de convalescente; o Maurílio, nervoso, insofrido, fortíssimo em
tabuada: cinco vezes três, vezes dois, noves fora, vezes sete?... Ia estava Maurílio,
trêmulo, sacudindo no ar o dedinho esperto... olhos fúlgidos rosto moreno,
marcado por uma pinta na testa; o Negrão, de ventas acesas, lábios inquietos,
fisionomia agreste de cabra, canhoto e anguloso, incapaz de ficar sentado três
minutos, sempre à mesa do professor e sempre enxotado, debulhando um risinho de
pouca-vergonha, fazendo agrados ao mestre, chamando-lhe bonzinho, aventurando a
todo ensejo uma tentativa de abraço que Mânlio repelia, precavido de
confianças; Batista Carlos, raça de bugre, válido, de má cara, coçando-se
muito, como se o incomodasse a roupa no corpo, alheio às coisas da aula, como
se não tivesse nada com aquilo, espreitando apenas o professor para aproveitar
as distrações e ferir a orelha aos vizinhos com uma seta de papel dobrado. Às
vezes a seta do bugre ricochetava até à mesa de Mânlio. Sensação; suspendiam-se
os trabalhos; rigoroso inquérito. Em vão, que os partistas temiam-no e ele era
matreiro e sonso para disfarçar.
Dignos de nota havia ainda o Cruz, tímido, enfiado,
sempre de orelha em pé, olhar covarde de quem foi criado a pancadas, aferrado
aos livros, forte em doutrina cristã, fácil como um despertador para desfechar
as lições de cor, perro como uma cravelha para ceder uma idéia por conta
própria; o Sanches, finalmente, grande, um pouco mais moço que o venerando
Rebelo, primeiro da classe, muito inteligente, vencido apenas por Maurílio, na
especialidade dos noves fora vezes tanto, cuidadoso dos exercícios, êmulo do
Cruz na doutrina, sem competidor na análise, no desenho linear, na cosmografia.
O resto, uma cambadinha indistinta, adormentados
nos últimos bancos, confundidos na sombra preguiçosa do fundo da sala.
Fui também recomendado ao Sanches. Achei-o
supinamente antipático: cara extensa, olhos rasos, mortos, de um pardo
transparente, lábios úmidos, porejando baba, meiguice viscosa de crápula
antigo. Era o primeiro da aula. Primeiro que fosse do coro dos anjos, no meu
conceito era a derradeira das criaturas.
Entretinha-me a espiar os companheiros, quando o
professor pronunciou o meu nome. Fiquei tão pálido que Mânlio sorriu e
perguntou-me, brando, se queria ir à pedra. Precisava examinar-me.
De pé, vexadíssimo, senti brumar-se-me a vista,
numa fumaça de vertigem. Adivinhei sobre mim o olhar visguento do Sanches, o
olhar odioso e timorato do Cruz, os óculos azuis do Rebelo, o nariz do
Nascimento, virando devagar como um leme; esperei a seta do Carlos, o quinau do
Maurílio, ameaçador, fazendo cócegas ao teto, com o dedo feroz; respirei no
ambiente adverso da maldita hora, perfumado pela emanação acre das resinas do
arvoredo próximo, uma conspiração contra mim da aula inteira, desde as
bajulações de Negrão até à maldade violenta do Álvares. Cambaleei até à pedra.
O professor interrogou-me; não sei se respondi. Apossou-se-me do espírito um
pavor estranho. Acovardou-me o terror supremo das exibições, imaginando em roda
a ironia má de todos aqueles rostos desconhecidos. Amparei-me à tábua negra,
para não cair; fugia-me o solo aos pés, com a noção do momento; envolveu-me a
escuridão dos desmaios, vergonha eterna! liquidando-se a última energia... pela
melhor das maneiras piores de liquidar-se uma energia.
Do que se passou depois, não tenho idéia. A
perturbação levou-me a consciência das coisas. Lembro-me que me achei com o
Rebelo, na rouparia, e o Rebelo animava-me com um esforço de bondade sincero e
comovedor.
Rebelo retirou-se e eu, em camisa, acabrunhado,
amargando o meu desastre, enquanto o roupeiro procurava o gavetão 54, fiquei a
considerar a diferença daquela situação para o ideal de cavalaria com que
sonhara assombrar o Ateneu.
Como tardava o criado, apanhei aborrecido um
folheto que ali estava à mesa dos assentos, entradas de enxoval, registros de
lavanderia. Curioso folheto, versos e estampas... Fechei-o convulsamente com o
arrependimento de uma curiosidade perversa. Estranho folheto! Abri-o de novo.
Ardia-me à face inexplicável incêndio de pudor, constrangia-me a garganta
esquisito aperto de náusea. Escravizava-me, porém, a sedução da novidade. Olhei
para os lados com um gesto de culpado; não sei que instinto me acordava um
sobressalto de remorso. Um simples papel, entretanto, borrado na tiragem rápida
dos delitos de imprensa. Arrostei-o. O roupeiro veio interromper-me.
"Larga daí! disse com brutalidade, isso não é para menino!" E retirou
o livrinho.
Esta impressão viva de surpresa curou-me da
lembrança do meu triste episódio, crescendo na imaginação como as visões,
absorvendo-me as idéias. Zumbia-me aos ouvidos a palavra aterrada de
Aristarco... Sim, devia ser isto: um entravamento obscuro de formas despidas,
roupas abertas, um turbilhão de frades bêbados, deslocados ao capricho de todas
as deformidades de um monstruoso desenho, tocando-se, saltando a sarabanda
diabólica sem fim, no empastado negrume da tinta do prelo; aqui e ali, o raio
branco de uma falha, fulminando o espetáculo e a gravura, como o estigma
complementar do acaso.
A rouparia ocupava grande parte do subchão do
imenso edifício, entre o vigamento do soalho e a terra cimentada. Outra parte
era destinada aos lavatórios, centenas de bacias, ao longo das paredes e pouco
acima num friso de madeira os copos e as escovas de dentes. Terceiro
compartimento, além destes, acomodava o arsenal dos aparelhos ginásticos e o
dormitório da criadagem. Da rouparia para o recreio central atravessava-se
obliquamente o saguão das bacias. Logo a sair ao pátio encontrei o benévolo
Rebelo, que me esperava. Insistiu com um requinte importuno de complacência
sobre o meu incidente, desculpando-me, explicando-me, absolvendo-me; tornou-se
insuportável. Para mudar de conversa, pedi informações acerca do nosso
professor. Deu-mas ótimas, nem outras daria um aluno exemplar como ele. Nenhum
mestre é mau para o bom discípulo, afirmava uma das máximas da parede.
Era hora de descanso; passeávamos, conversando.
Falamos dos colegas. Vi então, de dentro da brandura patriarcal do Rebelo,
descascar-se uma espécie de inesperado Tersito, produzindo injúrias e
maldições. "Uma corja! Não imagina, meu caro Sérgio. Conte como uma desgraça
ter de viver com esta gente." E esbeiçou um lábio sarcástico para os
rapazes que passavam. "Ai vão as carinhas sonsas, generosa mocidade... Uns
perversos! Têm mais pecados na consciência que um confessor no ouvido; uma
mentira em cada dente, um vicio em cada polegada de pele. Fiem-se neles. São
servis, traidores, brutais, adulões. Vão juntos. Pensa-se que são amigos...
Sócios de bandalheira! Fuja deles, fuja deles. Cheiram a corrupção, empestam de
longe. Corja de hipócritas! Imorais! Cada dia de vida tem-lhes vergonha da
véspera. Mas você é criança; não digo tudo o que vale a generosa mocidade. Com
eles mesmos há de aprender o que são... Aquele é o Malheiro, um grande em
ginástica. Entrou graúdo, trazendo para cá os bons costumes de quanto colégio
por ai. O pai é oficial. Cresceu num quartel no meio da chacota das praças.
Forte como um touro, todos o temem, muitos o cercam, os inspetores não podem
com ele; o diretor respeita-o; faz-se a vista larga para os seus abusos... Este
que passou por nós, olhando muito, é o Cândido, com aqueles modos de mulher,
aquele arzinho de quem saiu da cama, com preguiça nos olhos... Este sujeito...
Há de ser seu conhecido. Mas faço exceções: ali vem o Ribas, está vendo? feio,
coitadinho! como tudo, mas uma pérola. É a mansidão em pessoa. Primeira voz do
Orfeão, uma vozinha de moça que o diretor adora. É estudioso e protegido. Faz a
vida cantando como os serafins. Uma pérola!"
— Ali está um de joelhos...
— De joelhos... Não há perguntar; é o Franco. Uma
alma penada. Hoje é o primeiro dia, ali está de joelhos o Franco. Assim
atravessa as semanas, os meses, assim o conheço, nesta casa, desde que entrei.
De joelhos como um penitente expiando a culpa de uma raça. O diretor chama-lhe
cão, diz que tem calos na cara. Se não tivesse calos no joelho, não haveria
canto do Ateneu que ele não marcasse com o sangue de uma penitência. O pai é de
Mato Grosso; mandou-o para aqui com uma carta em que o recomendava como
incorrigível, pedindo severidade. O correspondente envia de tempos a tempos um
caixeiro que faz os pagamentos e deixa lembranças. Não sai nunca...
Afastemo-nos que aí vem um grupo de gaiatos.
Um tropel de rapazes atravessou-nos a frente,
provocando-me com surriadas.
"Viu aquele da frente, que gritou calouro? Se eu
dissesse o que se conta dele... aqueles olhinhos úmidos de Senhora das Dores...
Olhe; um conselho; faça-se forte aqui, faça-se homem. Os fracos perdem-se.
"Isto é uma multidão; é preciso força de
cotovelos para romper. Não sou criança, nem idiota; vivo só e vejo de longe;
mas vejo. Não pode imaginar. Os gênios fazem aqui dois sexos, como se fosse uma
escola mista. Os rapazes tímidos, ingênuos, sem sangue, são brandamente
impelidos para o sexo da fraqueza; são dominados, festejados, pervertidos como
meninas ao desamparo. Quando, em segredo dos pais, pensam que o colégio é a
melhor das vidas, com o acolhimento dos mais velhos, entre brejeiro e afetuoso,
estão perdidos... Faça-se homem, meu amigo! Comece por não admitir
protetores."
Ia por diante Rebelo com os extraordinários avisos,
quando senti puxarem-me a blusa. Quase cai. Voltei-me; vi a distância uma cara
amarela, de gordura balofa, olhos vesgos sem pestanas, virada para mim,
esgarçando a boca em careta de riso cínico. Um sujeito evidentemente mais forte
do que eu. Não obstante apanhei com raiva um pedaço de telha e arremessei O
tratante livrou-se, injuriando-me com uma gargalhada, e sumiu-se. "Muito
bem", aplaudiu Rebelo. E à pergunta que fiz, informou: aquele desagradável
rapaz era o Barbalho, que havia de ser um dia preso como gatuno de jóias, nosso
companheiro da aula primária, do número dos esquecidos nos bancos do fundo.
O Professor Mânlio teve a bondade de adiar o meu
exame, e, para salvar-me das conseqüências do escárnio do desastrado incidente
da primeira aula, obsequiou-me na seguinte com as melhores palavras de
animação. Os rapazes foram generosos. Maurílio, acariciou-me a cabeça
mimosamente, provando que sabia ser bom o dedinho implacável dos argumentos. Só
o amarelo dos olhos vesgos teimava em fazer gaifonas à socapa.
Depois do jantar não tornei a ver o Rebelo. Como
freqüentava algumas aulas extraordinárias do curso superior, recolhia-se a
certas horas para as salas de cima.
A sala do Professor Mânlio era ao nível do pátio,
em pavilhão independente do edifício principal, com duas outras do curso
primário, o alojamento da banda de música e o salão suplementar de recreio,
vantajoso em dias de chuva. Formando ângulo reto com esta casa, uma extensa
construção de tijolo e tábuas pintadas, sala geral do estudo no pavimento
térreo e dormitório em cima, concorria para fechar metade do quadrilátero do
pátio, que o grande edifício completava, estendendo-se em duas alas, como os
braços da reclusão severa. No fundo desta caixa desmedida de paredes,
dilatava-se um areal claro, estéril, insípido como a alegria obrigatória,
algumas árvores de cambucá mostravam, em roda, a folhagem fixa, com o verdor
morto das palmas de igreja, alourada a esmo da senilidade precoce dos ramos que
sofrem, como se não coubesse a vegetação no internato; a um canto, esgalgado
cipreste subia até às goteiras, tentando fugir pelos telhados.
Sem o Rebelo, achei-me ai como perdido, em meio dos
rapazes. Os conhecidos da aula desapareciam no tumulto que as salas todas
despejavam.
Nem um só de quem me pudesse aproximar. Rente com a
parede, para que me não dessem atenção, insinuei-me até o lugar donde o
inspetor Silvino, um grande magro, de avultado nariz e suíças dilaceradas,
olhar miado e vivo como chispas, em órbitas de antro, fiscalizava o recreio,
graduando a folgança, à mercê de um temível canhenho. Sentava-se à entrada do
portão do lavatório. Um pouco além da cadeira do Silvino, fiquei a salvo. Do
seguro retiro avistava, no terreiro, fresco das largas sombras da hora, o movimento
dos colegas.
Num ponto e noutro formavam-se pequenos sarilhos,
condensando irregularmente a dispersão dos alunos. Eram os pobres novatos que
os veteranos sovavam à cacholeta, fraternalmente.
Perto de mim vi o Franco. Sempre de penitência; em
pé, cara contra a parede. Como Silvino dava-lhe as costas, divertia-se a pegar
moscas para arrancar a cabeça e ver morrer o bichinho na palma da mão.
Perguntei-lhe por que estava de castigo. Sem olhar, de mau modo: "Lá sei!
disse ele. Porque me mandaram". E continuou a pegar as moscas. Franco era
um rapazola de quatorze anos, raquítico, de olhos pasmados, face lívida,
pálpebras pisadas. À fronte, com a expressão vaga dos olhos e obliqüidade
dolorida dos supercílios, pousava-lhe uma névoa de aflição e paciência, como se
vê no Flos sanctorum. A parte inferior do semblante rebelava-se; um canto dos
lábios franzia-se em contração constante de odiento desprezo. Franco não ria
nunca. Sorria apenas, assistindo a uma briga séria, interessando-se pelo
desenlace como um apostador de rinha, enfurecendo-se quando apartavam. Uma
queda alegrava-o, principalmente perigosa. Vivia isolado no circulo da
excomunhão com que o diretor, invariavelmente, o fulminava todas as manhãs,
lendo no refeitório perante o colégio as notas da véspera.
Os professores já sabiam. À nota do Franco, sempre
má, devia seguir-se especial comentário deprimente, que a opinião esperava e
ouvia com delícia, fartando-se de desprezar. Nenhum de nós como ele! E o zelo
do mestre cada dia retemperava o velho anátema. Não convinha expulsar. Uma
coisa destas aproveita-se como um bibelô do ensino intuitivo, explora-se como a
miséria do hilota, para a lição fecunda do asco. A própria indiferença
repugnante da vitima é útil.
Três anos havia que o infeliz, num suplício de
pequeninas humilhações cruéis, agachado, abatido, esmagado, sob o peso das
virtudes alheias mais que das próprias culpas, ali estava, — cariátide forçada
no edifício de moralização do Ateneu, exemplar perfeito de depravação oferecido
ao horror santo dos puros.
Várias vezes nessa tarde fui assaltado pela chacota
impertinente do Barbalho. O endemoninhado caolho puxava-me a roupa,
esbarrava-me encontrões e fugia com grandes risadas falsas, ou parava-me de súbito
em frente, e revestindo-se de quanta seriedade lhe era suscetível o açafrão da
cara, perguntava: "Mudas as calças?" Um inferno. Até que afinal o meu
desespero estourou.
Foi à noite, pouco antes da ceia. Estávamos a um
canto mal iluminado do pátio, quase sós. O biltre reconheceu-me e arreganhou
uma inexprimível interjeição de mofa. Não esperei por mais. Estampei-lhe uma
bofetada. Meio segundo depois, rolávamos na poeira, engalfinhados como feras.
Uma luta rápida. Avisaram-nos que vinha o Silvino. Barbalho evadiu-se. Eu
verifiquei que tinha o peito da blusa coberto de sangue que me corria do nariz.
Uma hora mais tarde, na cama de ferro do salão
azul, compenetrado da tristeza de hospital dos dormitórios, fundos na sombra do
gás mortiço, trincando a colcha branca, eu meditava o retrospecto do meu dia.
Era assim o colégio. Que fazer da matalotagem dos
meus planos?
Onde meter a máquina dos meus ideais naquele mundo
de brutalidade, que me intimidava com os obscuros detalhes e as perspectivas
informes, escapando à investigação da minha inexperiência? Qual o meu destino,
naquela sociedade que o Rebelo descrevera horrorizado, com as meias frases de
mistério, suscitando temores indefinidos, recomendando energia, como se
coleguismo fosse hostilidade? De que modo alinhar a norma generosa e
sobranceira de proceder com a obsessão pertinaz do Barbalho? Inutilmente
buscara reconhecer no rosto dos rapazes o nobre aspecto da solenidade dos
prêmios, dando-me idéia da legião dos soldados do trabalho, que fraternizavam
no empenho comum, unidos pelo coração e pela vantagem do coletivo esforço.
Individualizados na debandada do receio, com as observações ainda mais da
critica do Rebelo, bem diverso sentimento inspiravam-me. A reação do contraste
induzia-me a um conceito de repugnância que o hábito havia de esmorecer, que me
tirava lágrimas àquela noite. Ao mesmo tempo oprimia-me o pressentimento da
solidão moral, fazendo adivinhar que as preocupações mínimas e as concomitantes
surpresas inconfessáveis dariam pouco para as efusões de alívio, a que
corresponde o conselho, a consolação.
Nada de protetor, dissera Rebelo. Era o ermo. E, na
solidão, conspiradas, as adversidades de toda a espécie, falsidade traiçoeira
dos afetos, perseguição da malevolência, espionagem da vigilância; por cima de
tudo, céu de trovões sobre os desalentos, a fúria tonante de Júpiter-diretor, o
tremendo Aristarco dos momentos graves.
Lembranças da família desviaram-me o curso às
reflexões. Não havia mais a mão querida para acalentar-me o primeiro sono, nem
a oração, tão longe nesse momento, que me protegia à noite como um dossel de
amor; o abandono apenas das crianças sem lar que os asilos da miséria recolhem.
A convicção do meu triste infortúnio lentamente,
suavemente, aniquilou-me num conforto de prostração e eu dormi.
Pela noite adentro, comparsas de pesadelo,
perseguiram-me as imagens várias do atribulado dia; a pegajosa ternura do
Sanches, a cara amarela do Barbalho, a expressão de tortura do Franco, os
frades descompostos do roupeiro. Sonhei mesmo em regra. Eu era o Franco. A
minha aula, o colégio inteiro, mil colégios, arrebatados, num pé-de-vento,
voavam léguas afora por uma planície sem termo. Gritavam todos, urravam a
sabatina de tatuadas com um entusiasmo de turbilhão. O pó crescia em nuvens do
solo; a massa confusa ouriçava-se de gestos, gestos de galho sem folhas em
tormenta agoniada de inverno; sobre a floresta dos braços, gesto mais alto,
gesto vencedor, a mão magra do Maurílio, crescida, enorme, preta, torcendo,
destorcendo os dedos sôfregos, convulsionados da histeria do quinau... E eu
caia, único vencido! E o tropel, de volta, vinha sobre mim, todos sobre mim!
sopeavam-me, calcavam-me, pesados, carregando prêmios, prêmios aos cestos!
A sineta, tocando a despertar, livrou-me da angústia.
Cinco horas da manhã.
I I I
Se em pequeno, movido por um vislumbre de luminosa
prudência, enquanto aplicavam-se os outros à peteca, eu me houvesse entregado
ao manso labor de fabricar documentos autobiográficos, para a oportuna
confecção de mais uma infância célebre, certo não registraria, entre os meus
episódios de predestinado, o caso banal da natação, de conseqüências,
entretanto, para mim, e origem de dissabores como jamais encontrei tão amargos.
Natação chamava-se o banheiro, construído num
terreno das dependências do Ateneu, vasta toalha d'água ao rés da terra, trinta
metros sobre cinco, com escoamento para o Rio Comprido, e alimentada por
grandes torneiras de chave livre. O fundo, invisível, de ladrilho, oferecia uma
inclinação, baixando gradualmente de um extremo para outro. Acusava-se ainda
mais esta diferença de profundidade por dois degraus convenientemente dispostos
para que tomassem pé as crianças como os rapazes desenvolvidos. Em certo ponto
a água cobria um homem.
Por ocasião dos intensos calores de fevereiro e
marco e do fim do ano, havia ai dois banhos por dia. E cada banho era uma
festa, naquela água gorda, salobra da transpiração lavada das turmas
precedentes, que as dimensões do tanque impediam a devida renovação; turbulento
debate de corpos nus, estreitamente cingidos no calção de malha rajado a cores,
enleando-se os rapazes como lampreias, uns imergindo, reaparecendo outros,
olhos injetados, cabelos a escorrer pela cara, vergões na pele de involuntárias
unhadas dos companheiros, entre gritos de alegria, gritos de susto, gritos de
terror; os menores agrupados no raso, dando-se as mãos em cacho, espavoridos,
se algum mais forte chegava.
Dos maiores, alguns havia que faziam medo
realmente, singrando a braçadas, levando a ombro a resistência d'água; outros
se precipitavam cabeça para baixo, volteando os pés no ar como cauda de peixe,
prancheando sem ver a quem. E, borbulhando entre os nadadores, fartas ondas de
ressaca se embarcavam e iam transbordar pelas imediações do banheiro alagando
tudo.
Ao longo do tanque, corria o muro divisório, além
do qual ficava a chácara particular do diretor. A distância, viam-se as janelas
de uma parte da casa, onde às vezes eram recolhidos os estudantes enfermos,
fechadas sempre a venezianas verdes.
Trepada ao muro e meio escondida por uma moita de
bambus e ramos de hera, vinha Ângela, a canarina, ver os banhos da tarde.
Lançava pedrinhas aos rapazes; os rapazes mandavam-lhe beijos e mergulhavam,
buscando o seixo. Ângela, torcendo os pulsos, reclinando-se para trás, ria
perdidamente um grande riso, desabrochado em carola de flor através dos dentes
alvos.
Ao primeiro banho, amedrontou-me a desordem
movimentada.
Procurei o recanto dos menores. Determinava a
disciplina a divisão dos banhistas em três turmas, conforme as classes de
idade. Mas, o descuido da fiscalização permitia que as turmas se confundissem e
o inspetor de serviço, com a varinha destinada aos retardatários, vigiava,
afastado, de sorte que ficavam expostos os mais fracos aos abusos dos marmanjos
que as espadanas d'água acobertavam. Mal tinha eu entrado, senti que duas mãos,
no fundo, prendiam-me o tornozelo, o joelho. A um impulso violento cai de
costas; a água abafou-me os gritos, cobriu-me a vista. Senti-me arrastado. Num
desespero de asfixia, pensei morrer. Sem saber nadar, vi-me abandonado em ponto
perigoso; e bracejava, à toa, imerso a desfalecer, quando alguém me amparou. Um
grande tomou-me ao ombro e me depôs à borda, estendido, vomitando água. Levei
algum tempo para me inteirar do que ocorrera. Esfreguei por fim os olhos e
verifiquei que o Sanches me tinha salvo. "Ia afogar-se!" disse ele,
amparando-me a cabeça enquanto me desempastava os cabelos de cima dos olhos.
Meio aturdido ainda, contei-lhe efusivamente o que me haviam feito.
"Perversos!" observou-me o colega com pena, e atribuiu a brutalidade
a qualquer peste que fugira no atropelo dos nadadores, desvelando-se em
solicitudes por tranqüilizar-me. Tive depois motivo, para crer que o perverso e
a peste fora-o ele próprio, na intenção de fazer valer um bom serviço.
Mas a conseqüência imediata do fato foi que forcei
a repugnância que o Sanches me causava e me fiz todo gratidão para com ele e
intima amizade. Curiosa e acidentada tinha de ser essa minha aventura de apego
e confiança.
No Ateneu formávamos a dois para tudo. Para os
exercícios ginásticos, para a entrada na capela, no refeitório, nas aulas, para
a saudação ao anjo da guarda, ao meio-dia, para a distribuição do pão seco
depois do canto. Por amor da regularidade da organização militar, repartiam-se
as três centenas de alunos em grupos de trinta, sob o direto comando de um
decurião ou vigilante. Os vigilantes eram escolhidos por seleção de
aristocracia, asseverava Aristarco. Vigilante era o Malheiro, o herói do
trapézio; vigilante era o Ribas, a melhor vocalização do Orfeão; vigilante era
o Mata, mirrado, corcundinha, de espinha quebrada, apelidado o mascate,
melífluo no trato, nunca punido ninguém sabia por quê, reputação de excelente
porque ninguém se lembrava de verificar, que, entretanto, Rebelo apontava como
chefe da policia secreta do diretor; vigilante o Saulo, que tinha três
distinções na instrução pública; vigilante Rômulo, mestre cook, por alcunha,
uma besta, grandalhão, último na ginástica pela corpulência bamba, último nas
aulas, dispensado do Orfeão pela garganta rachada de requinta velha, mas
exercendo no colégio, por exceção de saliência na largura chata da sua
incapacidade, as complexas e delicadas funções de zabumba da banda. Não sei se
este jeito particular para o bombo, fórmula musical do anúncio, não sei se uma
célebre herança que Rômulo esperava de afortunados parentes, verdade é que
entre todos fora Rômulo apurado por Aristarco para o invejável privilégio de
seu futuro genro.
Diversos outros vigilantes contavam-se como estes,
eleitos por um critério que dava ensejo a que o escolhido por valentia à barra
fixa representava no estudo um papel contristador; vice-versa, outro, como
Ribas, exemplar nas aulas, magricela e esgotado, mal podia ao trapézio vacilar
a acrobacia simplificada do prumo.
Sanches era também vigilante.
Estes oficiais inferiores da milícia da casa
faziam-se tiranetes por delegação da suprema ditadura. Armados de sabres de pau
com guardas de couro, tomavam a sério a investidura do mando e eram em geral de
uma ferocidade adorável. Os sabres puniam sumariamente as infrações da
disciplina na forma: duas palavras ao cerra-fila, perna frouxa, desvio notável
do alinhamento. Regime siberiano, como se vê, do que resultava que os
vigilantes eram altamente conceituados.
No caso particular da nossa fortuita aproximação,
não podia deixar de influir consideravelmente a bela importância colegial do
vigilante Sanches. Mas outras circunstâncias concertaram-se para determinar a
nova feição das minhas disposições conforme se acentuou depois do incidente do
banho.
Já me era lícito julgar iniciado na convivência
intima da escola. Chamado por Mânlio a provas, consegui agradar, conquistando
uma aura que me devia por algum tempo favorecer. Encontrei o Barbalho. Tinha a
face marcada pelas minhas unhas; evitou-me. No recreio cometi a injustiça de ir
deixando o Rebelo. Também o amável camarada tinha na boca um mau cheiro que lhe
prejudicava a pureza dos conselhos; demais, falava prendendo a gente com dedos
de torquês e soltando os aforismos a queima-roupa. Por seu lado o venerando
colega correspondeu ao movimento massando-se comigo, e amuando. Durante as
aulas, em que nos sentávamos perto um do outro, absorvia-se em sua desesperada
atenção e era como se estivesse a muitas milhas. Se, todavia, por
imprescindível necessidade tinha de me falar, então, dirigia-me a palavra com a
habitual afabilidade de jovem cura.
Estava aclimado, mas eu me aclimara pelo desalento,
como um encarcerado no seu cárcere.
Depois que sacudi fora a tranca dos ideais
ingênuos, sentia-me vazio de animo; nunca percebi tanto a espiritualidade
imponderável da alma: o vácuo habitava-me dentro. Premia-me a força das coisas;
senti-me acovardado. Perdeu-se a lição viril de Rebelo: prescindir de
protetores. Eu desejei um protetor, alguém que me valesse, naquele meio hostil
e desconhecido, e um valimento direto mais forte do que palavras.
Se não houvesse olvidado as práticas, como a
assistência pessoal do Rebelo, eu notaria talvez que pouco a pouco me ia
invadindo, como ele observara, a efeminação mórbida das escolas. Mas a teoria é
frágil e adormece como as larvas friorentas, quando a estação obriga. A
letargia moral pesava-me no declive. E, como se a alma das crianças, à maneira
do físico, esperasse realmente pelos dias para caracterizar em definitivo a
conformação sexual do indivíduo, sentia-me possuído de certa necessidade
preguiçosa de amparo, volúpia de fraqueza em rigor imprópria do caráter masculino.
Convencido de que a campanha do estudo e da energia moral não era precisamente
uma cavalgada cotidiana, animada pelo clarim da retórica, como nas festas, e
pelo verso enfático dos hinos, entristeceu-me a realidade crua. Desiludi-me dos
bastidores da gloriosa parada, vendo-a pelo avesso. Nem todos os dias do
militarismo enfeitam-se com a animação dos assaltos e das voltas triunfais;
desmoralizava-me o ranram estagnado da paz das casernas, o prosaísmo elementar
da faxina.
Com esta crise do sentimento casava-se o receio que
me infundia o microcosmo do Ateneu. Tudo ameaça os indefesos. O desembaraço
tumultuoso dos companheiros a recreação, a maneira fácil de conduzir o
trabalho, pareciam-me traços de esmagadora superioridade; espantava-me a viveza
dos pequenos, tão pequenos alguns! O braço do Sanches vinha assim salvar-me,
segunda vez, de submersão, acudindo na vertigem do momento.
Eu não estudava; a minha conta era, entretanto,
regular, por um concurso de elementos eventuais; direitos da recente matricula
à benevolência, a minha recomendação ao Professor Mânlio, com os retalhos
alinhavados de ciência anterior. Mantinha-me em satisfatória média; mas o risco
da decadência era constante. O método constituía o pior obstáculo; sem o
auxilio de alguém, mais prático, estava perdido. Sanches havia sem dúvida de
valer-me com a sua capacidade de grande estudante, sobretudo com a boa vontade
insinuativa que desinteressadamente manifestava. Sem falar no proveito que
rendia esta afeição, empunhando por meu favor o terrível sabre de vigilante,
com guardas de couro!
Com efeito não tardou que ele me desse a mão como a
Minerva benigna de Fénelon.
Entrei pela geografia como em casa minha. As
anfractuosidades marginais dos continentes desfaziam-se nas cartas, por maior
brevidade do meu trabalho; os rios dispensavam detalhes complicados dos
meandros e afluíam-me para a memória, abandonando o pendor natural das
vertentes; as cordilheiras, imensa tropa de amestrados elefantes, arranjavam-se
em sistemas de orografia facílima; reduzia-se o número das cidades principais
do mundo, sumindo-se no chão, para que eu não tivesse de decorar tanto nome;
arredondava-se a cota das populações, perdendo as frações importunas, com
prejuízo dos recenseamentos e maior gravame dos úteros nacionais; uma mnemônica
feliz ensinava-me a enumeração dos estados e das províncias. Graças à destreza
do Sanches, não havia incidente estudado da superfície terrestre que se me não
colasse ao cérebro como se fosse minha cabeça, por dentro, o que é por fora a
esfera do mundo.
A seu turno a gramática abria-se como um cofre de
confeitos pela Páscoa. Cetim cor de céu e açúcar. Eu escolhia a bel-prazer os
adjetivos, como amêndoas adocicadas pelas circunstâncias adverbiais da mais
agradável variedade; os amáveis substantivos! voavam-me à roda, próprios e
apelativos, como criaturinhas de alfenim alado; a etimologia, a sintaxe, a
prosódia, a ortografia, quatro graus de doçura da mesma gustação. Quando muito,
as exceções e os verbos irregulares desgostavam-me a principio; como esses
feios confeitos crespos de chocolate: levados a boca saborosíssimos.
A história pátria deliciou-me em quanto pôde. Desde
os missionários da catequese colonizadora, que vinham ao meu encontro, com
Anchieta, visões de bondade, recitando escolhidas estrofes do evangelho das
selvas, mandando adiante, coroados de flores, pela estrada larga de areia
branca, os columins alegres, aprendizes da fé e da civilização, acompanhados da
turba selvagem do gentio cor de casca de árvores, emplumados, sarapintados de
mil tintas, em respeitosa contrição de fetichismo domado, avultando do seio, do
fundo da mata escura, como uma marcha fantástica de troncos. Até às eras da
independência, evocação complicada de sarrafos comemorativos das alvoradas do
Rocio e de anseios de patriotismo infantil; um príncipe fundido, cavalgando uma
data, mostrando no lenço aos povos a legenda oficial do Ipiranga; mais abaixo,
pontuadas pelas salvas do Santo Antônio, as aclamações de um povo mesclado que
deixou morrer Tiradentes para se esbofar em vivas ao ramo de café da Domitila.
Cada página era um encanto, prefaciadas pela
explicação complacente do colega. Graças à habilidade das suas apresentações,
apertei a mão aos mais truculentos figurões do passado, aos mais poderosos. Antônio
Salema, o cruel, sorriu-me; o Vidigal foi gentil; D. João VI deixou-me rapé nos
dedos. Conheci de vista Mem de Sá, Maurício de Nassau, vi passar o herói
mineiro, calmo, mãos atadas como Cristo, barba abundante de apóstolo das
gentes, um toque de sol na fronte lisa e vasta, escavada pelo destino para
receber melhor a coroa do martírio.
A história santa revelou-me este épico, quem o
diria? — o cônego Roquette! E eu bebi a embriaguez musical dos capítulos como o
canto profundo das catedrais. Ouvi suspirar a Crença, o idílio do Éden, o amor
primitivo do Gênesis, invejado dos anjos, sob o olhar magnânimo dos leões; ouvi
a queixa terna do primeiro par banido para a dor, para o trabalho; Adão
vergonhoso, vestindo as parras da primeira pruderie, Eva a envolver a nudez
jovem de lírios na túnica de ouro das madeixas, cobrindo com as mãos o ventre,
obscenidade das mães, estigmatizada pela maldição de Deus.
E crescia o canto na abóbada e o órgão falava à
tradição inteira do sofrimento humano suplantado pela divindade. Modulava-se a
harmonia em suave gorjeio, entoando a elevação dos salmos, o êxtase sensual do
Cântico dos Cânticos na boca da Sulamita, e a sedução de Booz enredado no
estratagema honesto da ternura, e a melancolia trágica de Judite, e a serena
glória de Ester, a princesa querida.
Subitamente, entreabria-se o quadro sonoro para
irromper o coro das lamentações. Acabavam no ar, lucíolas extintas, os
derradeiros sons da harpa de Davi; perdia-se em ecos a derradeira antístrofe
Salomão; sumiu-se à extremidade do campo a imagem de Rute, ao braço o feixe
louro de trigo; entrou a Hebréia sombria na tenda de Holofernes, levando nos
lábios o beijo assassino; cobriu-se a aparição luminosa de Ester com o sono da
noite de Mardoqueu. Era a gama dolente dos terrores. Clamavam as imprecações do
dilúvio, os desesperos de Gomorra; flamejava no firmamento a espada do anjo de
Senaqueribe; dialogavam em concerto tétrico as súplicas do Egito, os gemidos de
Babilônia, as pedras condenadas de Jerusalém. Vozeava o tenebroso grave das
pregações dos profetas. Embalde o fulgor das transfigurações, como o lívido
fuzil, escancarava abertas de luz sobre a tormenta noturna; Ezequiel tinha a
visão do Eterno; Elias visitava o Mistério numa escapada de chamas. Nada. A
música solene era o miserere. Nem o clarão da alvorada de Belém na Judéia
debelava a sombra, nem a miragem viva do Tabor. A epopéia agonizava ao rodar do
século, ecoava numa caverna onde havia um túmulo; bradava triunfo um momento
pela Ressurreição do Justo; morria, enfim, lento, lento com a prece dos
mártires do anfiteatro, com a longínqua prece subterrânea dos refugiados das
Catacumbas.
A doutrina cristã, anotada pela proficiência do
explicador, foi ocasião de dobrado ensino que muito me interessou. Era o céu
aberto, rodeado de altares, para todas as criações consagradas da fé. Curioso
encarar a grandeza do Altíssimo; mas havia janelas para o purgatório a que o
Sanches se debruçava comigo, cuja vista muito mais seduzia. E o preceptor tinha
um tempero de unção na voz e no modo, uma sobranceria de diretor espiritual,
que fala do pecado sem macular a boca. Expunha quase compungido, fincando o
olhar no teto, fazendo estalar os dedos, num enlevo de abstração religiosa;
expunha, demorando os incidentes, as mais cabeludas manifestações de Satanás no
mundo. Nem ao menos dourava os chifres, que me não fizessem medo; pelo
contrário, havia como que o capricho de surpreender com as fantasias do Mal e
da Tentação, e, segundo o lineamento do Sanches, a cauda do demônio tinha
talvez dois metros mais que na realidade. Insinuou-me, é certo, uma vez, que
não é tão feio o dito, como o pintam.
O catecismo começou a infundir-me o temor apavorado
dos oráculos obscuros. Eu não acreditava inteiramente. Bem pensando, achava que
metade daquilo era invenção malvada do Sanches. E quando ele punha-se a contar
histórias de castidade, sem atenção à parvidade da matéria do preceito
teológico, mulher do próximo, Conceição da Virgem, terceiro-luxúria, brados ao
céu pela sensualidade contra a natureza, vantagens morais do matrimônio, e
porque a carne, a inocente carne, que eu só conhecia condenada pela quaresma e
pelos monopolistas do bacalhau, a pobre carne do beef, era inimigo da alma;
quando retificava o meu engano, que era outra a carne e guisada de modo
especial e muito especialmente trinchada, eu mordia um pedacinho de indignação
contra as calúnias à santa cartilha do meu devoto credo. Mas a coisa
interessava e eu ia colhendo as informações para julgar por mim oportunamente.
Na tabuada e no desenho linear, eu prescindia do
colega mais velho; no desenho, porque achava graça em percorrer os caprichosos
traços, divertindo-me a geometria miúda como um brinquedo; na tatuada e no
sistema métrico, porque perdera as esperanças de passar de medíocre como
ginasta de cálculos, e resolvera deixar a Maurílio ou a quem quer que fosse o
primado das cifras.
Em dois meses tínhamos vencido por alto a matéria
toda do curso; e, com este preparo, sorria-me o agouro de magnífico futuro,
quando veio a fatalidade desandar a roda.
Referi que Sanches me provocava uma repugnância de
gosma. Depois do caso da natação, o reconhecimento predominou sobre a repulsa e
eu admiti as assiduidades com que de então por diante me quis beneficiar o
companheiro. Afinal, porém, tornou-me a aparecer o afastamento instintivo que
me separava do rapaz.
Descrente da fraternidade do colégio, cuja
personificação representava-me o Barbalho, eu temia o alvoroço do recreio.
Conservar-me na sala das lições era uma medida de prudência. Estes intervalos
regulamentares de descanso, aproveitava-os para me adiantar no curso. Pois bem,
durante estes momentos de aplicação excepcional em que ficávamos a sós, eu e o
grande, definiu-se o fundamento da antipatia pressentida. A franqueza da convivência
aumentou dia a dia, em progresso imperceptível. Tomávamos lugar no mesmo banco.
Sanches foi-se aproximando. Encostava-se, depois, muito a mim. Fechava o livro
dele e lia no meu, bafejando-me o rosto com uma respiração de cansaço. Para
explicar alguma coisa, distanciava-se um pouco; tomava-me, então, os dedos e
amassava-me até doer a mão, como se fosse argila, cravando-me olhares de raiva
injustificada. Volvia novamente às expressões de afeto e a leitura prosseguia,
passando-me ele o braço ao pescoço como um furioso amigo.
Eu deixava tudo, fingindo-me insensível, com um
plano de rompimento em idéia, embargado, todavia, pela falta de coragem. Não
havia mal naquelas maneiras amigas; achava-as, simplesmente, despropositadas e
importunas, máxime não correspondendo à mais insignificante manifestação da
minha parte.
Notei que ele variava de atitude quando um inspetor
mostrava a cabeça à entrada da sala e quando pretendia informar-me de alguma
disciplina transcendente.
Então o mestre singular formalizava-se de gravidade
severa e distante. Esta inconstância era o meu alarme. Foi afinal um
entretenimento. Eu perdia muitas vezes o fio da leitura para atender às
artimanhas daquela novíssima comédia.
Por um dia de muito calor, acabava ele de enunciar
como um padre uma página de religião, os diversos atos de Contrição, de
Atrição, de Fé, de Esperança, de Caridade, quando propôs que eu lhos repetisse
sentado aos seus joelhos. Achei inútil a comodidade e repeti a lição passeando
pela sala. Que diabo! Aquele sujeito queria tratar-me definitivamente como um
bebê! Com pouco mais lhe daria o excesso de extremos para me oferecer uma volta
de cueiros! Ah! que se ainda me vivesse no animo a bravura audaz que trouxera
de casa, sem dúvida nenhuma há muito tempo que eu tinha despachado o Sanches
com a cartilha pelas ventas. Mas eu era outro, e a vontade vegetava tenra e
dúctil como um renovo, depois do aniquilamento da primeira decepção. Fui
transferindo o conflito.
Às vezes a minha resistência passiva desapontava o
preceptor. Ele encarava-me terrível, e como quem diz: "perde a proteção de
um vigilante!", ou disfarçava a impertinência em riso amarelo, numa
abstrata expressão de fisionomia, que era aliás o facies de uma idéia fixa.
Os exercícios corporais efetuavam-se à tarde, uma
hora depois do jantar, hora excelente, que habituava a digestão a segurar-se no
estômago e não escorrer pela goela quando os estudantes se balançavam à barra
fixa, pelas curvas.
Reconheci o belo campo das manobras quando lá fui
pela primeira vez, depois da matricula; tive saudade das flâmulas sobre o
gramal verde. Mesmo, porém, desmontada a alegria de encomenda das festas, era
um sitio ameníssimo o campo. Descoberto a todo o céu, parecia mais abundante de
ar; eu lá vingava os pulmões da compressão cerrada do regime interno.
Findos os exercícios, partia o Professor
Bataillard, e, guardados por dois inspetores, o Silvino e o João Numa ou João
Numa e o velho Margal, venerando inválido espanhol querido de todos, ou o
Margal e o Conselheiro tínhamos, os alunos, um prazo de recreio até cair a
noite.
Uma vez, ao escurecer, passeando eu calado, com o
Sanches igualmente, vendo escapar o dia para além das montanhas, percebi que o
meu companheiro balbuciava uma pergunta. Falou desatento, admirando o crepúsculo
com a testa franzida, na meia abstração que era o seu ricto costumeiro.
Estávamos a um rodeio da avenida que circundava o gramal, oposto à cancela onde
conversavam os inspetores. Os colegas jogavam barra através da grama, ou se
divertiam ao saut-de-mouton em pontos afastados. Como não apreendi a pergunta,
o Sanches repetiu. Escapou-me involuntário o riso... Abarbava-me a mais rara
espécie de pretendente! Eu ria com franqueza, mas abismado. Era de uma
extravagância original aquele Sanches! Hoje, ele é engenheiro em uma estrada de
ferro do sul, um grave engenheiro...
Vendo que não nos podíamos entender, meteu entre
nós o esplendor da tarde, e resolvemos o embaraço concordando ambos num parecer
unânime a respeito.
Durante os dias que se seguiram, Sanches esteve
frio. Tive medo de perdê-lo. Deu-me as lições sem uma só das intragáveis
ternuras. Exprimia-se brevemente, entre enfezado e triste. Suspeitei uma
revolução de caráter e julguei ter achado o que me convinha: um amigo moderado,
que me livrasse dos vexames da vida colegial dos pequenos. O caso era outro.
Sanches compreendera que a ingenuidade tinha contraminado os zelos do seu
ensino. Manobrava, então, para voltar à carga. Entretanto, deu-se o cuidado de
insistir na preparação edificante.
Inventou uma análise dos Lusíadas, livro de exame,
cuja dificuldade não cessava de encarecer.
Guiou-me ao canto nono, como a uma rua suspeita. Eu
gozava criminosamente o sobressalto dos inesperados. Mentor levou-me por diante
das estrofes, rasgando na face nobre do poema perspectivas de bordel a fumegar
alfazema. Bárbaro! Havia um trajo de modéstia sobre a verdade do vocábulo; ele
rasgava as túnicas de alto a baixo, grosseiramente. Fazia do meneio grácil de
cada verso uma brutalidade ofensiva. Eu acompanhava-o sem remorso; reputava-me
vagamente vitima, e me dava à crueldade, submisso, adormecido na vantagem da
passividade. A análise aguilhoava as rimas; as rimas passavam, deixando a
lembrança de um requebro impudente. E o ar severo do Sanches imperturbável.
Tomava cada período, cada oração, altamente, com o
ademã sisudo do anatomista: sujeito, verbo, complementos, orações subordinadas;
depois o significado, zás! um corte de escalpelo, e a frase rolava morta,
repugnante, desentranhando-se em podridões infectas.
Iniciou da mesma forma um curso pitoresco de
dicionário. O dicionário é o universo. Baba-se de esclarecimentos, mas atordoa,
à primeira vista, como a agitação das grandes cidades desconhecidas.
Encarreirados nas páginas consideráveis, os nomes seguem estranhamente com a
numerosa prole dos derivados, ou sós, petits-maîtres faceiros, os galicismos;
vaidosos dandies os de proveniência albiônica. Molestam-nos com a maneira
desdenhosa, porque os não conhecemos. As dignificações prolongam-se intérminas,
entrecruzam-se em confusa rede topográfica. O inexperiente não conquista um
passo na imensa capital das palavras. Sanches estava afeito. Penetrou comigo
até aos últimos albergues da metrópole, até à cloaca máxima dos termos chulos.
Descarnou-me em caricatura de esqueleto a circunspeção magistral do Lexicon,
como poluíra a elevação parnasiana do poema.
Eu me sentia amesquinhado sob o peso das
revelações. Causava terror aquela sabedoria de coisas nunca sonhadas. O honrado
diretor espiritual percebeu que havia agora um ascendente de domínio que me
curvava. Olhava-me então de frente e tinha ousados risos de malícia. Depois dos
dias de reserva, chegou-se de novo com uma segurança de possuidor forte. Eu
andava num deplorável desmantelo de energia. Rebelo, de vez em quando,
acabrunhava-me, através dos óculos azuis, com um olhar de desprezo ou
condolência ainda mais aviltante. Meu pai vinha ver-me todas as semanas; eu
mostrava os prêmios de aplicação, conversava de casa; o resto calava. Sempre
desconfiado e receoso dos outros, o meu companheiro era quase exclusivamente
Sanches. Sempre juntos eu e ele. Sabia-se no Ateneu que ele era meu explicador,
supunham até que pago. Não causavam estranheza as nossas relações.
Contudo Sanches, como os mal-intencionados, fugia
dos lugares concorridos. Gostava de vaguear comigo, à noite, antes da ceia,
cruzando cem vezes o pátio de pouca luz, cingindo-me nervosamente,
estreitamente até levantar-me do chão. Eu aturava, imaginando em resignado
silêncio o sexo artificial da fraqueza que definira Rebelo.
Estimulado pelo abandono, que lhe parecia
assentimento tácito, Sanches precipitou um desenlace. Por uma tarde de
aguaceiro errávamos pelo saguão das bacias, escuro, úmido, recendendo ao cheiro
das toalhas mofadas e dos ingredientes dentifrícios, solidão favorável,
multiplicada pelos obstáculos à vista que ofereciam enormes pilares quadrados
em ordem a sustentar o edifício, — quando, sem transição, o companheiro
chegou-me a boca ao rosto e falou baixinho.
Só a voz, o simples som covarde da voz, rastejante,
colante, como se fosse cada sílaba uma lesma, horripilou-me, feito o contato de
um suplício imundo. Fingi não ter ouvido; mas houve intimamente a explosão de
todo o meu asco por semelhante indivíduo e muito calmo, desviando apenas a vista,
pretextei a falta de um lenço, que me endefluxara a friagem e... fui buscá-lo.
Fora da zona magnética em que me cativava o bom
amigo, concertaram-se os meus instintos sopitados de revolta e Sanches passou a
ser um desconhecido. Sacrificava-se de golpe o amigo, o explicador e o
vigilante: um rasgo de heroicidade. Ao primeiro encontro depois do rompimento,
o homem viu que estava tudo acabado. Andou a rondar-me, temperando o olhar com
um brilho de facadas.
A ocasião é que não era a melhor para o conflito.
Conveniências do ensino tinham feito dividir-se em duas turmas a aula do
Professor Mânlio, e eu fora incluído na seção confiada ao Sanches, como
auxiliar idôneo. A conseqüência foi o que devia ser. Maltratado e condenado
pelo ajudante, provando mal em razão do sobressalto no exame de verificação a
que me sujeitou o professor, desmoralizado em repreensão solene com grande
regozijo do Sanches, jurei vingança. Escandalizaria o mundo com uma vadiação
sem exemplo! Percorrera a matéria toda em rápida antecipação de estudo. Isto,
porém, não bastava. Bastasse! foi o meu lema. E toca a desandar. Fiquei abaixo
do Barbalho, aliás fora de classificação decente; fiquei abaixo do Álvares. Fui
o último da aula! Resultado razoável, para emprego de uma energiazinha que despontava.
Ao mesmo tempo, como os filósofos atribulados,
busquei a doce consolação dos astros.
Aristarco iniciara um curso noturno de cosmografia.
Estrelas era com ele. O nobre ensino! Nenhum professor,
sob pena de expulsão, abalançava-se a intrometer-se nas onze varas da camisola
de astrólogo. E vissem-no, à janela, indicando as constelações, impelindo-as
através da noite com o pontudo dedo! Nós discípulos, não víamos nada; mas
admirávamos. Bastava ele delinear sabiamente um agrupamento estelino às
alturas, para cada um de nós por seu lado ficar mais a quo. E voava, fugindo, a
poeira fosforescente.
Quanto a mim, o que sobretudo me maravilhava era a
coragem com que Aristarco fisgava os astros, quando todos sabem que apontar
estrelas faz criar verrugas.
Uma vez, muito entusiasmado, o ilustre mestre
mostrou-nos o Cruzeiro do Sul. Pouco depois, cochichando com o que sabíamos de
pontos cardeais, descobrimos que a janela fazia frente para o norte; não
atinamos. Aristarco reconheceu o descuido: não quis desdizer-se. Lá ficou a
contragosto o Cruzeiro estampado no hemisfério da estrela polar.
Eu tomei amor às coisas do espaço e estudava
profundamente a mecânica do infinito pelo compêndio de Abreu.
Para as noites brumosas, Aristarco tinha os
aparelhos. Uma infinidade de maquinismos do ensino astronômico, exemplificando
o sistema solar, a teoria dos eclipses, a gravitação dos satélites, as esferas
concêntricas, terrestre e celeste; a de dentro, de cartão lustrado; a de fora,
de vidro. Um atravancamento indescritível, sobre a mesa, de estrelas e arames
torcidos, rodas dentadas de latão, lâmpadas frouxas de nafta parodiando o sol.
Aristarco dava à manivela e girava tudo. Com o pince-nez grosso de tartaruga, à
ponta do nariz, dominava o tropel dos mundos.
"Vêem, dizia, explicando a natureza, vêem a
minha mão aqui?"
Mostrava a mão direita, ao realejo, bela manopla
felpuda de fazer inveja a Esaú:
"É a mão da Providência!"
IV
Período sereno da minha vida moral, capitulo a
escrever sobre uma banqueta de altar, ou com o alfabeto azul que delineia o
fumo do incenso no ar tranqüilo, inolvidáveis tréguas de íntimo sossego em toda
a minha juventude, eis em que se tornou a minha amarga descida ao fundo descrédito
escolar.
A astronomia, como os céus do salmo, levou me à
contemplação. O mal na terra, descrito pelo Sanches com uma perícia de
conhecedor e praticante, tomou vulto no seio das minhas cogitações. A
incredulidade primeira acabou em meu espírito, reconhecendo o descalabro deste
val de lágrimas em que vivemos. Ao tempo que devia consagrar à minha
reabilitação nos estudos, pus me a estudar, como Inácio de Loiola, talvez na
mesma idade, a reabilitação do mundo.
Encarnei o pecado na figura de Sanches e carreguei.
Nutria talvez no intimo o ambicioso interesse de um dia reformar os homens com
o meu exemplo pontifical de virtudes no sólio de Roma; mas a verdade é que me
dediquei conscienciosamente ao santo empenho de merecer essa exaltação,
preparando me com tempo. Perdido o ideal cenográfico de trabalho e
fraternidade, que eu quisera que fosse a escola, tinha que soltar para outras
bandas os pombos da imaginação. Viveiro seguro era o céu. Ficava me a vendagem
da eterna felicidade, que se não contava.
Acresce que predispunha ao enlevo a tristeza
opressa de discípulo mau em que eu jazia. E como aos pequenos esforços que
tentava para me reerguer ninguém dava atenção, deixei me ficar insensível,
resignado, como em desmaio sob um desmoronamento. Tinha a consciência em paz, a
consciência que é o espetáculo de Deus. Servia me a crença como um colchão
brando de malandrice consoladora. Note se de passagem que apesar dos anseios de
bem aventurança, eu ia mal no catecismo como no resto.
A mais terrível das instituições do Ateneu não era
a famosa justiça do arbítrio, não era ainda a cafua, asilo das trevas e do
soluço, sanção das culpas enormes. Era o Livro das notas.
Todas as manhãs, infalivelmente, perante o colégio
em peso, congregado para o primeiro almoço, às oito horas, o diretor aparecia a
uma porta, com a solenidade tarda das aparições, e abria o memorial das partes.
Um livro de lembranças comprido e grosso, capa de
couro, rótulo vermelho na capa, ângulos do mesmo sangue. Na véspera cada
professor, na ordem do horário, deixava ali a observação relativa à diligência
dos seus discípulos. Era o nosso jornalismo. Do livro aberto, como as sombras
das caixas encantadas dos contos de maravilha, nascia, surgia, avultava, impunha
se a opinião do Ateneu. Rainha caprichosa e incerta, tiranizava essa opinião
sem corretivo como os tribunais supremos. O temível noticiário, redigido ao
saber da justiça suspeita de professores, muita vez despedidos por violentos,
ignorantes, odiosos, imorais, erigia se em censura irremissível de reputações.
O julgador podia ser posto fora por uma evidenciação concludente dos seus
defeitos; a difamação estampada era irrevogável.
E pior é que lavrava o contágio da convicção e
surpreendia se cada um consecutivamente de não haver reparado que era mesmo tão
ordinário tal discípulo, tal colega, reforçando se passivamente o conceito, até
consumar se a obra de vilipêndio quando, por último, o condenado, sem mais uma
sugestão de revolta, achava aquilo justo e baixava a cabeça. A opinião é um
adversário infernal que conta com a cumplicidade, enfim, da própria vitima.
Com exceção dos privilegiados, os vigilantes, os
amigos do peito, os que dormiam à sombra de uma reputação habilmente arranjada
por um justo conchavo de trabalho e cativante doçura, havia para todos uma
expectativa de terror antes da leitura das notas. O livro era um mistério.
À medida que se desenrolava a gazetilha, as ânsias
iam serenando. Os vitimados fugiam, acabrunhados de vergonha, oprimidos sob o
castigo incalculável de trezentas carinhas de ironia superior ou compaixão de
ultraje. Passavam junto de Aristarco ao sair para a tarefa penal de escrita. O
diretor, arrepiando uma das cóleras olímpicas que de um momento para outro
sabia fabricar, descarregava com o livro às costas do condenado, agravante de
injúria e escárnio à pena de difamação. O desgraçado sumia se no corredor,
cambaleando.
Quando a coisa não dava para cóleras, Aristarco
limitava se a sublinhar com uma ponderação qualquer a sentença catedrática; ora
uma exclamativa de espanto, ora uma ameaça, ora um insulto vivo e breve, ora um
conselho amortalhado em fúnebre dó.
Às vezes enlaçava com dois dedos o menino pela nuca
e o voltava, fremente e submisso, para o colégio atento, oferecendo o às
bofetadas da opinião: "Vejam esta cara!..."
A criança, lívida, fechava os olhos.
Em compensação, não havia expressamente punições
corporais.
O Professor Mânlio, sempre considerando a
recomendação, polpou me longamente ao castigo formidável das partes. Perdeu por
fim a paciência e fulminou me.
No dia seguinte ao almoço, amargava eu, sem açúcar
que me bastasse, o resto do café quinado da expectativa (porque Mânlio tinha me
prevenido), quando ouvi Aristarco, alargando pausas dramáticas de comoção, ler,
claro, severo: "O Sr. Sérgio tem degenerado..."
Eu havia figurado já na gazetilha do Ateneu com
algumas notas de louvor; guardou se a sensação para a nota má. O diretor olhou
me sombrio.
No fundo do silêncio comum do refeitório, cavou se um
silêncio mais fundo, como um poço depois de um abismo. Senti me devorado por
este silêncio hiante. A congregação justiceira dos colegas voltou se para mim,
contra mim. Os vizinhos de lagar à mesa afastaram se dos dois lados, para que
eu melhor fosse visto. De longe, da copa, chegava um ruído argentino, horrível,
de colheres à lavagem; os tamarineiros no parque ciciavam ao vento.
Aristarco foi clemente. Era a primeira vez,
perdoou.
A pior hipótese do sistema do pelourinho era quando
o estudante ganhava o calo da habitualidade, um assassinato do pudor, como
sucedia com o Franco.
Dias depois da terrível nota, voltava eu a figurar
com outra má, menos filosoficamente redigida, porém agravada de reincidência.
Aristarco não perdoou mais. Houve ainda terceira, quarta, por diante. Cada uma
delas doía me intensamente; contudo não me indignavam. Aquele sofrimento eu o
desejava, na humildade devota da minha disposição atual. Chorava à noite, em
segredo, no dormitório; mas colhia as lágrimas numa taça, como fazem os
mártires das estampas bentas, e oferecia ao céu, em remissão dos meus pobres
pecados, com as notas más boiando.
No recreio, andava só e calado como um monge.
Depois do Sanches não me aproximava de nenhum colega, senão incidentemente, por
palavras indispensáveis. Rebelo tentou atrair me; eu desviava. Sanches,
rancoroso, perseguia me como um demônio. Dizia coisas imundas. "Deixa
estar, jurava entre dentes, que ainda hei de tirar-te a vergonha." Na
qualidade de vigilante levava me brutalmente à espada. Eu tinha as pernas roxas
dos golpes; as canelas me incharam. Se Barbalho se lembra de vingar a bofetada,
creio que me submetia à letra evangélica.
Durante este período de depressão contemplativa uma
coisa apenas magoava me: não tinha o ar angélico do Ribas, não cantava tão bem
como ele. Que faria se morresse. entre os anjos, sem saber cantar?
Ribas, quinze anos, era feio, magro, linfático.
Boca sem lábios, de velha carpideira, desenhada em angústia — a súplica feita
boca, a prece perene rasgada em beiços sobre dentes; o queixo fugia lhe pelo
rosto, infinitamente, como uma gota de cera pelo fuste de um círio...
Mas, quando, na capela, mãos postas ao peito, de
joelhos, voltava os olhos para o medalhão azul do teto, que sentimento! Que
doloroso encanto! que piedade! um olhar penetrante, adorador, de enlevo, que
subia, que furava o céu como a extrema agulha de um templo gótico!
E depois cantava as orações com a doçura feminina
de uma virgem aos pés de Maria, alto, trêmulo, aéreo, como aquele prodígio
celeste de garganteio da freira Virgínia em um romance do conselheiro Bastos.
Oh! não ser eu angélico como o Ribas! Lembro me bem
de o ver ao banho: tinha as omoplatas magras para fora, como duas asas!
E eu era feliz nesse tempo, quando invejava o
Ribas.
Havia na minha febre religiosa certo número de
reservas, que pareciam o germe de futuro libertino, como dizem os padres
mineiros; eu não admitia a confissão, não pensava em comunhão, estranhava os
exageros do culto público, votava antipatia aos homens de batina. Santa Rosália
era a minha devoção.
Por que Santa Rosália? Não havia motivo: era uma
pequena imagem em cartão, gravara de aço e aguadas de fino colorido, lembrança
que me dera uma prima, então morta, e eu guardava em memória amável.
Era boa a priminha. Mais velha do que eu três anos,
carinhosa, maternal comigo. Brincava pouco, velava pelos irmãos, pela ordem da
casa, como uma senhora. Tinha os olhos grandes, grandes, que pareciam crescer
ainda quando fitavam, negros, animados de um movimento suave de nuvem sobre céu
macio; o semblante claro, branco, puro, de marmórea pureza, coando uma
transparência de sangue a cada face. Raro falava; desconhecia a agitação,
ignorava a impaciência. Sabia talvez que ia morrer. Ao vê-la passar, sem rumor,
como os espectros femininos do sonhador americano — leve na terra como o rogar
da veste de um anjo, sentia se com aperto de coração que não pertencia ao mundo
aquela criança: buscava, errante na vida, buscava apenas o repouso da forma,
sob a campa, em sitio calmo, de muito sol, onde chorassem as rosas pela manhã —
e a liberdade etérea do sentimento.
Um dia, não sei se do pranto que tinha nos olhos,
vi animar se o rosto à pequenina gravura. Eu pensava na prima; descobri na
imagem uma identidade comovente de traços fisionômicos com a pequenina morta.
Guardei então, como um retrato, Santa Rosália?
Com a evolução de misticismo era natural completar
se a consagração da estampa, canonizada triunfalmente no concilio ecumênico dos
meus mais íntimos votos.
Era a sala geral do estudo, à beira do pátio
central, uma peça incomensurável, muito mais extensa do que larga. De uma das
extremidades, quem não tivesse extraordinária vista custaria a reconhecer outra
pessoa na extremidade oposta. A um lado, encarreiravam se quatro ordens de
carteiras de pau envernizado e os bancos. À parede, em frente, perfilavam se
grandes armários de portas numeradas, correspondentes a compartimentos fundos;
depósito de livros. Livros é o que menos se guardava em muitos compartimentos.
O dono pregava um cadeado à portinha e formava um interior à vontade. Uns, os
futuros sportmen, criavam ratinhos, cuidadosamente desdentados a tesoura, que
se atrelavam a pequenos carros de papelão; outros, os políticos futuros,
criavam cameleões e lagartixas, declarando se lhes precoce a propensão pelo
viver de rastos e pela cambiante das peles; outros, entomologistas, enchiam de
casulos dormentes a estante e vinham espiar a eflorescência das borboletas; os
colecionadores, Ladislaus Netos um dia, fingiam museus mineralógicos, museus
botânicos, onde abundavam as delicadas rendas secas de filamentos das folhas
descarnadas; outros davam se à zoologia e tinham caveiras de passarinhos, ovos
vazados, cobras em cachaça. Um destes últimos sofreu uma decepção. Guardava
preciosamente o crânio de não sei que fenomenal quadrúpede encontrado em
escavações de uma horta, quando verificou se que era uma carcaça de galinha!
Eu tive a idéia de armar em capela o compartimento
do meu número. Havia compartimentos enfeitados de cromos e desenhos: o meu
seria um bosque de flores, e eu acharia uma lâmpada minúscula para conservar
ali dentro acesa. Ao fundo, em dourado passe partout alojaria Santa Rosália, a
padroeira.
O projeto caiu pela dificuldade das flores. Pagando
a um criado, mal conseguia um bogari, um botão qualquer por dia. Tive de
acomodar a gravura na gaveta do móvel que possuíamos ao dormitório, perto da
cama, para as escovas e os pentes.
E todos os dias, sobre o papel, testemunho de
assídua veneração, depositava uma flor, mantendo na gaveta o clima tépido dos
meus fervores, simbolizados num tributo de perfume.
Quando, no dia primeiro, sorriram as rosas místicas
de maio, saudei as enternecido do alto das janelas do salão azul, como as
mensageiras do amor de Maria.
Iam começar os hinos pela manhã no oratório do
Ateneu. Abençoados momentos de contrição e ternura, em que à disposição
venturosa do corpo, depois do banho, vivia um pouco o recolhimento da poesia
cristã, no magnífico salão, guardando ainda, como os vapores matinais das
escarpas, as ultimas sombras da noite por entre os crespos do estuque.
O sol vinha também à capela e colava de fora a
fronte às vidraças, brando ainda do despertar recente, fresco da toilette da
aurora, com medo de entrar, corado da vergonha de não rezar, pobre astro ateu.
Pelas janelas abertas, esgalhavam se para dentro frondosas ramas de jasmineiro,
como uma invasão de floresta; e os jasmins da véspera, cansados, debulhavam se
conchinhas de nácar pelo soalho, mortos, expirando no ambiente a alma livre do
aroma.
Nós, ajoelhados, ressentidos da influência moral do
cenário, orávamos sinceramente. Não havia muito mal a colher nos corações
daquela mocidade, naquele instante, repousando na trégua da oração das
miseriazinhas da hora comum.
Eu não olhava para o altar. Li estava rica, no
trono iluminado, sobre três ordens de palmas, a imagem da Senhora da Conceição
imaculada, alteando à fronte a coroa de prata, onde engastavam pedraria os
reflexos das luzes. A minha contrição, o meu canto pertenciam a Santa Rosália,
ao querido cartão singelo que eu trazia dentro da blusa de brim, que comprimia
ao peito com a mão, exacerbando o êxtase da fé pelo magnetismo do santo
contato.
O mês de maio foi a culminação do período anagógico
de crença. Coincidiu com essa época levarem no ao leito os incômodos de meu
pai, impedindo lhe as visitas do costume ao Ateneu. Eu pensava nos seus
sofrimentos, e era isto mais um tema para as variações do misticismo.
A neblina de melancolia, baixada sobre o colégio da
altura da cordilheira, repercussão da tristeza verde das matas, pesava me aos
ombros como a loba de um seminarista, como o voto de um frade; eu passeava na
circunscrição do recreio como num claustro, olhando as paredes, brancas como
túmulos caiados, limitando as preocupações do espírito à minha humilhação
diante de Deus, sem olhar para cima, na modéstia curvada dos brutos — anulando
me a mim mesmo na angústia do pensamento religioso, como no saco de pano
bicudo, preto, do farricoco.
O céu, que a imaginação buscara dantes, como os
cânticos buscam os zimbórios, cala agora sobre mim como um solidéu de bronze.
Triste e feliz.
Ninguém sabia dos sonhos e atribuíam à
excentricidade o meu amor à solidão e ao sossego.
Durante o hino do anjo da guarda, no recreio
abrigado, ao meio dia, os estudantes, afogueados e transpirando ainda dos
folguedos, paletós empapuçados sobre a cinta de couro, cabelos revoltos, não
tomavam o rito a sério, e era a dureza dos vigilantes que os constrangia ao
respeito daqueles dez minutos de religião. Só o Ribas e eu... e se não
diminuíam as aflições da terra e os nossos apertos, não é que o não pedíssemos
ao Anjo...
Cantávamos a primeira estrofe (o Ribas marcava o
diapasão) e as seguintes, ate à última, que acabavam todas por uma longa nota
esfusiada em foguete, cantávamos com um esforço de adoração que bem
compensaria, em caso de balanço, a leviandade irreverente de todos os colegas.
O diapasão do Ribas era uma deliciosa nota, tratada
a pastilhas, guardada a cachenê nos dias frios, furto sem dúvida ao tesouro de
gorjeios de algum sabiá descuidado. Aristarco adorava esta nota. Às vezes, na
aula de música chamava o Ribas e pedia lhe aquela, aquela... a do hino...
Ribas candidamente, por agradar ao diretor, punha
de fora a mimosa nota, como uma balinha de parto, cor de âmbar, na ponta da
língua. Ao meio dia era o momento. Ribas volvia os olhos e deixava partir,
primeiro que todos, o preciso som. O colégio entoava depois, e as vozes iam
todas, as nossas, em perseguição da primeira. Baldado esforço; que a do Ribas
recolhia se aos coros celestiais, festejada na cordialidade fraternal dos
harmônicos, ao passo que as nossas, desenganadas, voltavam da investida num
retrocesso icário, desmembradas, desengonçadas, espaços a baixo como um bando
de garças tontas. A distância, o conjunto podia passar por um cântico.
Uma hora de oração que aborrecia era a da noite,
antes do recolher.
O movimento do dia sobrecarregava nos com uma
reação irresistível de fadiga. O sono chumbava nos as pestanas como linhas de
tarrafa. O harmônio da capela, dedilhado pelo Sampaio, hoje médico parteiro, e
aplicado a extrair vagidos como outrora extraía os acordes — produzia
vagarosamente roncos de soneira da sesta de um tigre, fungados sonoros da
digestão dormida de um abade. Alguns meninos cantavam cabeceando, desmaiando a
voz em vastos bocejos. Nas primeiras linhas, dos pequenos, estavam muitos de
olhos fechados, bem longe dos cuidados da prece. Eu gozava o prazer da
mortificação, sustendo me fervoroso durante a reza noturna.
Para isso, levava no bolso um punhado de pedrinhas,
com que formava no soalho um genuflexório despertador, fitando arregaladamente
os olhos, ardidos de sono, na lingüeta tiritante do fogo das velas...
Aludi várias vezes ao revestimento exterior de
divindade com que se apresentava habitualmente Aristarco.
Era um manto transparente, da natureza daquele
tecido leve de brisas trancadas de Gautier, manto sobrenatural que Aristarco
passava aos ombros, revelando do estofo nada mais que o predicado de majestade,
geralmente estranho à indústria pouco abstrata dos tecelões e à trama concreta
das lançadeiras.
Ninguém conseguiria tocar com o dedo a misteriosa
púrpura. Sentia se, porém, o influxo da realeza impalpável.
Assim é que um simples olhar do diretor imobilizava
o colégio fulminantemente, como se levasse no brilho ameaças de todo um
despotismo cruento.
O diretor manobrava este talento de império com a
perícia do corredor sobre o pur sang sensível.
A sala geral do estudo tinha inúmeras portas.
Aristarco fazia aparições, de súbito, a qualquer das portas, nos momentos em
que menos se podia contar com ele.
Levava as aparições às aulas, surpreendendo
professores e discípulos. Por meio deste processo de vigilância de inopinados,
mantinha no estabelecimento por toda a parte o risco perpétuo do flagrante como
uma atmosfera de susto. Fazia mais com isso que a espionagem de todos os
bedéis. Chegava o capricho a ponto de deixar algumas janelas ou portas como
votadas a fechamento para sempre, com o fim único de um belo dia abri-las
bruscamente sobre qualquer maquinação clandestina da vadiagem. Sorria então no
intimo, do efeito pavoroso das armadilhas, e cofiava os majestosos bigodes
brancos de marechal, pausadamente, como lambe o jaguar ao focinho a pregustação
de um repasto de sangue.
Nos momentos de ira e de exaltações eloqüentes é
que sabia fazer se em verdade divino. Era mais que uma revelação temerosa do
Olimpo; era como se Júpiter mandasse Mercúrio catar à terra os raios já
disparados e os unisse ao estoque inavaliável dos arsenais do Etna, para soltar
tudo, de uma só vez, de uma só cólera, num só trovão, aniquilando a natureza
sob a bombarda onipotente.
Mas não somente parodiava ele os furores olímpicos
Aquela alma dúctil de artista sabia decair até à blandícia, até à lágrima a
propósito.
Júpiter guardava para a oportunidade a carícia de
edredom, o gesto flexuoso do soberano cisne. Expandia se às vezes sobre o
Ateneu em rompimento de amor paterno, tão derramado, tão jeitosamente sincero,
que não tínhamos remédio senão replicar no mesmo tom, por um madrigal de
enternecimento de filhos.
E admirávamos.
A hora solene do meio dia Aristarco aproveitava
para distribuir uma merenda de conselhos, depois do canto e antes de outra de
fatias, incomparavelmente mais bem recebida. Muitas vezes não eram só
conselhos. Também reprimendas em massa por culpas coletivas, arrecadações de
cigarros, ou pequenos processos sumários em que se averiguava a autoria de
delitos importantes, como encher de papel picado uma sala, cuspir às paredes,
molhar a privada, e mesmo muito mais graves, como num episódio do Franco, que
se prende ao período beato das minhas reminiscências.
Assistia o Mestre com atenção do costume à reza
cantada, fazendo girar nos dedos uma medalha do relógio sobre o colete, na
abertura do fraque. Ao final, depois de um intervalo preparatório, aperitivo de
emoções, tomou a palavra num tom solene de revelação e referiu, com toda a
grandeza de que era suscetível, a hipótese, reclamando a indignação vingadora
do Ateneu.
Franco, no domingo da véspera, aproveitando a
largura da vigilância no dia vago, fora vadiar ao jardim. E para tomar água de
um poço aí existente, cuja bomba não funcionava em regra, deliberou, imaginem!
umedecer a bucha aspiradora com um líquido que Moisés seria capaz de obter no
árido deserto, sem milagre mesmo e sem Horeb. Agora considerem que o referido
poço fornecia água para a lavagem dos pratos.
Um murmúrio de horror elevou se das alas de
estudantes.
"Adianta-te, Franco", mandou Aristarco.
Com a insensibilidade pétrea que o encouraçava para
as humilhações, saiu Franco do lugar e de cabeça baixa, como um cão, foi parar
no centro da sala. Ali esteve por alguns segundos, exposto, no meio do enorme quadrado
de alunos. Os olhares caiam lhe em cima, como os projéteis de um fuzilamento.
O que mais indignava, era pensar que se havia
comido em pratos lavados depois da profanação irremediável da linfa. Passado
este efeito, com que contava para a punição moral, o diretor concluiu o libelo.
Ficássemos tranqüilos, estavam puros os lábios. Franco tinha sido surpreendido
por um copeiro que o prendera, e fora a bomba incontinenti declarada —
interdita.
Muita gente duvidou da oportunidade da interdição.
Limpavam com asco a língua no lenço, esfregavam a boca até esfolar.
"O porco!" bramia Aristarco. "O
grandíssimo porco!" repetia como um deus fora de si. Em redor todos
apoiavam a energia da corrigenda. Resolveu se, porém, deixar com vida o
criminoso.
Aristarco marcou apenas dez páginas de castigo
escrito à noite, e passar de joelhos as horas de recreio, a começar da
presente.
Formulado o veredicto, Franco caiu de rótulas no
soalho com estampido, como se repentinamente se lhe houvesse estalado às pernas
uma mola.
"Ai não! aqui, tratante! " gritou o
diretor, indicando a porta do salão. Cantava se a oração do meio dia, como
sabem, na casa das recreações em dia de chuva, que alargava três boas portas
para o pátio central. Aristarco estava perto da do meio.
De joelhos neste ponto, Franco, ao pelourinho:
diante das chufas dos maus e da alegria livre de todos. Como esta porta era
caminho dos rapazes até as bandejas onde se elevavam as pilhas sedutoras da
merenda, ficava ainda o condenado com um reforçozinho de pena. Passando por
ele, os mais enfurecidos deram empurrões, beliscaram lhe os braços, injuriaram
no. Franco respondia a meia voz, por uma palavrinha porca, repetida
rapidamente, e cuspia lhes, sujando a todos com o arremesso dos únicos recursos
da sua posição.
Até que um grande, mais estouvado, fê lo cair
contra o portal, ferindo a cabeça. A este, Franco não respondeu; pôs se a
chorar.
Os inspetores fiscalizavam o serviço do pão,
prevenindo espertezas inconvenientes.
Escaparam lhes os maus tratos.
As desventuras do pobre rapaz e as minhas próprias
haviam me levado para o Franco. Eu me constituíra para ele um quase amigo.
Franco era silencioso, como arreceado de todos, tristonho, de uma melancolia
parente da imbecilidade; tinha acessos refreados de raiva, queixas que não
sabia formular. Os livros, causa primeira de seus desgostos, faziam lhe horror.
A necessidade de escrever por castigo promovera nele a habilidade dos galés:
adquirira um desembaraço pasmoso na faina de encher de garranchos páginas e páginas.
Esta interminável escrita fizera lhe calos ao canto das unhas: meus dedos
perderam o brio, dizia ele nos momentos de amargo humor, em que improvisava
sarcasmos contra si mesmo.
A principio fugia de mim, resmungando coisas
indecifráveis. Depois aceitou me. Mas não excediam as suas confidências o
restritíssimo limite de uns grunhidos de aversão, histórias de desastres
pândegos que sabia, ingênuas observações a respeito de assuntos infantis,
referências de ódio aos superiores.
Uma vez recebeu carta da província, uma das poucas
que lhe chegavam por ano. Depois da leitura percebi que tinha lágrimas nos
olhos. O pranto era lhe um acontecimento na fisionomia, invariavelmente de uma
pasmaceira de máscara de arame. Interessei me por aquele sofrimento; ele deu me
a carta a ler. O pai do Franco era um pobre desembargador desterrado nos
confins de Mato Grosso, com oito filhos. Uma carta dolorosa. Fora entregue
diretamente pelo caixeiro do correspondente, escapando à curiosidade do diretor,
que gostava de espiar a correspondência dos alunos. Falava em vir à corte no
fim do ano, com todos os sacrifícios, falava em encontrar o filho bom menino,
educado, estudioso. Contava depois, entre exclamações consternadas, que uma
filha, a mais velha, desaparecera do colégio onde estava, em companhia de um
professor de piano, homem casado, sendo encontrada três ou quatro dias depois
ao abandono. Em vão tinham feito perguntas à infeliz no interesse da punição do
culpado; sepultara se a mocinha num mutismo desolador, como se houvesse perdido
a voz, recusando alimento, não tirando do chão os olhos desvairados, escravos
da contemplação demente da vergonha.
— Como tem descido Sérgio, lastimavam os
inspetores, palestrando a ordem do dia com o diretor, é o intimo do Franco.
Ainda que isso não fosse rigorosamente exato, não
foi surpresa para mim ver o excomungado convidar me para uma extraordinária
empresa à noite. "Vingar me da corja!" murmurava, gargarejando um
riso incompleto e azedo. Isto à tardinha, depois da ginástica, no mesmo dia do
processo da bomba.
Conseguira no lusco fusco escapar à sala onde o
haviam encerrado para a tarefa das páginas. E juntos eu e ele, porque eu lhe
aceitara o convite com uma facilidade que ainda hoje não compreendo, galgamos um
canto de muro que havia no pátio e saltamos para o jardim florestal.
Embaixo das árvores era já noite espessa. Demos uma
volta no escuro acompanhando a curva de uma alameda. O Franco ia adiante
calado, andando leve e rápido como uma sombra no ar. Eu o seguia
irresistivelmente como sonhando, num sonho de curiosidade e de espanto. Que ia
fazer o Franco? Aonde ia ele? Chegamos ao capinzal, a um de cujos lados
extremos ficava a natação. Logo ao portão de ingresso nesse terreno, havia um
depósito de lixo, onde os jardineiros acumulavam as varreduras da chácara,
negrejando putrefatas, virando estrume ao tempo.
Franco deteve se junto ao monturo. Sempre em
silêncio e ativamente, como para não perder aquele raro estimulo de vontade que
o impelia, foi examinando o lixo com o pé.
A um canto, entre tocos de bambu, tiniram garrafas.
Franco abaixou se e como em ação mecânica, sem se voltar, apanhou uma garrafa,
outra e outra; foi me dando, sobraçou ainda outras e prosseguimos, o Franco
adiante, leve e rápido, sempre no seu andar de sombra, como suspenso e difuso
na névoa quase lúcida do campo aberto.
Atravessamos o capinzal quase sumidos entre as
altas bandas de capim d'angola, cuja escura vastidão se constelava de vaga
lumes e vibrava da grita intensa dos grilos e do clamor dos sapos. Diante da
natação o Franco parou e me fez parar. "A minha vingança!" disse
entre dentes, e me indicou a toalha d'água do grande tanque. A massa liquida,
imóvel, na calma da noite, tinha o aspecto de lustrosa calçada de azeviche;
algumas estrelas repetiam se na superfície negra com uma nitidez perfeita.
Com o mesmo modo atarefado de todo aquele singular
empreendimento, o Franco acercou se de mim, tirou me as garrafas que me dera e
desapareceu da minha vista.
Eu ouvi que ele quebrava as garrafas uma por uma.
Daí pouco reaparecia, trazendo as abas da blusa em regaço. E começou a lançar
então com o maior sossego ao tanque, para todos os lados, aqui, ali,
dispersamente, como semeando, as lascas do vidro que partira. Um breve rumor de
mergulho borbulhava à flor d'água, abrindo se em círculos concêntricos os
reflexos do céu. Eu vi muitas vezes contra o albor mais claro do muro
fronteiro, passando, repassando, a sombra do sinistro semeador.
"A minha vingança!" repetiu me ainda o
Franco. "Para o sangue, sangue, acrescentou com o risinho seco. Amanhã
rirei da corja!... Trouxe-te aqui para que alguém soubesse que eu me
vingo!"
Ao falar mostrava me o lenço que enxugara o sangue
do golpe à testa.
O justo terror da aventura, em lugar vedado, por
aquelas horas, só me assaltou quando, a pular o muro do pátio, fui cair entre
as mãos do Silvino. Nos aparos da alhada, mal vi o Franco seguro pelo pescoço,
como um ladrão em flagrante.
Em presença do diretor, no escritório inquisitorial
improvisei uma mentira. Fôramos colher sapotis, afirmei explicando à tremenda
argüição a estranheza da surtida. O diretor marcou a pena de oito páginas.
Franco, que andava com um déficit de vinte pelo menos, teve de acrescentar mais
estas ao passivo insolvável. Pela vergonha da tentativa de furto e no sistema
dos castigos morais, adicionou se a observação suplementar: passaríamos, os
delinqüentes, no outro dia, as horas do almoço e do jantar, ao refeitório, de
pé carregando em cada mão quantos sapotis coubessem.
Todo o requinte de punição não me deu cuidado; pelo
contrário, estava nas condições do meu programa de pequeno mártir ad majorem
gloriam. Ao deixar o escritório outra coisa preocupava me. Ardia de remorsos;
tinha cacos de garrafa na consciência. A armadilha sanguinária de Franco
obsedava me como um delito meu.
Depois das horas do serão de estudo, quando se
retiravam os estudantes para os dormitórios, fiquei com o Franco a trabalhar.
Tive que suspender, ao fim de quatro páginas. Devorava me o remorso como uma
febre; aterrava me a idéia do banho na manhã seguinte, os rapazes atirando se à
vingança pérfida, a água toldada de rubro. Impossível fazer mais uma linha.
Deixei o companheiro e fugi para o salão dos médios.
A excitação recrudesceu; eu rolava na cama sobre um
tormento de lascas cortantes. Que fazer? Denunciar o Franco de madrugada?
Correr, às escuras, e abrir o escoadouro ao tanque? Prevenir aos colegas
pedindo que espalhassem? A controvérsia avultava me no crânio como uma inchação
de meninges. Dar se ia caso que Franco, possuído de arrependimento, fosse
apresentar cedinho aos inspetores a delação do próprio feito? Cheguei a tentar
o engodo da consciência com a ponderação de que talvez não saltassem ao tanque
muitos de uma vez, e o primeiro ferido salvaria os outros. Mas a febre vencia,
com a perspectiva do sangue. Dez, vinte, trinta rapazes, à borda, gemendo,
extraindo dificilmente da carne as lascas encravadas! E eu, cúmplice, que o
permitira, e maior culpado, que me não cegava a razão, em suma, de justa
desforra...
Ergui me da cama, e descalço nas tábuas frias, para
ver se me acalmava o mal estar, errei pelos salões adormecidos.
Os colegas, tranqüilos, na linha dos leitos,
afundavam a face nas almofadas, palejante da anemia de um repouso sem sonhos.
Alguns afetavam um esboço comovedor de sorriso ao lábio; alguns, a expressão
desanimada dos falecidos, boca entreaberta, pálpebras entrecerradas, mostrando
dentro a ternura embaciada da morte. De espaço a espaço, os lençóis alvos
ondeavam do hausto mais forte do peito, aliviando se depois por um desses
longos suspiros da adolescência, gerados, no dormir da vigília inconsciente do
coração. Os menores, mais crianças, conservavam uma das mãos ao peito, outra a
pender da cama, guardando no abandono do descanso uma atitude ideal de vôo. Os
mais velhos, contorcidos no espasmo de aspirações precoces, vergavam a cabeça e
envolviam o travesseiro num enlace de carícias. O ar de fora chegava pelas
janelas abertas, fresco, temperado da exalação noturna das árvores; ouvia se o
grito compassado de um sapo, martelando os segundos, as horas, a pancadas de
tanoeiro; outros e outros, mais longe. O gás, frouxamente, nas arandelas de
vidro fosco, bracejando dos balões de asa de mosca, dispersava se igual sobre
as camas. doçura dispersa de um olhar de mãe.
Que venturosa segurança naquele museu de sono! E
amanhã, pobres colegas! o banho, a volta, pés ensangüentados, listrando de
vestígios vermelhos o caminho!
Voltei ao meu salão. Tirei da gaveta a imagem de
Santa Rosália; beijei a com lágrimas, pedi conselho como um filho. A
inquietação não passava. Atravessei ainda os dormitórios, devagarinho, que me
não ouvisse o Margal, acomodado num biombo a um dos ângulos do salão azul. Uma
crepitação dos ossos do tornozelo esteve a ponto de me comprometer. Dentro do
biombo, tossiram; parei um momento; curou se a tosse; prossegui.
Desci ao primeiro andar do edifício; entrei na
capela.
A capela em trevas, de um negrume absoluto de
merinó preto. A escuridão dava lhe uma amplitude de subterrâneo,
misteriosamente sentida no espaço. Não tive medo. Fui até ao altar. Tropecei no
estrado. Ajoelhei me no chão e descansei a testa nos braços a um dos ângulos do
estrado do oratório. Rezei.
Na qualidade de mau estudante não sabia até ao fim
nenhuma oração. Rogava por minha conta, improvisando súplicas, veementes,
angustiosas, que deviam forçar a ombro a porta de São Pedro. Implorava de Deus
diretamente, sem o intermediário empenho da minha padroeira. Até que, não posso
dizer como, adormeci.
Uma palmada acordou me. Era dia. Ergui me vexado,
de camisola, diante do Margal e de uma porção de colegas que miravam. "É
sonâmbulo, é sonâmbulo", explicavam.
Esta saída dispensava me de dizer a que fora ali;
encampei a explicação, concordando. "Que horas são?" perguntei.
"Seis horas, responderam. Chegamos agora mesmo do banho." Tinham os
cabelos empastados sobre os olhos. "E os cacos?!" gritei espavorido.
Examinei os pés dos companheiros. Nas chinelas com que desciam ao banho não via
sangue! Esclarecia se: houvera ordem de banhos de chuva no competente banheiro,
alojado em um dos cômodos baixos do Ateneu, pelo motivo de ter servido seis
vezes a água da natação. Graças ao Senhor! Vinha me do céu esta solução de
águas sujas, alcançada pela minha prece. Dilatou se me a alma em ditoso alívio.
À minha interjeição explosiva de cacos, os colegas
supuseram tontura de sono. Não assim o inspetor, que me chamou a indagar. Nova
mentira: durante a escapada dos sapotis, uma garrafa, que arremessei de mau
jeito, fizera se em cacos contra o muro, sobre o tanque. Providenciou se. O
criado encarregado de varrer o tanque, com o zelo da domesticidade, chamou
atenção para o número dos fragmentos; tão extraordinária era a hipótese da
intenção perversa que não pegou.
No mesmo dia estive com o Franco, durante os
recreios, a completar a pena. Não me disse palavra acerca da decepção da sua
vingança. Julgando se comprometido, concentrava se na insensibilidade de
carapaça que o defendia, esperando tudo, a minha delação, uma trovoada de
doestos, a cafua, um acréscimo ao déficit permanente da divida penal. Aborrecia
se, porém, da necessidade de ser punido por um fiasco de tentativa.
Quanto ao requinte da exposição no refeitório, mãos
cheias de sapotis, não houve meio de obrigar me Aristarco. Concordara em ficar
de pé; não era pouco. Franco naturalmente submeteu se e lá esteve, braços
abertos, a fazer de fruteira no interesse do sistema das punições morais. Tanto
melhor para o sistema.
À vista da relutância, calculou se em páginas de
escrita quanto podiam valer dois punhados de sapotis; redução difícil, que a
justiça colegial alcançou matematicamente, pronunciando uma condenação que me
daria que fazer até mais de meia noite.
Este rasgo de vigor mentia ao meu religioso papel
de submissão e sofrimento. Foi o repentino prenúncio de próxima reforma no
interior espiritual. E, como as evoluções da vontade sabem extrair de qualquer
fato a hermenêutica do determinismo, deu se imediatamente uma ocorrência que
ponderou muito na transformação.
De noite, novamente ao lado do Franco, a fatigar me
na tarefa das páginas, tive que ficar até tarde numa das salas do primeiro
andar. Pelas dez e meia, o diretor, antes de sair para casa, veio ver nos.
"Ainda escrevem... estes peraltas?..." disse nos de enorme altura, à
guisa de boas noites, e desapareceu confiando nos ao amável João Numa, bácoro,
inspetor das salas de cima. Na sua qualidade de gorducho, o João não era
diligente. Apenas viu parar Aristarco, trancou a última porta do Ateneu e foi dormir.
Acabrunhado pela noitada anterior, estava eu de
sono que mal podia erguer a cabeça. De uma vez que cedi ao cansaço fui
despertado por sentir que me alisavam a mão. Adormecera sobre o braço direito
contra a carteira, pousando o rosto na tinta do castigo, deixando cair o braço
esquerdo para o banco. Um instante depois estava fora da sala, de um pulo, como
se tivesse reconhecido em sonhos que o Franco era um monstro.
Ao dia imediato saí da cama como de uma
metamorfose. Imaginei, generalizando errado, que a contemplação era um mal, que
o misticismo andava traidoramente a degradar me: a convivência fácil com o
Franco era a prova. O Ateneu honrava me, por esse tempo, com um conceito que só
depois avaliei. Eu não me julgava assim tão apeado, mas supus me diretamente a
caminho de um mergulho. Se a alma tivesse cabelos, eu registraria neste ponto
um fenômeno de horripilação moral.
Fiquei perplexo.
O triunfo na escola podia ser o Sanches; em
compensação, a humildade vencida era o Franco. Entre os dois extremos
repugnantes, revelavam se me três amostras típicas à linha do bem viver:
Rebelo, um ancião; Ribas, um angélico; Mata, o corcunda, um policia secreta.
Para angélico decididamente não tinha jeito, estava provado, nem omoplatas
magras; para ancião, não tinha idade, nem óculos azuis, nem mau hálito; para
ser o Mata, faltava me o justo caráter e a corcova... Onde estava o dever? Na
cartilha? Na opinião de Aristarco? Na misantropia senil dos óculos azuis?
Salteou me nisto, às avessas, o relâmpago de Damasco:
independência.
V
Devo, entretanto, à minha efeméride religiosa a
maior soma de gratidão. Suavizou me com a complacência divina o período de
vadiação profunda e amolecimento hipnótico com que me pesou a atmosfera do
Ateneu. Toda a perseguição de castigos, sem prejuízo da minha delicadeza moral,
resvalava pelo cilício da penitência; eu emergia forte das provações. Que
tranqüilidade, na apatia, ter por fiador a Deus!
Íamos à missa nos domingos. Todos abriam os
livrinhos, para que o diretor os visse atentos. Eu não abria o meu. Deixava
apenas fugir me o espírito para o alto e aderir à abóbada como as decorações
sagradas, ajustar se estreitamente nos detalhes da arquitetura do templo como o
ouro sutil dos douradores, conservar se lá em cima, ávido ainda de ascensão,
ambicioso de céu como a baforada dos turíbulos.
Havia acessos comunicativos de tosse que lavravam
nas fileiras. Eu não tossia. Havia convulsões de riso, mal contidas no lenço, mal
dominadas por um olhar de Aristarco, de joelhos à frente do colégio e mãos
cruzadas sobre o castão do unicórnio; como certa vez que um cão brejeiro e sem
princípios, mesmo ao elevar se a santa Partícula, entrou e escapou se com o
casquete de um fiel contrito. Eu resistia ao riso.
Cantávamos ao coro em dias solenes. Melhor
organização vocal possuiria o Orfeão do que a minha; mas se cantassem os
corações em vez dos lábios, nenhum hino evolaria mais largo, mais belo que o
meu. Traziam nos água com açúcar num jarro de vidro para molhar as cordas
vocais. Eu rejeitava esta doçura terrena.
O Ateneu concorria para o brilhantismo das
procissões. Eu me embrulhava amplamente na opa, encarnada como os sacrifícios,
que me podia enrolar três vezes: empunhava uma tocha que me martirizava os
dedos com os pingos ardentes de cera. E lá ia, cobiçando ainda a força lombar
dos mascates para ter às costas, eu só, aqueles pesados andores; invejando o
garbo ao presidente da Filarmônica particular Prazer do Rio Comprido, que vinha
após no préstito, com o estandarte S.P.M.P.R.C., e o punho atlético de um
equilibrista de perchas para levar correto e rijo os balançados guiões.
Com que tristeza, ao entrar a procissão, quando o
diretor nos mandava seguir para o colégio, com que tristeza não espiava de
longe, pela porta, o interior flamejante do templo! Lá ficava a festa de
Deus... e nós para o Ateneu soturno, em marcha inexorável! Eu sacudia a cabeça
com desespero; não podia sofrer a privação daquela alegria, gozar na alma a orgia
de fogo dos altares, subir com o pensamento, degrau, degraus, ao trono
cintilante, arrojando se para cima na escalada da Glória.
Depois desses entusiasmos foi se me a religião
escurecendo.
Era meu vizinho, na sala geral do estudo, Barreto,
um personagem duplo, que representava, nas horas de recreio, a folgança em
pessoa e tinha momentos de meditação trevosa com esgares de terror e falava da
morte, da outra vida, rezava muito, tinha figas de pau, bentinhos,
medalhazinhas em cordões, que saltavam fora do seio ao brinquedo.
Iniciara me Sanches no Mal; Barreto instruiu me na
Punição. Abria a boca e mostrava uma caldeira do inferno; as palavras eram
chamas; ao calor daquelas práticas, as culpas ardiam como sardinhas em frege.
Barreto andara num seminário rigoroso, regime de
nitro para congelar as ardências da idade. Era magro, testa de Alexandre
Herculano, beiços finos, olhos pretos, refulgentes, saídos, fisionomia geral de
caveira em pele ressecada de múmia. No queixo viam se lhe dois fios únicos de
barba, em caracol, cada um para a sua banda.
Só ele, talvez, conheceu me as preocupações beatas.
Senhor do meu fraco, pôs se a informar dos pavores da fé com a ênfase
satisfeita de um cicerone. Recordo me de um assunto: a comunhão sacrílega! A
propósito, Barreto me deu um livro a ler, um livro cruel, que descrevia coisas
dignas de Moloc: crianças diretamente justiçadas pela celeste cólera, uma delas
que, por haver comungado sem confissão prévia, iludindo ao sacerdote, fora
apanhada pela roupa entre dois cilindros de aço duma máquina e reduzida a
pasta, acabando impenitente, maldita, sem tempo para um ai jesus... Era me
incrível que de uma simples hóstia pudesse a taumaturgia da crendice obter
tantos efeitos de terror.
Barreto comentava reforçando. Metia medo aceso em
iras santas de pregador, demonstrando quão longe ainda estavam os castigos da
Providência, na terra, dos suplícios da eternidade. Descrevia o inferno como se
tivesse visto. Rúbida caverna, dragões verde negros, cor de limo, serpentes de
ferro em brasa enroscando os condenados, demônios fulvos revolvendo tachos de
asfalto em fusão, outros espíritos caudatos levando a chuço magotes, para os
tachos, de inconsoláveis réprobos.
Li a Nova floresta, de Bernardes. O reverendíssimo
autor veio retocar a obra do Barreto, com as suas narrativas de iluminado
terrifico.
Comecei a achar a religião de insuportável
melancolia. Morte certa, hora incerta, inferno para sempre, juízo rigoroso;
nada mais negro!
Era cedo demais, para que eu pudesse pesar
filosoficamente a revelação; encontrei, todavia, embaraço invencível no ritual
das cerimônias. Eu que, nos melhores dias, não conseguira formular literalmente
uma só prece do catecismo, esbarrei definitivamente, na prescrição fastidiosa
do preceito. Ir à missa, muito bem; mas o resto e ainda mais a dependência dos
senhores ministros do culto... Em duas palavras: a sacristia e o inferno,
prováveis escândalos e horrores inevitáveis, desgostaram me de tudo. Demais, eu
tinha por vezes tentado dar boa conta, estudando um pouco e rezando muitíssimo,
com um pequeno jejum ainda por cima; ao dia seguinte, nota má! Era um
descrédito para o favor divino. Que custava à suma Onipotência modificar em
lição sabida uma ignorância sofrível, como transmutara em fartura sem conta uma
miséria de cinco pães?
Ia se por esta forma a exaltação dos meus fervores,
quando me achei envolvido no episódio dos cacos. A atribulação do remorso
reacendeu por um momento a chama decadente; o resultado da minha súplica nesse duro
transe não provara mal; muito adiantada, porém, ia a decomposição do meu
êxtase. Eu esqueci a circunstância com a ingratidão fácil dos pretendentes
servidos. E cheguei à conclusão audaz.
Não tendo força para estacar de arranco a torrente
dos séculos cristãos, consegui ao menos ficar a margem. Ignorante do ateísmo,
limitei me a voltar o rosto aos fantasmas do eterno. Subi ao dormitório, tirei
da gaveta Santa Rosália, guardei a flor da última oferenda, seca, porque a
minha pontualidade de culto falseava já, depus lhe em despedida um ósculo, e,
sem mais profanação, fi-la baixar à sala de estudo, onde lhe cometi o modesto
encargo de marcar as páginas de um volume. Estava demitida a minha padroeira!
Pouco depois, algum apaixonado de gravuras raptou
ma, e eu lamentei apenas perder a lembrança da saudosa prima.
Maio tinha passado e as rosas; acabaram se as
orações à Virgem. Sem os hinos da manhã, sem o sorriso a cores de Santa
Rosália, restava me o Deus dos novíssimos, das comunhões sacrílegas, o Deus selvagem
do Barreto. Positivamente não quis saber do carrasco, alijei a metafísica como
um pesadelo. E me achei de novo sozinho no Ateneu; sozinho mais do que nunca.
Com os astros apenas do meu compêndio, panorama da noite consoladora.
E ainda bem, que voltava da crença pela via láctea,
como para a crença fora. Retirada honrosa de um desengano.
Os dias de saída eram de quinze em quinze. Partia
se ao domingo, depois da missa; voltava se à segunda feira, antes das nove da
manhã. Os dias santos de guarda ocasionavam saídas de véspera. O comissário dos
gêneros e despenseiro insistia com o diretor afrouxasse mais o sistema de
feriados. Os rapazes precisam passear, grifava ele, com a liberdade de mordomo
confidente. Aristarco replicava com a invenção cordata dos gêneros de terceira,
elasticidade insensível dos orçamentos.
Havia, porém, saídas extraordinárias de prêmio ou
de obséquio.
A cada lição julgada boa, o professor assinava um
papelucho amarelo, bom ponto, e entregava ao distinto. Dez prêmios destes equivaliam
a um cartão impresso, boa nota, como dez vezes vinte réis em cobre valem um
níquel de duzentos. O sistema decimal aplicava se mais à conquista de um
diploma honroso, equivalente a um baralho de dez cartões de boa nota. Com tal
diploma era o estudante candidato à condecoração final de uma medalha, de prata
ou de ouro, conforme fosse mais ou menos ótimo nos diversos superlativos do
merecimento escolar. Reduzia se assim a papel o valor pessoal, na clearing
house da diretoria; ou, melhor: adaptava se a teoria de Fox ao processo das
recompensas, com todos os riscos de um câmbio incerto, sujeito aos pânicos de
bancarrota, sem um critério de justiça a garantir, sob a ostentação do papel
moeda, a realidade de um numerário de bem aquilatada virtude.
Fosse como fosse, certo é que, com os bilhetes de
boa nota, comprava se uma saída, e isto era o importante, como nos países de
más finanças: desde que o papel tem curso, de que vale o valor?
Inútil é dizer que me não chegavam nunca as saídas
de prêmio. Tanto melhor me sabiam as outras.
Durante a primeira quinzena de colégio, o
pensamento de um feriado e regresso à família inebriou me como a ansiedade de
um ideal fabuloso. Quando tornei a ver os meus, foi como se os houvesse
adquirido de uma ressurreição milagrosa. Entrei em casa desfeito em pranto,
dominado pela exuberância de uma alegria mortal. Surpreendia me a ventura
incrível de mirar me ainda nos olhos queridos, depois da eternidade cruel de
duas semanas. Não! A magnanimidade do cataclismo temido favorecera o meu teto.
Deus permitira, na largueza pródiga da sua bondade, que eu revisse a nossa casa
sobre os alicerces, o nosso tão lembrado teto e a chaminé tranqüila a fumar o
esplim infinito das coisas imóveis e elevadas.
Com o tempo habituei me à feliz probabilidade de
achar na mesma os prezados lares, e ousei nos momentos da cisma colegial
fundamentar projetos de divertimento sobre a esperança de que, abusando a minha
ausência e só para me atormentar o coração, a terra se não havia de abrir e
devorar exata e exclusivamente o que me era mais caro.
Não foram, porém, preocupações pueris de temor, nem
prospectos de folguedo que levei ao primeiro dia de saída depois da demissão de
Santa Rosália.
Vinha buscar me um criado. Eu, adiante do portador,
na minha fardeta de botões dourados, parti do Ateneu, grave e mudo como um
diplomata a caminho da conferência. Ia efetivamente ruminando a mais séria das
intenções: afrontar uma entrevista franca com meu pai, descrever lhe
corajosamente a minha situação no colégio e obter um auxilio para reagir.
Meu pai acabava de deixar o leito. Nada sabia dos
meus últimos insucessos. Ficou admirado e consternado. Daí o êxito completo da
minha entrevista.
Dias depois, no colégio, eu era um pequeno potentado.
Derrubei o Sanches; consegui revogação da disciplina das espadas; reconquistei
a benevolência de Mânlio; levantei a cerviz! Desembaraçado do arbítrio
pretensioso de um vigilante, o trabalho agradou me. Um conselho de casa afirmou
me que havia a nobre opinião de Aristarco e a opinião ainda melhor da cartilha,
mas havia uma terceira — a minha própria, que se não era tão boa, tão abalizada
como as outras, tinha a vantagem alta da originalidade. Com uma palavra fez se
um anarquista.
Daí por diante era fatal o conflito entre a
independência e a autoridade. Aristarco tinha de roer. Em compensação, adeus
esperanças de ser um dia vigilante! principalmente: adeus indolência feliz dos
tempos beatos!
Para a campanha da reação, armazenei uma abastança
inextinguível de vaidade e deliberei menosprezar do melhor modo prêmios e
aplausos com que se diplomavam os grandes estudantes Habituado à vida do
internato, nutria a certeza de conseguir sozinho quanto não pudera com o amparo
de um amigo, nem com a ajuda de Deus. No firme propósito de me não fazer
exemplar nem me aplicar ao cobrejamento de habilidade a que o papel de modelo
obrigava, estabeleci, contudo, a razoável mediocridade sem compromissos, de um
novo programa.
Poucos prêmios ganhava dos papeluchos amarelos; em
contrapeso facilitava aos poucos que me vinham a emancipação boêmia do cisco.
Por esta escala foram ter alguns com o meu nome ao gabinete do diretor. Agravo
de desdém que se não perdoaria jamais.
Desenvolveu se nas alturas uma antipatia por mim,
que me lisonjeava como uma das formas da consideração. Chegava eu assim, por
trajeto muito diferente do que sonhara, à desejada personificação moral de
pequeno homem.
Invejosos da minha altivez, os inimigos fizeram
partido. Sanches era o chefe, na cortina; Barbalho era o líder abertamente. Eu
sorria vaidoso, levando de vencida a guerrinha, como a espuma à proa de um
barco.
Este foi o caráter que mantive, depois de tão
várias oscilações. Porque parece que as fisionomias do caráter chegamos por
tentativas, semelhante a um estatuário que amoldasse a carne no próprio rosto,
segundo a plástica de um ideal; ou porque a individualidade moral a manifestar
se, ensaia primeiro o vestuário no sortimento psicológico das manifestações
possíveis.
Reinavam no Ateneu duas perniciosas influências que
contrabalançavam eficazmente o porejamento de doutrina a transudar das paredes,
nos conceitos de sabedoria decorativa dos quadros, e ainda mesmo a policia das
aparições ubíquas e subitâneas do diretor. Coisa difícil de precisar, como a
disseminação na sociedade, do principio do mal, elemento primário do dualismo
teogônico. O meio, filosofemos, é um ouriço invertido: em vez da explosão
divergente dos dardos — uma convergência de pontas ao redor. Através dos
embaraços pungentes cumpre descobrir o meato de passagem, ou aceitar a luta
desigual da epiderme contra as puas. Em geral, prefere se o meato.
As máximas, o diretor, a inspeção dos bedéis, por
exemplo, eram três espinhos; as referidas influências eram mais dois. A mocidade
ia transigindo do melhor jeito com as bicudas imposições das circunstâncias.
Representavam se as influências dissolventes por
duas espécies de encarnação, fundidas em hibridismo de disparate — a da forma
feminina personificada em Ângela, a canarina, ou antes a camareira de D. Ema, e
a de um encontro de tábuas humildes, conjuntadas às pressas, por força do
prosaísmo incivil de um episódio da economia orgânica.
Falavam assim à imaginação, impressões de relance,
um olhar banhado de lascívia, a tempestade galopante das roupas, em desordem de
fuga, calculada para efeitos de irritação, um descuido de alças afrouxadas ao
corpinho, um propósito de poças d'água em dias de chuva, obrigando a saias
curtas e canelas nuas; ora a uma porta em rápida passagem, ora através do
parque frondoso; ou ao escritório, por motivo de recados de D. Ema cuja
freqüência desesperava o diretor; ou sobre o muro da natação, ou a qualquer
canto com os copeiros, em dueto de idílio que se espiava; ou em graçola
aventurada aos inspetores, que se babavam.
Os grandes pilheriavam; os pequenos, sérios,
olhavam como quem aprende.
Depois, a conspiração dos sarrafos, o favor ao
vicio à sombra do pinho alcatroado, a penúria do fumo, a mendicidade das fumaças
concedidas por beneplácito de dedicação, a pontinha do bird's eye de boca em
boca, como o chimarrão do Rio Grande, mordida, salivada, saboreada com todo o
gosto acre do que se esconde e que é vedado, e a lembrança solitária,
devastadora das imagens do mal, distantes, inalcançadas, dança de flores doidas
ao vento; a correspondência covarde acolhida num interstício de traves como em
asilo de ínfima miséria; as obscenas leituras, e o alvoroço do receio perpétuo,
adubo cáustico de prazer mau; a vaidade de iludir, a secreta mofa, o apetite de
cupim pela demolição invisível do que está constituído, a urdidura preocupada,
extenuante de uma tramazinha de hipocrisias mínimas e complicadas — vivescência
vermicular dos estímulos torpes, respirada no ambiente corrompido do retiro,
nascida de baixo, de um buraco, propaganda obscura da lama.
E diluía se pelos semblantes a palidez creme,
cavavam se olhares vítreos das regiões do impaludismo endêmico.
Soavam me ainda aos ouvidos as prédicas de
ascetismo do Barreto. Para ele o mal era fêmea. O Sanches entendia que era
macho. Amarrava lhe um rabo ao cóccix e criava o Satanás bilontra, imoral e
alegre. A cauda do demônio do Barreto era de rendas. Na Rua do Ouvidor, faria o
Satanás — fanfreluche. Uma coisa horrível, com dois olhos, destinados à
perdição dos homens. Saia digna de consideração, só a de padre, que, por sinal,
é batina, não é saia. O mais não passava de pretexto da moda parisiense para
disfarçar o pé de cabra. Cuidado com Satanás sorriso! um sorriso com duas
pernas, um abraço com dois seios, uma pantomima do inferno, faceira e traidora,
graciosa e comburente, donde por descuido e por acaso vai se desprendendo a
humanidade, como as cobrinhas pirotécnicas de Faraó. O menor descuido, desgraça
eterna!
Contou me que o porteiro do seminário em que
estivera, para não ser despedido, fora intimado a separar se da própria irmã.
Deus, para vir ao mundo, tinha severamente elaborado o mistério excepcional de
uma virgindade sem mancha. E, se não fossem as profecias, que não podiam ficar
comprometidas, o veículo a Conceição, por amor da insexual pureza, teria sido o
carapina José, ou mesmo o velho Zacarias, ainda mais respeitável pela calva.
A teologia do Barreto me calara fundo, e eu
resolvera piedoso enxotar quanta imagem de sorriso viesse pousar me à idéia.
Virando a página dos fervores, a teoria ficou me de resto, do Satanás feminino.
Com a pureza a mais, natural da idade, ia zombando de Ângela e pompas
adjacentes. Fechado o peito como a paz de Jano, e exteriormente a vaidade me
amparava.
Para me prevenir ainda mais, veio uma ocorrência
provar pelo fato que o Barreto tinha razão acerca da influência feminina; uma
ocorrência que ensangüentou os anais do estabelecimento, entristecendo o
diretor, embora afinal se lhe tornasse agradável pelo muito que fez falar do
Ateneu.
Tínhamos acabado de jantar e corria como sempre a
recreação, que precedia a hora da ginástica. Das bandas da copa, ordinariamente
sossegada, chegou nos subitamente um rumor de algazarra. Era estranho.
O alarido cresceu; uma altercação violenta; depois
fragor de luta, o estrondo de uma mesa tombando. Depois gritos de socorro; mais
gritos; a voz de Aristarco aguda, dando ordens como em combate. Estávamos
atônitos.
De repente vimos assomar à porta, que dominava o
pátio sobre a escada de cantaria, um homem coberto de sangue. Um grito de
horror escapou a todos. O homem precipitou se em dois pulos para o recreio.
Trazia um ferro na mão gotejando vermelho, uma faca de lamina estreita ou um
punhal.
"Matou! matou!" gritavam da copa;
"Pega o assassino!"
Sobre os passos do fugitivo vinham diversas
pessoas. João Numa, gordinho, lívido e trêmulo, ao descer a escada, rolou,
partindo os óculos na pedra.
Aristarco, a uma janela, bem certo da
inviolabilidade pessoal, ao peitoril, desenvolvia uma energia sem limites,
mandando pegar o homem da faca. Os inspetores do recreio tinham azulado. Os
rapazes berravam como loucos.
Inesperadamente reaparece o Silvino, muito branco,
com as suíças mais pretas, pelo contraste do medo.
"Esperem! esperem!" dizia convulso, como
quem traz na algibeira um expediente salvador. "Esperem!"
Exatamente no meio do pátio abriu as imensas pernas
de Rodes magro, e levou à boca um apito.
Infelizmente, com a força do sopro engasgou se o
assobio, depois de dois chilros falhos.
Cercado pelos criados que o perseguiam com trancas
e cacetes, o homem da faca, cuja intenção era escapulir para o jardim, encostou
se a uma parede. "Deixem me passar, que mato mais um", rosnava, com a
fisionomia faiscante. "Caminho para mim!" repetia, agitando o ferro
num frêmito de cascavéis.
Alguns moços destemidos tinham se avizinhado e
completavam o imprudente cerco.
"Abre!" rugiu praguejando o criminoso
acuado. E, de um salto de fera, arremessou se contra os sitiantes, brandindo a
faca.
Com a milagrosa destreza do instinto de
conservação, cada um safou se como pôde; o perseguido passou como um tiro.
"Fugiu!" clamavam de todos os lados.
Quando o vimos cair de braços.
Alguém se precipitara inesperadamente ao seu
encontro e, escorando o com o joelho e empolgando o pelo gasnete, com o punho o
fizera rodar por terra.
Era o Bento Alves!... com uma das mãos, o bravo
colega oprimia a cara ao sujeito contra o solo, ralando a na areia, com a
outra, por um prodígio de vigor, imobilizava lhe o braço armado. Com o esquerdo
livre, o criminoso firmava, tentando erguer se. Esmagava o a pressão de um
monólito.
Quando foram em auxilio, já o Bento Alves desarmara
o adversário, coagindo por meio da tenaz dos dedos com que lhe ferrava o
congote.
De toda parte, aclamavam no herói. À janela, de
longe, Aristarco, entusiasmado, esquecia o divino aprumo e bracejava como um
moinho de vento, sem conseguir dar voz à emoção.
Bento Alves retirou se com a faca em troféu,
deixando o criminoso sob uma pilha de valentes da última hora e criados que o
sufocavam.
Quando o pobre diabo pôde tomar pé, manietado,
amarrado de mil maneiras por cintas de couro, como as múmias no envoltório de
tiras, acercou se dele o Silvino e o agrediu covardemente com sermão de moral.
Era criminoso, dizia se. De que crime? Dentro de
alguns momentos o colégio inteiro o sabia.
O homem da faca era um dos jardineiros do Ateneu. Durante
o jantar enfrentara se de razões com um criado da casa de Aristarco e o matara.
Havia algum tempo que disputavam os dois a primazia no coração de Ângela uma
terrível pendência. O criado de Aristarco julgava se na legítima posse desse
escrínio de afetos, pela convivência ao lado da bela, consorciados maritalmente
na intimidade dos alguidares, onde as mãos se confundiam como as louças ou na
sociedade afetuosa do serviço dos aposentos do diretor e da senhora, permutando
entre si dichotes açucarados, à flagelação dos tapetes.
O jardineiro, patrício da camareira, dava por si a
razão de nacionalidade, o fato de haverem chegado à América na mesma turma de
imigrantes e uma autuação completa de juramentos idôneos da sedutora.
Levados a tal aperto os nós da paixão não se
desatam; cortam se. O jardineiro cortou. Por mor azedume da situação, dizem que
Ângela de parte a parte estimulava os adversários declarando a cada um por sua
vez preferi lo exclusivamente.
Confiado o assassino aos urbanos, tornou se a vitima
o objeto das atenções.
Era este um rapagão de trinta anos, pardo e
simpático. O assassino era mais escuro, espécie de andaluz de touradas, baixo,
sólido, grosso como um cepo de açougue.
Apenas desapareceu o criminoso, o colégio inteiro
assaltou a escada, desejosos de ver o assassinado À porta do refeitório, porém,
Aristarco despachou: "não têm que ver!" Ao mesmo tempo a sineta
importuna badalava chamando à forma. O Professor Bataillard, de branco, no
cinturão vermelho, apareceu ao lado do diretor. Os rapazes morderam se de
raiva. E não houve nunca no mundo dois superiores mais odiados.
Mas a teia da disciplina tinha malhas de maior
largura. Alguns rapazes acharam meio de se esgueirar até à copa, e eu também
com eles.
Desde muito, andava querendo ver um cadáver,
espetáculo real, de mãos contraídas, revirados beiços. As cartas iconográficas
de parede deixavam me impassível, com as estampas teóricas de cérebros a
descoberto, globos oculares exorbitados, ventres golpeados em abas, mostrando
vísceras, figuras humanas de pé, descansando a um quadril, movendo a supinação
num jeito de complacência passiva, esfolados para que lhes víssemos as veias,
modelos vivos da ciência em pose de suplício, constância de brâmane, como à
espera que houvéssemos aprendido de cor a circunvolução do sangue, para vestir
de novo a pele e os músculos deslocados. Não me bastava.
Nos grandes armários havia melhor: peças anatômicas
de massa, sangrando verniz vermelho, legitima hemorragia; corações enormes,
latejantes, úmidos à vista, mas que se destampavam como terrinas; olhos de
ciclope, arrancados, que pareciam viver ainda estranhamente a vida solitária e
inútil da visão; mas olhos que se abriam como formas de projéteis de entrudo
Mas eu queria a realidade. a morte ao vivo.
Lembrava me de ter visto um anjinho, entre velas no
caixão agaloado, simples carinha amarelenta, sombreada de azul em nódoas
dispersas, em mãos crispadas numa fita, cobrindo se de flores a imobilidade do
último sono. Vira ainda uma velha, na essa elevada, uma opulenta velha que
morrera sem herdeiros. Ao redor, choravam muito as tochas pranto de cera cor de
mel, inconsoláveis, espichando compridas chamas, que pareciam subir ao teto com
um filete de fumo. Distinguiam se bem os dois pés para dentro, em botinas de
pano; e o nariz pronunciando se sob o lenço de rendas.
Isto não era ter visto cadáver. Eu queria o cadáver
flagrante, despido dos artifícios de armação e religiosidade, que fazem do
defunto simples pretexto para um cerimonial de aparato. O que me convinha era o
galho por terra, ao capricho da queda, decepado da árvore da existência, tal
qual.
O cadáver do criado estava em condições; com a
vantagem do adereço dramático do sangue e do crime, como nos teatros.
Encaminhava me, pois, para a cozinha e sentia
palpitações fortes, abalando me certo modo de agradável pavor. A cozinha do
Ateneu, além dos alojamentos da copa, era espaçosa como um salão. Às paredes
cintilava o trem completo de cobre areado, em linha as peças redondas como uma
galeria de broquéis. No centro uma comprida mesa servia de refeitório à
criadagem.
Naquela ocasião havia muita gente perto da mesa. Vi
pelas costas pessoas alheias ao estabelecimento. Disseram me que estava presente
a autoridade e tratava de remover o morto. Aquela gente toda devia ser, de
costas, a autoridade policial, feição do poder público que eu não discriminava
ainda bem, mas já considerava. Caído ao soalho, vi o cadáver sobre uma esteira
de sangue.
Guardava ainda a contorção esquerda da agonia; à
boca fervia lhe um crivo de espuma rosada; trajava colete fechado, calças de
casimira grossa. Os ferimentos não se viam. Os olhos estavam lhe inteiramente
abertos e de tal maneira virados que me fizeram estremecer.
Alguns minutos depois de minha entrada, chegaram
dois sujeitos com uma rede. Os copeiros ajudaram a apanhar o corpo; os homens
da rede o levaram.
Impressionou me para sempre o desfalecimento
flácido dos membros, quando levantaram o cadáver, a moleza da cabeça, rodando
nos ombros, com um movimento próprio dos que padecem intolerável angústia, e um
choque súbito para trás que me gelou o sangue, empinando se o queixo e o nó da
garganta, rasgando se a boca, brusco, como se o ferido vomitasse um resto tenaz
da vida.
Após a rede, pela escada da cozinha, saíram todos;
eu fiquei. Examinava ainda o chão alagado de sangue quando alguém, passando,
afagou me os cabelos: era Ângela!
— Morió, disse, indicando o sangue, arregalando as
sobrancelhas, e desapareceu com o andar de bamboleio.
Primeira vez que reparei que era bonita a canarina.
Sim, senhor! E para o demônio culpado de tão horrível, incidente fui de uma
benevolência tal de opinião que me nasceram remorsos.
Ângela tinha cerca de vinte anos; parecia mais
velha pelo desenvolvimento das proporções. Grande, carnuda, sanguínea e fogosa,
era um desses exemplares excessivos do sexo que parecem conformados
expressamente para esposas da multidão — protestos revolucionários contra o
monopólio do tálamo.
Atirada de modos, como o ditirambo do amor efêmero;
vazia como as estátuas ocas; sem sentimentos, material e estúpida, possuía,
entretanto, um segredo satânico de graduar os largos olhos de sépia e ouro,
animar expressões no rosto que dir se ia viver lhe na face uma alma de
superfície, possante, capaz dos altos martírios da ternura e de interpretar os
poemas trágicos da dedicação.
Gostava de arregaçar as mangas para mostrar os
braços, luxo de alvura, braços perfeitos de princesa, que davam que pensar ao
espanador humilde no serviço da manhã. Exposta às soalheiras, revestia se a cor
branca do rosto de um moreno cálido, tom fugitivo de magnólias fanadas,
invulnerável aos rigores de ar livre, como deve ter sido outrora a epiderme de
Ceres. Ferissem lhe a tez os dardos corrosivos da insolação, vinha lhe apenas
ao rosto um rubor mais belo, e não lhe tirava mais o sol à mocidade da carne do
que à própria terra, sob a calcinação dos ardores: uma primavera de rosas.
Consciente da formosura, Ângela abusava.
E era do mal livrar se. Começava por um jogo de
virtude. Enxugava em ar de seriedade os lábios úmidos; as pálpebras, de longas
pestanas, baixavam sobre os olhos, sobre o rosto, viseira impenetrável do
pudor. Convidava à adoração colhendo aos ombros o manto da candura, refugiando
se na indiferença hierática das vestais. Depois, uma pontinha de ingênuo
sorrir, olhos fechados ainda; gradação de infantilidade que substituía à vestal
uma criança esquiva e tímida, rindo, voltando a cara. Os olhos, por fim,
aventuravam se de relance, uma temeridade de noiva possível, nada mais,
volvendo ao retraimento cismador. Depois, a contemplação confiada; romance
inteiro, linha por linha, de uma virgindade. Até que súbito, meu castíssimo
Barreto! aquela virtude, aquela meiguice, aquela esquiva candura, aquela
nubilidade melancólica, aquela fisionomia honesta, pesarosa talvez de ser
amável, fendia se em dois batentes de porta mágica e rodava em explosão o
sabbat das lascívias.
Os olhos riam, destilando uma lágrima de desejo; as
narinas ofegavam, adejavam trêmulas por intervalos, com a vivacidade
espasmódica do amor das aves; os lábios, animados de convulsões tetânicas,
balbuciavam desafios, prometendo submissão de cadela e a doçura dos sonhos
orientais. Dominava então pela oferta abusiva, de repente; abatia se à
derradeira humilhação, para atrair de baixo, como as vertigens. Ali estava, por
terra, a prostituição da vestal, o himeneu da donzela, a deturpação da
inocente, três servilismos reclamando um dono; apetite, apetite para esta orgia
rara sem convivas!
Não escolhia amores. Era de todos como os
elementos; como os elementos, sem remorso das desordens e depredações.
Franqueava se à concorrência. Havia lugar para todos à sombra dos cabelos castanhos,
que lhe podiam vestir as copiosas formas, fartos, perpetuamente secos, que ela
sacudia a correr como uma poeira de feno.
Aquele modo de olhar, passando, de Ângela!
clarificou me a imaginação das sombras de terror em que me enleava o alvoroço do
acontecimento da tarde e a vista horrível, do cadáver.
Depois da façanha, Bento Alves, o herói, sumiu se;
comentavam lhe demais a bravura. Nem aos exercícios do campo compareceu.
Bento Alves era um misterioso. Misteriosos são no
colégio os que não andam a atravancar o espaço com as gatimanhas das suas
expansões. Freqüentava as aulas superiores; sem que fosse um estudante de
rumoroso mérito, fazia se respeitar dos mestres e condiscípulos. Sisudo como
certos rapazes de inteligência menor que se arreceiam do ridículo, não somente
pela sisudez impunha se ao respeito. Consideravam no principalmente pela
nomeada de hercúleo. Os fortes constituem realmente uma fidalguia de
privilégios no internato. No tumulto da existência em comum, fundem se as
distinções de classe na democracia do coleguismo: as cambiantes de fortuna
apagam se no figurino geral das blusas pardas. Os títulos de superioridade
prevalecem primitivamente no critério semibárbaro dos verdes anos; o punho
válido chega a fazer vantagem sobre a própria vantagem do favoritismo.
Alves não alardeava de forte; evitava disputas, não
jogava o pulso, preferia exercitar se à ginástica sem espectadores. Às vezes,
por ginástica sem espectadores. Às vezes, por brinquedo, cingia o braço a um
colega entre o polegar e o médio e fechava lhe sob a manga um bracelete roxo
dolorido. Aqueles que se sujeitavam ao formidável ensaio de tatuagem por
compressão, acercavam se, Daí por diante, de Bento Alves com os escrúpulos da
mais reservada prudência.
Entretanto era mole, da preguiça monumental dos
animais pujantes. Veloz, detestava a carreira; alegre, fugia aos folguedos.
Gostava do seu sossego; desviava os incômodos da convivência distribuída,
transbordante dos estimados. Não se falava dele no Ateneu. Limitavam se a temê
lo em silêncio.
Depois da valorosa façanha a que o tinha levado a
casualidade, teve de ver se herói à força. Um desespero. Se algum companheiro
caia na tolice de dizer lhe alguma coisa relativamente ao crime do jardineiro,
Bento Alves rasgava a conversa com um monossílabo de impaciência, encrespando
se como um javali. Apesar de tudo foi o pobre modesto percutido, laminado sobre
a bigorna da notoriedade.
Felizmente o barulho da entrada para o Ateneu de um
moço célebre veio modificar a odiosa voga.
Acabava de matricular se Nearco da Fonseca,
pernambucano de ilustre estirpe.
Apresentou se com o pai, vulto político em galarim
no tempo. Era um mancebo de dezessete anos, rosto cavado, cabelos abundantes,
de talento não comum, olhar vivo, moroso de importância, nariz adunco,
avançado, seco, quase translúcido como um nariz de vidro. Franzino como a
infância desvalida, magro como uma preleção de osteologia, surpreendeu nos,
entre outras, uma recomendação a seu respeito, pelo próprio diretor às barbas
do pai: — Nearco da Fonseca era um grande ginasta!
Talentoso que fosse, concebíamos, se por nada mais,
ao menos pela cabeleira... Mas um ginasta aquele espectro da necessidade!
A juventude, entretanto, é a eterna esperança; nós
esperamos por uma exibição comprobante.
Abalou se a tribo dos acrobatas, dos atletas; toda
a rapaziada de brio, o Luís à frente, que localizava na protuberância nodosa do
bíceps o pundonor supremo da criatura, preparou na mais vasta admiração um
aposento considerável para acolher o confrade.
Formados trezentos, à tarde, diante dos aparelhos,
foi em movimento de avidez que ouvimos Bataillard, com o cavalheirismo que o
distinguia, convidar a exibir se o grande Nearco.
Estava presente o diretor; estava presente o respeitável
progenitor de Blondin. O Ateneu olhava. Nearco deixou a forma, rompendo a
marcha com o pé esquerdo, a regra, mãos à ilharga, sério como um bispo, e
encaminhou se para o trapézio com o passo medido das emas, imperturbável como
quem sabe profundamente a técnica do marchar. Perto do aparelho, sempre de mãos
à cinta, volta a volver! virou se para o colégio, teso, e quebrou para nós um
duro salamaleque, conservando por segundos a efracção angular das figurinhas
delineadas, representando a lavoura, na cantaria histórica do Egito.
Assuntávamos ansiosos.
Depois do cumprimento, Nearco empunhou a barra do
trapézio, polegar para baixo, segundo a pragmática das posições. E fez uma
flexão. Ah! não sabeis, profanos que sois, quanto vale a flexão dos membros
superiores! A fórmula no mundo ideal da mecânica é a alavanca de Arquimedes; da
aplicação prática e contundente é o marro britânico. Consiste nisto: encolher
as munhecas.
Nearco fez uma, duas, fez cinco! seguiu se uma
viravolta, e Nearco ao trapézio, de cócoras, pôde perambular sobre o pasmo
circunstante o pausado beque... Não era tudo, porém! Nearco arranjou mais umas
fantasias de cambalhotas, capazes de transformar radicalmente os princípios
fumados da arte dos trambolhões, e beneficiou nos, suando, com um sorriso
triunfal.
Faltava a sorte do fim. Nearco espichou quanto pôde
a lamentável ausência de músculos e deu nos... uma sereia! A sereia é tudo que
há de mais elementar, de mais pulha, de mais tolamente ostentoso em matéria de
aparelhos. O sujeito segura se às cordas, levanta os pés da barra, mete os pés
pelas mãos e de cabeça para a terra empurra o ventre. O pobre Nearco,
desbarrigado, não tinha ventre para empurrar.
Não empurrou coisa nenhuma; quando muito uns
ossinhos que lhe saíam à altura do umbigo como cabos de faca. Pulou ao chão.
Estava exibido o acrobata! Nós olhávamos uns para
os outros, bestificados, em compostura abatida de caras de asnos. Aristarco
percebeu e repreendeu nos com o sobrecenho. Nós compreendemos delicadamente:
estava ali o respeitável pai de um colega...
Uma roda de palmas, claras, estrepitantes,
inacabáveis, percorreu as fileiras com a eletricidade comunicativa das
aclamações.
Nearco, altivo, agradeceu com o nariz.
VI
O futuro tinha reservado para Nearco um feixe de
melhores palmas, uma galhada de louros mais legítimos como tempero de vitória.
O Grêmio Literário Amor ao Saber, instituição
recente, seria o verdadeiro teatro dos seus soberbos alcances.
Duas vezes ao mês congregavam se os amigos das letras,
numa das salas de cima; a mesma das lições astronômicas de Aristarco. Havia
ainda para iluminar as sessões pedaços de matéria cósmica pelos cantos,
esfrangalhada pela análise do mestre. Não quer dizer que merecesse as eternas
luminárias da ironia a benemérita associação.
Às suas reuniões comparecia eu timidamente, para
nada mais que simplesmente abusar, por excessivo consumo, de um direito dos
estatutos: podiam os alunos, todos do Ateneu, em silêncio humilde, mariscar o
que fossem deixando os segadores do trigal das literaturas.
Assistente infalível, saia cheio com a retórica
espigada, que ia espalmar, prensando no dicionário, conservas de espírito,
relíquia inapreciável do Belo.
A dificuldade que encontrava um estudante para
forrar se ao privilégio de gremista, fazia me mais a fundo venerá lo.
Nearco não teve o menor embaraço. Entrara para o
estabelecimento muito adiantado. Foi imediatamente proposto, aceito e
empossado. À primeira sessão, depois do triunfo ao trapézio, tive ocasião de
apreciá lo à ginástica do verbo.
Debatia se este problema, dos inesgotáveis das
agremiações congêneres. Quem foi maior, Alexandre ou César? indagação histórica
difícil evidentemente de levar a cabo sem o auxilio da trena.
Nearco arranjou a coisa a olho e distinguiu se com
a esperada galhardia. Falou durante hora e meia com uma fluência que lhe
angariava para sempre o epíteto de facundo. Justapôs com o primor de um
varejista de fazendas — César sobre Alexandre. César protestou contra a
maneira, de barriga para o ar, que nada tinha de artística; além disso espetava
o a armadura de Alexandre. Aquilo faria rir a Pompeu no armário das legendas e
a maledicência do senado, comprometendo se a seriedade secular do homem que
foi, viu e venceu... Nearco manteve o inexoravelmente durante o percurso do
paralelo critico. César não podia contar com os legionários do bom tempo; ali
esteve a fazer caretas na sujeição inerme, anima vilis dos documentos.
Alexandre, que afora o capacete, via se ainda maiorzinho que o outro, teve mais
paciência, deixando se medir até à peroração, com a boa vontade de um defunto.
Venceu com efeito. Nearco proclamou o magno dos magnos, diversas polegadas
maior que o temerário do Rubicon.
O Grêmio esclarecido rejubilou. A discussão
encerrou se, não havendo mais quem falasse. Também havia cinco sessões que eram
os pobres guerreiros tratados a metro.
Por este memorável dia arvorou se Nearco em
notabilidade firmada. Esqueceram todos que ele fora matriculado sob o quase
compromisso de não dar um passo que não fosse um salto mortal, não descansar
senão de pernas para cima em cadeiras equilibradas sobre garrafas, não ter
outro recreio que não fosse a corda bamba, por não destoar da percorrida fama.
Ficou em olvido a estréia acrobática. O Grêmio Amor ao Saber tomou o a si, em
posse exclusiva, como um orgulho.
Não faltavam, entretanto, poetas, jornalistas,
polemistas, romancistas, críticos, folhetinistas. A sociedade tinha o seu
órgão, O Grêmio, impresso no Lombaerts, de que podiam ser canudos à vontade os sócios
quites e ainda, por maior riqueza de harmonias, os honorários.
Entre os honorários figurava Aristarco, presidente,
colaborando sempre no periódico com a transcrição em avulso das máximas de
parede, e mandando sempre para a quarta página um anúncio garrafal do Ateneu,
que pagava para auxiliar à empresa. Na interessante publicação apareciam
quadrinhas místicas do Ribas e sonetos lúbricos do Sanches. Barreto publicava
meditações, espécie de harpa do crente em prosa arrebentada.
O rodapé romance era uma imitação d'O Guarani,
emplumada de vocábulos indígenas e assinada — Aimbiré.
Nearco atirou se à especialidade dos paralelos.
Começou logo por dois de pancada: Cila e Mário, Tito e Nero. No expediente
prometia se um terceiro curiosíssimo: Plutarco e os beócios.
Esta queda para as linhas eqüidistantes, talento
aliás de carril urbano e anexos muares, foi mais uma razão de prestigio para o
extraordinário rapaz.
A eloqüência representava se no Grêmio por uma porção
de categorias. Cícero tragédia — voz cavernosa, gestos de punhal, que parece
clamar de dentro do túmulo, que arrepia os cabelos ao auditório, franzindo com
fereza o sobrolho, que, se a retórica fosse suscetível de assinatura,
acrescentaria ao fim de cada discurso pesadamente: a mão do finado; Cícero
modéstia — formulando excelentes coisas, atrapalhadamente, no embaraço de um
perpétuo début, desculpando se muito em todos os exórdios e ainda mais em todas
as confirmações, lágrimas na voz, dificuldade no modo, seleto e engasgado;
Cícero circunspecção — enunciando se por frases cortadas como quem encarreira
tijolos, homem da regra e da legalidade, calcando os que e os CUJO, longo,
demorado, caprichoso em mostrar se mais raso do que o muito que realmente é,
amigo dos períodos quadrados e vazios como caixões, atenuando mais em cada
conceito a atenuante do conceito anterior, conservador e ultramontano, porque
as coisas estabelecidas dispensam de pensar, apologista ferrenho de
Quintiliano, retardando com intervalos o discurso impossível para provar que
divide bem a sua elocução, com todos os requisitos da oratória, pureza,
clareza, correção, precisão, menos uma coisa — a idéia; Cícero tempestade —
verborrágico, por paus e por pedras, precipitando se pela fluência como escadas
abaixo, acumulando avalanches como uma liquidação boreal do inverno, anulando o
efeito de assombroso destampatório pelo assombro do destampatório seguinte,
eloqüência suada, ofegante, desgrenhada, ensurdecedora, pontuada a murros como
uma cena de pugilato; Cícero franqueza — positivo, indispensável para o
encerramento das discussões, dizendo a coisa em duas palavras, em geral
grosseiro e malfalante, pronto para oferecer ao adversário o encontro em
qualquer terreno, espécie perigosa nas assembléias; Cícero sacerdócio —
sacerdotal, solene, orando em trêmulo, alçando a testa como uma mitra, pedindo
uma catedral para cada proposição, calçando aos pés dois púlpitos em vez de
sapatos, espécie venerada e acatada.
Nearco introduziu o tipo ausente do Cícero
penetração — incisivo, fanhoso e implicante, gesticulando com a mãozinha à
altura da cara e o indicador em croque, marcando precisamente no ar, no soalho,
na palma da outra mão o lugar de cada coisa que diz, mesmo que se não perceba,
pasmando de não ser entendido, impacientando se até ao desejo de vazar os olhos
ao público com as pontas da sua clareza, ou derreando se em frouxos de
compaixão pela desgraça de nos não compreendermos, porcos e pérolas.
O gesto incisivo, mais a facúndia desimpedida, mais
o talento histórico dos paralelos, consagrou a primazia do gremista.
O presidente efetivo da sociedade era o Dr.
Cláudio, professor da casa, homem de capacidade, benévolo para os desgarros de
tolice da juventude, que teria desgosto para uma semana, se imaginassem que
faltara a uma sessão por menosprezo. Esta constância do chefe era o grande
elemento de prosperidade do Amor ao Saber. O Dr. Cláudio conduzia os trabalhos
com verdadeira perícia de automedonte, esclarecia os imbróglios, forjava
adjetivos de encômio que ia dando a cada um por sua vez e a todos os estimáveis
consócios, propunha algumas teses e achava graça em outras. Nas sessões solenes
pronunciava o discurso oficial.
A maior utilidade do Grêmio para mim era a
biblioteca. Uma coleção de quinhentos a seiscentos volumes de variado texto,
zelados pela vigilância cerberesca do Bento Alves, bibliotecário, eleito de
voto unânime.
Alves era da associação como quase todos os alunos
do curso superior. Filiava se ao grupo simpático dos silenciosos, usufruindo os
lucros da circunstância de não ser do regimento a taramela obrigatória. Fora da
biblioteca, os seus serviços aos intuitos do Grêmio resumiam se no apoiado!
consciencioso e firme, à disposição sempre da melhor idéia em questões
elevadas, e do mais sábio alvitre em questões de ordem.
Alguns rapazes, não do Grêmio, e que não houvessem,
nas letras, manifestado gramaticalmente notável jeito para a conjugação sub
reptícia do verbo adquirir, podiam obter do presidente o direito de ingresso na
sala dos livros. Eu, como amigo que era das bonitas páginas impressas,
apresentei candidatura. E como não divertia bastante o jogo da barra ao sol,
nem o rapa tira deixa põe das penas de aço e das carrapetas, nem o correr à
panelinha das bolas de vidro espiraladas de cores, fez se me a biblioteca a
recreação habitual.
Esta freqüência angariou me dois amigos, dois
saudosos amigos — Bento Alves e Júlio Verne.
Ao famoso contador do Tour du Monde devo uma
multidão numerosa dos amáveis fantasmas da primeira imaginação, excêntricos
como Fogg, Paganel, Thomas Black, alegres como Joe, Passepartout, o negro Nab,
nobres como Glenarvan Letourneur, Paulina Barnett, atraentes como Aouda, Mary
Grant. Sobre todos, grande como um semideus, barba nitente, luminosa como a neblina
dos sonhos, o lendário Nemo da Ilha Misteriosa, taciturno da lembrança das
justiças de vingador, esperando que um cataclismo lhe cavasse um jazigo no seio
do Oceano, seu vassalo, seu cúmplice, seu domínio, pátria sombria do
expatriado.
Possuía minha literatura completa de tesouros de
meninos, contos de Schmidt; visitara uma por uma no meu burrinho as feiras da
sabedoria de Simão de Nântua; estudara profundamente pelas aventuras de
Gulliver as vacilações da vida, onde, mal acabamos de zombar da pequenez
extrema, vem sobre nós o ludibrio da extrema grandeza, espécie de Pascal de
mamadeira entre Liliput e Brobdingnak; chegara à perfeição de duvidar das
empresas de Münchhausen. Isto tudo sem falar nos Lusíadas do Sanches, no
reverendo Bernardes, na refinada pilhéria do Bertoldo e no Testamento do Galo,
símbolo aliás muito filosófico da odiosidade das sucessões, que por ventura do
herdeiro autoriza o destripamento do galináceo como a tortura skakespeariana de
Lear.
Júlio Verne foi festejado como uma migração de
novidade. Onde quer que me levasse o Forward ou o Duncan, o Nautilus ou o balão
Vitória, a columbíada da Florida ou criptograma de Saknussen, lá ia eu,
esfaimado de desenlaces, prazenteiro, ávido como os três dias de Colombo antes
da América, respirando no cheiro das encadernações as variantes climatéricas da
leitura, desde as areias africanas ate aos campos de cristal do Ártico, desde
os grandes frios siderais até à aventura do Stromboli.
A amizade do Bento Alves por mim, e a que nutri por
ele, me faz pensar que, mesmo sem o caráter de abatimento que tanto indignava
ao Rebelo, certa efeminação pode existir como um período de constituição moral.
Estimei o femininamente, porque era grande, forte, bravo; porque me podia
valer; porque me respeitava, quase tímido, como se não tivesse animo de ser
amigo. Para me fitar esperava que eu tirasse dele os meus olhos. A primeira vez
que me deu um presente, gracioso livro de educação, retirou se corado, como
quem foge. Aquela timidez, em vez de alertar, enternecia me, a mim que aliás
devia estar prevenido contra escaldos de água fria. interessante é que vago
elemento de materialidade havia nesta afeição de criança, tal qual se nota em
amor, prazer do contato fortuito, de um aperto de mãos, da emanação da roupa, como
se absorvêssemos um pouco do objeto simpático.
Na biblioteca, Bento Alves escolhia me as obras:
imaginava as que me podiam interessar; e propunha a compra, ou as comprava e
oferecia ao Grêmio, para dispensar se de mas dar diretamente. No recreio não andávamos
juntos; mas eu via de longe o amigo, atento, seguindo me o seu olhar como um
cão de guarda.
Soube depois que ameaçava torcer o pescoço a quem
pensasse apenas em me ofender; seu irmão adotivo! confirmava.
Eu, que desde muito assumira entre os colegas um
belo ar de impávida altania, modificava me com o amigo, e me sentia bem na
submissão voluntária, como se fosse artificial a bravura, à maneira da
conhecida petulância feminina.
A malignidade do Barbalho e seu grupo não dormia.
Tremendo de represália do Alves, faziam pelos cantos escorraçada maledicência,
digna deles.
Às vezes na biblioteca, enquanto eu lia, Alves
olhava me do outro lado da mesa central de pano verde, com a mão à fronte e os
dedos mergulhados nos cabelos. Olhava me e eu o sentia sem levantar a vista,
compreendendo no mais fino refolho de ninada vaidade que aquela contemplação
traduzia o horror do ridículo, proverbial em Bento Alves, manietando lhe
rijamente uma demonstração efusiva. Não fosse a critica uma criatura do tempo,
eu poderia achar cômica a situação dos personagens desta cena de platonismo.
Não havendo a critica para falsear a psicologia por desdobramento, limitava me
a ser sincero, como o pobre amigo. Às vezes vinha lhe a pálpebra uma lágrima
sem origem.
No movimento geral da existência do internato,
desvelava se caprichosamente; sabia ser, de modo inexprimível, fraternal,
paternal, quase digo amante, tanta era a minudência dos seus cuidados. Não
havia regalo, dessas mesquinhas coisas de preço enorme na carestia perpétua da
prisão escolar, de que se não privasse o Alves, em meu proveito, desesperando
se, a fazer pena, se eu tentava recusar. À conversa, falava da família no Rio
Grande do Sul; tinha duas irmãs; falava delas, do tempo passado que não as via,
muito claras, de belos olhos, uma de quinze anos, outra de doze; ele tinha
dezoito. Falava de cuidados higiênicos meus, mudar de cama no salão azul, que
estava muito perto das janelas, e isto havia de ser nocivo... Outras ninharias,
em tom de sentida brandura, como se desejasse decrescer das proporções sólidas
de sua conformação para reduzir se à exigüidade balbuciante de uma carcaçazinha
de avó, minguada de velhice, animada, ainda e apenas, pela febre do último
alento, pela necessidade de carregar ainda alguns dias um coração, um afeto.
Os estatutos do Grêmio marcavam duas ocasiões de
solenidades: as festas anuais de abertura e do encerramento dos trabalhos. Além
destas, as sessões comemorativas que a casa resolvesse.
Para as festas literárias, levava se ao pavilhão do
recreio um grande estrado, três mesas que se alinhavam para a diretoria, sob um
rico pano cor de vinho, de ramagens negras que lembravam tinteiros entornados
de mau agouro, e uma tribuna familiarmente apelidada caranguejola.
Esta caranguejola, enorme e pesada, que parecia
protestar, a cada solavanco, contra o caráter de móvel que lhe queriam à força
impingir, fazia figura em todas as salas do Ateneu, conforme as exigências da
retórica. Localizada a conferência, a preleção, a prática solene, abalava se a
mísera e punha se em caminho, aos encontrões, seguindo o fadário de mostrador
ambulante de eloqüência. Nestas circunstâncias não era uma simples tribuna, era
um verdadeiro prognóstico. Em se movendo a caranguejola, discurseira iminente.
Teve um dia de razoável orgulho: dela serviu se no Ateneu o Professor Hartt,
para uma conferência de antropologia.
Quando a vimos andar um dia e soubemos que aquilo
significava a instalação do Amor ao Saber, congregou se o Ateneu, unificado no
mesmo impulso de entusiasmo, e pela primeira vez a tribuna marchou sem o
cerimonial das topadas. Despedimos os criados. tomamo-la nós aos ombros:
levamo- la em ovação.
A festa inaugural esteve animada. Mais do que se
esperava, infelizmente.
Encheu se de bancos e cadeiras austríacas o
vastíssimo salão. Ao centro, em frente, a mesa da diretoria; à esquerda, os
convidados; à direita, os outros alunos, o resto, como se diz das maiorias, sem
voz ativa.
Sobre o pano avinhado de ramagens, abria se a pasta
do secretário; sobre a tribuna cintilava cristalino o copo das urgências
instantes.
Poucos oradores. Aristarco, presidente honorário,
abriu a sessão com a chave do peregrino verbo, recomendando a nova associação
como um tentame honroso e de muito fruto para os moços aplicados, que teriam
ensejo de se dar ao cultivo da oratória e das belas letras.
Subiu em seguida à tribuna o presidente efetivo.
Com a facilidade da sua elocução, fez o Dr. Cláudio
a critica geral da literatura brasileira: a galhofa de Gregório de Matos e
Antônio José, a epopéia de Durão, o idílio da escola mineira, a unção de Sousa
Caldas e S. Carlos, a influência de Magalhães, os ensaios do romance nacional,
a glória de Gonçalves Dias e José de Alencar.
E passou a estudar a atualidade.
O auditório que escutava, interessado, mas
tranqüilo, começou a agitar se.
O orador representava a nação como um charco de
vinte províncias estagnadas na modorra peludosa da mais desgraçada indiferença.
Os germes da vida perdem se na vasa profunda; à superfície de coágulos de
putrefação, borbulha, espaçadamente, o hálito mefítico do miasma, fermentado ao
sol, subindo a denegrir o céu, com a vaporização da morte. Os pássaros calados
fogem; as poucas árvores próximas no ar parado, debruçam se uniformes sobre si
mesmas num desanimo vegetativo, que parece crescer, descendo, — prosperidade
melancólica de salgueiros. O horizonte limpo, remato, desfere golpes de luz
oblíqua, reptil, que resvalam, espelhando faixas paralelas, imóveis, sobre o
dormir da lama.
Por entre os raros caniços, emergem olhos de sapo,
meditando a vantagem daquela paz sombria, indolência negra, em que chega a ser
vigor de vontade estrebuchar quatro arrancos através da onda grossa em busca da
fêmea. A arte significa a alegria do movimento, ou um grito de suprema dor nas
sociedades que sofrem. Entre nós, a alegria é um cadáver. Ao menos se
sofrêssemos... A condição da alma é a prostração comatosa de uma inércia
mórbida. Quem nos dera a tonicidade letal de uma vasca. Trituramos a vida por
igual como um osso; roemos o dia, pacientes, de rojo, sobre o ventre, como cães
ao pasto. Fosse manjar o crânio de Rogério, ao menos teríamos a tragédia...
Nada! A condição é o descanso ininterrupto do aniquilamento no plano infinito
da monotonia. E não é o teto de brasa dos estios tropicais que nos oprime. Ah!
como é profundo o céu do nosso clima material! Que irradiação de escapadas para
o pensamento a direção dos nossos astros! O pântano das almas é a fábrica
imensa de um grande empresário, organização de artifício, tão longamente
elaborada, que dir se ia o empenho madrepórico de muitos séculos, dessorando em
vez de construir. É a obra moralizadora de um reinado longo, é o transvasamento
de um caráter, alargando a perder de vista a superfície moral de um império — o
desmancho nauseabundo, esplanado, da tirania mole de um tirano de sebo!...
Calculem agora que estava entre os convidados o Dr.
Zé Loto, pai de um aluno, devoto jurado e confirmado das instituições, irmão de
não sei quantas ordens terceiras, primo de todos os conventos, advogado de
causas religiosas, conservador em suma, enraivado e militante. O sebo da
tirania caiu lhe nos melindres como um pingo de vela benta.
"Protesto!" rugiu, rubro e rouquenho,
dilacerando as barbas e erguendo o punho. Não podia admitir que viessem à sua
vista ensebar as instituições! Por maior desgraça estava também presente o
Senador Rubim, avó de outro aluno, senador de maus bofes, um pai da pátria
padrasto, sem considerações nem papas na língua.
"Quem protesta contra o sebo da tirania é
barro! " redargüiu ao apartista com a pachorra temível dos velhos
insolentes.
— Burro, não! clamou o outro, empalidecendo sob a
vergasta da injúria, nervoso, perturbado pela atenção da sala inteira que o
encarava. Burro, não! tais expressões são indignas de V. Ex.a, um senador e um
velho!...
— Burro, sim!... repetia o outro vagarosamente, com
um arreganho enfastiado de insulto. Burro, sim!...
Aristarco conservava se a presidência, na
pasmaceira de pau dos ídolos afrontados. O salão enorme, alunos e convidados,
tumultuava em vagalhões, fragmentado em partidos opostos, uns pelo senador e
pela anarquia, outros pelo advogado e pela ordem pública. Muitos gesticulavam
de pé; havia estudantes gritando em cima dos bancos. Os insultos voavam como
pelouros; os protestos rangiam como escudos feridos; havia mãos pelo ar que
pediam espadas.
Aproveitando se do escarcéu, o advogado ousara
arremessar uns desaforos ao senador. O outro, sem ouvir bem, ia replicando com
a impertinência do seu estribilho: "Burro, sim", até que, impaciente,
pôs remate à polêmica com as cinco letras da energia popular que Waterloo fez
heróicas, Vítor Hugo fez épicas e Zola fez clássicas.
Sob o peso da conclusão, Zé Loto cedeu.
Aristarco achou que era tempo de funcionar a
presidência e sacudiu sobre o tumulto o badalo da ordem.
O orador na tribuna, ereto e calmo, promontório
sobre a tormenta, esperava que o alvoroço chegasse a termo. Apenas viu arrefecer
o furor dos impropérios: "Corramos um véu sobre o cenário desolador",
continuou; "venha em socorro a esperança de um renascimento". E por
ai habilidosamente conduzindo a oração, acabou por um quadro de futuro, armado
em aurora sobre a tribuna, pórtico de luz, jorrando um deslumbramento que
extasiou os ouvintes com o encanto dos vaticínios felizes, levando o sopro da
viração matutina as nuvens do desanimo esfumadas antes sobre o panorama.
Tiveram a palavra, ainda, dois estudantes, que
moeram uma quantidade profusa de frases comuns a propósito de letras e
literatos. O filho do diretor, o republicanozinho que conhecem, tinha no bolso
dez tiras, dez brulotes de eloqüência incendiária, que resolveu sufocar depois
do escândalo colossal do sebo.
A segunda sessão solene do Grêmio, conquanto mais
pacifica, não foi menos importante.
Realizou se em princípios de outubro, pelas
imediações das férias. A concorrência foi maior, compareceram senhoras em
grande número, o que não sucedera na de instalação; houve mais capricho de
ornatos nas salas; forrou se a tribuna de verde e amarelo; inscreveram se os
mais aproveitados campeões da oratória do Amor ao Saber. O colégio compareceu
fardado; a diretoria, de casaca.
A conferência do Dr. Cláudio foi subversiva, mas em
sentido diverso da primeira. Versou não mais sobre a literatura no Brasil,
porém sobre a arte em geral:
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Arte, estética, estesia é a educação do instinto
sexual.
A manutenção da existência indivídua tem a razão de
ser no instinto de vitalidade da espécie. O momento presente das gerações nada
mais é que a ligação prolífica do passado com a posteridade. E a razão de ser
das espécies? A indagação não perscruta.
Para que o indivíduo perdure, momento genésico da
existência especifica no tempo, é indispensável adaptar se as imposições do
meio universal. O rio a correr não despreza o detalhe do mais insignificante
remanso, nem pode sofismar o obstáculo do menor rochedo no alvéu. O critério
inconsciente do instinto é o guia da adaptação.
O esforço da vida humana, desde o vagido do berço
até o movimento do enfermo, no leito de agonia, buscando uma posição mais
cômoda para morrer, é a seleção do agradável. Os sentidos são como as antenas
salvadoras do inseto titubeante; vão ao encontro das impressões, avisadores
oportunos e cautelosos.
A cada mundo de sensações notáveis corresponde um
sentido. Os sentidos, teoricamente delimitados, são cinco, múltipla transformação
de processo de um único — o tato, exatamente o sentido rudimentar das antenas.
Faz se, tateando instintivamente à procura dos
agradáveis: agradável visual, agradável gustativo, agradável tangível, em suma.
O agradável é essencialmente vital; se é às vezes funesto, é porque o instinto
pode ser atraiçoado pelas ilusões.
A perfectibilidade evolutiva dos organismos em
função, manifestando. se prodigiosamente complexa, no tipo humano, corresponde
à revelação, na ordem animal, do misterioso fenômeno personalidade, capaz de
fazer a critica do instinto, como o instinto faz a critica da sensação.
A informação de reportagem de cada sentido não
desperta, portanto, no homem a atividade cerebral dos impulsos de preferência, de
repugnância, simplesmente, como nos outros animais; mas amplia, pela psicologia
inteira dos fenômenos espirituais, a variedade infinita das comparações,
permutadas de mil modos na unidade do espírito como as peças de um jogo
maravilhoso sobre o mesmo pano.
Duas são as representações elementares do agradável
realizado: nutrição e amor.
Os animais inferiores, não favorecidos por um
razoável coeficiente de progresso, produzem secularmente a condição da
inferioridade; olham, tocam, farejam, ouvem, não provam com demasiado escrúpulo
e devoram grosseiramente para depois amar, como sempre fizeram.
O homem, por desejo de nutrição e de amor, produziu
a evolução histórica da humanidade.
A nutrição reclamou a caçada fácil — inventaram se
as armas; o amor pediu um abrigo, ergueram se as cabanas. A digestão tranqüila
e a perfilhação sem sobressaltos precisaram de proteção contra os elementos,
contra os monstros, contra os malfeitores, — os homens tacitamente se
contrataram para o seguro mútuo, pela força maior da união: nasceu a sociedade,
nasceu a linguagem, nasceu a primeira paz e a primeira contemplação. E os
pastores viram pela vez primeira que havia no céu a estrela Vésper, expandida e
pálida como o suspiro.
Mas era preciso que fossem leitos de amor as crinas
de ouro e fogo dos leões, e que houvesse marfim, metais luzentes, pedraria,
sobre a alvura láctea da carne amada, que não bastavam beijos para vestir; era
preciso deliciar a gustação, como requinte das estranhezas. E os homens levaram
a conquista aos reis da floresta, ao ventre do solo; foram colher aos ares os
íncolas mais raros, emplumados de luz como criações canoras do sol; e foram
buscar às ondas os mais esquivos viajores do abismo, singrando céleres,
fantásticos, na sombra azul, em cauda um reflexo vago de escamas, — para morder
lhes a vida.
Urgiu ainda a fome, urgiu mais o amor e veio a
guerra, a violência, a invasão. Curvaram se os cativos ao látego vencedor e
foram abatidas as escravas sob a garra da lascívia sanguinária, faminta de
membros avulsos, olhos sem alma, lábios sem palavra, formas sem vontade,
pretexto miserável de espasmos. Formaram se os ódios de raça, as opressões de
classe, as corrupções vingadoras e demolidoras.
Mas a cisma evoluiu também, aquela cisma poética da
pastoral primeva que buscara os astros no céu para adereço dos idílios. O fundo
tranqüilo e obscuro das almas, aonde não chega o tumultuar de vagas da
superfície inflamou se de fosforescências; geraram se as auréolas dos deuses,
coalharam se os discos das glórias olímpicas: as religiões nasceram.
Mas era preciso que fosse palpável o espectro da
divindade; as rochas descascaram se em estátuas, os metais se fizeram carne e
houve cultos, houve leis, vieram profetas e pontífices ambiciosos. E esta
evolução da cisma que fora amante, feita instrumento da tirania, deu lagar às
práticas do terror, aos apostolados do morticínio.
Mas uma lira ficara da geração primeira de
cismadores, e as cordas cantavam ainda e os sons falaram no ar as epopéias do
Oriente e da Grécia. Roubou se aos sacerdotes tiranos o monopólio dos deuses
para jungi-los à atrelagem do metro; que levassem através dos séculos, o carro
triunfal da estrofe, onda sonora de vibrações imortais.
E os esculpidores dos ídolos legaram o segredo da
fábrica revelando que vinham de um molde de barro aquelas arrogâncias de
bronze, que se fazem deuses como as ânforas. E os artistas modernos
recomeçaram, chamando a religião ao atelier, como um modelo de hora paga; e
gravaram em tinta, pelos muros, as visões místicas da crença.
A nitidez artística das formas fizera crer aos
homens que morava realmente um espírito sagrado na porosidade do mármore, e que
realmente havia em proporções infinitas uma tela de olimpos e paraísos, onde as
cores do antropomorfismo artístico viviam soberanas, olhando o mundo lá
embaixo, vazando a urna providencial das penas e das alegrias.
Decaídas as fantasias sentimentais, reformou se o
aspecto do mundo. Os deuses foram banidos como efeitos importunos do sonho.
Depois da ordem em nome do Alto proclamou se a ordem positivamente em nome do
Ventre. A fatalidade nutrição foi erigida em principio: chamou se indústria,
chamou se economia política, chamou se militarismo. Morte aos fracos!
Alcançando a bandeira negra do darwinismo espartano, a civilização marcha para
o futuro, impávida, temerária, calcando aos pés o preconceito artístico da
religião e da moralidade.
Sobrevive, porém, o poema consolador e supremo, a
eterna lira...
Reinou primeiro o mármore e a forma; reinaram as cores
e o contorno, reinam agora os sons, — a música e a palavra. Humanizou se o
ideal. O hino dos poetas do mármore, do colorido, que remontava ao firmamento,
fala agora aos homens, advogado enérgico do sentimento.
Sonho, sentimento artístico ou contemplação, é o
prazer atento da harmonia, da simetria, do ritmo, do acordo das impressões, com
a vibração da sensibilidade nervosa. É a sensação transformada.
A história do desenvolvimento humano nada mais é do
que uma disciplina longa de sensações. A obra de arte é a manifestação do
sentimento.
Dividindo se as sensações em cinco espécies de
sentidos, devem os sentimentos corresponder a cinco espécies e igualmente as
obras de arte.
Da sensação acústica vem a estesia acústica:
sentimento nos sons, nas palavras — eloqüência e música; da sensação da vista,
a estesia visual, o sentimento na forma, no traço e no colorido, — escultura,
arquitetura, pintura; da sensação palatal e olfativa nasce o sentimento do
gosto e do perfume, — artes menos consideradas pela relativa inferioridade dos
seus efeitos. A sensação do tato, secundada por todas as outras, dá lugar ao
sentimento complexo do amor, arte das artes, arte matriz, razão de ser de todas
as espécies de estesia.
O primeiro momento contemplativo de um amoroso foi
o advento da estética, no gozo visual das linhas da formosura, na delicie
auditiva de uma expressão inarticulada, que fosse emitida com expressão, na
comoção de um contato, na aspiração inebriante do aroma indefinido da carne. A
obra d'arte do amor é a prole; o instrumento é o desejo.
Depois da arte primitiva e fundamental do tato, a
arte do ouvido. A obra de arte é a frase sentida, hábil para produzir emoção; o
instrumento é a linguagem.
Esta arte devia mais tarde ramificar se em
eloqüência propriamente e poesia popular, graças à aproximação híbrida de
terceira arte, do ouvido, a música.
Com o progresso humano, o sentimento artístico da
simetria e da harmonia destacou se analiticamente da arte de amar. E, depois da
arte primordial, descendente imediata do instinto erótico, da qual se
desprendera, sob a forma selvagem das interjeições primitivas, a arte da
eloqüência; e em seguida, sob a forma de expressões homométricas, a poesia
popular e a primeira música; nasceram as artes intencionais, de imitação, da
escultura, da arquitetura, do desenho. Depois da poesia popular, amorosa ou
heróica, veio a rapsódia.
Ainda mais, segundo um traçado naturalíssimo de
filiação, o sentimento da simetria, trasladado para a esfera das relações
sociais, serviu de plano à organização das religiões, filhas do pavor, e das
moralidades, invenção das maiorias de fracos. Com o predomínio insensato das
religiões, o amor deixou de ser um fenômeno, passou a ser um ridículo ou uma
coisa obscena.
Por um raciocínio de retrocesso, se ponderarmos que
a moralidade é a organização simétrica da fraqueza comum, que a religião é a
organização simétrica do terror, que a simetria, isto é, harmonia e proporção,
é a norma artística das imitações plásticas da ingênua admiração da criatura primitiva,
e que esta admiração prazenteira, testemunhada por uma tentativa de desenho ou
de estátua, por um canto popular ou por uma interjeição veemente, nada mais é
do que um modo acentuado de um esforço de atenção, e que a primeira atenção dos
homens do principio, — a lenda de Adão que o diga, — devia ser do indivíduo de
um sexo para o indivíduo de outro sexo, teremos averiguado o aforismo paradoxal
de que a arte subjetivamente, o sentimento artístico nas suas mais elevadas,
mais etéreas manifestações, é simplesmente — a evolução secular do instinto da
espécie.
Esta é a sua grandeza, e por isso vai zombando,
através das idades, das vicissitudes tempestuosas do combate pela nutrição, dos
próprios exasperos homicidas do amor.
A arte é primeiro espontânea, depois intencional.
Manifesta se primeiro grosseiramente, por erupções
de sentimento, e faz o amor concreto, a interjeição, a eloqüência rudimentar, a
poesia primitiva, o primitivo canto. Manifesta se mais tarde, progressivamente,
por efeitos de cálculo e meditação e dá o epos, a eloqüência culta, a música
desenvolvida, o desenho, a escultura, a arquitetura, a pintura, os sistemas
religiosos, os sistemas morais, as ambições de síntese, as metafísicas, até as
formas literárias modernas, o romance, feição atual do poema no mundo.
As manifestações espontâneas são coevas de todas as
sociedades; a poesia popular, por exemplo, não desaparece, nem a eloqüência,
ainda menos o amor. As manifestações intencionais, ampliações, aperfeiçoamentos
do modo primitivo de expressão sentimental, sujeitam se aos movimentos e
vacilações de tudo que progride.
O coração é o pêndulo universal dos ritmos. O
movimento isócrono do músculo é como o aferidor natural das vibrações
harmônicas, nervosas, luminosas, sonoras. Graduam se pela mesma escala os
sentimentos e as impressões do mundo. Há estados d'alma que correspondem à cor
azul, ou às notas graves da música; há sons brilhantes como a luz vermelha, que
se harmonizam no sentimento com a mais vivida animação.
A representação dos sentimentos efetua se de acordo
com estas repercussões.
O estudo da linguagem demonstra.
A vogal, símbolo gráfico da interjeição primitiva,
nascida espontaneamente e instintivamente do sentimento, sujeita se à variedade
cromática do timbre como os sons dos instrumentos de música. Gradua se, em
escala ascendente u, o, a, e, i, possuindo uma variedade infinita de sons
intermediários, que o sentimento da eloqüência sugere aos lábios, que se não
registram, mas que vivem vida real nas palavras e fazem viver a expressão,
sensivelmente enérgica, emancipada do preceito pedagógico, de improviso, quase
inventada pelo momento.
Há ainda na linguagem o ritmo de cada expressão.
Quando o sentimento fala, a linguagem não se fragmenta por vocábulos, como nos
dicionários. É a emissão de um som prolongado, a crepitar de consoantes,
alteando se ou baixando, conforme o timbre vogal.
O que move o ouvinte é uma impressão de conjunto. O
sentimento de uma frase penetra nos, mesmo enunciado em desconhecido idioma.
O timbre da vogal, o ritmo da frase dão alma à
elocução. O timbre é o colorido, o ritmo é a linha e o contorno. A lei da
eloqüência domina na música, colorido e linha, seriação de notas e andamentos;
domina na escultura, na arquitetura, na pintura: ainda a linha e o colorido.
Na sua qualidade de representação primária do
sentimento, depois do fato do amor, a eloqüência é a mais elevada das artes.
Daí a supremacia das artes literárias, — eloqüência escrita.
A eloqüência foi a principio livre, fiel ao ritmo
do sentimento; influenciada pela música monótona dos mais antigos tempos,
cadenciou se em metro regular e monótono como a música. Aproveitada como
recurso mnemônico, libertou se da música, guardando, porém, a forma do metro
igual e da quantidade equivalente, que havia de ser um dia a metrificação da
sílaba, que havia de dar em resultado a monstruosidade da rima, o calembur
feito milagre de perfeição.
A música seguiu à parte a sua evolução.
Na arte da eloqüência da atualidade acentua se uma
reação poderosa contra o metro clássico; a critica espera que dentro de alguns
anos o metro convencional e postiço terá desaparecido das oficinas da
literatura. O sentimento encarna se na eloqüência, livre como a nudez dos
gladiadores e poderoso. O estilo derribou o verso. As estrofes medem se pelos
fôlegos do espírito, não com o polegar da gramática.
Hoje, que não há deuses nem estátuas, que não há
templos nem arquitetura, que não há dies iroe nem Miguel Ângelo; hoje que a mnemônica
é inútil, o estilo triunfa, e triunfa pela forma primitiva, pela sinceridade
veemente, como nos bons tempos em que o coração para bem amar e o dizer não
precisava crucificar a ternura as quatro dificuldades de um soneto.
Qual a missão da arte? Originaria da propensão
erótica fora do amor, a arte é inútil, — inútil como o esplendor corado das
pétalas sobre a fecundidade do ovário. Qual a missão das pétalas coradas? De
que nos serve a primavera ser verde? As aves cantam. Que se aproveita do cantar
das aves? A arte é uma conseqüência e não um preparativo. Nasce do entusiasmo
da vida, do vigor do sentimento, e o atesta. Agrada sempre, porque o entusiasmo
é contagioso como o incêndio. A alma do poeta invade nos. A poesia é a
interpretação de sentimentos nossos. Não tem por fim agradar.
E, depois, reclamar títulos de utilidade às
divagações graciosas de uma energia da alma, que significa em primeira
manifestação a própria perpetuidade da espécie?!
Além de inútil, a arte é imoral. A moral é o
sistema artístico da harmonia transplantado para as relações de coletividade.
Arte sui generis. Se é possível eficazmente o regime social das simetrias da
justiça e da fraternidade, o futuro há de provar. Em todo caso é arte diferente
e as artes não se combinam senão em produtos falsos, de convenção.
Poema intencionalmente moral é o mesmo que estátua
polícroma ou pintura em relevo. Apenas uma coisa possível, nada mais; há também
quem faça flores, com asas de barata e pernas.
A verdadeira arte, a arte natural, não conhece
moralidade. Existe para o indivíduo sem atender à existência de outro
indivíduo. Pode ser obscena na opinião da moralidade: Leda; pode ser cruel:
Roma em chamas, que espetáculo!
Basta que seja artística.
Cruel, obscena, egoísta, imoral, indômita,
eternamente selvagem, a arte é a superioridade humana — acima dos preceitos que
se combatem, acima das religiões que passam, acima da ciência que se corrige;
embriaga como a orgia e como o êxtase.
E desdenha dos séculos efêmeros.
À vista da tranqüilidade do auditório, subentende
se que não estavam presentes os dois heróis da primeira sessão solene: o Dr. Zé
Lobo não viera, para não encontrar o Senador; o Senador Rubim não viera, para
não encontrar o Dr. Zé Loto: impulsos equivalentes em sentido contrário anulam
se.
Havia na sala diversos ouvintes que se distraiam de
perseguir com atenção a galopada de hipógrifo, em que se elevava a eloqüência
do orador.
Bento Alves, um; outro o Malheiro, moreno, nervoso,
carrancudo, o primeiro ginasta; outro, Barbalho.
A preocupação de Bento Alves era uma injúria. Entre
ele e Malheiro havia rixa de velha de emulação. Malheiro não lhe perdoava a
culpa de ser bravo. Os próprios prodígios da força e agilidade, aplaudidos e
proclamados pelo Ateneu, não davam para saciar a vaidade. De que valia ser
forte, se era impossível a aplicação do seu esforço para afrouxar uma fibra à
musculatura do Bento? Ah! não ser possível por sugestão desfiar uma a uma
aquelas meadas de arame, reduzir a infantilidade débil aquela corpulência
odiosa! Por que não iriam os desejos da inveja, como vampiros, sorver o sangue
àquela força, a vida, gota a gota, àquele vigor de ferro?
Bento Alves não dava mostras de perceber a
rivalidade. Malheiro evitava o. Era impossível conservar se um momento perto do
colega, que lhe não dessem ímpetos de assaltá lo.
A façanha da prisão efetuada pelo rival
definitivamente retirava lhe a glória de valoroso único. Malheiro entrou em melancolia
trancada. O rosto moreno amorenou se mais; a animação de um brilho não lhe
chegava à janela do olhar; o sorriso nos lábios não abria a porta. Dir se ia um
frontispício de luto.
Ficou a ruminar o projeto de um encontro.
O meu bom amigo, exagerado em mostrar se melhor,
sempre receoso de importunar me com uma manifestação mais viva, inventava cada
dia nova surpresa e agrado. Chegara ao excesso das flores. A principio, pétalas
de magnólia seca com uma data e uma assinatura, que eu encontrava entre folhas
de compêndio. As pétalas começaram a aparecer mais frescas e mais vezes; vieram
as flores completas. Um dia, abrindo pela manhã a estante numerada do salão do
estudo, achei a imprudência de um ramalhete. Santa Rosália da minha parte nunca
tivera um assim. Que devia fazer uma namorada? Acariciei as flores, muito
agradecido, e escondi as antes que vissem.
Mas o Barbalho espiava, ultimamente constituído
fiscal oculto dos meus passos.
As circunstâncias o tinham aproximado do Malheiro,
e o açafroado caolho pretendia manejar a rivalidade dos dois maiores: um
conflito entre Malheiro e Bento podia ser a vergonha para mim.
O Malheiro, com o vozeirão grave de contrabaixo,
começou a infernizar me por epigramas. Queria incomodar o Alves mortificando
me, julgando que me queixasse. Eu devorava as afrontas do marmanjo sem
descobrir o meio de tirar correta desforra. Barbalho lembrou se de tomar as
dores. Depois de incitar o Malheiro contra mim, incitou o Bento contra o
Malheiro. Procurou o misteriosamente e informou: "o Malheiro não passa
pelo Sérgio que não pergunte quando é o casamento... é preciso casar... Ainda
hoje pediu convite para as bodas. O Sérgio esta desesperado".
O furor do Alves não se descreve, furor poderoso
dos calados. Uma onda de apoplexia ruborizou lhe as faces. Por único movimento
de indignação contraiu os dedos, como estrangulando. Procurou o Malheiro e com
a voz talvez alterada, mas sem ódio, fez intimação: "amanhã é a sessão de
encerramento; em meio da festa salmos ambos; preciso falar lhe das bodas".
Malheiro percebeu: era o sonhado encontro!
Apenas desceu da tribuna o presidente efetivo do
Grêmio, os adversários deixaram as cadeiras. Barbalho saiu pouco depois. Notei
o movimento e adivinhei mais ou menos.
Quando saímos do pavilhão, finda a solenidade, um
criado entregou me um envelope, uma carta do Alves, a lápis. "Estou preso;
antes que te digam que por alguma indignidade, previno: por ter dado uma lição
ao Malheiro."
Minutos depois, Franco, muito satisfeito, contava a
todos: "tinham lutado no jardim o Malheiro e o Alves; que briga dos dois
brutos!" Alves saíra ferido com um golpe no braço, acreditam que de
navalha; Malheiro estava no dormitório. Avisados pelo Alves, os criados tinham
ido buscá lo sem sentidos, ao fundo de um bosquete no parque. "Sem
sentidos!" garantia o Franco; "que pândega! que sopapos! ora o
Malheiro malhado!"
Soube se que Barbalho espreitara o combate através
dos arbustos. Antes de o ver acabado, correra ativo, e concentrando a vesgueira
numa só atenção de intrigante, preparara as coisas de modo que, ao voltar do
jardim, Bento Alves foi surpreendido por uma ordem de prisão do diretor.
Não denunciar nunca é preceito sagrado de lealdade
no colégio. Os contendores recusaram se a explicações. Bento Alves negou o
braço a exame e a curativo; Malheiro, em panos de sal, fingindo se muito
prostrado, oferecia o mais impenetrável silêncio às indagações de Aristarco e
protestava esborrachar as ventas a quem caísse na asneira de insinuar o bedelho
no que não era da sua conta.
"Ora o malhado!..." resmungavam os
colegas; mas tratavam de esquecer o caso.
Por minha parte, entreguei me de coração ao
desespero das damas romanceiras, montando guarda de suspiros à janela gradeada de
um cárcere onde se deixava deter o gentil cavalheiro, para o fim único de
propor assunto às trovas e aos trovadores medievos.
V I I
O tédio é a grande enfermidade da escola, o tédio
corruptor que tanto se pode gerar da monotonia do trabalho como da ociosidade.
Tínhamos em torno da vida o ajardinamento em
floresta do parque e a toalha esmeraldina do campo e o diorama acidentado das
montanhas da Tijuca, ostentosas em curvatura torácica e frentes felpudas de
colosso; espetáculos de exceção, por momentos, que não modificavam a secura
branca dos dias, enquadrados em pacote nos limites do pátio central, quente,
insuportável de luz, ao fundo daquelas altíssimas paredes do Ateneu, claras da
caiação, do tédio, claras, cada vez mais claras.
Quando se aproxima o tempo das férias. o
aborrecimento é maior.
Os rapazes, em grande parte dotados de tendências
animadoras para a vida prática, forjicavam mil meios de combater o enfado da
monotonia. A folgança fazia época como as modas, metamorfoseando se depressa como
uma série de ensaios.
A peteca não divertia mais, palmeada com estrépito,
subindo como foguete, caindo a rodopiar sobre o cocar de penas? Inventavam se
as bolas elásticas. Fartavam se de borracha? Inventavam se as pequenas esferas
de vidro. Acabavam se as esferas? Vinham os jogos de salto sobre um tecido de
linhas a giz no soalho, ou riscadas a prego na areia, a amarela, e todas as
suas variantes, primeira casa, segunda casa, terceira casa, descanso, inferno,
céu, levando se à ponta de pé o seixozinho chato em arriscada viagem de pulos.
Era depois a vez dos jogos de corrida, entre os quais figurava notavelmente o
saudoso e rijo chicote queimado. Variavam os aspectos da recreação, o pátio
central animava se com a revoada das penas, o estalar elástico das bolas,
passando como obuses, ferindo o alvo em pontaria amestrada, o formigamento
multicor das esferas de vidro pela terra, com a gritaria de todas as vozes do
prazer e do alvoroço.
Depois havia os jogos de parada, em que circulavam
como preço as penas, os selos postais, os cigarros, o próprio dinheiro. As
especulações moviam se como o bem conhecido ofídio das corretagens. Havia
capitalistas e usurários, finórios e papalvos; idiotas que se encarregavam de
levar ao mercado, com a facilidade de que dispunham fora do colégio,
fornecimentos inteiros, valiosíssimos, de Mallats e Guillots que os hábeis
limpavam com a gentileza de figurões da bolsa, e selos inestimáveis que os
colecionadores práticos desmereciam para tirar sem custo; fumantes ébrios de
fumo alheio, adquirido facilmente no movimento da praça, repimpados à turca
sobre os coxins da barata fartura.
As transações eram proibidas pelo código do Ateneu.
Razão demais para interessar. Da letra da lei, incubados sob a pressão do veto,
surgiam outros jogos, mais expressamente característicos, dados que espirravam
como pipocas, naipes em leque, que se abriam orgulhosos dos belos trunfos,
entremostrando a pança do rei, o sorriso galhardo do valete, a simbólica orelha
da sota, a paisagem ridente do ás; roletas miúdas de cavalinhos de chumbo; uma
aluvião de fichas em cartão, pululantes como os dados e coradas como os padrões
do carteiro.
A principal moeda era o selo.
Pelo sinete da posta dava se tudo. Não havia
prêmios de lição que valessem o mais vulgar daqueles cupons servidos. Sobre
este preço, permutavam se os direitos do pão, da manteiga ao almoço, da
sobremesa, as delicias secretas da nicotina, o próprio decoro pessoal em si.
A raiva dos colecionadores caprichando em exibir cada
qual o álbum mais completo, mais rico, transmitia se a outros, simples agentes
de especulação; destes ainda a outros com a sedução do interesse. No colégio
todo, só Rebelo talvez e o Ribas, o primeiro fundeado no porto da misantropia
senil que o distanciava do mundo tempestuoso, o outro a fazer perpetuamente de
anjo feio aos pés de Nossa Senhora, escapavam à mania geral do selo, melhor, à
geral necessidade de premunir se com valor corrente para as emergências.
No comércio do selo é que fervia a agitação de
empório, contratos de cobiça, de agiotagem, de esperteza, de fraude. Acumulavam
se valores, circulavam, frutificavam; conspiravam os sindicatos, arfava o
fluxo, o refluxo das altas e das depreciações. Os inexpertos arruinavam se, e
havia banqueiros atilados, espapando banhas de prosperidade.
Falava se, com a reserva tartamuda dos caudatários
do milhão, de fortunas imponderáveis... Certo felizardo que possuía aqueles
imensos exemplares da primeira posta na Inglaterra, os dois raríssimos, ambos!
o azul e o branco, de 1840, com a estampa nítida de Mulrady: a Grã Bretanha,
braços abertos sobre as colônias, sobre o mundo; à direita, a América, a
propaganda civilizadora, a conquista da savana; à esquerda, o domínio das
Índias, cules sob fardos, dorsos de elefantes subjugados; ao fundo, para o
horizonte, navios, o trenó canadiano que foge à disparada das renas; no alto,
como as vozes aladas da fama, os mensageiros da metrópole.
Jóias deste preço imobilizavam se nas coleções,
inalienáveis por natureza como certos diamantes. Nem por isso era menos ardente
a mercancia na massa febril da pequena circulação; da quantidade infinita dos
outros selos, retangulares, octogonais, redondos, elipsoidais, alongados
verticalmente, transversalmente, quadrados, lisos, denteados, antiqüíssimos ou
recentes, ingleses, suecos, da Noruega, dinamarqueses, de cetro e espada,
suntuosos Hannover, como retalhos de tapeçaria, cabeças de águia de Lubeck,
torres de Hamburgo, águia branca da Prússia, águia em relevo da moderna
Alemanha, austríacos, suíços de cruz branca, da França, imperiais e
republicanos, de toda a Europa, de todos os continentes, com a estampa de um
pombo, de navios, de um braço armado; gregos com a efígie de Mercúrio, o deus
único que ficou de Homero, sobrevivo do Olimpo depois de Pã; selos da China com
um dragão espalhando garras; do Cabo, triangulares; da república de Orange com
uma laranjeira e três trompas; do Egito com a esfinge e as pirâmides; da Pérsia
de Nassered Din com um penacho; do Japão, bordados, rendilhados como panos de
biombo e de ventarolas; da Austrália, com um cisne; do reino de Havaí, do Rei
Kamehameha III; da Terra Nova com uma foca em campo da neve; dos Estados
Unidos, de todos os presidentes; da república de São Salvador com uma auréola
de estrelas sobre um vulcão; do Brasil, desde os enormes malfeitos de 1843; do
Peru com um casal de lhamas; todas as cores, todos os sinetes com que os
estados tarifam as correspondências sentimentais ou mercantis, explorando
indistintamente um desconto mínimo nas especulações gigantescas e o imposto de
sangue sobre as saudades dos emigrados da fome.
A sala geral do estudo, comprida, com as quatro
galerias de carteiras e a parede oposta de estantes e a tribuna do inspetor,
era um microcosmo de atividade subterrânea. Estudo era pretexto e aparência, as
encadernações capeavam mais a esperteza do que os próprios volumes.
A certas horas reunia se ali o colégio inteiro,
desde os elementos de primeiras letras até os mais adiantados cursos. Agrupavam
se por ordem de habilitações; o abc diante da porta de entrada, à direita; à
extrema esquerda, os filósofos, cogitadores do Barbe, os latinistas abalizados,
os admiráveis estudantes do alemão e do grego. Baralhavam se as três classes de
idades; podia estar um marmanjo empacado à direita na carteira dos analfabetos,
e podia estar um bebê prodígio a desmamar se na filosofia da esquerda. O acaso
da colocação podia sentar me entre o Barbalho e o Sanches, como podia da
afeição do Alves desterrar me uma légua. Dependia tudo do adiantamento.
Como compensação destas desvantagens havia os
telégrafos e a correspondência de mão em mão. Os fios telegráficos eram da
melhor linha de Alexandre 80, sutilíssimos e fortes, acomodados sob a tábua das
carteiras, mantidas por alças de alfinete. Em férias desarmavam se. Dois amigos
interessados em comunicar se estabeleciam o aparelho; a cada extremidade, um
alfabeto em fita de papel e um ponteiro amarrado ao fio; legitimo Capanema.
Tantas as linhas, que as carteiras vistas de baixo apresentavam a configuração
agradável de citaras encordoadas, tantas, que às vezes emaranhava se o serviço
e desafinava a citara dos recadinhos em harpa de carcamano.
Havia o gênio inventivo no Ateneu, esperanças de
riqueza, por alguma descoberta milagrosa que o acaso deparasse à maneira do
pomo de Newton. Ocorre me um perspicaz que contava fazer fortuna com um
privilégio para explorar ouro nos dentes chumbados dos cadáveres, uma mina! Foi
assim a invenção malfadada do telégrafo martelinho. Tantas pancadinhas, tal letra;
tantas mais, tantas menos, tais outras. Os inventores achavam no sistema dos
sinais escritos a desvantagem de não servir à noite. O elemento base desta
reforma era uma confiança absoluta na surdez dos inspetores; aventuroso
fundamento, como se provou.
As primeiras pancadinhas passaram; apenas os
estudantes mais próximos sorriam disfarçando. Mas o martelinho continuou a
funcionar e ganhou coragem. No silêncio da sala, gotejavam as pancadas, miúdas,
como o debicar de um pintainho no soalho.
No alto da tribuna, o Silvino coçou a orelha e
ficou atento; começava a implicar com aquilo. Silêncio... silêncio, e as
pancadinhas de vez em quando.
Foi o diabo. Inesperadamente precipitou se do alto
assento como um abutre, e com a finura do oficio foi cair justo sobre o melhor
de um despacho. Seguiu se a devastação. Examinando a carteira, descobriu a rede
considerável dos outros telégrafos. Foi tudo raso. Brutal como a fúria,
implacável como a guerra — oh Havas! — o Silvino não nos deixou um fio, um só
fio ao novelo das correspondências! De carteira em carteira, por entre pragas,
arrancou, arrebentou, destruiu tudo, o vândalo, como se não fosse o fio
telegráfico listrando os céus a pauta larga dos hinos do progresso e a nossa
imitação modesta uma homenagem ao século.
A violência não fez mais que aumentar o tráfego dos
bilhetinhos e suspender temporariamente a telegrafia.
De mão em mão como as epístolas, corriam os
periódicos manuscritos e os romances proibidos. Os periódicos levavam pelos
bancos a troça mordaz, aos colegas, aos professores, aos bedéis: mesmo a
pilhéria blasfema contra Aristarco, uma temeridade. Os romances, enredados de
atribulações febricitantes, atraindo no descritivo, chocantes no desenlace,
alguns temperados de grosseira sensualidade, animavam na imaginação panoramas
ideados da vida exterior, quando não há mais compêndios, as lutas pelo dinheiro
e pelo amor, o ingresso nos salões, o êxito da diplomacia entre duquesas, a
festejada bravura dos duelos, o pundonor de espada à cinta; ou então o drama
das paixões ásperas, tormentos de um peito malsinado e sublime sobre um cenário
sujo de bodega, entre vômitos de mau vinho e palavradas de barregã sem preço.
Com a proximidade das férias de ano, tudo
desaparecia. O aborrecimento imperava.
A impaciência da expectativa de livramento fazia
intolerável a reclusão dos últimos dias.
Organizavam se os preparativos para a grande
exposição de trabalhos da aula de desenho, as aulas primárias estavam a ponto
de entrar em exames, dos particulares semestrais, em que o diretor sondava o
aproveitamento. Estes cuidados não podiam combater a inércia expectante dos
ânimos.
No salão do estudo poucos abriam livro. Os rapazes
alargavam os cotovelos sobre a carteira, fincavam o queixo nas costas da mão e
abstraíam se com o olhar imóvel, idiotismo de espera, como se tentassem
perceber o curso das horas no espaço. Por trás da casa, no quintal do diretor,
ouvia se cantando Ângela, cantilenas espanholas, sinuosas de moleza; mais
longe, muito mais, em zumbido indistinto, como um horizonte sonoro, as cigarras
trilavam, agitando o ar quente com uma vibração de fervura.
Nas horas longuíssimas do recreio, os rapazes
passeavam calados, destruindo a comunhão usual dos brincos, como se temessem
estragar mais alegria naquele cativeiro, certo de melhor emprego breve. Pelas
paredes a carvão, pelas tábuas negras a traços brancos, arranhada na caliça,
escrita a lápis ou a tinta, por todos os cantos via se esta proclamação: Viva
às férias! determinando a ansiedade geral, como um pedido, uma intimativa ao
tempo que fosse menos tardo, opondo, cruel, a resistência impalpável,
invencível dos minutos, dos segundos, à chegada festiva da boa data.
Bento Alves, depois de assegurar que unicamente por
mim se havia sujeitado à humilhação que sofrera, andava propositalmente
arredio.
Eu, solitário, ia e vinha como os outros,
percorrendo o pátio, marcando a bocejos os prazos alternados de impaciência e
resignação, vendo pairar por cima do recreio um papagaio que soltavam meninos
da rua para as bandas do Ateneu. Invejava lhe a sorte, ao papagaio cabeceando
alegre, ondeando a balouçar, estatelando se no vento, pássaro caprichoso,
dominando vermelho o vasto retângulo azul que as paredes cortavam no
firmamento, solitário, solitário como eu, cativo também — mas ao alto e lá
fora.
Relaxava se o horário; professores faltavam; era
menos rude a inspeção. Os alunos iam por toda parte à vontade. Faziam roda de
palestra nos dormitórios, pilando enfastiadamente os mais duros assuntos,
murmurações esmoídas, escabrosidades pulverizadas, trituradas malícias, algumas
vezes malícias ingênuas se é possível, caracterizando se no conciliábulo o
azedume tagarela do cansaço podre de um ano, conforme a psicologia de cada
salão.
Os dormitórios apelidavam se poeticamente, segundo
a decoração das paredes: salão pérola, o das crianças policiado por uma velha,
mirrada e má, que erigira o beliscão em preceito único disciplinar, olhos
mínimos, chispando, boca sumida entre o nariz e o queixo, garganta escarlate,
uma população de verrugas, cabeça penugenta de gipaeto sobre um corpo de bruxa;
salão azul, amarelo, verde, salão floresta, dos ramos do papel, aos quais se
recolhia a classe inumerável dos médios. O salão dos grandes, independente do
edifício, sobre o estudo geral, conhecia se pela denominação amena de chalé. O
chalé fazia vida em separado e misteriosa.
O policiamento dos dormitórios competia aos
diversos inspetores, convenientemente distribuídos.
Na época atenuavam se os zelos da policia. O
próprio gipaeto do pérola batia as asas para a folia, uma inocente folia de
noventa anos.
A palestra corria desassombrada.
Deitavam se uns a uma cama, outros cercavam
agrupados nas camas próximas e atacavam os assuntos:
No salão dos médios:
"D. Ema... D. Ema... não se murmura à toa...
Reparem na maneira de falar do Crisóstomo... Tem motivo, um rapagão... Palavra
que os apanhei sozinhos, juntinhos, conversando, a distância de um
beijo..."
— O melhor é que o Crisóstomo não vai para a rua...
Que diabo, nem tanto vale o grego, que se pague a beijocas descontadas pela
mulher... tenho para mim que o negócio ainda acaba mal e porcamente, kakós kai
ruparós, com uma estralada...
— Ora, diretores! empresários! fabricantes de
ciência barata e prodígios de carregação, com que empulham os papais
basbaques... O que querem é a freqüência do negócio... Falam cá em anúncios...
Mulher ao balcão... Que chamariz, uma carinha sedutora! Eu por mim, se fosse
diretor, inaugurava um Kindergarten para taludos; uma bonita diretora à testa e
quatro adjuntas amáveis... Não haveria nhonhô graúdo que não morresse pelo
ensino intuitivo. Como não haviam de pagar para cortar pauzinhos no meu jardim!
E que serviço ao progresso do meu pais: estimular à Froebel as inteligências perrengues
e as adolescências atrasadas...
— Pois eu seria capaz de guerrear o
estabelecimento. Se fosse diretor, teria o cuidado de ser também ministro do
império... Revogava a Instrução Pública e aprovava a minha gente por decreto,
tudo de pancada e com distinção.
— Qual! eu, se fosse diretor, seria safado! Não há
nada neste mundo como ser safado! Uma bonita meninada, que festança! Os meninos
gostam da gente, a gente gosta dos meninos e o colégio cresce: crescite!... Daí
a pouco tanta matricula, que precisaríamos mudar de casa...
— Que canalha! Que lingüinhas... Safa! Pois eu cá
só digo mal daquele tipo do Liceu. Marcelo, que tem na face a costura
cicatrizada do talho que lhe fez um discípulo em certa aventura com o mais
pacífico dos utensílios, e que, ainda assim, foi apanhado no Cassino deixando
aberto num divã o carnet de baile, cuidadosamente ilustrado de símbolos...
pedagógicos.
A palestra no pérola era muito mais cândida, e,
principalmente, nada pessoal.
Curso improvisado de obstétrica elementar, para
especulação. Todos queriam saber; apertavam se vinte pequenos em roda do
problema, como aquelas figuras da lição de Rembrandt. Qual a origem das
espécies? Eram investigadores. Ninguém adiantava um passo. Estava ausente o
gipaeto, que talvez pudesse explicar. Feliz quem pode conhecer a causa das
coisas! Como é a entrada na vida? Ordem dórica? jônica? compósita? As
imaginações trabalhadas formigavam avidamente sobre a questão; ninguém
penetrava. Desenrolavam se as teorias domésticas, angélico ginecológicas.
Havia em Paris uma grande empresa de exportação, da
qual eram agentes em todo o mundo os porteiros, e comissária central no Rio
Mme. Durocher. Vinha o gênero nos berços, encaixotados, mijadinhos e chorosos.
Esta teoria tinha o merecimento filosófico de prescindir das causas finais. Os
metafísicos inclinavam se mais para a intervenção da sobrenatureza: por ocasião
do Natal havia de noite uma distribuição geral de herdeirozinhos pela terra,
chuva de pimpolhos, para compensar a matança dos inocentes, tão prejudicial no
tempo de Herodes. Inútil dizer que os referidos inocentes vinham outrora ao
mundo pela mão dos mesmos portadores das credenciais da revelação, hoje em
desuso.
E a academiazinha de investigadores arrumava
documentos, sorrindo alguns da credulidade dos outros, exibindo em refutação
credulidade de diverso quilate; alguns, mais positivos, aduzindo observações
próprias, porque os meninos espiam, oferecendo à opinião dos colegas uma nota
ponderosa, edificando se lentamente o sistema como os sistemas se edificam,
aproveitando se apenas o elemento franqueado pelo apoio comum.
Dois últimos pareceres concorreram oportunamente
para desatar os embaraços e a assembléia dispersou se. Um cearensezinho, de
cabelo à escova, inteligente e silencioso, amigo de responder por um jeito
especial de virar os olhos. senhor de um sorriso desconcertante que sabia armar
a propósito, falando baixinho e explícito, introduziu no debate a descrição
minuciosa, sem perda de fofos nem apanhados, da toilette balneária das mulheres
do sertão na província, descendo ao rio, de um belo pano simpático em que o
raio do sol nascente representa de fio mais grosso. Outro parecer foi a
grosseira chacota de um caturra barrigudinho, fronte de novilho, miniatura de
arrieiro, brutal e maroto, filho de um criador abastado do Paraná e instruído
para todas as exigências práticas da indústria paterna. Estava ali a ouvir
desde o principio sem dizer palavra, esperando a conclusão. Supondo que o
cearense ia fazer a luz, atirou se adiante, interrompeu o e concluiu largando o
enxurro, esponjando se farto na garotada, como a cria da estância no lodo
fresco.
A vadiagem dos dormitórios não consistia só em
palestra. Depravados pelo aborrecimento e pela ociosidade, inventavam
extravagâncias de cinismo.
O Cerqueira, ratazana, sujeito cômico, cara feita
de beiços, rachada em boca como as romãs maduras, de mãos enormes como um
disfarce de pés, galopava a quatro pelos salões, zurrando em fraldas de camisa,
escoucinhando uma alegria sincera de mu. Maurílio, o dos quinaus, neo era
exclusivamente o campeão da tatuada que conhecemos; tinha outra habilidade
notável e prestava se com aplauso a uma experiência original de fluidos
inflamáveis. Este rapaz escapou de morrer, em um dos últimos naufrágios da nossa
costa; um ex colega escreveu lhe: Quem os semeia, colhe tempestades.
As provocações no recreio eram freqüentes, oriundas
do enfado; irritadiços todos como feridas; os inspetores a cada passo precisavam
intervir em conflitos; as importunações andavam em busca das suscetibilidades;
as suscetibilidades a procurar a sarna das importunações. Viam de joelhos o
Franco, puxavam lhe os cabelos. Viam Rômulo passar, lançavam lhe o apelido:
mestre cook!
Esta provocação era, além de tudo, inverdade.
Cozinheiro, Rômulo! só porque lembrava a culinária, com a carnosidade bamba,
fofada dos pastelões, ou porque era gordo das enxúndias enganadoras dos
fregistas, dissolução mórbida de sardinha e azeite, sob os aspectos de mais
volumosa saúde? Rômulo era simplesmente e completamente o confeiteiro das
esperanças doces de Aristarco.
Anafado de aparência, e ainda mais ancho de
fortuna, significava bem o que se diz um bom partido. Aristarco tinha uma
filha; saúde, fortuna: um genro ideal; ainda por cima bonachão e pacato.
A Melica, a altiva e requebrada Amália, lambisgóia,
proporções de vareta, fina e longa, morena e airosa, levava o tempo a fazer de
princesa. Dois grandes olhos pretos, exagero dos olhos pretos da mãe, tomavam
lhe a face, dando lhe de frente a semelhança justa de um belo I com dois
pingos. Por estes olhos e por sobre os ombros, que tinha erguidos e
mefistofélicos, derramavam se desdéns sobre tudo e sobre todos. Possuía e
petiscava a certeza fácil de que o Ateneu em peso andava caído por ela, e
morava no andor imaginário daquela idolatria de trezentos. Trezentos corações,
trezentos desdéns. A eminência do pai sobre aquele mundozinho desprezível dava
lhe vida à vanglória, e ela gostava de visitar o colégio para ter ocasião de
exercitar a altivez culminante, misturada, do sexo e da hierarquia. Quanto a
Rômulo, era o primeiro no seu desprezo. Timbrava em não prestar lhe atenção.
Designava o esplendidamente: — o parvo. Melica era bem conservada e preciosa.
Rômulo filosofava por Epicuro. Desdéns não matam.
Havia de bom naquela atitude de noivado perene, uma série de utilidade: cargo
de vigilante, privilégios de benevolência, um jantar de vez em quando com o
diretor, — isto é, uma folga ao paladar imaginada em sonho por quantas bocas,
no regime obrigatório e destemperado da casa, menu permanente, inviolável como
a letra das constituições.
Quando vinha Melica ao Ateneu, era Rômulo o
primeiro a aproximar se, o último a ser visto. Aristarco chamava o às vezes e
levava a passeio com a menina. Melica, toda donaire e orgulho, passava adiante
e permitia, quando muito, que Rômulo a seguisse cabisbaixo e mudo, como um
hipopótamo domesticado. Diga se, a bem da verdade, que o gorducho esperava rir
por último ao pai e à filha.
Em um estabelecimento de rumorosa fama como o
Ateneu não se podia deixar de incluir no quadro das artes a música de
pancadaria.
Passava despercebido o harmonium do Sampaio,
religioso e bálbuce. Estimava se como coisa somenos a rabequinha do Cunha,
choramingas e expressiva, nas mãos do esguio violinista; manhoso o instrumento
como uma casa de maternidade, pálido o músico, espichadinho e clorótico; dando
ares de graça à linguagem das cravelhas por meio de sons que imitavam a quase
afasia timorata e infantil do Cunha, descambando em síncopes, de vez em quando,
estendendo guinchos histéricos de amor vadio, saltitando pizzicatos como as
biqueiras de verniz do Cunha, amigo de valsar, ágil no baile como as fitas, as
plumas e as evaporadas tules.
Considerava se razoavelmente o piano do Alberto
Souto, bochechas largas de maestro em efígie, pianista portento que viera parar
ao Ateneu, depois de percorrer a Europa à cata de triunfos, redondo, curto e
musical como um cilindro de realejo; famoso pela gargalhada soez, bagaço
espremido da vaidade, da cobiça, que lhe ficara dos sucessos do palco e das
surras da aprendizagem; e pela estupidez seca nos estudos, como se a
inteligência lhe houvesse escapado pelos dedos para os teclados em deserção
definitiva.
Mas a predileção de Aristarco era pela banda, pela
pancadaria, grita vibrante dos cobres, fuzilaria das vaquetas, levando gente à
janela quando o Ateneu passava, dando rebate à admiração das esquinas, o
estrépito das caixas troando à marcha dobrada como um eco de combates, furor
infrene, irresistível, de zabumbada em feira.
A banda tinha casa própria e um professor bem pago.
Os instrumentistas gozavam de particular favor nos relaxamentos de disciplina;
nas ocasiões de festa eram mimoseados com um brinde de gulodices; condecoravam
se com distintivos de prata, que nem os harmoniosos concertantes do Orfeão
logravam pilhar.
Ainda na banda graduava se a predileção de
Aristarco, segundo a importância de sonoridade dos timbres. O grave bombardão,
o oficlide, a trompa, o trombone, o próprio sax, destinados ao mister
secundário de acompanhamento, recuando, como lacaios, na encenação sonora,
homens e armas servilmente bravos nas investidas brilhantes, ou tímidos pajens,
arrepanhando o abandono de caudas escapadas ao luxo régio das grandes notas do
canto, — valiam menos ainda, na estima do diretor, que na marcação da
partitura.
Predileto era o flautim, florete feito som, tênue,
penetrante, perfuração de agulhas: predileta era a requinta, espécie de flautim
rachado, agressiva como a vibração do dardo das serpentes; o fagote,
aumentativo de requinta, único aparelho capaz de produzir artificialmente a
fanhosidade colérica das sogras; o claro oboé, laringe metálica de um cantor de
epopéias, heróico e belo; o pistão frenético e vivo, estandarte à mostra sobre
a celeuma, harmonizando, centralizando a instrumentação como um regimento de
cavalheiros. Prediletos porque gritavam mais! Prediletos principalmente o
tambor e o bombo tonante, primazia do estrondo, a trovoada das peles tesas, que
a tormenta sobraça nos arroubos de carnaval canalha dos seus dias e que
sobraçava, no Ateneu Rômulo, o graxo Rômulo, o nédio, o opulento, o caríssimo
genro das esperanças caras.
Foi exatamente por esta seriação de preferências
acústicas que chegou Aristarco à descoberta do seu favorito. E por acaso.
Durante uma festa escolar, exibia se a banda.
Distrai se o bombo e solta fora de tempo um magnífico tiro, que ia bem à composição
executada como uma gota de tinta Monteiro numa aquarela. Metade dos ouvintes
acreditaram que aquilo era um capricho wagneriano enxertado de propósito; outra
metade não conteve o riso.
Aristarco admirava o bombo em solo, solidão das
salvas em pleno mar, fator grandioso de sonoridade que o Zé Pereira multiplica
Mas o riso dos convidados incomodou o.
Acabada a festa, mandou vir a presença o artista do
estampido. Apresenta se o músico e não sei como se entenderam que, em vez de
castigo, retirou se Rômulo do gabinete com os forais vantajosos de genro ad
honorem.
O escandaloso favor suscitou uma reação de inveja.
Rômulo era antipatizado. Para que o não
manifestassem excessivamente, fazia se temer pela brutalidade. Ao mais
insignificante gracejo de um pequeno, atirava contra o infeliz toda a
corpulência das infiltrações de gordura solta, desmoronava se em socos. Dos
mais fortes vingava se, resmungando intrepidamente.
Para desesperá lo, aproveitavam se os menores do
escuro. Rômulo, no meio, ficava tonto, esbravejando juras de morte, mostrando o
punho. Em geral procurava reconhecer algum dos impertinentes e o marcava para a
vindita. Vindita inexorável.
No decorrer enfadonho das últimas semanas, foi
Rômulo escolhido, principalmente, para expiatório do desfastio. Mestre cook!
via se apregoado por vozes fantásticas, saídas da terra; mestre cook! por vozes
do espaço, rouquenhas ou esganiçadas. Sentava se acabrunhado, vendo se se
lembrava de haver tratado panelas algum dia na vida; a unanimidade impressionava.
Mais freqüentemente, entregava se a acessos de raiva. Arremetia bufando,
espumando, olhos fechados, punhos para trás, contra os grupos. Os rapazes
corriam a rir, abrindo caminho, deixando rolar adiante aquela ambulância danada
de elefantíase.
A uma das vaias estive presente. Rômulo marcou me.
Pouco depois encontrávamo nos no longo corredor que levava à biblioteca do
Grêmio. Situação embaraçosa. Eu vinha, ele ia. Parar? Recuar? Enquanto
hesitava, fui me adiantando. Rômulo, de salto, empolgou me a gola da blusa.
Sacudia a ponto de macerar me o peito. "Então, seu cachorro (sic), diga me
aqui, se é capaz, quem é mestre."
A injúria equilibrou me do espanto. Estava tudo
perdido. Deitei bravura. "Mestre, mestríssimo cook!" gritei lhe à
barba. Não sei bem do que houve. Quando dei por mim, estava estendido embaixo
de uma escada. Entraram me na cabeça três pregos, que havia nos últimos
degraus. Ponderando que tinha no futuro tempo de sobra para vingança, levantei
me e sacudi da roupa a poeira humilhante da derrota.
Afinal, o dia chegou dos exames primários.
Provas de formalidade para as transições do curso
elementar: primeira aula, para a segunda, segunda para a terceira, terceira
para o ensino secundário.
Levavam se assentos e mesas para o salão do oratório,
o altar de um reposteiro, e repotreava se a comissão solene, da qual faziam
parte personagens da instrução Pública, com o diretor e os professores.
Aristarco representava, na mesa, o voto pensado do
guarda livros. Contas justas: aprovação com louvor, cambiando às vezes para
distinção simples; atraso de trimestre, aprovação plena com risco de
simplificação; atraso de semestre, reprovado.
Havia no Ateneu, fora desta regra, alunos gratuitos,
dóceis criaturas, escolhidas a dedo para o papel de complemento objetivo de
caridade, tímidos como se os abatesse o peso do beneficio; com todos os
deveres, nenhum direito, nem mesmo o de não prestar para nada. Em retorno, os
professores tinham obrigação de os fazer brilhar, porque caridade que não
brilha é caridade em pura perda.
Nas provas do terceiro ano, as distinções foram tão
numerosas, que me veio ter às mãos uma, sem escândalo aliás, que desde muito
perdera o medo e começava a quadrar me a aisance das demonstrações, como um mal
contaminado do diretor. Fiz um figurão, apanhei a deliciosa nota, que levei a
mostrar em casa, como um bichinho raro, mimando lhe o pêlo fino, beijocando lhe
a focinheira. Sanches teve louvor; Maurílio, louvor; Cruz, louvor também,
graças à especialidade da cartilha, em que era provecto, espantando a comissão
julgadora com a ladainha toda de Nossa Senhora e ameaçando nos com o calendário
de cor. Santo por Santo, observações adjacentes, mais a designação das festas móveis
e das luas, como o próprio Doutor Ayer das pílulas catárticas o não faria,
Gualtério, palhaço, foi reprovado. Nascimento, o bicanca, fungou de satisfação:
plenamente. Negrão, Almeidinha, Álvares, distinção. Contra a distinção deste
último, o Professor Mânlio protestou surdamente; o bronco do Álvares com
distinção! Batista Carlos, o bugre das setas, bomba! Diante da comissão mostrou
se muito surpreendido das perguntas, como se tivesse alguma coisa com aquilo;
Barbalho, bomba. Barbalho pai andava atrasado semestre e meio e Barbalho filho
não deixou de salvar as aparências com uma escrupulosa colaboração de asneiras.
O ótimo, o venerável Rebelo não compareceu: deixara o colégio, havia meses, por
causa dos olhos.
Enquanto na sala verde, emparedada de pórfiro
polido, esperava, com os colegas, que aparecesse à porta o inspetor que devia
ler o resultado do escrutínio, foi me parar a vista aos quadros de alto relevo,
das artes e das indústrias. os risonhos meninos nus fraternais, em gesso puro e
inocência. Senti me velho. Que longa viagem de desenganos! Alguns meses apenas,
desde que vira, à primeira vez, as ideais crianças vivificadas no estuque pelo
contágio do entusiasmo ingênuo, ronda feliz do trabalho... Agora, um por um que
os interpretasse, aos pequenos hipócritas mostrando as nádegas brancas com um
reverso igual de candura, um por um que os julgasse, e todo aquele gesso das
facezinhas rechonchudas coraria de uma sanção geral e esfoladora de palmadas.
Não me enganavam mais os pequeninos patifes. Eram infantis, alegres, francos,
bons, imaculados, saudade inefável dos primeiros anos, tempos da escola que não
voltam mais!... E mentiam todos!... Cada rosto amável daquela infância era a
máscara de uma falsidade, o prospecto de uma traição. Vestia se ali de pureza a
malícia corruptora, a ambição grosseira, a intriga, a bajulação. a covardia, a
inveja, a sensualidade brejeira das caricaturas eróticas, a desconfiança
selvagem da incapacidade, a emulação deprimida do despeito, a impotência, o
colégio, barbaria de humanidade incipiente, sob o fetichismo do Mestre,
confederação de instintos em evidência, paixões, fraquezas, vergonhas, que a
sociedade exagera e complica em proporção de escala, respeitando o tipo
embrionário, caracterizando a hora presente, tão desagradável para nós, que só
vemos azul o passado, porque é ilusão e distância.
Para a exposição dos desenhos foram retiradas as
carteiras da sala de estudo, forradas de cetim escuro as paredes e os grandes
armários. Sobre este fundo, alfinetaram se as folhas de Carson, manchadas a
lápis pelo sombreado das figuras, das paisagens, pregaram se, nas molduras de
friso de ouro, os trabalhos reputados dignos desta nobilitação.
Eu fizera o meu sucessozinho no desenho, e a
garatuja evoluíra no meu traço, de modo a merecer encômios. A principio, o
bosquejo simples, linear, experiência da mão; depois, os esbatimentos de tons
que consegui logo como um matiz de nuvem: depois, as vistas de campo, folhagem
rendilhada em bicos, pardieiros em demolição pitoresca da escola francesa, como
ruínas de pau podre, armadas para os artistas. Depois de muito moinho velho,
muita vivenda de palha, muito casarão deslombado, mostrando as misérias como um
mendigo, muita pirâmide de torre aldeã esboçada nos últimos planos, muita
figurinha vaga de camponesa, lenço em triângulo pelas costas, rotundas ancas,
saias grossas em pregas, sapatões em curva, passei ao desenho das grandes
copias, pedaços de rosto humano, cabeças completas, cabeças de corcel; cheguei
à ousadia de copiar com toda a magnificência das sedas, toda a graça forte do
movimento, uma cabra de Tibete!
Depois da distinção do curso primário, foi esta
cabra o meu maior orgulho. Retocada pelo professor, que tinha o bom gosto de
fazer no desenho tudo quanto não faziam os discípulos, a cabra tibetana, meio
metro de altura, era aproximadamente obra prima. Ufanava me do trabalho. Não
quis a sorte que me alegrasse por muito. Negaram me à bela cabra a moldura dos
bons trabalhos; ainda em cima — considerem o desespero! exatamente no dia da exposição,
de manhã, fui encontrá-la borrada por uma cruz de tinta, larga, de alto a
baixo, que a mão benigna de um desconhecido traçara. Sem pensar mais nada,
arranquei à parede o desgraçado papel e desfiz em pedaços o esforço de tantos
dias de perseverança e carinho.
Quando os visitantes invadiram a sala, notaram na
linha dos trabalhos suspensas duas enigmáticas pontas de papel rasgado.
Estranhavam, ignorando que ali estava, interessante, em último capitulo, a
história de uma cabra, de uma cruz, drama de desespero e espólio miserando de
uma obra prima que fora.
As exposições artísticas eram de dois em dois anos,
alternadamente com as festas dos prêmios. Conseguia se assim uma quantidade
fabulosa de papel riscado para maior riqueza das galerias. Cobria se o metim
desde o soalho até ao teto. Havia de tudo, não só desenhos. Alguns quadros a
óleo, do Altino, risonhas aguarelas acidentando a monotonia cinzenta do Fáber,
do Conté, do fusain. Os futuros engenheiros aplicavam se às aguadas de
arquitetura, aos desenhos coloridos de máquinas.
Entre as cabeças a creiom retinto, crinas de
ginete, felpas de onagro lanzudo, inclinando o funil das orelhas, cerdosas
frontes hirsutas de javalis, que arreganhavam presas, perfis de audácia em
colarinhos de renda, abas atrevidas de feltro, plumas revoltas, fisionomias de
marujo, selvagens, arrepiadas, num sopro de borrasca, barbas incultas, carapaça
esmurrada sobre a testa, cachimbo aos dentes; entre todas estas caras, avultava
uma coleção notável de retratos do diretor.
O melindroso assunto fora inventado pela gentileza
de um antigo mestre. Preparou se modelo; um aluno copiou com êxito; e, depois,
não houve mais desenhista amável que não entendesse zeladamente dever ensaiar
se na respeitável verônica. Santo Deus! que ventas arranjavam ao pobre
Aristarco! Era até um desaforo! Que olhos de blefarite! que bocas de beiços
pretos! que calúnia de bigodes! que invenção de expressões aparvalhadas para o
digno rosto do nobre educador!
Não obstante, Aristarco sentia se lisonjeado pela
intenção. Parecia lhe ter na face a cocegazinha sutil do creiom passando,
brincando na ruga mole da pálpebra, dos pés de galinha, contornando a concha da
orelha, calcando a comissura dos lábios, entrevista na franja dos fios brancos,
definindo a severa mandíbula barbeada, subindo pelas dobras oblíquas da pele ao
nariz, varejando a pituitária, extorquindo um espirro agradável e desopilante.
Por isso eram acatados os desenhistas da verônica.
Os retratos todos, bons ou maus, eram alojados
indistintamente nas molduras de recomendação. Passada a festa, Aristarco tomava
ao quadro o desenho e levava para casa. Tinha os já às resmas. Às vezes, em
momentos de esplim, profundo esplim de grandes homens, desarrumava a pilha;
forrava de retratos, mesas, cadeiras, pavimento. E vinha lhe um êxtase de
vaidade. Quantas gerações de discípulos lhe haviam passado pela cara! Quantos
afagos de bajulação à efígie de um homem eminente! Cada papel daqueles era um
pedaço de ovação, um naco de apoteose.
E todas aquelas coisas malfeitas animavam se e
olhavam brilhantemente. "Vê, Aristarco", diziam em coro, "vê;
nós que aqui estamos, nós somos tu, e nós te aplaudimos!" E Aristarco,
como ninguém na terra, gozava a delícia inaudita, ele incomparável, único capaz
de bem se compreender e de bem se admirar — de ver se aplaudido em chusma por
alter egos, glorificado por uma multidão de si mesmos. Primus inter pares.
Todos, ele próprio, todos aclamando-o.
VIII
No ano seguinte, o Ateneu revelou se me noutro aspecto.
Conhecera o interessante, com as seduções do que é novo, com as projeções
obscuras de perspectiva, desafiando curiosidade e receio; conhecera o insípido
e banal como os mistérios resolvidos, caiado de tédio; conhecia o agora
intolerável como um cárcere, murado de desejos e privações.
Desenvolvido à força e habilitado no torvelinho
moral do internato, aproveitara os dois meses de feriado para espreitar a
animação da vida exterior. A sala, a sociedade, os negócios da praça pública,
que na infância são como contatos de nevoeiros resvalando pela imaginação, que
nos despertam com um estardalhaço de pesadelo, que fogem, que somem se,
deixando nos readormecidos no esquecimento da idade, ao tempo em que preferimos
da soirée os bons-bocados, das toilettes os laços de cores rútilas, ignorando
que há talvez na vida alguma coisa mais açúcar que o açúcar, e que o toque
macio pode uma vez levar vantagem à coloração fulgurante, quando invejamos das
posições sociais modestamente o garbo de Faetonte nos carros de praça ou a
bravura rubente de umas calças de grande uniforme, sem saber que as ambições
vão mais alto e que há comendadores; o movimento do grande mundo não me
aparecia mais como um teatro de sombras. Comecei a penetrar a realidade
exterior como palpava a verdade da existência no colégio. Desesperava me então
ver me duplamente algemado à contingência de ser irremissivelmente pequeno
ainda e colegial. Colegial, quase calceta! marcado com um número, escravo dos
limites da casa e do despotismo da administração.
Havia a escassa compensação dos passeios.
Uniformizava se de branco o colégio como para as festas de ginástica, com os
gorros de cadarço e saiamos a dois, a quatro de fundo, tambores, clarins à
frente.
No ano anterior, os passeios tinham sido insignificantes,
marchas alegres pelo arrabalde. Vinham ao peitoril as mocinhas, e nós todos,
anchos de militarismo, despendíamos elegância prodigamente. Eram melhores as
excursões à montanha. Subíamos aos Dois irmãos, caminho do Corcovado,
marchávamos até à Caixa -d'Água. Aí debandávamos na ameníssima chapada.
Os passeios eram depois do jantar. À noitinha
voltávamos, dando balanço às notas de sensações, um deslumbramento verde de
floresta, um retalho de afogueado crepúsculo, um canto de cidade ao longe
diluído em fumaça cor de pérola, ou o olhar de uma dama e o sorriso de outra,
projetis inofensivos de namoro que na hipótese de andar a gente em forma têm o
defeito da incerteza, se vêm expressamente a nós, se ao vizinho, e a nós apenas
por uma casualidade de ricochete — o ciúme eterno dos cerra filas que a Praia
Vermelha conhece.
Os nossos passeios foram mais consideráveis.
Primeiro ao Corcovado, assalto ao gigante, hoje
domado pela vulgaridade da linha férrea.
Às 2 horas da noite, troaram os tambores como em
quartel assaltado. Os rapazes, que mal havíamos dormido, na excitação das
vésperas, precipitaram se dos dormitórios. Às 3 e pouco estávamos na serra.
Aristarco rompia a marcha, valente como um mancebo,
animando a desfilada como Napoleão nos Alpes.
Passeio noturno de alegria sem nome. As árvores
beiravam a estrada de muros de sombra num e noutro ponto rendada de frestas
para o céu límpido. No caminho, trevas de túnel e agitação confusa das roupas,
malhada a esmo de placas de luar brando — reptil imenso de cinza e leite em
vagarosa subida. Que sonho de cócegas experimentaria o colosso, na dormência de
pedra que o prostrava ainda, espezinhado pela invasão! Subíamos. Pelas abertas
do arvoredo devassávamos abismos; ao fundo, a iluminação pública por enfiadas,
como rosários de ouro sobre veludo negro.
A boa altura, acampamos para o café. Criados que
nos precediam com o farnel, improvisaram um balcão, e nos serviam
sucessivamente na ordem da forma. Felizes alguns, conseguiram uma gota de fino
Porto, mais quente que o café, reforçando com um banho interno de conforto
contra a umidade da altitude e da hora, inflamando a coragem como um punch,
avivando a alegria como um brinde de fogo.
O espaço aparecia mais claro sobre a renda das
ramas; as últimas estrelas por entre as folhas emurcheciam como jasmins, e
fechavam se. Aristarco deu ordens à banda. A subida recomeçou em festa, um
dobrado triunfal rasgou o silêncio das montanhas espavorindo a noite; o bombo
de Rômulo trovejou robusto, com imensa admiração da passarada que o espiava
metendo o bico à beira dos ninhos, que o cobiçava talvez para genro, aturdindo
os ecos com um repente brutal de alvorada.
Ao passo que nos elevávamos, elevava se igualmente
o dia nos ares. Apostava se a ver quem primeiro cansava. Cada avanço da luz no
espaço era como um excitante novo para a jornada, suavizando a doçura do
alvorecer todo o esforço da ascensão. Quando a música parava, ouvíamos na
alvenaria do grande encanamento, pelos respiradouros, as águas do Carioca,
ciciando queixas poéticas de náiade emparedada.
Avistávamos por hiatos de perspectiva a baia, o
Oceano vastamente desdobrado em chamas, extenso cataclismo de lava.
No planalto do Chapéu de Sol paramos. O diretor
convencionou que, ao sinal de debandar, assaltaríamos na carreira o espigão de
granito empinado à extrema do monte. A rapaziada aclamou a proposta e, com um
alarido bárbaro de peleja, arrojamo nos à conquista da altura.
Chegou na frente o Tonico, meninote nervoso, de São
Fidélis, especialista invicto da carreira, corredor de prática e princípios,
que de cada exame da Instrução Pública fugia duas vezes à chamada, entendendo
que a fuga é a expressão verdadeira da força, e a bravura uma invenção
artificial dos que não podem correr.
Rômulo fez a asneira de tentar o espigão; ficou a
meio caminho, sufocado, inanimado, roncando por terra.
Almoçamos às dez horas, cada um para seu lado,
depois da distribuição frugal do mantimento. Fartos de paisagem, formamos para
a descida.
Descida penosa. Tínhamos imprudentemente esgotado
as forças na folgança. A marcha de volta foi uma miséria. Formamos ainda, mas
já não havia quem olhasse para o alinhamento. As correias frouxas escapavam à
cintura, as blusas às correias; os pés cambavam, mal equilibrados no calçado,
bambeavam os joelhos passadas de bêbado.
As crianças adiante voltavam os olhos dolorosamente
para o diretor, segurando se uns aos outros pelos ombros, seguindo em grupos
atropelados como carneiros para a matança. Aristarco, tão lépido como na
subida, estimulava o seu povinho, chasqueando compadecidas ironias.
Quis recorrer ao estimulante da música. Os músicos,
derreados, haviam deixado os instrumentos na carroça da matalotagem que vinha
longe. Nem tambores, nem clarins; apenas Rômulo, atrás de todos, trazia o bombo
de roldão pela estrada como uma pipa.
Por maior tormento, fundia se a soalheira em chumbo
ardente sobre nós, acendendo reflexos insuportáveis na areia da estrada,
enquanto reverberava o dia lá embaixo, sobre as casas, pelos jardins nublados
de vaporizações de estio, sobre a vegetação das montanhas, a florescer das
tristes flores da Paixão da aleluia.
Voltávamos de um dia alegre como soldados batidos.
A ordem de marcha decompôs se aos poucos. Quando chegamos ao Rio Comprido,
íamos por bandos dispersos, arquejantes, os de maior fôlego na vanguarda;
depois, em cauda interminável de alquebramento, os mais fracos, até aqueles que
ficavam pelo chão como enfermos, e que os inspetores buscavam como gado
perdido.
No portão do Ateneu, mãos às cadeiras, dentinhos
brancos à vista, esperava nos Ângela, fresca e forte, e recebia com uma vaia de
risadas aquela entrada de vencidos, homens e moços.
Quando, tempos passados, anunciou se o grande
piquenique ao Jardim Botânico, certo não foi objeção a lembrança deste
descalabro de fadiga. Tínhamos almoçado na montanha; tratava se agora de ir
jantar ao jardim. Prontos!
Ao meio dia, apeava o Ateneu dos bondes especiais à
porta do grande parque. Atravessamos cantando um dos hinos do colégio as
arcarias elevadas de palmas. Junto ao lago da avenida, debandamos.
No bosque dos bambus, à esquerda, estavam armadas
as longas mesas para o banquete das quatro horas. Graças à boa vontade dos
pais, prevenidos oportunamente, vergavam as tábuas, sobre cavaletes, ao peso de
uma quantidade rabelaisiana de acepipes. À parte, em cestos, no chão,
amontoavam se frutas, caixas e frascos de confeitaria.
Era por um desses dias caprichosos, possíveis todo
o ano, mais freqüentes de verão, em que as bátegas de chuva fazem alternativa
com as mais sadias expansões de sol, deliciosos e traidores, em que, parece, a
alma feminina se faz clima com as incertezas de pranto e riso.
Chovera uma vez ao partirmos, outra vez em viagem;
havia no jardim muita umidade na relva e sob as folhas caídas; às alamedas de
mais sombra, via se a areia crivada recentemente dos pequeninos frutos que cava
o gotejar do arvoredo. Mas eram tão claros os trechos de bom tempo, no
intervalo dos nimbos, que não podiam apreensões de aguaceiro entibiar a
franqueza de alegria a que estávamos preparados.
A rapaziada dispersou se pelos gramados para a
montanha, para os canaviais e pomares de ingresso vedado. Alguns, munidos de
anzóis, acocoravam se à beira do açude, como batráquios, enquanto esperavam que
picasse a probabilidade difícil de um peixe.
Os de espírito calmo buscavam sítios de soledade,
iam passear a cisma silenciosa; os sentimentais, com o instinto dos fotógrafos
paisagistas, ensaiavam, comparavam, aplaudiam os melhores pontos de vista, ou,
simplesmente, dois a dois, íntimos, seguiam para longe, braços pela cintura,
balbuciando diálogos lentos. Os menores corriam, armando animadíssimos brincos,
atiravam se às borboletas, iam pelos cursos d'água canalizada através do parque,
perseguindo a fuga de um graveto, trépido, inalcansável na evasão rápida da
linfa. Nos enredamentos obscuros do bosque, exatamente onde o artista grego
incluiria um sátiro, podia se surpreender sob uma blusa o confiado abandono
bucólico de outros colegas.
De quando em quando, um sinal de clarim. Tocava se
a reunir e fazia se a distribuição das gulodices. Muitos não compareciam.
Às quatro horas a banda de música assinalou com o
hino nacional o grande momento da festa campestre.
De todos os pontos do jardim começaram a chegar
magotes pressurosos de uniformes brancos. Os vigilantes, enérgicos,
regularizavam a ocupação dos lugares.
Ao correr da mesa, fechou se o bloqueio ameaçador
de dentaduras. No centro alinhavam se as peças, sem conta, frias, sem molho,
apetitosas, entretanto, da cor tostada e do aroma suculento.
Os garfos agitavam se inimigos, amolavam se os
trinchantes nas mãos dos copeiros...
Obrigados a uma sobranceria estóica de filósofos, depois
da provação definitiva do forno, nem os perus, nem os leitões, nem os tímidos
frangos mostravam aperceber se da situação arriscada.
Os frangos, de pernas para trás, sobre o dorso,
cabeça escondida na asa, pareciam dormir sonhando o calembur das penas
perdidas; os redondos bácoros, encouraçados na bela cor de torresmo, serviam se
dos olhos de azeitona para não mais ver as seduções mentidas da existência,
empenhados em ensinar aos homens como se leva a cabo o suplício culinário dos
palitos, com a agravante azeda dos limões em rodela; os perus, soberbos até à
última e menos filosóficos, prescindiam francamente da cabeça, orgulhosos
apenas da vastidão do peito, enfunando a vaidade cheia do papo, hipertrofia de
farofa.
Guarnecendo os assados, perfilavam se as garrafas
pretas desarrolhadas, conglobavam se montes de maças, pêras, laranjas, apoiadas
às nacionalíssimas bananas, como um traço de nativismo. Os pudins, as
marmeladas, as compotas enchiam os vãos da toalha, com um zelo apertado de
mediador plástico. Mesmo sem meter em conta as postas de rosbife com que
contribuirá Aristarco, percebe se que era de truz o jantar.
Quando os rapazes sentaram se, em bancos vindos do
Ateneu de propósito, e um gesto do diretor ordenou o assalto, as tábuas das
mesas gemeram. Nada pôde a severidade dos vigilantes contra a selvageria da boa
vontade. A licença da alegria exorbitou em canibalismo.
Aves inteiras saltavam das travessas; os leitões, à
unha, hesitavam entre dois reclamos igualmente enérgicos, dos dois lados da
mesa. Os criados fugiram. Aristarco, passando, sorria do espetáculo como um
domador poderoso que relaxa. As garrafas, de fundo para cima, entornavam rios
de embriaguez para os copos, excedendo se pela toalha em sangueira. Moderação!
moderação! clamavam os inspetores, afundando a boca em aterros de farofa dignos
do Sr. Revy. Alguns rapazes declamavam saúdes, erguendo, em vez de taça, uma
perna de porco. À extremidade da última das mesas um pequeno apanhara um
trombone e aplicava se, muito sério, a encher lhe o tubo de carne assada.
Maurílio descobriu um repolho recheado e devorava o às gargalhadas, afirmando
que era munição para os dias de gala. Cerqueira, ratazana, curvado, redobrado,
sobre o prato, comia como um restaurante, comia, comia, comia como as sarnas,
como um cancro. Sanches, meio embriagado, beijava os vizinhos, caindo, com os
beiços em tromba. Ribas, dispéptico, era o único retraído; suspirava de longe,
anjo que era, diante dos reprovados excessos da bacanal.
Em meio do tumulto ebrifestante, ouviram se palmas.
À cabeceira da mesa principal, apresentavam se de pé Aristarco e o
empertigadinho e cúprico Professor Venâncio. Era a poesia! Venâncio de Lemos
costumava improvisar, mais ou menos previamente, estrofes análogas nas festas
campestres...
Outros professores, que tinham concorrido ao
piquenique, davam se à faina grosseira de jantar. Ele, não.
Havia um quarto de hora que andava misteriosamente
por uma aléia de bambus, esfiapando as barbicas, a gaforina, palpando a testa,
arrancando inspiração ao couro cabeludo, passando, nervoso, repassando, espiado
furtivamente pela nossa admiração. Ninguém ousava acercar se, temendo perturbar
a elaboração do gênio.
Muxoxos adoráveis das brisas, que andais pela mata,
gemedoras fontes, que desfiais à toa as lágrimas de vossos penares, amáveis
sabiás cantores, que viveis de plantão na palmeira da literatura indígena, sem
que vos galardoe uma verba da secretaria do império, vinde comigo repartir o
segredo do vosso encanto! Sedutoras rolinhas, um pouco da vossa ternura!
Vividos colibris, a mim! que sois como os animados tropos no poema frondoso da
floresta... E as inspirações vieram. Primeiro, cerimoniosamente, à altura,
volteando espirais de urubu sobre a carniça; depois, de chofre, caindo lhe às
bicadas sobre o estro. O estro entorpecido acordou. Fez se hipogrifo um asno
morto. O poeta foi registrando as estrofes.
Quadras de rima fácil de particípios, espancados
pelo camartelo contundente dos agudos.
Sustou se em toda a linha o furor gastronômico dos
rapazes. Ficamos a ouvir, surpresos.
Murmuraram as brisas; as fontes correram; tomaram a
palavra os sabiás; surgiram palmeiras em repuxo; houve revoadas de juritis, de
beija-flores; todas essas coisas, de que se alimentam versos comuns e de que
morrem à fome os versejadores. Súbito, no melhor das quadras, exatamente quando
o poeta apostrofava o dia sereno e o sol, comparando a alegria dos discípulos
com o brilho dos prados, e a presença do Mestre com o astro supremo, mal dos
improvisos prévios! desata se das nuvens espessadas uma carga-d'água diluvial,
única, sobre o banquete, sobre o poeta, sobre a miseranda apóstrofe sem culpa.
Venâncio não se perturbou. Abriu um guarda chuva
para não ser inteiramente desmentido pelas goteiras e continuou, na guarita, a
falar entusiasticamente ao sol, a limpidez do azul.
Não querendo desprestigiar o estimável subalterno,
Aristarco fingia acreditar no improviso e, indiferente, deixava cair o
aguaceiro. As abas do chapéu de palha murchavam lhe ao redor da cabeça, o
rodaque branco desengomava se em pregas verticais gotejantes.
Para os rapazes a chuva foi novo sinal de desordem.
Deixou se o poeta com a sua inspiração arrebatadora de bom tempo; recomeçou a
investida aos pratos.
A abóbada de folhagem que nos cobria, em vez de
atenuar a violência das águas, concorria para fazer mais grossos os pingos.
Pouco importava. A filosofia impermeável do diretor servia nos também de capa.
Que chovesse! Era o molho dos manjares que nos faltava. As frutas lavadas
luziam com um verniz de frescura que o próprio outono não possui. O vinho
estendia se pela toalha encharcada numa generalização solene de púrpura. O
banho oportuno do banquete vinha temperar a demasiada aridez das farinhas de
recheio. "Acabamos pela sopa, descobriu Nearco, o penetrante, por onde o
vulgo principia!"
Qual acabávamos! Ninguém acabou. Sucedeu que, com
os fundilhos molhados, ninguém quis mais sentar se. Girou o atropelo ao redor
das mesas; os bancos foram repelidos a pontapés. Repartia se o doce sem
eqüidade; quem não avançava a tempo ficava sem ele. Dois inspetores, João Numa
e o Conselheiro, a pretexto de decidir uma contenda, arranjaram se com uma
caixa de pessegada e desapareceram.
A chuva desculpava a bebida. Era inacreditável o
consumo de brindes. Brindes a Aristarco, brindes aos companheiros, ao Silvino,
ao poeta, ao sol, aos temporais, ao trovão escandinavo; inimigos figadais, no
transporte do prazer, reconciliaram se; Barbalho saudou me fogosamente. Rômulo,
já tonto, afastado das mesas, brindava o copeiro que lhe arranjara uma garrafa;
depois brindou a noiva; o criado, bebendo também, tocou lhe o copo.
Como escurecia, o diretor fez o clarim chamar à
forma.
Debaixo do aguaceiro que não cessava, o colégio
alinhou se como bem pôde. Muitos, queixando se de saúde delicada, obtiveram
dispensa desta inoportuna disciplina de equilíbrio; seguiram adiante para o
portão abrigado do jardim... Após, fomos os outros, em marcha regular, pingando
de molhados. A fita vermelha dos gorros desbotava se nos pelo rosto em fios
sanguíneos.
Quando chegamos ao portão, já nos esperavam os
bondes especiais. Do outro lado da rua, à entrada do conhecido restaurante,
apareceu a família do Aristarco com alguns professores, que lá tinham jantado.
D. Ema, pelo braço do Crisóstomo, a Melica altivamente só e distanciada.
No colégio, tivemos ordem de subir a descanso nos
dormitórios. Preventivo louvável de prudência, depois dos excessos e da
tempestade sofrida. O descanso foi simplesmente um prolongamento da pândega do
passeio. Para cessar a desordem, tocou se a estudo... Baixamos ao salão geral.
Aristarco, reassumindo a dureza olímpica da seriedade habitual, apresentou se e
perguntou asperamente se pretendíamos que a vida passasse a ser agora um
piquenique perpétuo na desmoralização. Tacitamente negamos e a tranqüilidade
normal entrou nos eixos.
Não sabíamos que, a essas horas, preparava o
segredo da alta justiça uma trama de intrigas, que devia estragar em terrores a
lembrança do grande passeio.
A hora da ceia, na mesma porta em que se lia a
gazetilha das aulas, sombrio como nunca, vagaroso como os compassos de réquiem,
tétrico como o Juízo Final, entrou o diretor.
Pausa preliminar, frêmito de sensação pelo
refeitório: "Tenho a alma triste", começou, cavernosamente. Uma cinta
de trovões no horizonte, restos da tormenta da tarde, faziam fundo às palavras
em coro esquiliano.
"Tenho a alma triste. Senhores! A imoralidade
entrou nesta casa! Recusei me a dar crédito, rendi me à evidência..." Com
todo o vigor tenebroso dos quadros trágicos, historiou nos uma aventura
brejeira. Uma carta cômica e um encontro marcado no Jardim. "Ah! mas nada
me escapa... tenho cem olhos. Se são capazes, iludam me! Está em meu poder um
papel, monstruoso corpo de delito! assinado por um nome de mulher! Há mulheres
no Ateneu, meus senhores!"
Era uma carta do Cândido, assinada Cândida.
"Esta mulher, esta cortesã fala nos da
segurança do lugar, do sossego do bosque, da solidão a dois... um poema de pouca
vergonha! É muito grave o que tenho a fazer. Amanhã é o dia da justiça!
Apresento me agora para dizer somente: serei inexorável, formidando! E para
prevenir: todo aquele que direta ou indiretamente se acha envolvido nesta
miséria... tenho a lista dos comprometidos... e que negar espontâneo auxilio ao
procedimento da justiça, será reputado cúmplice e como tal: punido!"
Este convite era um verdadeiro arrastão. Remexendo
a gaveta da consciência e da memória, ninguém havia, pode se afirmar, que não
estivesse implicado na comédia colegial dos sexos, ao menos pelo enredo remoto
do ouvi dizer. Ouvir dizer e não denunciar logo, era um crime, dos grandes na
jurisprudência costumeira. A devassa prometida fazia alarma geral. Como prever
as complicações do processo? Como adivinhar o segredo tremendo da lista?
Aristarco ufanava se de perspicácia de inquisidor.
Sob a saraivada das perguntas, ameaças, promessas, o interrogado perturbava se,
comprometia se, entregava se e traia os outros; nos processos do gabinete, os
fatos floresciam em carimbo, frutificavam em cacho; a pesquisa de uma culpa
descobria três, sem contar as ramificações da cumplicidade de outiva.
Ao retirar se, o diretor deixou na sala uma
estupefação de pavor.
Eu, particularmente, tinha valiosos motivos de
sobressalto. A guerra latente que já me ligava ao diretor, como as conjunções
disjuntivas, exacerbara se com um episódio gravíssimo, rompimento decisivo.
A caminho da biblioteca, no mesmo lagar do infeliz
encontro com o enorme Rômulo, achei me inesperadamente com o Bento Alves.
As simpatias do excelente companheiro não tinham
diminuído. Durante as férias, fora ver me em casa, travando relações com a
minha família Fui recomendado insistidamente ao amigo, que me valesse, nas
dificuldades da vida colegial, contra o constante perigo da camaradagem
perniciosa. Durante o mês de janeiro não nos vimos. Por ocasião da abertura das
aulas, notei lhe um calor novo de amizade, sem efusões como dantes, mas
evidentemente testemunhado por tremores da mão ao apertar a minha, embaraços na
voz de amoroso errado, bisonho desviar dos olhos, denunciando a relutância de
movimentos secretos e impetuosos. Às vezes mesmo, um reflexo assustador de
loucura acentuava se lhe nos traços.
Interessava me aquela agonia comprimida. Estranha
coisa, a amizade que, em vez da aproximação franca dos amigos, podia assim
produzir a incerteza do mal estar, uma situação prolongada de vexame, como se a
convivência fosse um sacrifício e o sacrifício uma necessidade.
Durante os primeiros dias do ano, poucos alunos
chegados, ficávamos horas inteiras em companhia. Trouxera me um presente de
livros, com dedicatória a cores de bela caligrafia, inscrita em rosas
entrelaçadas de cromo. Recordo me também de um dulcíssimo cofre dourado de
partilhas e outras ridicularias de amabilidade que me oferecia, passado de
vergonha pela insignificância do obséquio. Confusamente ocorria me a lembrança
do meu papelzinho de namorada faz de conta, e eu levava a seriedade cênica a
ponto de galanteá lo, ocupando me com o laço da gravata dele, com a mecha de
cabelo que lhe fazia cócega aos olhos; soprava lhe ao ouvido segredos
indistintos para vê lo rir, desesperado de não perceber. Uma das irmãs casara
no Rio Grande; ele mostrou me o retrato do noivo, um par de bigodes negros
descaídos, com a noiva, um rosto oval correto e paro, o turbilhão nevoento dos
véus. Deu me um botão de flor de laranjeira que tinham remetido.
Andavam assim as coisas, em pé de serenidade,
quando ocorreu a mais espantosa mudança.
Não sei que diabo de expressão notei lhe no
semblante, de ordinário tão bom. Desvairamento completo. Apenas me reconheceu,
atirou se como fizera Rômulo e igualmente brutal. Rolamos ao fundo escuro do
vão da escada. Derribado, contundido, espancado, não descurei da defesa.
Entrevi na meia obscuridade do recanto um grande sapato embolorado. Lutando na
poeira, sob o joelho esmagador do assaltante, ataquei lhe a cabeça, a cara, a
boca, a formidáveis golpes de tacão, apurando a energia de sola ferrada com a
onipotência dos extremos. Bento Alves deixou me bruscamente.
Tínhamos lutado em silêncio, sem que nada mais se
ouvisse do que os encontrões pelo soalho. No corredor, entretanto, vimos
Aristarco que chegava como em socorro. Bento Alves passou; imobilizou o com o
olhar sem vista, esgazeado, medonho, de quem acaba de perpetrar um homicídio e
desapareceu, trôpego, manchado de pó, lábios inflamados, desordem nos cabelos.
Aristarco veio sobre mim. Que explicasse a briga!
Eu estava como o adversário, empoeirado e sujo como de rolar sobre escarros.
Respondi lhe com violência.
"Insolente!" rugiu o diretor. Com uma das
mãos prendendo me a blusa, a estalar os botões, com a outra pela nuca, ergueu
me ao ar e sacudiu. "Desgraçado! desgraçado, torço-te o pescoço! Bandalhozinho
impudente! Confessa me tudo ou mato-te."
Em vez de confessar, segurei lhe o vigoroso bigode.
Fervia me ainda a excitação do primeiro combate; não podia olhar conveniências
de respeito. Esperneei, contorci me no espaço como um escorpião pisado. O
diretor arremessou me ao chão. E, modificando o tom, falou: "Sérgio!
ousaste tocar me!"
— Fui primeiro tocado! repliquei fortemente.
— Criança! feriste um velho!
Reparei que havia no chão fios brancos de bigode.
— Fui vilmente injuriado, disse. Ah! meu filho,
ferir a um mestre é como ferir ao próprio pai, e os parricidas serão malditos.
O tom comovido deste final inesperado impressionou
me até o intimo da alma. Estava vencido. Fiquei por um minuto horrorizado de
mim mesmo. De volta do atordoamento, achei me só no corredor. A saída dramática
do diretor aumentou me ainda remorsos. Houve uma reação de esforço moral e
desatei nervosamente em pranto, chorei a valer, amparando me ao peitoril de uma
janela.
Contava certo com um castigo excepcional, uma
cominação qualquer do célebre código do arbítrio, em artigo cujo grau mínimo
fosse a expulsão solene.
Esperei um dia, dois dias, três: o castigo não
veio. Soube que Bento Alves despedira se do Ateneu na mesma tarde do
extraordinário desvario. Acreditei algum tempo que a minha impunidade era um
caso especial do afamado sistema das punições morais e que Aristarco delegara
ao abutre da minha consciência o encargo da sua justiça e desafronta. Hoje
penso diversamente: não valia a pena perder de uma vez dois pagadores prontos,
só pela futilidade de uma ocorrência, desagradável, não se duvida, mas sem
testemunhas.
O caso morreu em segredo de discrição, encontrando
nos eu e o diretor num conchavo bilateral de reserva, como se nada houvesse.
O ressentimento, porém, devia ser fundo e a
perspectiva tormentosa do processo ameaçava me como o ensejo iminente da
desforra.
Não foi possível dormir tranqüilo.
À hora do primeiro almoço, como prometera,
Aristarco mostrou se em toda a grandeza fúnebre dos justiçadores. De preto.
Calculando magnificamente os passos pelos do diretor, seguiam no em guarda de
honra muitos professores. À porta fronteira, mais professores de pé e os bedéis
ainda, e a multidão bisbilhoteira dos criados.
Tão grande a calada, que se distinguia nítido o
tique taque do relógio, na sala de espera, palpitando os ansiados segundos.
Aristarco soprou duas vezes através do bigode,
inundando o espaço com um bafejo de todo poderoso.
E, sem exórdio:
"Levante se, Sr. Cândido Lima!
"Apresento lhes, meus senhores, a Sr.a D.
Cândida", acrescentou com uma ironia desanimada.
"Para o meio da casa! e curve se diante dos
seus colegas!"
Cândido era um grande menino, beiçudo, louro, de
olhos verdes e maneiras difíceis de indolência e enfado. Atravessou devagar a
sala, dobrando a cabeça, cobrindo o rosto com a manga, castigado pela
curiosidade pública.
"Levante se, Sr. Emílio Tourinho...
Este é o cúmplice, meus senhores!"
Tourinho era um pouco mais velho que o outro, porém
mais baixo; atarracado, moreno, ventas arregaladas, sobrancelhas crespas,
fazendo um só arco pela testa. Nada absolutamente conformado para galã; mas era
com efeito o amante.
"Venha ajoelhar se com o companheiro.
"Agora, os auxiliares..."
Desde as cinco horas da manhã trabalhava Aristarco
no processo. O interrogatório, com o apêndice das delações da polícia da
polícia secreta e dos tímidos, comprometera apenas dez alunos.
A chamado do diretor, foram deixando os lugares e
postando se de joelhos em seguimento dos principais culpados.
"Estes são os acólitos da vergonha, os co-réus
do silêncio!"
Cândido e Tourinho, braço dobrado contra os olhos,
espreitavam se a furto, confortando se na identidade da desgraça, como Francesca
e Paolo no inferno.
Prostrados os doze rapazes perante Aristarco, na
passagem alongada entre as cabeceiras das mesas, parecia aquilo um ritual
desconhecido de noivado: a espera da bênção para o casal à frente.
Em vez da bênção chovia a cólera.
"... Esquecem pais e irmãos, o futuro que os
espera, e a vigilância inelutável de Deus!... Na face estanhada não lhes pegou
o beijo santo das mães... caiu lhes a vergonha como um esmalte postiço...
Deformada a fisionomia, abatida a dignidade, agravam ainda a natureza; esquecem
as leis sagradas do respeito à individualidade humana... E encontram colegas
assaz perversos, que os favorecem, calando a reprovação, furtando se a
encaminhar a vingança da moralidade e a obra restauradora da justiça!..."
Não posso atear toda a retórica de chamas que ali
correu sobre Pentápolis. Fica uma amostra do enxofre.
Isto, porém, era um começo. Conduzidos pelos
inspetores, saíram os doze como uma leva de convictos para o gabinete do
diretor, onde deviam ser literalmente seviciados, segundo a praxe da justiça do
arbítrio.
Consta que houve mesmo pancada de rijo. Os
condenados negaram, depois. Em todo caso, era de efeito o simples consta,
engrandecido pela refração nebulosa do boato.
Concluída a chamada dos indiciados, a sala inteira
respirou desafogo. No recreio, a rapaziada dispersou se com gritos festivos.
Franco, sobretudo, estava de um contentamento nunca
visto. Casualmente em liberdade, por não ter havido leitura das notas, fazia da
circunstância uma pirraça contra o Silvino: "Eu é que sou o mau",
repetia andando à roda, "eu é que sou o bandalho, a peste do colégio!... O
mau sou eu só!..." Silvino foi gradualmente perdendo a paciência. Atirou
se por fim ao Franco, desesperado, lançou o à terra, meteu lhe os pés. Alguns
rapazes protestaram com gritos, Silvino ameaçou. Fogosos da exaltação
desordeira do passeio da véspera, que por momentos dominara o terror do
processo, reuniram se em massa contra o Silvino. O inspetor salvou a força
moral refugiando se no alto da escada e fazendo de cima trejeitos enérgicos com
a carteira e o lápis.
À tardinha, em nome do diretor, foram convocados a
castigo os cabeças do motim.
Eu no meio. Fomos alinhados vinte e tantos no
corredor que partia do refeitório. Na qualidade de presos políticos, vitimas de
generosa sedição, não nos vexava a penitência. Uns conversavam gracejando,
outros sentavam se no soalho. Junto de mim ficava um armário dos aparelhos
escolares, revestindo se a vidraça de uma tela protetora de metal. Através do
arame, na última luz vespertina, eu espiava lá dentro os queridos planetas de
vago brilho, como a noite encarcerada ainda.
Por trás do armário, havia uma porta. Conversavam
do outro lado, na sala das visitas, Aristarco e o guarda livros. Chegavam me
palavras perdidas "... De boa família dois, um descrédito! Vão pensar...
Expulsar não é corrigir... Isto é o menos; não há gratuitos?... Sim, sim.
Quanto a mim... desagradável sempre riscar... borra a escrita... Em suma...
mocidade..."
Acabavam de acender a iluminação do Ateneu.
Decididamente, era um dia nefasto. Do corredor,
ouvimos enorme barulho no pátio. Recomeçavam as vaias. Protegidos pela noite,
mostravam se mais alvoroçados os rapazes. Era um tumulto indescritível, vozear
de populaça em revolta, silvos, brados, injúrias, em que os gritos estrídulos
dos pequenos destacavam se como arestas da massa confusa de clamores.
Os inspetores chegaram aterrados a procurar o
diretor, mostrando a cara salpicada de verrugas vermelhas. Adivinhei. Era a
revolução da goiabada! Uma velha queixa.
A comida do Ateneu não era péssima.
O razoável para algumas centenas de tolinhos.
Possuía mesmo o condimento indispensado das moscas, um regalo. Mas aborrecia a
impertinência insistida de certos pratos. Uma epidemia, por exemplo, de fígados
guisados, o ano todo! Ultimamente, havia três meses, a goiabada mole de
bananas, manufatura econômica do despenseiro.
Aristarco empalideceu de despeito. Visava o
diretamente a desaforada insurreição. E isto no mesmo dia em que fizera
espetáculo da justiça tremenda. Não quis, entretanto, arriscar o prestigio.
Vimo lo no corredor, incerto, sem sangue, mandando que voltassem os bedéis a
acalmar.
Torturava o ainda em cima o ser ou não ser das
expulsões. Expulsar... expulsar... falir talvez. O código, em letra gótica, na
moldura preta, li estava imperioso e formal como a Lei, prescrevendo a
desligação também contra os chefes da revolta... Moralidade, disciplina, tudo
ao mesmo tempo... Era demais! era demais!... Entrava lhe a justiça pelos bolsos
como um desastre. O melhor a fazer era chimpar um murro no vidro amaldiçoado,
rasgar ao vento a letra de patacoadas, aquela porqueira gótica de justiça!
Quando informaram qual o motivo das assuadas, saiu
lhe um peso do coração! "Ah! Tinham motivo... Mas aquilo era patota do
despenseiro... Pedras que lhe atirassem seria pouco... Mas não tinha culpa...
Era indústria secreta a goiabada de bananas!..."
A sineta, chamando à ceia, pacificou os ânimos.
Espalhou se que Aristarco rendia se à revolta e ia falar.
À mesma porta em que aparecera formidável de manhã,
surgiu nos transformado, manso, liso como a própria cordura e a lealdade;
altivo, contudo, quanto comportava a submissão.
"Mas por quê, meus amigos, não formularam uma
representação? A representação é o motim reduzido à expressão ordeira e
papeliforme! Qual a necessidade da representação por assuadas? Têm todos
razão... Perdôo a todos... Mas eu sou tão enganado como os senhores... Até hoje
estava convencido de que a goiabada era de goiaba... A verba consagrada é para
a legitima de Campos... Nesta casa não há misérias!... Quando alguma coisa
faltar, reclamem que aqui estou eu para as providências, vosso Mestre, vosso
pai!... Legitimo cascão de Campos... Aqui têm as latas... Mais latas!... leiam
o rótulo... Como podia eu suspeitar..."
Enquanto o diretor falava, ia lhe um copeiro
amontoando em torno quanta lata vazia encontrou na copa. Grandes caixas
redondas de folha, espelhantes como luas, com o letreiro em barra. Aristarco mirava
se nos luminosos documentos da sua inteireza. "Legitimo cascão! legitimo
cascão, meus senhores!" garantia, tamborilando com os nós dos dedos numa
tampa.
Escangalhavam se as pilhas fragorosamente pelo
soalho, mas o montão subia, em desordem, cintilando reflexos amarrotados do
gás. Aristarco avultava sobre as latas, como o principio salvo da autoridade. A
justificação era completa. Mais algumas palavras azeitadas de ternura, e todo
ressentimento cedia, e nós saudávamos o diretor, grande ali, como sempre, sobre
o chamejamento do Flandres.
IX
A anistia dos revolucionários aproveitou por
extensão aos execrandos réus da moralidade. Já frouxa a fibra dos rigores,
Aristarco despediu os do gabinete com a penitência de algumas dezenas de páginas
de escrita e reclusão por três dias numa sala. Desprestigiava se a Lei,
salvavam se, porém, muitas coisas, entre as quais o crédito do estabelecimento,
que nada tinha a lucrar com o escândalo de um grande número de expulsões.
Quanto ao encerramento dos culpados na trevosa cafua, impossível, que lá estava
o Franco, por exigência expressa do Silvino, como causador primeiro das
inqualificáveis perturbações da ordem no Ateneu.
Esta resolução agradou me sumamente. Pena seria, em
verdade, que perdesse eu, logo depois do Bento Alves, tão desastradamente
concluído na história sentimental das minhas relações, o meu amigo Egbert.
Adquirira o com a transição para as aulas
secundárias, onde o encontrei com outros adiantados. Vizinhos de banco,
compreendemo nos, mutuamente simpáticos, como se um propósito secreto de coisa
necessária tivesse guiado o acaso da colocação.
Conheci pela primeira vez a amizade. A
insignificância cotidiana da vida escolar em que a gente se aborrece é
favorável ao desenvolvimento de inclinações mais sérias que as de simples
conveniência menineira. O aborrecimento é um feitio da ociosidade, e da mãe
proverbial dos vícios gera se também o vicio de sentir.
A convivência do Sanches fora apenas como o
aperfeiçoamento aglutinante de um sinapismo, intolerável e colado, espécie de
escravidão preguiçosa da inexperiência e do temor; a amizade de Bento Alves
fora verdadeira, mas do meu lado havia apenas gratidão, preito à força,
comodidade da sujeição voluntária, vaidade feminina de dominar pela fraqueza,
todos os elementos de uma forma passiva de afeto, em que o dispêndio de energia
é nulo, e o sentimento vive de descanso e de sono. Do Egbert, fui amigo. Sem
mais razões, que a simpatia não se argumenta. Fazíamos os temas de colaboração;
permutávamos significados, ninguém ficava a dever. Entretanto, eu experimentava
a necessidade deleitosa da dedicação. Achava me forte para querer bem e
mostrar. Queimava me o ardor inexplicável do desinteresse. Egbert merecia me
ternuras de irmão mais velho.
Tinha o rosto irregular, parecia me formoso. De
origem inglesa, tinha os cabelos castanhos entremeados de louro, uma alteração
exótica na pronúncia, olhos azuis de estrias cinzentas, oblíquos, pálpebras
negligentes, quase a fechar, que se rasgavam, entretanto, a momentos de
conversa, em desenho gracioso e largo.
Vizinhos ao dormitório, eu, deitado, esperava que
ele dormisse para vê lo dormir e acordava mais cedo para vê lo acordar. Tudo
que nos pertencia, era comum. Eu por mim positivamente adorava o e o julgava
perfeito. Era elegante, destro, trabalhador, generoso. Eu admirava o, desde o
coração, até a cor da pele e à correção das formas. Nadava como as toninhas. A
água azul fugia lhe diante em marulho, ou subia lhe aos ombros banhando de um
lustre de marfim polido a brancura do corpo. Dizia as lições com calma,
dificilmente às vezes, embaraçado por aspirações ansiosas de asfixia. Eu mais o
prezava nos acessos doentios da angustia. Sonhava que ele tinha morrido, que
deixara bruscamente o Ateneu; o sonho despertava me em susto, e eu, com alívio,
avistava o tranqüilo, na cama próxima, uma das mãos sob a face, compassando a
respiração ciciante. No recreio, éramos inseparáveis, complementares como duas
condições recíprocas de existência. Eu lamentava que uma ocorrência terrível
não viesse de qualquer modo ameaçar o amigo, para fazer valer a coragem do
sacrifício, trocar me por ele no perigo, perder me por uma pessoa de quem nada
absolutamente desejava. Vinham me reminiscências dos exemplos históricos de
amizade; a comparação pagava bem.
No campo dos exercícios, à tarde, passeávamos
juntos, voltas sem fim, em palestra sem assunto, por frases soltas, estações de
borboleta sobre as doçuras de um bem estar mútuo, inexprimível. Falávamos
baixo, bondosamente, como temendo espantar com a entonação mais alta, mais
áspera, o favor de um gênio benigno que estendia sobre nós a amplidão invisível
das asas. Amor unus erat.
Entrávamos pelo gramal. Como ia longe o burburinho
de alegria vulgar dos companheiros! Nós dois sós! Sentávamo nos à relva. Eu
descansando a cabeça aos joelhos dele, ou ele aos meus. Calados, arrancávamos
espiguilhas à grama. O prado era imenso, os extremos escapavam já na primeira
solução de crepúsculo. Olhávamos para cima, para o céu. Que céus de transparência
e de luz! Ao alto, ao alto, demorava se ainda, em cauda de ouro, uma lembrança
de sol. A cúpula funda descortinava se para as montanhas, diluição vasta,
tenuíssima de arco íris. Brandos reflexos de chama; depois, o belo azul de
pano, depois a degeneração dos matizes para a melancolia noturna, prenunciada
pela última zona de roxo doloroso. Quem nos dera ser aquelas aves, duas, que
avistávamos na altura, amigas, declinando o vôo para o ocaso, destino feliz da
luz, em pleno dia ainda, quando na terra iam por tudo as sombras!
Outras vezes, subíamos ao duplo trapézio.
Embalávamo nos primeiro brando, afrontando a carícia rápida do ar. Pouco a
pouco aumentava o balanço e arriscávamos loucuras de arremesso, assustando o
Ateneu, levados em vertigem, distendidos os braços, pés para frente, cabeça
para baixo, cabelos desfeitos, ébrios de perigos, ditosos se as cordas
rompessem e acabássemos os dois, ali, como uma só vida, no mesmo arranco.
Líamos muito em companhia. Páginas que não
terminavam, de leituras delicadas, fecundas em cisma: Robinson Crusoé, a
solidão e a indústria humana; Paulo e Virgínia, a solidão e o sentimento.
Construíamos risonhas hipóteses: que faria um de nós, vendo se nos aparos de
uma ilha deserta?
— Eu, por mim, iniciava logo uma furiosa propaganda
a favor da imigração e ia clamar às praias, até que me ouvisse o mundo.
— Eu faria coisa melhor: decretava preventivamente
o casamento obrigatório e punha me a esperar pelo tempo.
A pastoral de Bernardin de Saint Pierre foi principalmente
o nosso enlevo. Parecia nos ter o poema no coração. A baia do Túmulo, de águas
profundas e sombrias, festejada apenas algumas horas pelo sol a prumo, em suave
tristeza sempre; ao longe, por uma bocaina, a fachada, à vista, branca, da
igreja rústica de Pamplemousses.
Ideávamos vagamente, mas inteiramente, na meditação
sem palavras do sentimento, quadro de manchas sem contorno, ideávamos bem as
cenas que líamos da singela narrativa, almas que se encontram, dois coqueiros
esbeltos crescendo juntos, erguendo aos poucos o feixe de grandes folhas
franjadas, ao calor da felicidade e do trópico. Compreendíamos os pequeninos
amantes de um ano, confundidos no berço, no sono, na inocência.
Revivíamos o idílio todo, instintivo e puro. "Virginie, elle sera heureuse!..."
Animávamo nos da animação daquelas correrias de crianças na liberdade
agreste, gozávamos o sentido daquela topografia de denominações originais —
Descobertas da Amizade, Lágrimas Enxugadas, ou de alusões à pátria distante. Ouvíamos
palmear a revoada dos pássaros, disputando, ao redor de Virgínia, a ração de
migalhas. Percebíamos sem raciocínios a filosofia sensual da mimosa entrevista.
"Est ce par ton esprit? Mais nos mères en ont
plus que nous deux. Est ce par tes caresses? Mais elles m'embrassent plus
souvent que toi... Je crois que c'est par ta bonté... Mais, auparavant, repose
toi sur mon sein et je serai délassé. — Tu me demandes pourquoi tu m'aimes.
Mais tout ce qui a été élevé ensemble s'aime. Vois nos oiseaux élevés dans les mêmes nids, ils
s'aiment comme nous; ils sont toujours ensemble comme nous. Écoute comme ils
s'appellent et se répondent d'un arbre à l'autre..."
Confrangia nos, enfim, ao voltar das páginas, a
dificuldade cruel das objeções de fortuna e de classe, o divórcio das almas
irmãs, quando os coqueiros ficavam juntos. E a iminência constritora do austro,
da catástrofe, a lua cruenta de presságios sobre um céu de ferro...
E guardávamos do livro, cântico luminoso de amor
sobre a surdina escura dos desesperos da escravidão colonial, uma lembrança,
misto de pesar, de encanto, de admiração. Que tanto pôde o poeta: sobre o solo
maldito, onde o café floria e o níveo algodão e o verde claro dos milhos de uma
rega de sangue, altear a imagem fantástica da bondade. Virgínia coroada; como o
capricho onipotente do sol, formando em glória os filetes vaporosos que os
muladares fumam, que um raio chama acima e doura.
Com o Egbert experimentei me às escondidas no
verso. Esboçamos em colaboração um romance, episódios medievais, excessivamente
trágicos, cheios de luar, cercados de ogivas, em que o mais notável era um
combate devidamente organizado, com fuzilaria e canhões, antecipando se de tal
maneira a invenção de Schwartz, que ficávamos para todo o sempre, em literatura,
a salvo da increpação de não descobrir a pólvora.
Quando ouvi lhe o nome, à chamada dos comprometidos
no processo, sofri como a surpresa de um golpe. Desesperou me não achar o meio
de compartir com ele a vergonha.
Qual a espécie de cumplicidade que se atribuía? Não
quis saber; fosse o mais torpe dos réus, era o meu amigo: tudo que sofresse,
muito culpado embora, era, no meu conceito, uma provação da fatalidade. E fazia
me estremecer a idéia de que iam maltratar criatura tão mansa, tão complacente,
tão amável, feita de sensibilidade e brandura, contra quem o mal seria sempre
uma injustiça, que eu prezaria com todos os defeitos, com todas as máculas, na
facilidade de perdão das cegueiras sentimentais, estranhezas da preferência,
que envolve tudo, no ser querido, a frase límpida do olhar ou o cheiro acre,
mesmo impuro, da carne.
Quando nos tornamos a ver, nenhum teve para o outro
a mínima palavra; ficamos a um banco, lado a lado, em expansivo silêncio. E
nunca, depois, nem por alusão distante, nos referimos ao caso. Coincidência
instintiva de um respeito recíproco, ódio talvez comum de uma recordação
ominosa.
Desde o mês de julho do ano anterior, cursava os
estudos elementares das línguas, alegrando me a aquisição do vocábulo
estrangeiro, comércio com a linguagem dos grandes povos, como se provasse a
goles a civilização, como se bebesse a realidade do movimento humano nos países
remotos que os cosmoramas pintam, em que vagamente acreditávamos como se
acredita em romances.
Seguiu se a maçada dos intermináveis temas.
Nas aulas superiores, a facilidade adquirida
amenizava o trabalho. As páginas sorriam de literatura, com o sorriso conhecido
dos objetos familiares.
Os professores eram bons e moderados. O de francês,
M. Delille, nome de poeta aplicado a um urso, honrado urso, inofensivo e
benévolo; saudoso do terceiro império, cujo desastre o deportara para a vida de
aventuras além mar; barbado como um colchão de crinas, por um vigor de cabelo
denso, luxuriante, ruivo queimado no lugar da boca, mais longe preto, através
do qual passavam nos simultaneamente baforadas expressivas de cachaça e regras
de Halbout. O professor de inglês, Dr. Velho Júnior, nome de contradição ainda,
o melhor dos homens; zeloso, explicador detalhado, sem exaltar se nunca, calvo
como a ocasião, mas que excelente ocasião de se estimar e querer bem!
A companhia do Egbert ultimava a situação e o
estudo era uma festa.
O Professor Venâncio lecionava também inglês;
escapei lhe às garras, felizmente: uma fera! chatinho sob o diretor, terrível
sobre os discípulos; a um deles arremessou o contra um registro de gás,
quebrando lhe os dentes. Mânlio, além das primeiras letras, regia a cadeira
especial de português.
Graças ao estudo do outro ano, alcancei
sofrivelmente o meu atestado de vernaculismo, garantido pela competência
oficial; graças também às tinturas do latim, em que me iniciara o padre mestre
Frei Ambrósio, respeitável, de nariz entupido, gesticulando com o Alcobaça,
rezando a artinha com a entonação oca e funda das missas contadas, consumidor
de rapé por um convento, culpado, assim, de cheirar me ainda hoje a Paulo
Cordeiro o magnífico idioma do qui, quoe, quod, e produzir me espirros uma
simples reminiscência de Salústio.
Era costume no Ateneu licenciar se um pouco do
regimento da casa a estudante de certa ordem, que estivesse em véspera de
exame. Saia se então para o jardim com os livros e a comodidade do trabalho a
bel prazer. Companheiros sempre, aproveitávamos, eu e o Egbert, com toda vontade,
a regalia consuetudinária. Antes da data memorável do francês, muito passeamos
pelas avenidas de sombra Chateaubriand, Corneille, Racine, Molière. O teatro
clássico dava para grandes efeitos de declamação. Quanta tragédia perdida sobre
as folhas secas! Quanto gesto nobre desperdiçado! Quantas soberbas falas
confiadas à viração leviana e passageira!
Um era Augusto, outro Cina; um Nearco, outro
Poliúto; um Horácio, outro Curiácio, D. Diogo e o Cid, Joas e Joad, Nero e
Burro, Filinto e Alceste, Tartufo e Cleanto. O arvoredo era um cenário deveras.
Dialogávamos, com toda a força das encarnações dramáticas, a bravura
cavalheiresca, o civismo romano, as apreensões de rei ameaçado, o heroísmo da
fé, os arrufos da misantropia, as sinuosidades do hipócrita. Uma estátua de
deusa anônima, de louça esfolada, verde de velhice, constituía o auditório,
auditório atento fixamente, comedido, sem demasias de aplauso nem reprovação,
mas constante e infatigável.
Para o desempenho dos papéis femininos havia
dificuldades; cada um queria a parte mais enérgica do recitativo. Tirava se a
sorte; e, segundo o acaso, um de nós ou o outro enfiava sem cerimônia as saias
de qualquer dama e ia perfeita a toilette do sentimento, noivado de Chimène,
desespero de Camila, luto de Paulina, ambição de Agripina, soberania de Ester,
astúcia de Elmira, dubiedade de Celiméne. Outro papel custoso de distribuir era
o de Burro, papel honesto, entretanto, e altamente simpático. Ninguém o queria
fazer, o virtuoso conselheiro de Nero.
Melhor que a prerrogativa do estudo livre era uma
espécie de prêmio, não catalogado nos estatutos, com que Aristarco gentilmente
obsequiava os distintos. Levava os a jantar em sua casa, uma honra! à mesma
toalha com a Princesa Melica, dos olhos grandes.
Quis o bom fado que obtivéssemos, os dois amigos, a
prezada nota, e, registre se perene! examinados pelo Professor Courroux, o
tremendo Catão das bolas pretas, terror universal dos bichos!
O diretor recebeu me da Instrução com um abraço
contrafeito de estilo; percebi que ainda escorria a fístula dos ressentimentos.
Convidado Egbert, força era que o fosse eu também, e o fui, de mi vontade, por
fórmula. Cumpria me forjar pretexto e recusar o convite, mas atraia me certo
número de curiosidades, por exemplo: ver como comia a Melica, uma coisa de
subido interesse.
Lembro me, entretanto, que havia odores sobre a
mesa, que estava a queimar a sopa; não reparei sequer se esteve presente a
filha rio diretor.
Uma atenção absorveu me exclusiva e única. D. Ema
reconheceu me: era aquele pequeno das madeixas compridas! Conversou muito
comigo. Um fiapo branco pousava me ao ombro do uniforme; a boa senhora tomou o
finamente entre os dedos, soltou o e mostrou me, sorrindo, o fio levíssimo a
cair lentamente no ar calmo... Estava desenvolvido! Que diferença do que era há
dois anos. Tinha idéia de haver estado comigo rapidamente, no dia da exposição
artística...
— Um peraltinha! interrompeu Aristarco, entre
mordaz e condescendente, de uma janela a cujo vão conversava com o Professor
Crisóstomo.
Eu quis inventar uma boa réplica sem grosseria, mas
a senhora me prendia a mão nas dela, maternalmente, suavemente, de tal modo que
me prendia a vivacidade também, prendia me todo, como se eu existisse apenas
naquela mão retida.
Depois da interrupção de Aristarco, não sei mais
nada precisamente do que se passou na tarde.
Miragem sedutora de branco, fartos cabelos negros
colhidos para o alto com infinita graça, uma rosa nos cabelos, vermelha como
são vermelhos os lábios e os corações, vermelha como um grito de triunfo. Nada
mais. Ramalhetes à mesa, um caldo ardente, e sempre a obsessão adorável do
branco e a rosa vermelha.
Estava a meu lado, pertinho, deslumbrante, o
vestuário de neve. Serviam me alguns pratos, muitas carícias; eu devorava as
carícias; Não ousava erguer a vista. Uma vez ensaiei. Havia sobre mim dois
olhos perturbadores, vertendo a noite. Parece que me olhava também, neo tenho
certeza, do outro lado, por entre as flores, o Professor Crisóstomo.
Empossado no seu grande orgulho, que mesmo em casa
fazia valer, Aristarco presidia: tão alto, porém, e tão longe, que dir se ia um
ausente.
De volta ao Ateneu, senti me grande. Crescia me o
peito indefinivelmente, como se me estivesse a fazer homem por dilatação.
Sentia me elevado, vinte anos de estatura, um milagre. Examinei então os
sapatos, a ver se haviam crescido os calcanhares. Nenhum dos sintomas estranhos
constatei. Mas uma coisa apenas: olhava agora para Egbert como para uma
recordação e para o dia de ontem.
Daí começou a esfriar o entusiasmo da nossa
fraternidade.
X
Bem diferente esta exaltação deliciosa do
abatimento espavorido da véspera, da manhã mesmo, na secretaria da Instrução
Pública. A expectativa mortal das chamadas; uma insignificância: o terror
acadêmico! que nos sobressalta, que nos deprime como o que há de mais grave. E
por ocasião das provas de francês já não era estreante.
A estréia do primeiro exame foi de fazer febre.
Três dias antes pulavam me as palpitações; o apetite desapareceu; o sono depois
do apetite; na manhã do ato, as noções mais elementares da matéria com o
apetite e com o sono. Memoria
in albis.
O professor Mânlio animava; a animação, lembrando o
perigo, assustava mais. Esmagava me por antecipação o peso enorme da bastilha da
Rua dos Ourives, como os tribunais ferozes, sem apelo; a terrível campainha
penetrante da abertura da solenidade, os reposteiros plúmbeos de espesso verde,
sopesando as armas imperiais, as formidáveis paredes de alvenaria secular. Que
barbaridade aquela conspiração toda contra mim, contra um, de todos aqueles
perfis rebarbativos, contínuos, o Matoso, o Neves Leão, as comissões, qual mais
poderosa e carrancuda; o Conselho da Instrução no fundo, coisa desconhecida,
mitológica, entrevista como as pinturas religiosas das abóbadas sombrias, onde
as vozes da nave engrossam de ressonância, emprestando a força moral à justiça
das comissões, com o prestigio da elevação e do inacessível; mais alto que
tudo, o Ministro do império, o Executivo, o Estado, a Ordem Social, aparato
enorme contra uma criança.
Entrava se pela Rua da Assembléia, para o saguão
ladrilhado.
Ali estive não sei que tempo, como um condenado em
oratório. Em redor de mim, morriam de palidez outros infelizes, esperando a
chamada. Um, o mais velho de todos, cadavérico, ar de Cristo, tinha a barba
rente, pretíssima, como um queixo de ébano adaptado a uma cara de marfim velho.
De repente abre se uma porta. De dentro, do escuro,
saia uma voz, uma lista de nomes: um, outro, outro... ainda não era o meu...
Afinal! Não houve nem tempo para um desmaio. Empurraram me; a porta fechou se;
sem consciência dos passos, achei me numa sala grande, silente, sombria, de
teto baixo, de vigas pintadas, que fazia dobrar se a cabeça instintivamente.
Uma parede vidraçada em toda a altura, de vidros opacos de fumaça, cor de
pergaminho, coava para o interior um crepúsculo fatigado, amarelento, que
pregava máscaras de icterícia às fisionomias.
Entre as vidraças e os lugares que eram destinados
aos examinandos, ficava a mesa examinadora: à direita um velho calvo, baixinho,
de alouradas cãs, rodeando a calva em franja de dragonas, barba da cor dos
cabelos, reclinava se ao espaldar da poltrona e lia um pequeno volume com o
esforço dos míopes, esfregando as páginas ao rosto. A esquerda, um homem de
trinta anos, barba rareada por toda a face, pálpebras inclusive, óculos
escuros, cabelo seco, caracolando. A claridade, batendo pelas costas, denegria
lhe confusamente as feições. O terceiro, presidente da comissão, não se via
bem, encoberto pela urna verde de frisos amarelos.
Distribuiu se o papel rubricado. Um dos
examinadores levantou se, apanhou com um movimento circular um punhado de
pontos e lançou os à urna. A urna de folha cantava irônica sob o cair dos
números, sonoramente.
Tirou se o ponto; momento de angústia ainda .
Depois: estrofe dos Lusíadas! Estávamos livres da
expectativa. Não me preocupou mais a dificuldade do ponto.
Depois do ditado, como em relaxamento de cansaço do
espírito, esqueci o inventário natural dos conhecimentos que a prova reclamava.
Pus me a pensar nas primeiras leituras de Camões, no Sanches, nos banhos da
natação, na maneira de rir de Ângela, no criado assassinado, no processo do
assassino, que fora julgado havia pouco... Três pancadinhas que senti no
calcanhar, chamaram me das distrações.
Voltei me: era o meu vizinho da mesa de trás, o
queixo de ébano que pedia socorro. "Valha me que estou perdido, não atino
com a ordem direta!"
O ruído desta frase balbuciada, sibilou bem forte
para atrair a atenção da mesa. Atirei lhe a oração principal, mas tive medo de
acudir inteiramente. Além disso, precisava cuidar do próprio interesse. Deixei
o pobre Cristo de marfim entregue ao desespero de uma lauda deserta. De vez em
quando, o infeliz espetava me as costas com a caneta.
Para a prova oral fui mais animado. A nota da
escrita era tranqüilizadora.
Os exames orais eram todos nas salas de cima.
Entrava se pela Rua dos Ourives. Os examinandos estavam em geral mais calmos.
Além destes, enchia se o saguão da escada com a turbamulta dos assistentes,
confusão de fardetas, fraques surrados, sobrecasacas, todas as idades, todos os
colégios representados, além dos estudantes avulsos de aulas particulares, em
cujo número confundiam se caras suspeitas de farroupilhas, exemplares definidos
de vagabundagem.
O Ateneu era invejado. Vitimas do uniforme, os
discípulos de Aristarco passeavam entre os grupos dos colégios rivais, sofrendo
dichotes, com uma paciência recomendada de boa educação.
Fumava se. No ambiente sem luz pairava fixo o
nevoeiro dos hálitos e um cheiro de sarro intolerável; emplastravam se de
cusparadas as paredes; passeava se arrastando os pés na areia do ladrilho;
ressoavam grandes gargalhadas de ship chandler; chasqueava se a palavrões.
Alguns rapazes de sorrisos frouxos, sem expressão, maneiras reles, arrebitavam
para o alto, com as costas da mão, chapéus de palha suja, e passeavam gingando.
Os mais distintos devam caminho, repuxando um canto desdenhoso de lábios,
perfilando mais a elegância.
Um rebuliço extraordinário agitou a multidão.
Acabava se de descobrir na cal, coberta de epigramas e rabiscos, uma nova
inscrição de muito espírito: versalhada satírica contra o Professor Courroux,
da mesa de francês, rimando em u, sempre em u, de cima a baixo, com uma
fertilidade pasmosa de epítetos.
Nem de propósito! na mesma ocasião entrava e
lançava se precipitadamente pela escada o terrível professor. "Não o
conhece? Lá vai!" indicou me um companheiro mais próximo.
— Não o conhecia...
Vi o, magro, anguloso, feio, olhando com ferocidade
continua, não se sabia felizmente para quem, porque era estrábico. Por ele
começou o meu improvisado informante, e conhecendo que eu andava atrasado a
respeito, não me deixou mais: "Se tem empenho, fura; se não tem, babau.
Bancas de peixe! O peixe é caro às vezes, mas é sempre peixe de mercado. Olhe o
Meireles da filosofia, aquele compridão de barba russa; o empenho é a Ritinha
Pernambucana da Rua dos Arcos; o Simas da mesa de geografia, um pançudo
apelidado esfera terrestre, mimoseiem no com um par de galos de briga... o
Barros Andrade... comprem lhe os pontos..., aquele diabo da retórica que me
bombeou há dias... falem lhe nos versos, que não há suíças mais amáveis. O seu
diretor é que os compreende. Quando entra aqui é uma onça; o próprio teto
branco empalidece; levantam se, saúdam o soberano! Agora, há homens
respeitáveis: o velho Moreira, o simpático Ramiro, de sorriso
patriarcal..."
Do topo da escada gritaram para o saguão que ia
principiar a chamada dos de português.
Quando subia, vi um movimento enorme de rapazes na
rua: um rolo! Silvavam os apitos. Atracavam se os estudantes com os carroceiros
a sopapos de ida e volta, segundo o belo costume do tempo.
Prestavam se os exames numa grande sala de muitas
janelas, de velhos caixilhos em xadrez apertado, vidros grossos, antigos, mal
fundidos, oferecendo espessuras desiguais e densidades verdes. Um parapeito de
ferro em grade dividia o salão por dois lances; o mais espaçoso para os
assistentes. No outro havia duas mesas de exame; a de matemáticas, perto da
entrada, a de português, mais adiante, e tão chegadas que se fundiam as
respostas de uma com as perguntas da outra, resultando admiráveis efeitos de
aplicação das ciências exatas à filologia.
Antes da cerimônia palestrava se, a meia voz. Um
sujeito entrou, deixando cair a bengala. Olharam todos. "Não
conhece?" indagou me o oficioso companheiro.
Um sexagenário, encanecido e helicoidal, cara
lambida de padre, cabelos brancos ondeando pelos ombros em bossa, sobrecasaca
ilimitada riscando o chão a cada passo. "O Conselheiro Vilela, ou, melhor,
o Conselheiro Tieitch, uma instituição! Vai presidir às matemáticas. Preside a
tudo, conforme é preciso. Incorruptível! Catão e Bruto somados... Na banca de
inglês, há uns anos, reprovava a todos... Como neo?! dizia; se erram
escandalosamente no tieitch! Muito depois, apanharam no consultando o
Tautphoeus: Que diabo, Barão, é este célebre tieitch em que tanto se
erra?..."
Quando no dia do jantar subi para o dormitório com
o Egbert, dançava me no espírito, reduzida a miniatura, a imagem de Ema (era
agradável suprimir o D.), pequenina como uma abelha de ouro, vibrante e
incerta.
Sonhei: ela sentada na cama, eu no verniz do chão,
de joelhos. Mostrava me a mão, recortada em paro jaspe, unhas de rosa, como
pétalas incrustadas. Eu fazia esforços para colher a mão e beijar, a mão fugia;
chegava se um pouco, escapava para mais alto; baixava de novo, fugia mais longe
ainda, para o teto, para o céu, e eu a via inatingível na altura, clara, aberta
como um astro.
Ela ria do meu desespero, mostrava me o pé
descalço, que a calçasse; não permitia mais. Calçar lhe apenas o arminho que
ali estava, o pequeno sapato, branco, exânime, voltando a sola, sem o conforto
cálido do pé que o pisava, que o vivificava. Eu me inclinava, invejoso do
arminho, sobre o crivo de seda da meia, milagre de indústria para o qual
concorrera cada dia do século industrial com um esforço, tecido impalpável, de
fibras vivas, filtrando a transparência branda do sangue, invólucro sutil de um
mimo de joelho, de perna, de tornozelo, irremediavelmente desfalcado do espólio
glorioso da estatuária pagã. Calçá-la
apenas! Mas eu a fazia torcer se, calçando a, de dores numa
tortura ardente de beijos, exalando eu próprio a alma toda em chama.
Que outra criatura eu era ao despertar! A aparição
encantadora extinta; mas eu sofria da reação de trevas que sucede aos
deslumbramentos.
Continuava cordialmente com o Egbert. Parecia me,
entretanto, a sua amizade agora uma coisa insuficiente como se houvesse em mim
uma selvageria amordaçada de afetos.
Egbert parecia às vezes um intruso. Passeando com
ele, que diferença de outrora! produzia me o efeito de uma terceira pessoa. Eu
preferia andar só.
Não sei por que conveniência de acomodação, fui
transferido para o dormitório dos maiores. Esta mudança distanciava me ainda
mais do Egbert; passamos a nos encontrar somente à tarde, no campo.
Depois das aulas, subia para o dormitório,
aproveitando me do relaxamento da policia do salão.
O inspetor responsável era o Silvino. Receoso de
uma represália dos grandes, o prudente bedel deixava andar.
Eu deitava me preguiçoso, ouvindo a grita do pátio,
como coisa absolutamente alheia à minha vida. Contava as tábuas do teto, porção
de traços paralelos que se perdiam num reflexo da tinta. Às vezes lia
narrativas de Dumas, que não distraiam. Em outras camas, deitados como eu, de
cara para cima, cruzando os botins, alguns colegas fumavam, soprando,
devagarinho, colunas de fumo que subiam verticalmente, e rodavam azuis. A um
canto, no fim do salão, jogavam três parceiros, bocejantes, acentuando sem
entusiasmo as alternativas do azar como uma partida de sonâmbulos. Muita vez na
modorra pesada da sesta, as costas aquecidas da posição, fechando se me os
olhos, ao brilho do sol que adivinhava li fora no terreiro abrasado, eu
adormecia. À hora da aula ou do jantar, um companheiro puxava me.
Estes intervalos de dormência sem sonho, sem
idéias, sem definida cisma, eram o meu sossego. Pensar era impacientar me. Que
desejava eu? Sempre o desespero da reclusão colegial e da idade. Vinham me
crises nervosas de movimento, e eu cruzava de passos frenéticos o pátio, sôfrego,
acelerando me cada vez mais, como se quisesse passar adiante do tempo. Nem me
interessavam as intrigas do salão. E que intrigas! exatamente a substância do
afamado mistério do chalé.
A uma das extremidades do comprido salão, armava se
o biombo do Silvino, grande caixão de pinho a meia altura do teto, com uma
porta e uma janela de palmo quadrado, donde saiam emanações de roupas suadas e
várias outras, cheiros indecifráveis de pouco asseio; donde saia mais, durante
a noite, crescendo, decrescendo, um roncar enorme, fungado de narigudo.
Os rapazes furavam orifícios com verrumas para
espiar, e tinham achado a legenda do Silvino. Depois disto, vinha a demografia
especial da terceira classe, a distribuição por famílias regulares, ou por
aproximações eventuais, conforme os caracteres, sob a divisa comum do nada
haver, ou como entendiam outros nada a ver. Louvavam se os exemplos de
fidelidade; comentavam se as traições; censuravam se as tentativas de sedução;
improvisava se a teoria do lar e do leito; cantava se o hino báquico dos
caprichos volantes, do entusiasmo passageiro. Chamavam me a mim o Sérgio do
Alves. Fazia se a critica dos novos sob um ponto de vista inteiramente deles.
Apostavam a ver quem seria primeiro, exigiam juramento de segredo, para passar
adiante uma história que tinham por sua vez jurado não contar a ninguém.
Serviam se mutuamente em pasto às boas risadas, anedotas espessas, com ou sem
aplicação, conforme o pedido e o paladar do ensejo. Toda a crônica obscura do
Ateneu redigia se ali, em termos explícitos e fortes, expurgada dos arrebiques
de recato, de inverdade, pelo escrúpulo das comissões investigadoras. O Silvino
que se fosse! Não tinha nada com a conversa dos rapazes. Uma das melhores
máximas do chalé era esta, característica: — Fica revogado o diretor.
Tudo que na primeira classe e na segunda era
extraordinário, ali era normal e corrente. Todas as idades, desde o Cândido até
o Sanches.
Das classes inferiores, havia quem fizesse empenho
em mudar para a terceira. No ambiente torvo da intriga, insinuava se o vaivém
silencioso das ficções, drama joco sério dos instintos, em ilusão convencional
e grosseira. E investiam se dos diversos caracteres convictamente os mancebos,
explorando o momento efêmero da pele, novidade tenra do semblante, como
elemento de artifício, deleitando se no engano, tomando a peito a caricatura da
sensualidade.
Havia o que afetava moderação no capricho,
conhecendo o desvio em regra, como o ladrão sabe ser honesto no roubo; com o ar
sério, espantadiço das femmes qui sortent; havia os ingênuos, perpetuamente
infantis, não fazendo por mal, risonhos de riso solto, com o segredo de adiar a
inocência intata através dos positivos extremos; havia os entusiastas da
profissão, conscientes, francos, impetuosos, apregoando se por gosto, que não
perdoavam à natureza o erro original da conformação: ah! não ser eu mulher para
melhor o ser! Estes faziam grupo à parte, conhecidos publicamente e satisfeitos
com isto, protegidos por um favor de simpatia geral, inconfessado mas evidente,
beneplácito perverso e amável de tolerância que favoneia sempre a corrupção
como um aplauso. Eles, os belos efebos! exemplos da graça juvenil e da nobreza
da linha. Às vezes traziam pulseiras; ao banho triunfavam, nus, demorando
atitudes de ninfa, à beira d'água, em meio da coleção mesquinha de esqueletos
sem carnes nas tangas de meia, e carnes sem forma. Havia os decaídos,
portadores miseráveis de desprezo honesto, culpados por todos os outros, gastos
às vezes antes do consumo, atormentados pela propensão de um lado, pela repulsa
de outro, mendigos de compaixão sem esmola, reduzidos ao extremo de conformar
se deploravelmente com a solidão.
Com estes em contraposição, os de orgulho
masculino, peludos, morenos, nodosos de músculos, largos de ossada, e outros
mirrados de malícia, insaciáveis, de voz trêmula e narinas ávidas de bode, os
gorduchos de beiço vermelho relaxado, fazendo praça de uma superioridade porque
nem sempre zelaram antes da madureza das banhas.
Ângela dominava os a todos; vencia os.
As janelas abertas para o quintal do diretor eram
fortemente gradeadas de madeira; por entre as travessas olhávamos.
Ângela fazia se menina para brincar e correr com
vivacidades de gata. Rolava no chão, envolvendo a cara nos cabelos, secos, soltos.
Saltava agitando o ar com as roupas; colhia flores e jogava, distribuindo por
igual a todos, que ela a todos queria bem. Quando não havia muitos, às grades
do salão, descuidava se, aparecia em corpinho e saia branca, afrouxando o
cordão sobre o seio, mostrando o braço desde a espádua, espreguiçando se com as
mãos ambas à nuca e os cotovelos para cima, contando para a janela histórias
que não acabavam mais, enquanto às axilas, em fofos de camisa, ia escapando a
indiscrição dos fios fulvos. Sempre ao sol! sempre alegre! filha selvagem da
luz, fauna indomável das regiões quentes, afrontando a temperatura como as
leoas, insensível e sobranceira.
Cantava.
Só no canto era triste; canções nostálgicas
repassadas do sentimento de coisas distantes, um lar amigo de pais, um coração
de adolescente, conhecido uma vez antes da emigração para sempre, canções da
ilha em que se ouvia o murmúrio do oceano calmo e das brisas viajadas, e o
grito angustiado das gaivotas e a celeuma longe da maruja à faina, acompanhando
um estribilho insistente de amor, amor malandro de gente pobre à beira mar,
feito de peixe, de ociosidade triste e de calor.
Às vezes era grosseira: dialogava ao desafio em
chacota desbocada, com quem quisesse; impacientava se abruptamente e desaparecia,
arremessando uma praga de bem acabada torpeza. Fazia pilhéria; tinha um colégio
também para receber internos, externos, meio pensionistas. Batia no ventre.
E com a grosseria, com a chacota, com o estribilho
sentimental, com os descuidos do corpinho, com as flores, com as turbulências
de criança sem modos, Ângela era a rainha da atenção e da curiosidade:
inflamava se o chalé em conflagrações de entusiasmo. Se passava algum tempo sem
aparecer, colavam se às grades, perscrutando a sombra das árvores do quintal,
carinhas sem conta, chapadas de saudade.
E divertia se a apreciar os ardores engaiolados dos
seus meninos, entretendo se a desesperá-los como quem atiça o braseiro para ver
a erupção das fagulhas, o rodopiar dos rubis candentes, com um prazer graduado
entre o orgulho da castelã requestada de cem paladinos e a expectativa
palpitante do carname em postas de um festim de jaula.
Com o tempo vim a descobrir que uma camarilha de
espertos conseguira sofismar alguns paus da grade da última janela, três ou
quatro leitos além do meu, e passavam de noite, quando o silêncio se fazia, a
tomar fresco no jardim do diretor. Preferiam as noites escuras, que têm mais
estrelas e mais segredo, e preferiam as noites de chuva, que em questão de
fresco são decisivas. Desciam por uma corda de lençóis torcidos e voltavam às
vezes como pintos, mas refrescados sempre. Por medida de prudência, não
passeavam mais de dois por noite, fazendo sentinela um durante a ausência do
outro.
Disse que me não interessavam as intrigas e preocupações
gerais do salão; não fui preciso; e não sei como possa ser neste ponto sem
recorrer às modalidades de expressão — atualmente, virtualmente, que o
anacronismo injusto condenou. Pouco se me davam fatos; o espírito seduzia.
Talvez por isso fiz a descoberta do sofisma da camarilha; incomodando me a
liberdade secreta, o rega bofe às altas horas, como um roubo feito a mim, aos
companheiros, iludidos no sono, traição odiosa à nossa tolice de descuidados.
Veio me uma noite a tentação violenta de espalhar o segredo por todos,
desmoralizar os finórios, conduzir o Silvino e mostrar lhe os sarrafos
ajeitados à deslocação, trair merecidamente aos traidores. Medi as objeções:
além de feia delação de voluntário da espionagem, podia ser asneira. Talvez
soubessem todos, menos eu, simplesmente por estar de pouco na terceira classe.
Experimentei. Conservei me acordado até à hora, com uma paciência e um esforço
de caçador de emboscada. No momento flagrante, ergui me na cama, esfregando os
olhos, fingindo me admirado. Não houve remédio senão iniciar me. Os dois da
noite contaram. Malheiro era o chefe da troça, uma troça de nove, muito
discretos, muito hábeis; também quem traísse apanhava.
A minha irritação contra o sofisma abrandou sem
desfazer se. Sempre que por acaso algum rapaz surpreendia os expedicionários da
frescata, era incontinenti aliciado para as vantagens e sob as ameaças. O marro
fabuloso do Malheiro era a sanção.
Não quis as vantagens, mesmo murro à parte. Não que
me não escaldassem as horas noturnas do chalé! Ah! o passeio livre no jardim!
as grades abertas do cárcere forçado! Mas uma hesitação prendia me, de
compromissos antigos comigo mesmo, compromissos de linha reta, não sei como
diga, razões velhas de vaidade vertebrada; aversão ao subterfúgio; ou talvez um
medo que me ocorreu por último, sem fundamento: fosse uma vez, e de volta não
achasse mais a corda para subir.
Outro sinal de que não escapava à psicologia comum
do chalé foi um acesso de furor que tive de sufocar, um dia que falaram de D.
Ema diante de mim. Que me importava D. Ema? Uma boa senhora, nada mais, que me
festejara com excesso de complacência, nos limites, porém, da hospitalidade de
rigor para muitas pessoas amáveis. Deixara uma simples lembrança de gratidão,
que começava a apagar se.
Repetiam as murmurações do Professor Crisóstomo,
frioleiras de maldade. Pelas janelas gradeadas indicavam junto do muro da
natação as venezianas da enfermaria e faziam a apologia da enfermeira,
enfermeirazinha cuidadosa, com um jeito incomparável para o tratamento dos
casos graves do coração. E vinham com histórias de estudantes muito mal de
imaginárias moléstias... Doeu me aquilo, como se me houvessem ferido o mais
santo escrúpulo de sentimento. Uma infâmia, uma infâmia, esta afirmação de
coisas improvadas!
No meio desta temporada de descontentamento, tive
um dia de prazer, prazer malvado, mas completo. Dormia no chalé o famoso
Rômulo. Ocupava a cama inteira de ferro com a fartura de ádipo e ressonava, no
extremo oposto do salão, com a mesma intensidade que o Silvino falava fino o
diabo e roncava grosso. Era um dos tais da troça do Malheiro.
Quando tocava lhe a vez, reforçavam se os lençóis e
saiam mais dois paus.
Uma noite que o vi descer, tive idéia de pregar lhe
uma peça. Arriscadíssima, como vão ver, mas eu contava com o concurso, depois,
do interesse de todos em abafar o negócio.
Lembram se do receio infundado de que falei. Estava
de sentinela o companheiro, que recolocava a grade, até que um aviso do quintal
pedisse a corda. Ofereci me para substituí lo. O colega foi dormir.
Com o sangue frio das boas vinganças, sem a menor
pressa. evoquei a memória da afronta que me devia Rômulo. Era justo. Recolhi
pouco a pouco a corda de lençóis, firmei forte as barras da grade e fui dormir.
Chovia a potes; tanto melhor: a injúria, que o sangue não lava, bem pode lavar
uma ducha de enxurro.
Estava vingado!
No outro dia apareceu o gorducho entanguido,
encatarrado, furibundo, em chinelos sem meias, calças, camisas de náufrago,
miserando, cercado pelo espanto de todos e pela galhofa.
Passara a noite sob a janela pedindo misericórdia
ao sarrafo impassível, toda a noite, inundado pelo aguaceiro, até que, ao
romper do dia, Aristarco o foi achar no lastimoso estado.
A noiva não viu, que acordava tarde. O sogro atinou
espertamente com a aventura. Fez se de esquerdo.
"Ora o rapaz!..." exclamou com uma
satisfação muito íntima.
E estranhou apenas que o bom do genro se deixasse
pegar como um lorpa.
XI
O Dr. Cláudio encetou uma série de preleções aos
sábados, à imitação das que fazia às quintas Aristarco sobre lugares comuns de
moralidade. Filosofia, ciência, literatura, economia política, pedagogia,
biografia, até mesmo política e higiene, tudo era assunto; interessantíssimas,
sem pesadas minuciosidades. Depois da astronomia do diretor, nenhuma
curiosidade me valera tão bons minutos de atenção.
Narrava nos a vida. As festas plutonianas do
movimento, da ignição; a gênese das rochas, fecundidade infernal do incêndio
primitivo, do granito, do pórfiro, primogênitos do fogo; o grande sono
milenário dos sedimentos, perturbado de convulsões titânicas.
Falava do antracito e da hulha, o luto feito pedra,
lembrança trágica de muitas eras orgulhosas do planeta, monumento da pré história
das árvores, negro, que a indústria dos homens devasta. Descrevia a escadaria
dos terrenos, onde existe a pegada impressa do gênio das metamorfoses, subindo,
desde a vegetação florestal dos fetos até ao homem quaternário. Falava nos de
Cuvier e da procissão dos monstros ressurgidos, caminho dos museus, o megatério
potente, tardo, balançando as passadas, sujo, descamando saibro e as concreções
secas do lobo diluviano, solene, cônscio da carga de séculos que transporta.
Vinha depois a aluvião moderna das zonas formadas,
o solo fecundo, lavradio. E o mestre passava a descrever a vida na umidade, na
semente, a evolução da floresta, o gozo universal da clorofila na luz. Falava
nos do cerne, o generoso madeiro, o tronco, que sangra em Dante, que sustenta
nos mares o comércio, Netuno inglês do tridente de ouro. Falava nos da poesia
ignorada da vegetação marinha nos abismos, e da giesta, isolada nas altas
neves, flor do ermo, a degradada eterna do inacessível.
Depois, a história dos brutos, os grandes bramidos
de macho nas regiões virgens, os dramas do egoísmo na selva, do egoísmo rude da
força que pode, cego, formidável, sagrado como a fatalidade. E corria inteira a
série das classificações, mostrando a vida no infinitésimo, a microbia
invisível, onipotência do número, sociedade inconsciente da mônada, solidária
para a morte e para as reconstruções imperecíveis da Terra.
O homem finalmente — ventre, coração e cérebro,
política, poemas, critério; a alma, universo de universo, imagem de Deus,
refletor imenso, antropocêntrico, do dia, das cores, que o Sol inflama, que o
Sol não sente.
Falava uma vez sobre educação.
Discutiu a questão do internato. Divergia do
parecer vulgar, que o condena.
É uma organização imperfeita, aprendizagem de
corrupção, ocasião de contato com indivíduos de toda origem? O mestre é a
tirania, a injustiça, o terror? O merecimento não tem cotação, cobrejam as
linhas sinuosas da indignidade, aprova se a espionagem, a adulação, a
humilhação, campeia a intriga, a maledicência, a calúnia, oprimem os prediletos
do favoritismo, oprimem os maiores, os mais fortes, abundam as seduções
perversas, triunfam as audácias dos nulos? A reclusão exacerba as tendências
ingênitas?
Tanto melhor: é a escola da sociedade.
Ilustrar o espírito é pouco; temperar o caráter é
tudo. É preciso que chegue um dia a desilusão do carinho doméstico. Toda a
vantagem em que se realize o mais cedo.
A educação não faz almas: exercita as. E o
exercício moral não vem das belas palavras de virtude, mas do atrito com as
circunstâncias.
A energia para afrontá-las é a herança de sangue
dos capazes da moralidade, felizes na loteria do destino. Os deserdados abatem
se.
Ensaiados no microcosmo do internato, não há mais
surpresas no grande mundo li fora, onde se vão sofrer todas as convivências,
respirar todos os ambientes; onde a razão da maior força é a dialética geral, e
nos envolvem as evoluções de tudo que rasteja e tudo que morde, porque a
perfídia terra terra é um dos processos mais eficazes da vulgaridade vencedora;
onde o aviltamento é quase sempre a condição do êxito, como se houvesse
ascensões para baixo; onde o poder é uma redoma de chumbo sobre as aspirações
altivas; onde a cidade é franca para as dissoluções babilônicas do instinto;
onde o que é nulo, flutua e aparece, como no mar as pérolas imersas são
ignoradas, e sobrenadam ao dia as algas mortas e a espuma.
O internato é útil; a existência agita se como a
peneira do garimpeiro: o que vale mais e o que vale menos, separam se.
Cada mocidade representa uma direção. Hão de vir os
disfarces, as hipocrisias, as sugestões da habilidade, do esclarecimento
intelectual; no fundo a direção do caráter é invariável. A constância da
bússola é uma; temos todos um norte necessário: cada um leva às costas o
sobrescrito da sua fatalidade. O colégio não ilude: os caracteres exibem se em
mostrador de franqueza absoluta. O que tem de ser, é já. E tanto mais exato,
que o encontro e a confusão das classes e das fortunas equipara tudo,
suprimindo os enganos de aparato, que tanto complicam os aspectos da vida
exterior, que no internato apagam se no socialismo do regulamento.
E não se diga que é um viveiro de maus germens,
seminário nefasto de maus princípios, que hão de arborescer depois. Não é o internato
que faz a sociedade; o internato a reflete. A corrupção que ali viceja, vai de
fora. Os caracteres que ali triunfam, trazem ao entrar o passaporte do sucesso,
como os que se perdem, a marca da condenação.
O externato é um meio termo falso em matéria de
educação moral; nem a vida exterior impressiona, porque a família preserva, nem
o colégio vive socialmente para instruir a observação, porque falta a
convivência de mundo à parte, que só a reclusão do grande internato ocasiona. O
internato com a soma dos defeitos possíveis é o ensino prático da virtude, a
aprendizagem do ferreiro à forja, habilitação do lutador na luta. Os débeis
sacrificam-se; não prevalecem. Os ginásios para os privilegiados da saúde. O
reumatismo deve ser um péssimo acrobata. Erro grave combater o internato.
Cumpre que se institua, que se desenvolva, que
floresça e se multiplique a escola positiva do conflito social com os maus
educadores e as companhias perigosas, na comunhão corruptora, no tédio de
claustro, de inação, de cárcere; cumpre que os generosos ardores da alma
primitiva e ingênua se disciplinem na desilusão crua e prematura, que nunca é
cedo para sentir que o futuro importa em mais que flanar facilmente, mãos às
costas, fronte às nuvens, através das praças desimpedidas da república de
Platão.
Durante a conferência pensei no Franco. Cada uma
das opiniões do professor, eu aplicava onerosamente ao pobre eleito da desdita,
pagando por trimestre o seu abandono naquela casa, alaguei do desprezo.
Lembrava me do desembargador em Mato Grosso e da carta que eu lera e da irmã
raptada, da vingança extravagante dos cacos, da timidez baixa das maneiras, da
concentração muda de ódios, dos movimentos incompletos de revolta, da submissão
final de escorraçado que se resigna. Tive pena.
Depois da conferência fui visitá lo.
Estava de cama no salão verde, à direita, perto das
janelas. Andava adoentado desde a última vez que fora à prisão.
Embaixo da casa. Fazia se entrada pelo saguão
cimentado dos lavatórios; sentia se uma impressão de escuro absoluto; para os
lados, a distância, brilhavam vivamente, como olhos brancos, alguns
respiradouros gradeados daquela espécie de imensa adega. O chão era de terra
batida, mal enxuta. Impressionava logo um cheiro úmido de cogumelos pisados.
Com a meia claridade dos respiradouros, habituando se a vista, distinguia se no
meio uma espécie de gaiola ou capoeira de travessões fortes de pinho. Dentro da
gaiola um banco e uma tábua pregada, por mesa. Sobre a mesa um tinteiro de
barro. Era a cafua.
Engaiolava se o condenado na amável companhia dos
remorsos e da execração; ainda em cima, uma tarefa de páginas para a qual o
mais difícil era arranjar luz bastante. De espaço a espaço, galopava um rato no
invisível; às vezes vinham subir às pernas do condenado os animaizinhos
repugnantes dos lugares lôbregos. À soltura surgia o preso, pálido como um
redivivo, espantado do ar claro como de uma coisa incrível. Alguns achavam meio
de voltar verdadeiramente abatidos.
Franco saiu doente.
Alguns colegas mostravam interesse por ele. Franco
respondia com aspereza; não tinha nada! Eram todos culpados; havia de adoecer,
havia de adoecer gravemente para que tivessem remorsos, eles mesmos, o Silvino,
Aristarco, todos os seus algozes! Raciocinava como as vitimas da antiga escola,
que se deixavam morrer fiadas no espectro. E ocultou que sofria.
Devorou o por semanas uma febre ligeira, mas
impertinente. Expunha se à soalheira, ao sereno, de propósito.
Um dia não pôde levantar se.
Dorzinha de cabeça, explicava. Vinham lhe náuseas,
ele corria à janela. Embaixo havia um pé de magnólias, copado como um bosque;
ele no intervalo dos arrancos entretinha se em aprumar o fio visguento do
vômito contra as amplas flores alvas.
Encontrei o mal.
Com a cabeça afundada no travesseiro, sumido sob a
porção de cobertores que os vizinhos haviam cedido, afetava o descuido
infantil, na fisionomia, a indiferença horripilante, suprema dos que não vão
longe. Fiquei surpreendido e aterrado.
O médico, a chamado de Aristarco, viera duas vezes.
Condenou a idéia de remover se o doente; recomendou cuidado com as vidraças;
diagnosticou uma febre qualquer, redigindo o récipe, partindo ambas as vezes
com a discrição hermética que faz a importância da classe.
Perguntei ao Franco como passava. Ele agitou
devagar as pálpebras e sorriu se. Nunca lhe conheci tão belo sorriso, sorriso
de criança à morte. Oito horas da noite. O gás atenuado produzia eflúvios
contristadores de claridade. Retirei me sem aprofundar a vista pelos outros
dormitórios, em cujas vidraças espelhantes devia passar sucessivamente a minha
sombra. Procurei o diretor e comuniquei lhe os meus terrores.
No dia seguinte, um domingo alegre, Franco estava
morto.
O correspondente compareceu em pessoa para as
indispensáveis providências. Transferiu se o corpo para a capela, onde se
erigia a essa. Aristarco chorou; mas o saimento foi modesto; não convinha ao
colégio o aparato de um grande enterro, pregão talvez de insalubridade.
Eu nada vi; quando subi ao salão verde novamente,
estava tudo acabado. Alguns rapazes revolviam curiosos na gaveta do Franco o
espólio da morte, uma escova de dentes esfiapada, tingida do carmim de um pó
chinês, uma velha correia sem fivela, uma fotografia gorda de mulher despindo os
seios, cartas à toa e um maço considerável de boas notas, arranjadas ninguém
sabe como, com assinaturas falsas de professores, e o nome de Franco, fraude de
sucesso com que o pobre pretendia maravilhar o magistrado de Cuiabá.
Desmanchando se a cama, caiu dos lençóis um cartão;
uma gravara, Santa Rosália! a minha padroeira desaparecida. Morrera talvez
beijando a, o pária.
Pouco tempo depois, o Ateneu em festa.
Preparava se a solenidade da distribuição bienal
dos prêmios. As benemerências andavam famintas de coroas. Suspenderam se as
aulas. Era preciso começar o preparativo com grande anterioridade, porque se
projetava coisa nunca vista. Alguns discípulos tinham prevenido ao diretor,
guardavam lhe uma surpresa: a oferta de um busto de bronze! Aristarco
predispunha se para a surpresa com todas as veras da alma. Um basto! era a
remuneração que chegava dos impagáveis esforços, a sonhada estátua. Vinha lhe
aos pedaços. Começavam pela cabeça; mais tarde, oferecer lhe iam o abdome, bela
pança metálica e magnífico umbigo de bonzo gordo, saliente como um marro;
depois, o prolongamento do corpo, aos roletes, gradualmente... Ah! quando lhe
oferecessem as botas!... Depois, não seria preciso mais: o pedestal, ele mesmo
oferecer se ia para adiantar. E parafusaria, acumuladas, as peças do seu
orgulho, a pilha dos seus anelos, a estátua! surgida aos poucos da sinceridade
vagarosa das oblações, como dificilmente a glória, do escrutínio demorado dos
tempos.
Devia ser uma solenidade sem memória nos fastos da
pedagogia triunfante, um obelisco de despesas, de luxo, de esplendor, a cuja
ponta, como a erupção de uma cratera, saltasse a surpresa, galardão das altas
qualidades e pirraça suprema à concorrência dos rivais.
Não havia sala no Ateneu que comportasse tão vasta
festividade; nem o próprio lagar dos recreios abrigados. Resolveu se cobrir de
lona o pátio central, sobre grandes mastros plantados convenientemente. Uma
barraca incalculável, a maior barraca que a imaginação humana tem concebido,
que abrangesse na sombra quatro mil pessoas, com o pano emprestado aos toldos,
ao velame de uma esquadra. Embaixo, as arquibancadas; reservando se, no meio,
espaçosa arena para a exibição dos laureados. Por intermédio do ajudante
general da Armada, que tinha dois filhos no estabelecimento, podia se
comodamente obter a lona.
Durante alguns dias chegaram ao Ateneu cargas
imensas de pano. Espichavam se os rolos no pátio, ao longo das paredes.
Apareceram em seguida as madeiras e os carpinteiros, um povo de carpinteiros.
Em meio dos operários iam e vinham os estudantes,
ajudando, atrapalhando, às carreiras, aos saltos, aos gritos, pressentindo a
felicidade do dia solene. Aristarco aprovava o tumulto; queria vê-los alegres.
A morte do Franco produzira uma penumbra de pânico; alguns rapazes tinham ido
para casa, receosos da febre.
O alvoroço dos preparativos reanimava o Ateneu. Em
poucos dias atravancou se o pátio de postes e travessões, tábuas e pés de
serra, como um desmedido estaleiro. Os martelos batiam por todos os cantos com a
crepitação continua dos tiroteios. Desaparecia a terra sob a poeira dos paus
cortados. Aristarco fiscalizava o serviço como mestre de obras, rondando
calado, sério, sorvendo satisfeito as emanações da serragem fresca, cheiro de
oficina, cheiro do trabalho, ouvindo atritar os serrotes com um rumor de
fábrica, que lembrava os haustos de ofego do vapor ao vaivém poderoso dos
êmbolos. Havia um prazer especial naquilo; crescer do chão em três dias por
honra sua a floresta das vigas e barrotes, ao esforço de tantos homens ativos e
azafamados; cantarem as tábuas sob os malhos, desdobrando se escadas e bancadas
como um desafio às exaltações, e prejulgar do efeito total, quando tudo fosse
belbutina e paninho, e o concurso da população invadisse, e assomasse, de um terremoto
de aclamações, o busto, altaneiro e luzente.
Certo não foi tão nobre o orgulho daqueles monarcas
das pirâmides, idiotas macabros e colossais, arquitetos inúteis de sepulcros.
Partiram os carpinteiros, apresentaram se os
armadores. Estenderam se sobre o vigamento os toldos, as velas, como um céu de
lona. As janelas do pátio abriam se para o anfiteatro como tribunas.
Os armadores comprometeram em sanefas todo o
pundonor do talento. Tudo que pode produzir de aparatoso o bem combinado das
cores vivas e os apanhados de cassa flutuante, e os lambrequins pintados do
coreto, e as colunatas de papelão; tudo que pode a concordância assombrosa da
cenografia e da ripa, armou se no pátio profusamente.
Na arena central expandia se um tapete pardo, de
flores claras. Em parte da arquibancada, convenientemente disposta, alinhavam
se cadeiras. Os estudantes e os assistentes somenos sentar se iam na tábua
dura. As abertas de construção que não podiam ficar assim em osso, foram
empanadas de veludo com frisos de galão. Vermelho e ouro. Acima dos assentos
havia uma linha de balaústres espiralados de fitas. Em cada balaústre um escudo
com o nome de um pedagogo célebre. Por delicadeza incluíram o nome de Aristarco
várias vezes. Aristarco não reparou.
Um dos lados do tapete ondeava se em quatro degraus
para um longo estrado, fronteiro à entrada do anfiteatro, apoiado à parede da
sala geral de estudo. Erguia se ali um trono, sob um dossel, para a Princesa
Regente. De vez em quando, Aristarco, cansado de tanto mover se, subia ao
trono, sentava se. Fazia lhe bem o dossel por cima. E dava regras aos
armadores, de li, como um soberano precavido ditando o esplendor da coroação.
Os iniciadores da subscrição do busto haviam
concluído a tarefa. Eram dois: o Clímaco, aluno gratuito, e o professor de
desenho. Clímaco, moço de espírito prático, não levou muito a ruminar uma feliz
idéia. E se oferecêssemos um basto ao nosso diretor? Lembrou se a principio de
congregar os gratuitos; mas repetiu imediatamente a lembrança por inexeqüível.
A gratidão podia se subscrever por todos; saía mais barato. Entrou em campo. Os
primeiros assaltados pelo convite ficaram frios. Diabo! não estavam dispostos
assim, a ser gratos de uma hora para outra. Consultasse os colegas, que, se a
idéia pegasse, não teriam dúvida. Alguns mais acanhados assinaram logo; alguns,
ainda, dos pequenos assinaram sem saber claramente o que significava a coisa.
Em poucos minutos a existência da subscrição estava no domínio público. Começou
a pressão irresistível de fato. Que miséria! hesitar por dez mil réis! Quem
teria coragem de furtar se ao testemunho público de agradecimento que a oferta
do busto significava? Era uma desfeita ao diretor! Os primeiros signatários
encarniçavam-se com despeito em coagir os outros, como se não quisessem ser os
únicos sangrados.
Já não era preciso esforço do iniciador. A idéia
ganhava terreno por si; em dois dias inteirava se a subscrição. Muitos pegavam
à vista; os que não tinham dinheiro iam tirar ao escritório, e o guarda livros
em segredo debitava o valor, despesas diversas, na conta do trimestre.
Diante da facilidade de obter o dinheiro, Clímaco
resolveu sensatamente dispensar do rateio os gratuitos; aderiam com a intenção
sincera. Razoável. Quando principiaram os preparativos da solenidade, já o
busto, obra de zeloso artista, estava fundido.
No dia 13 de novembro, às nove horas, começou a
afluência. O anfiteatro do pátio estava fechado ainda. Os convidados que
apareciam, depois de cumprimentar o diretor, espalhavam se a passear em grupos
pelo jardim, ou percorriam as salas do estabelecimento, examinando os aparelhos
escolares, as cartas de parede, as máximas sábias, meditando a seriedade do
ensino naquela casa. A afluência aumentou. Os convites tinham sido distribuídos
largamente pela cidade. Às onze horas era difícil circular no Ateneu. A festa
principiava às duas. Ao meio dia franqueou se o anfiteatro.
Foi como se se houvera aberto o seio de Abraão. A
última demão dos armadores fora digna do primeiro esforço. Cruzavam se, fazendo
volta às arquibancadas, no alto, em bambinela, em faixas entrelaçadas,
balançantes, o cor de rosa dos sorrisos infantis com uma tira alaranjada do
arrebol; imediatamente depois, uma zona de vivo escarlate, ferindo sangue às
veias do mais subido júbilo; aprumavam se as colunatas dos escudos; debaixo dos
escudos, oito soberbos degraus da arquibancada, veludo e galões. Perto do
trono, elevava se um palanque para o corpo docente; ao lado oposto,
simetricamente, outro palanque para a banda de música e para os cantores. Não
se via mais o teto de lona: alças enormes de ramaria e flores enredavam se ao
alto em graciosa desordem, flácidas, pendentes, como um dilúvio de primavera a
desprender se. Entre o verdor carregado dos festões do teto e o tapete pardo,
vagava a serenidade obscura das catedrais e das florestas, neblina penetrante
de recolhimento. As pessoas que entravam guardavam silêncio. O pouco que se
ouvia de vozes era baixinho, cochichos de missa, surdina aveludada, amortecida,
como se estivesse falando o tapete. A cornija sanefas vibrava em desconcerto
com a melancolia religiosa do recinto. Algumas nesgas da lona sobre a folhagem
contrastavam ainda mais, abrindo se à irrupção do dia.
Os alunos entravam fardados, subiam, abancavam se à
esquerda, fazendo tremer o edifício todo de carpintaria. Aristarco veio ficar à
porta. Imenso reposteiro, rubro, de grandes borlas, desviava se acima dele como
para mostrá lo. Calças pretas, casaca, peito blindado de condecorações, uma
fita de dignitário ao pescoço, que o enforcava de nobreza. Mirando! A suprema
correção, a envergadura imponente do talhe, a majestade dominadora da presença,
fundia se tudo numa mesma umbigada de empáfia.. Os rapazes olhavam com o prazer
do soldado que se orgulha do comandante. O Mestre invejável, desempenado,
brilhante para a festa, como se houvesse engolido um armador.
Ao redor de Aristarco, ajudantes de ordens,
apressavam se os membros de uma comissão de recepção, composta de professores
de bela presença, e alunos em condições semelhantes. Realizavam com o diretor
um cerimonial interessante de hospitalidade. Na entrada do anfiteatro comprimia
se a multidão, dos convidados. Aristarco e os ajudantes espiavam, farejavam,
descobriam os pais, as famílias dos de mais elevada posição social, que pescavam
para o ingresso preterindo os mais próximos. Os escolhidos eram levados para as
arquibancadas de cadeiras. Se encontravam nos lugares especiais quem para li
não houvessem conduzido, convidavam delicadamente a levantar se; que a família
do Visconde de Três Estrelas não podia ir para as tábuas nuas. Este rigor de
etiqueta fazia suar a comissão, embaraçada na massa da concorrência. Aristarco
aproveitava também para desforrar se dos pagadores morosos da escrituração.
Afinal deu na vista a pescaria dos seletos. Houve murmúrios, estremecimento de
surda revolta; os convites eram todos iguais! e a pretexto de haver crescido a
multidão, foram se muitos esgueirando sem mais ver diretor nem comissionados de
cortesia.
O anfiteatro encheu se tumultuariamente.
A Princesa Sereníssima, com o augusto esposo,
chegou pontual às duas horas, acedendo ao convite que recebera primeiro que
ninguém.
As duas e três minutos, subia à tribuna Aristarco.
Não preciso dizer que a caranguejola sofrera mais uma das grandes comoções da
malfadada existência. Ali estava, paciente e quadrada, no exercício efetivo de
porta retórica. Ficava à direita do sólio da princesa e diante do Orfeão.
Aristarco inclinou se ligeiramente para a Graciosa
Senhora. Passeou um olhar sobre o anfiteatro. Não pôde dizer palavra. Pela
primeira vez na vida sentiu se mal diante de um auditório. A massa de ouvintes
apertava se curiosa na linha das bancadas, em curva de ferradura. A cor preta
das casacas e paletós generalizava se no espaço como uma escuridão desnorteadora;
amedrontava o o semicírculo negro, enorme. A impressão simultânea do público
impedia lhe reconhecer uma fisionomia amiga que o animasse. Mas urgia
improvisar alguma coisa antes da eloqüência rabiscada que trazia em tiras de
papel... Quando o olhar foi ter a um objeto que o chamou à consciência de si
mesmo. Diante da tribuna erigia se uma peanha de madeira lustrosa; sobre a
peanha uma forma indeterminada, misteriosamente envolta numa capa de lã verde.
A surpresa! Era ele, que ali estava encapado na expectativa da oportunidade;
ele bronze impertérrito, sua efígie, seu estimulo, seu exemplo: mais ele ate do
que ele próprio, a tremer; porque bronze era a verdade do seu caráter, que um
momento absurdo de fraqueza desfigurava e subtraía. Lembrou se de que o vasto
barracão, as alças de flores, o vigamento, a belbutina, a arquitetura dos
palanques, os galões alfinetados, todas as sanefas de paninho, o olhar dos
discípulos, a presença da população, o busto na capa verde, tudo era o seu
triunfo por seu triunfo, e o embaraço desvaneceu se. A inspiração ferveu lhe de
engulho à goela, vibrou lhe elétrica na língua, e ele falou. Falou como nunca,
esqueceu o calhamaço sobressalente que trouxera, improvisou como Demóstenes,
inundou a arena, os degraus do trono, as ordens todas da arquibancada até à
oitava, com o mais espantoso chorrilho de facúndia que se tem feito correr na
terra.
O assunto conjetura se. Agradecimentos, o elogio de
seus penares de apóstolo. Abria a casaca e mostrava. Debaixo das comendas tinha
as cicatrizes. As setas que lhe varavam a alma não se podiam ver bem por causa
do colete. Avaliava se pela descrição: devia ser horrível. Depois dos
sofrimentos, os serviços.
O educador é como a música do futuro, que se
conhece em um dia para se compreender no outro: a posteridade é que havia de
julgar. Quanto ao seu passado, nem falemos! não olhava para trás por modéstia,
para não virar monumento, como a mulher de Ló. Com o Ateneu estava satisfeito:
uma sementeira razoável; não se fazia rogar para florescer. Corações de terra
roxa, onde as lições do bem pegavam vivo. Era cair a semente e a virtude
instantânea espipocava. Uma maravilha, aquela horta fecunda! Antes de
maldizerem do hortelão, caluniadores e invejosos julgassem lhe os repolhos,
pesassem lhe os nabos, as tronchudas couves, crespas, modestas, serviçais, as
cândidas alfaces, as sensíveis cebolas de lágrima tão fácil quanto sincera, as
instruídas batatas, as delicadas abóboras, que todos vão plantar e ninguém
planta; os alhos, tipos eternos, às vezes porros, da vivacidade bem
aproveitada; sem contar os arrepiados maxixes, nem as congestas berinjelas, nem
os mastruços inomináveis, nem os agriões amargos, nem os espinafres
insignificantes, nem o caruru, a bertalha, a trapoeraba dos banhos, que tem uma
flor galante, mas que afinal é mato. Horta paradisíaca que ufanava se de
cultivar! A distribuição dos prêmios mostraria.
Podia concluir voltando à vaca fria do louvor em
boca própria; preferiu uma simples bomba qualquer de retórica, porque o
mestrículo Venâncio ia também falar, e, na qualidade de pajem por dedicação,
disputava lhe sempre uma ponta para carregar do manto de glórias.
Seguiram se algumas peças da banda do Ateneu e os
hinos escolares.
Na parte concertante diziam que Aristarco mandara encartar
um solo de zabumba para exibir o genro. Caçoadas.
A premiação foi, como devia ser, exuberante.
Aristarco leu um relatório do movimento literário nos dois últimos anos.
Lembrou o nome dos alunos de medalhas de ouro e prata, desde a fundação da casa,
e convidou o secretário a evocar, por ordem de merecimento, os novos premiados.
Extensa lista. A cada nome descia um aluno, branco de emoção, atrapalhando os
passos; e transpunha a arena.
À esquerda do trono estava uma longa mesa, a que
sentavam se o Exmo. ministro do império e vários figurões da Instrução Pública.
Diante deles, a cavaleiro, encobrindo os, erguia se
uma pirâmide verde de coroas de carvalho, papel e arame, e outra de coroas de
ouro, idem, idem. Ouro para os de medalha; carvalho para o resto, em
quantidade.
No estrado, a pouca distância, ramas de livros
luxuosamente encadernados. O premiado recebia três, dois, um daqueles volumes,
a medalha, a menção honrosa, um sermãozinho amável do ministro, e saia com
tudo, zonzo.
Em caminho, pelas costas, à traição, um inspetor
enfiava lhe um dos diademas de papel; até os olhos, quando era grande demais; e
pior ainda quando era pequeno, porque o mísero laureado tinha de o agüentar em
equilíbrio até à bancada.
O público batia palmas, talvez ao prêmio, talvez à
sorte.
Ribas, o Mata Corcundinha, Nearco, o Saulo das
distinções e mais outro, alcançaram medalha de ouro. Rômulo, Malheiro, Clímaco
Sanches, Maurílio, Barreto, mais uns quinze, medalha de prata. Eu, o Egbert, o
Cruz da doutrina, o açafroado Barbalho, o Almeidinha, o Negrão e numerosíssimos
outros, a singela menção honrosa. Aos não contemplados, ficava a compensação de
desfazer raso na justiça distribuída.
Na massa dos convidados, diversas centenas de representantes
da boa sociedade, havia pessoas verdadeiramente notáveis: titulares de sólida
grandeza, argentários de mais sólidos títulos, vultos políticos de bela estampa
e tradições sonoras, uns exibindo à fronte as neves pensativas do hibernal
senado, outros a energia moça da câmara temporária, médicos celebrizados por
façanhas cirúrgicas, ou simplesmente pela vivissecção recíproca de mazelas em
pleno logradouro público dos "a pedidos".
Havia jornalistas, literatos, pintores,
compositores; entre as senhoras, acumuladas principalmente nas bancadas
especiais, distinguiam se perfis soberbos de rainha em toda a eflorescência da
formosura, que a claridade branda do lugar vaporizava idealmente; havia
ostentações de pedraria e vestuários que impressionavam; havia juventudes de
lábios e de olhar enervantes ou arrebatadores, morenas, forçando magicamente o
torpor da sesta sensual sob a carícia opressora de um pequenino pé vitorioso,
louras convidando a um enlace de transporte a nuvem, mais alto! ao retiro etéreo
onde vivem amor as estrelas duplas... Nada disso era o grande atrativo, nada
conseguia altear se para nós um palmo na perspectiva geral da multidão; o nosso
grande cuidado era o poeta, "o poeta!" murmurava o colégio, uns à
procura, outros indicando. Era aquele de pé, mão ao quadril, vistosamente, no
palanque do professorado, entornando para as duas bandas, sobre as pessoas mais
próximas, uma profusão assombrosa de suíças.
Dentre as suíças, como um gorjeio do bosque, saia
um belo nariz alexandrino de dois hemistíquios, artisticamente longo,
disfarçando o cavalete da cesura, tal qual os da última moda no Parnaso. À raiz
do poético apêndice brilhavam dois olhos vivíssimos, redondos, de coruja, como
os de Minerva. Tão vivos ao fundo das órbitas cavas, que bem se percebia ali
como deve brilhar o fundo na fisionomia da estrofe. O grande Dr. Ícaro de
Nascimento! Vinha ao Ateneu exclusivamente para declamar uma poesia famosa, que
havia algum tempo era o sucesso obrigado das festas escolares do Rio: O Mestre.
Logo depois dos prêmios, teve a palavra.
Durante meia hora houve uma coisa estranha: uma
convulsão angustiosa de barbas no espaço. Crescente. Desapareceu o poeta,
desapareceu o palanque, encheu se o anfiteatro, foi se o trono com a Alteza
Regente, a longa mesa com Aristarco e o Exmo. do império, enovelaram se as
arquibancadas, desapareceu tudo numa expansão incalculável de suíças, jubileu
de queixos. Ninguém mais se via, nada mais, no caos tormentoso de pêlos, onde
uma voz passava atroadora, carga tremenda de esquadrões pela noite espessa,
calcando versos como patadas, esmagando, rompendo avante.
Até que tornamos a ver o nariz. Acalmaram pouco a
pouco as barbas. Recolheram se como uma inundação que se retira. Estava acabada
a poesia. Ninguém percebeu palavra do berreiro, porém a impressão foi
formidável.
Depois de uma parte de concerto, que foi como
descanso reparador, seguiu se a oferta do basto. Teve a palavra o Professor
Venâncio.
Aristarco, na grande mesa, sofreu o segundo abalo
de terror daquela solenidade. Fez um esforço, preparou se. É preciso às vezes
tanta bravura para arrostar o encômio face a face, como as agressões. A própria
vaidade acovarda se. Venâncio ia falar: coragem! A oscilação do turíbulo pode
fazer enjôo. Ele receava uma coisa que talvez seja a enxaqueca dos deuses:
tonturas do muito incenso. Gostava do elogio, imensamente. Mas o Venâncio. era
demais. E ali, diante daquele mundo! Não importa! Viva o heroísmo.
Era conveniente postar se em atitude severa
bastante e olímpica, para corresponder à glorificação de Venâncio. Pronto.
O orador acumulou paciente todos os epítetos de
engrandecimento, desde o raro metal da sinceridade até o cobre dútil, cantante
das adulações. Fundiu a mistura numa fogueira de calorosas ênfases, e sobre a
massa bateu como um ciclope, longamente, até acentuar a imagem monumental do
diretor.
Aristarco depois do primeiro receio esquecia se na
delícia de uma metamorfose. Venâncio era o seu escultor.
A estátua não era mais uma aspiração: batiam na
ali. Ele sentia metalizar se a carne à medida que o Venâncio. falava.
Compreendia inversamente o prazer de transmutação da matéria bruta que a alma
artística penetra e anima: congelava lhe os membros uma frialdade de ferro; à
epiderme, nas mãos, na face, via, adivinhava reflexos desconhecidos de
polimento. Consolidavam se as dobras das roupas em modelagem resistente e fixa.
Sentia se estranhamente maciço por dentro, como se houvera bebido gesso.
Parava lhe o sangue nas artérias comprimidas. Perdia
a sensação da roupa; empedernia se, mineralizava se todo. Não era um ser
humano: era um corpo inorgânico, rochedo inerte, bloco metálico, escória de
fundição, forma de bronze, vivendo a vida exterior das esculturas, sem
consciência, sem individualidade, morto sobre a cadeira, oh, glória! mas feito
estátua.
"Coroemo lo!" bradou de súbito Venâncio.
Neste momento, o Clímaco estrategicamente postado,
puxou com força um cordão. Da capa verde dilacerada, emergiu a surpresa: o
busto da oferta. Um pouco de sol rasteiro, passando a lona, vinha de encomenda
estilhaçar se contra o metal novo.
— Coroemo lo! repetia Venâncio. num vendaval de
aclamações. E sacando da tribuna esplêndida coroa de louros, que ninguém vira,
colocou a sobre a figura.
Aristarco caiu em si. Referia se ao basto toda a
oração encomiástica de Venâncio. Nada para ele das belas apóstrofes! Teve
ciúmes. O gozo da metamorfose fora uma alucinação. O aclamado, o endeusado era
o busto: ele continuava a ser o pobre Aristarco, mortal, de carne e osso. O
próprio Venâncio. o fiel Venâncio. abandonava o. E por causa daquilo, daquela
coisa mesquinha sobre a peanha, aquele pedaço de Aristarco, que nem ao menos
era gente!
Mal acabou de falar o professor, viu se Aristarco
levantar se, atravessar freneticamente o espaço atapetado, arrancar a coroa de
louros ao busto.
Louvaram todos a magnanimidade da modéstia.
Mas o dia acabou insípido para o diretor. Ruminava
confusamente a tristeza daquela rivalidade nova — o bronze invencível.
Por que não usam os grandes homens, em vez de
poltronas, pedestais?
Que vale a estátua, se não somos nós? A adoção do
pedestal nas mobílias teria ao menos a vantagem de facilitar a provação da
glória, de vez em quando, da glória efetiva, glória atual, glória prática.
Tinha se ali a um canto a coluna. Era vir a
necessidade, nada mais fácil: galgava se a elevação, ensaiava se a postura,
esperava se imóvel que cedesse o espasmo. Mas... não! força era aceitar a
verdade amarga.
O monumento prescinde do herói, não o conhece,
demite o por substituição, sopeia o, anula o.
Com os diabos! Por que há de ser isto afinal a
imortalidade: um pedaço de mármore sobre um defunto?!
À noitinha retiravam se os convidados, as famílias
multidão confusa de alegrias e despeitos. As mães acariciando muito o filho sem
prêmio, os pais odiando o diretor, olhando como vencidos para os que passavam
satisfeitos, os outros pais, os colegas do filho, menos enfatuados da própria
vitória que da humilhação alheia.
Humilde, a um canto, à beira da corrente dos que
iam, pouco além da entrada do anfiteatro, mostraram me uma família de luto — a
família do Franco. O desembargador, de chapéu na mão, esquecendo de cobrir se:
homem baixo, fisionomia acabrunhada, longas barbas grisalhas, calvo, olhos
miúdos, pálpebras em bolsa.
Tinha vindo de Mato Grosso um ano mais tarde do que
pretendia. O correspondente dera a noticia.
Andava agora mostrando à família o Rio de Janeiro.
Viera a festa colegial, ao colégio do filho, para distrair a filha, a raptada,
que ali estava com a mãe e duas irmãs menores, muito pálida, delgada, num
idiotismo sombrio, insanável de melancolia e mudez, pestanas caídas, olhar na
terra, como quem pensa encontrar alguma coisa.
XII
Música estranha, na hora cálida. Devia ser
Gottschalk. Aquele esforço agonizante dos sons, lentos, pungidos, angústia
deliciosa de extremo gozo em que pode ficar a vida porque fora uma conclusão
triunfal. Notas graves, uma, uma; pausas de silêncio e treva em que o instrumento
sucumbe e logo um dia claro de renascença, que ilumina o mundo como o momento
fantástico do relâmpago, que a escuridão novamente abate...
Há reminiscências sonoras que ficam perpetuas, como
um eco do passado. Recorda me, às vezes, o piano, ressurge me aquela data.
Do fundo repouso caído de convalescente, serenidade
extenuada em que nos deixa a febre, infantilizados no enfraquecimento como a
recomeçar a vida, inermes contra a sensação por um requinte mórbido da
sensibilidade — eu aspirava a música como a embriaguez dulcíssima de um perfume
funesto; a música envolvia me num contágio de vibração, como se houvesse nervos
no ar. As notas distantes cresciam me n'alma em ressonância enorme de cisterna;
eu sofria, como das palpitações fortes do coração quando o sentimento exacerba
se — a sensualidade dissolvente dos sons.
Lasso, sobre os lençóis, em conforto ideal de
túmulo, que a vontade morrera, eu deixava martirizar me o encanto. A imaginação
de asas crescidas, fugia solta.
E reconhecia visões antigas, no teto da enfermaria,
no papel das paredes rosa desmaiado, cor própria, enferma e palejante... Aquele
rosto branco, cabelos de ondina, abertos ao meio, desatados, negríssimos,
desatados para os ombros, a adorada dos sete anos que me tivera uma estrofe, paródia
de um almanaque, valha a verdade, e que lhe fora entregue, sangrento escárnio!
pelo próprio noivo; outra igualmente clara, a pequenina, a morta, que eu
prezara tanto, cuja existência fora no mundo como o revoar das roupas que os
sonhos levam, como a frase fugitiva de um hino de anjos que o azul embebe...
Outras lembranças confusas, precipitadas, mutações macias, incansáveis de
nuvens, enlevando com a tonteira da elevação; lisas escapadas por um plano
oblíquo de vôo, oscilação de prodigioso aeróstato, serena, em plena
atmosfera...
Panoramas completos, uma partida, abraços,
lágrimas, o steamer preto, sobre a água esmeralda, inquieta e sem fundo, a
gradezinha de cordas brancas cercando a popa, os salva vidas como grandes
colares achatados, cabos que se perdiam para cima, correntes que se dissolviam
na espessura vítrea do mar; a câmara dourada, baixa, sufocante, o torvelinho
dos que se acomodam para ficar, dos que se apressam para descer aos
escaleres...
Uma janela. Embaixo, o coradouro, espaçoso; para diante
mangueiras arredondando a copa sombria na tela nítida do céu; além das
mangueiras, conglobações de cúmulos crescendo a olhos vistos, floresta colossal
de prata; de outro lado, montanhas arborizadas, expondo num ponto e noutro,
saliências peitorais de ferrugem como armaduras velhas. No coradouro
estendidas, peças de roupa, iriadas de sabão, meias compridas de ourela
vermelha, desenroladas na relva, saudosas da perna ausente, grandes lençóis,
vestidos rugosos de molhados; acima do coradouro, cordas, às cordas camisas
transparentes, decotadas, rendadas, sem manga, lacrimejando espaçadamente a
lavagem como se suassem ao sol a transpiração de muitas fadigas; saias brancas
que dançavam na brisa a lembrança coreográfica da soirée mais recente.
Quando o vento era mais forte, enfunava as roupas
estendidas, inflando ventres de mulher nas saias, nas camisas. Ângela aparecia.
Sempre no seu raio de sol, como as fadas no raio de lua. Saudava me à janela
com uma das exclamações vivas de menino surpreso. Sem paletó, às mãos,
empilhados, dois montes de roupa enxaguada. Ajudava a lavadeira para distrair
se. Falava olhando para cima, afrontando o dia sem cobrir os olhos.
Estava aborrecida, uma preguiça! uma preguiça! uma vontade
de deitar no colo! começava as infinitas histórias, narradas devagar, como
derretidas no lábio quente, muito repisadas, de quando era pequena, aventuras
da imigração, as casas onde trabalhara; contava as origens do drama do outro
ano... tratara de acomodar os dois para ver se as coisas chegavam a bom termo;
a desgraça não quis. Agora, para falar a verdade, gostava mais do que morreu. O
assassino era muito mau, exigia coisas dela como se fosse uma escrava; era
bruto, bruto. Mas era de Espanha, companheiros de viagem, e um homem bonito!
sacudido, eu bem tinha conhecido; mas judiava dela; batia, empurrava: olhe,
ainda tinha sinais, e levantava candidamente o vestido para mostrar, no joelho,
na coxa, cicatrizes, manchas antigas que eu não via absolutamente, nem ela.
Cessava a música...
As venezianas abertas davam entrada à claridade do
tempo. Entrava simultaneamente um burburinho imperceptível de árvores, falando
longe, gorjeios ciciados de pássaros, gritos humanos indistintamente, atenuados
pela imensa distância, marteladas miúdas de canteiro, tremor de carros nas
ruas, miniatura extrema de trovão, parcelas ínfimas da vida pulverizadas na
luz...
A porta da enfermaria descerrava se devagarinho e
na matinée de musselina elegante e frouxa aparecia a amável senhora. Vinha
verificar se eu dormia, saber como passava agora.
Bastava a sua presença para reanimar me no leito.
Tão boa, tão boa no seu carinho de enfermeira, de mãe.
Junto da cama, um velador modesto e uma cadeira.
Ema sentava se. Pousava os cotovelos à beira do colchão, o olhar nos meus olhos
— aquele olhar inolvidável, negro, profundo como um abismo, bordado pelas
seduções todas da vertigem. Eu não podia resistir, fechava as pálpebras; sentia
ainda na pálpebra com o hálito de velado a carícia daquela atenção.
Ao fim de algum tempo, a senhora, a ver se eu tinha
febre, demorava-me a pequenina mão sobre a testa, finíssima, fresca, deliciosa
como um diadema de felicidade.
Eu me perdia numa sonolência sem nome que jamais
lograram produzir os mais suaves vapores do narcotismo oriental.
Com o regime fortificante desta terapêutica,
voltava me rapidamente a saúde.
Logo depois da festa de educação física, que foi
alguns dias depois da grande solenidade dos prêmios, eu adoecera. Sarampos, sem
mais nem menos. Por motivo dos seus padecimentos, meu pai seguira para a
Europa, levando a família. Eu ficara no Ateneu, confiado ao diretor, como a um
correspondente.
Meia dúzia de rapazes eram meus companheiros. Que
terrível soledade o Ateneu deserto. No pátio, o silêncio dormia ao sol, como um
lagarto. Vagávamos, bocejando pelas salas desmontadas, despidas; as carteiras
amontoadas num canto, na caliça os pregos somente das cartas com alguns quadros
restantes de máximas, por maior insipidez, os mais teimosos conselhos morais.
Nos dormitórios, as camas desfeitas mostravam o esqueleto de ferro pintado, o
xadrez das chapas cruzadas. Principiava um serviço vasto de lavagem,
envernizagem, caiação; vieram pintores reformar os aspectos do edifício que se
renovavam todos os anos.
Os tristes reclusos das férias, ficávamos, no meio
daquela restauração geral, como coisas antigas, do outro ano, com o deplorável
inconveniente de se não poder caiar de novo e pintar.
Nesta situação, como do excesso de brilho das
paredes em sol, que debatiam fulgores na melancolia morna de circunvizinhança
dos morros, começaram a doer me os olhos até à lágrima, forrou me a língua um
sabor desagradável de castanhas cruas. Seria isso o gosto do aborrecimento?
Pesava me a cabeça, o corpo todo, como se eu me cobrisse de chumbo.
Assim passei alguns dias, sem me queixar. Certa
manhã, descubro no corpo um formigueiro de pintinhas rubras. Aristarco fez me
recolher na enfermaria, um prolongamento de sua residência para os lados da
natação. Veio o médico, o mesmo do Franco; não me matou. D. Ema foi para mim o
verdadeiro socorro. Sabia tanto zelar, animar, acariciar, que a própria agonia
aos cuidados do seu trato fora uma ressurreição.
A enfermaria era um simples lance da casa, espécie de
pavilhão lateral, com entrada independente pela chácara e comunicando por
dentro com as outras peças.
A senhora não deixava a enfermaria. Vigiava me o
sono, as crises de delírio, como uma irmã de caridade.
Aristarco surgia às vezes solenemente, sem demorar.
Ângela nunca. Fora lhe proibida a entrada
Junto da cama, D. Ema comovia se, mirando a
prostração pálida, ao reabrir os olhos de um desses períodos de sono dos
enfermos, que tão bem fingem de morte. Tirava me a mão, prendia nas dela tempo
esquecido; luzia lhe no olhar um brilho de pranto. A alimentação da dieta era
ela quem trazia, quem servia. Às vezes por gracejo carinhoso queria levar me
ela mesma o alimento à boca, a colherinha de sagu, que primeiro provava com um
adorável amuo de beijo. Se precisava andar no aposento para mudar um frasco,
entreabrir a janela, caminhava como uma sombra por um chão de paina.
Eu me sentia pequeno deliciosamente naquele circulo
de conchego como em um ninho.
Quando entrei em convalescença, a graciosa
enfermeira tornou se alegre. Às escondidas do médico, embriagava me, com aquela
medicina de risos, gargarejo inimitável de pérolas a todo pretexto. Tagarelava,
agitava se como um pássaro preso. Cantava, às vezes, para adormecer me, músicas
desconhecidas, tão finamente, tão sutilmente, que os sons morriam lhe quase nos
lábios, brandos como o adejo brando da borboleta que expira. Quando me julgava
adormecido, arranjava me ao ombro a colcha, alisando a sobre o corpo; uma vez
beijou me na têmpora. E retirava se, insensivelmente, evaporava se.
Por um acaso da distribuição acústica dos
compartimentos da casa, ouvia se bem, agradavelmente amaciado, o som do piano
do salão. A amável senhora, para mandar me da sua ausência alguma coisa ainda,
que acariciasse, que me fosse agradável, traduzia no teclado com a mesma
brandura sentida as musicas que sabia cantar. Nenhuma violência de execução.
Sentimento, apenas, sentimento, sucessão melódica de sons profundos, destacados
como o dobre, em novembro, dos bronzes; depois, uma enfiada brilhante de
lágrimas, colhidas num lago de repouso, final, sereno, consolado... efeitos
comoventes da música de Schopenhaeur; forma sem matéria, turba de espíritos
aéreos.
A primeira vez que me levantei, trêmulo da
fraqueza, Ema amparou me até à janela. Dez horas. Havia ainda a frescura
matinal na terra. Diante de nós o jardim virente, constelado de margaridas;
depois, um muro de hera, bambus à direita; uma zona do capinzal fronteiro;
depois, casas, torres, mais casas adiante, telhados ainda a distância, a
cidade. Tudo me parecia desconhecido, renovado. Curioso esplendor revestia
aquele espetáculo. Era a primeira vez que me encantavam assim aquelas gradações
de verde, o verde negro, de faiança, luzente da hera, o verde flutuante mais
claro dos bambus, o verde claríssimo do campo ao longe sobre o muro, em todo o
fulgor da manhã. Tetos de casas, que novidade! que novidade o perfil de uma
chaminé riscando o espaço! Ema entregava se, como eu, ao prazer dos olhos.
Sustinha me em leve enlace; tocava me com o quadril em descanso.
Absorvendo me na contemplação da manhã, penetrado
de ternura, inclinei a cabeça para o ombro de Ema, como um filho, entrecerrando
os cílios, vendo o campo, os tetos vermelhos como coisas sonhadas em
afastamento infinito, através de um tecido vibrante de luz e ouro.
Desde essa ocasião, fez se me desesperada
necessidade a companhia da boa senhora. Não! eu não amara nunca assim a minha
mãe. Ela andava agora em viagem por países remotos, como se não vivesse mais
para mim. Eu não sentia a falta. Não pensava nela... Escureceu me as
recordações aquele olhar negro, belo, poderoso, como se perdem as linhas, as
formas, os perfis, as tintas, de noite, no aniquilamento uniforme da sombra...
Bem pouco, um resto desfeito de saudades para aquela inércia intensa,
avassalando.
Apavorava me apenas um susto, alarma eterno dos
felizes, azedume insanável dos melhores dias: não fosse subitamente destruir se
a situação. A convalescença progredia; era um desgosto.
No pequeno aposento da enfermaria, encerrava se o
mundo para mim. O meu passado eram as lembranças do dia anterior, um especial
afago de Ema, uma atitude sedutora que se me firmava na memória como um painel
presente, as duas covinhas que eu beijava, que ela deixava dos cotovelos no
colchão premido, ao partir, depois da última visita à noite, em que ficava como
a esperar que eu dormisse, apoiando o rosto nas mãos, os braços na cama,
impondo me a letargia magnética do vasto olhar.
O meu futuro era o despertar precoce, a ansiada
esperança da primeira visita. Saltava da cama, abria imprudentemente a vidraça,
a veneziana. Ainda escuro. Uma luz em frente, longínqua, irradiava solitária,
reforçando pelo contraste a obscuridade. Por toda a parte firmamento limpo. O
mais completo silêncio. Dir se ia ouvir no silêncio azul das alturas a
crepitação das estrelas ardendo.
Eu tornava ao leito. Esperava. Não dormia mais. Ao
fim de muito tempo, entrava na enfermaria, vinha ter aos lençóis, de mansinho, como
uma insinuação derramada de leite, a primeira manifestação da alvorada. O
arvoredo movia se fora com um bulício progressivo de folhagem que acorda. A luz
meiga, receosa, desenvolvia se docemente pelo soalho, pelas paredes.
Havia no aposento um grande cromo de paisagem,
montanhas de neve no fundo, mais à vista, uma vivenda desmantelada, uma
cachoeira de anil e pinheiros espectrais, trabalhados, encanecidos por um
século de tormentas. A madrugada subia ao quadro, como se amanhecesse também na
região dos pinheiros. Eu esperando. A madrugada progredia.
Toucava se a vegetação de cores diurnas. Dialogava
o primeiro trilar da passarada. Eu esperando ainda. E ela vinha... com a
aurora.
Trouxe me uma vez uma carta, de Paris, de meu pai.
"... Salvar o momento presente. A regra moral
é a mesma da atividade Nada para amanhã, do que pode ser hoje; salvar o
presente Nada mais preocupe. O futuro é corruptor, o passado é dissolvente, só
a atualidade é forte. Saudade, uma covardia, apreensão outra covardia. O dia de
amanhã transige; o passado entristece e a tristeza afrouxa.
Saudade, apreensão, esperança, vãos fantasmas,
projeções inanes de miragem; vive apenas o instante atual e transitório. É
salvá lo! salvar o náufrago do tempo.
Quanto a linha de conduta: para diante. É a honesta
lógica das ações.
Para diante, na linha do dever, é o mesmo que para
cima. Em geral, a despesa de heroísmo é nenhuma. Pensa nisto. Para que a
mentira prevaleça, é mister um sistema completo de mentiras harmônicas. Não
mentir é simples.
... Estou numa grande cidade, interessante,
movimentada. As casas são mais altas que lá; em compensação, os tetos, mais
baixos. Dir se ia que o andar de cima esmaga nos. E como cada um tem sobre a
cabeça um vizinho mais pobre, parece que a opressão, aqui, pesa da miséria
sobre os ricos.
A agitação não me faz bem.
Abro a janela para o bulevar: uma efervescência de
animação, de ruído, de povo, a festa iluminada dos negócios, das tentativas,
das fortunas... Mas todos vêm, passam diante de mim, afastam se, desaparecem.
Que espetáculo para um doente. Parece que é a vida que foge.
Dou-te a minha bênção..."
Momento presente... Eu tinha ainda contra a face a
mão que me dera a carta; contra a face, contra os lábios, venturosamente,
ardentemente, como se fosse aquilo o momento, como se bebesse na linda concha
da palma o gozo imortal da viva verdade.
"Ah! tem ainda um pai", disse Ema,
"uma querida mãe, irmãos que o amam... Eu nada tenho; todos mortos...
Aparecem me às vezes à noite... sombras. Ninguém por mim. Nesta casa sou
demais... Deixemos essas coisas.
Não sabe o que é um coração isolado como eu...
Todos mentem. Os que se aproximam são os mais traidores..."
A convivência cotidiana na solidão do aposento estabelecera
a entranhada familiaridade dos casais.
Ema afetava não ter mais para mim avarezas de
colchete. "Sérgio meu filhinho." Dava me os bons dias. Sala, voltava
fresca, com o grande, vernal sorriso rorejado ainda do orvalho das abluções.
Rindo sem causa: da claridade feliz da manhã, de me ver forte, quase bom.
Debruçava se expansiva, resplendendo a formosura
sobre mim, na gola do peignoir, como um derramamento de flores de uma
cornucópia.
Tomava me a fronte nas mãos, colava à dela;
arredava se um pouco e olhava me de perto, bem dentro dos olhos, num encontro
inebriante de olhares. Aproximava o rosto e contava, lábios sobre lábios,
mimosas historietas sem texto, em que falava mais a vivacidade sangüínea da
boca, do que a imperceptível confusão de arrulhos cantando lhe na garganta como
um colar sonoro.
Achava me pequenino, pequenino. Sentava se à
cadeira. Tomava me ao colo, acalentava me, agitava me contra o seio como um
recém nascido, inundando me de irradiações quentes de maternidade, de amor. Desprendia
os cabelos e com um ligeiro movimento de espáduas fazia cair sobre mim uma
tenda escura. De cima, sobre as faces, chegava me o bafejo tépido da
respiração. Eu via, ao fundo da tenda, incerto como em sonhos, a fulguração
sideral de dois olhos.
E fora preciso que soubesse ferir o coração e
escrever com a própria vida uma página de sangue para fazer a história dos dias
que vieram, os últimos dias...
E tudo acabou com um fim brusco de mau romance...
Um grito súbito fez me estremecer no leito: fogo!
fogo! Abri violentamente a janela. O Ateneu ardia.
As chamas elevavam se por cima do chalé, na direção
do edifício principal. Imenso globo de fumo convulsionava se nos ares,
tenebroso da parte de cima, que parecia chegar ao céu, iluminado inferiormente
por um clarão cor de cobre.
Na casa de Aristarco reinava o maior silêncio.
As portas abertas, todos tinham saído. Precipitei
me para fora da enfermaria.
Entre os reclusos das férias, contava se um rapaz,
matriculado de pouco, o Américo. Vinha da roça. Mostrou se contrariado desde o
primeiro dia. Aristarco tentou abrandá lo; impossível: cada vez mais enfezado.
Não falava a ninguém. Era já crescido e parecia de robustez não comum. Olhavam
todos para ele como para uma fera respeitável. De repente desapareceu. Passado
algum tempo vieram três pessoas reconduzindo o: o pai, o correspondente e um
criado. O rapaz, amarelo, com manchas vermelhas, movediças, no rosto, mordia os
beiços até ferir. O pai pediu contra ele toda a severidade. Aristarco, que
tinha veleidades de amansador, gloriando se de saber combinar irresistivelmente
a energia com o modo amoroso, tranqüilizou o fazendeiro: "Tenho visto
piores".
Carregando a vista com toda a intensidade da força moral,
segurou o discípulo rijamente pelo braço e fê lo sentar se. "Tu ficarás,
meu filho!" O moço limitou se a responder, cabisbaixo, possuído de
repentina complacência: "Eu fico". Dizem que o pai o tratava
terrivelmente, vendo o apresentar se em casa, evadido.
Com a proximidade da festa dos prêmios o caso do
desertor ficou esquecido, e ninguém foi jamais como ele exemplo de cordura.
Ardia efetivamente o Ateneu. Transpus a correr a
porta de comunicação entre a casa de Aristarco e o colégio.
Não havia ainda começado serviço sério de extinção.
A maior parte dos criados eram licenciados por ocasião das férias; os poucos
restantes andavam como doidos, incertos, gritando: fogo!
Fui achar Aristarco no terraço lateral, agitado,
bradando pelas bombas, que estava perdido, que aquilo era a sua completa
desgraça! Ao redor dele pessoas do povo, que tinham acudido, trabalhavam para
salvar o escritório, antes que viessem as chamas.
O incêndio principiara no saguão das bacias.
Por maior incremento no desastre, ardia também, no
pátio, uma porção de madeira que ficara das arquibancadas, aquecendo as paredes
próximas, ressecando o travejamento, favorecendo a propagação do fogo
O susto de tal maneira me surpreendera, que eu não
tinha exata consciência do momento Esquecia me a ver os dragões dourados
revoando sobre o Ateneu as salamandras imensas de fumaça arrancando para a
altura, desdobrando contorções monstruosas, mergulhando na sombra cem metros
acima
O jardim era invadido pela multidão; vociferavam
lamentações, clamavam por socorro. Dominando a confusão das vozes, ouvia se o
apito da policia em alarma, cortante, elétrico, e o rebate plangente de um
sino, a distância, como o desanimo de um paralítico que quisera vir.
O fogo crescia ímpetos de entusiasmo, como alegrado
dos próprios clarões, desfeiteando a noite com a vergasta das labaredas
Sobre o pátio, sobre o jardim, por toda a
circunvizinhança choviam fagulhas, contrastando a mansidão da queda com os
tempestuosos arrojos do incêndio Por toda a parte caiam escórias incineradas,
que a atmosfera flagrante repetia para longe como folhas secas de imensa árvore
sacudida
Quando as bombas apareceram, desde muito tinham
começado os desabamentos De instante a instante um estrondo prolongado de
descarga, às vezes surdo, agitando o solo como explosões subterrâneas. Às
vezes, a um novo alento das chamas, a coluna ardente desenvolvia se muito, e
avistavam se as árvores terrificadas, imóveis, as mais próximas crestadas pelas
ondas de ar tórrido que o incêndio despedia As alamedas, subitamente
esclarecidas, multiplicavam as caras lívidas, olhando Na rua, ouvia se arquejar
pressurosamente uma bomba a vapor; as mangueiras, como intermináveis serpentes,
insinuavam se pelo chão, colavam se às paredes, desapareciam por uma janela Nas
cimalhas, destacando se em silhueta, sobre as cores terríveis do incêndio,
moviam se os bombeiros
Perdido completamente o lance principal do edifício
sala de entrada, capela, dormitórios todos da primeira e da segunda classes.
Uma turma de salvação procurava isolar o refeitório e as salas próximas,
entregando se a um serviço completo de vandalismo, abatendo o telhado, cortando
o vigamento, destruindo a mobília.
Para o terraço lateral, onde conservava se
Aristarco, impassível sob a chuva chamuscante das fagulhas, chegavam
continuamente os destroços miserandos da salvação: armários despedaçados,
aparelhos, quadros de ensino inutilizados, mil fragmentos irreconhecíveis de
pedagogia sapecada.
A frente do Ateneu apresentava o aspecto mais terrível.
De vários pontos do telhado, semelhando colunas torcidas, espiralavam grossas
erupções de fumo: às janelas superiores o fumo irrompia também por braços
imensos, que pareciam suster a mole incalculável de vapores no alto. Com a
falta de vento, as nuvens, acumuladas e comprimidas, pareciam consolidar se em
vaporosos rochedos inquietos. As janelas do primeiro andar as chamas apareciam,
tisnando os umbrais, enegrecendo as vergas. Tratadas a fogo, as vidraças
estalavam. Distinguia se na tempestade de rumores o barulho cristalino dos
vidros na pedra das sacadas, como brindes perdidos da saturnal da devastação.
Nos lugares ainda não alcançados, bombeiros e
outros dedicados arremessavam para fora camas de ferro, trastes diversos,
veladores, que vinham espatifar se no jardim, com um fracasso esmagamento. As
imagens da capela tinham sido salvas no principio do incêndio. Estavam
enfileiradas ao sereno, a beira de um gramal, voltadas para o edifício como
entretidas a ver. A Virgem da Conceição chorava. Santo Antônio, com o menino
Jesus ao colo, era o mais abstrato, equilibrando a custo um resplendor
desproporcional, oferecendo ante os terrores a amostra de impassibilidade do
sorriso palerma, que lhe emprestara um santeiro pulha.
O trabalho das bombas, nesse tempo das
circunscrições lendárias, era uma vergonha. Os incêndios acabavam de cansaço. A
simples presença do Coronel irritava as chamas, como uma impertinência de
petróleo. Notava se que o incêndio cedia mais facilmente sem o empenho dos
profissionais do esguicho.
No sinistro do Ateneu a coisa foi evidente. Depois
das bombas, a violência das chamas chegou ao auge. Do interior do prédio, como
das entranhas de um animal que morre, exalava se um rugido surdo e vasto. Pelas
janelas, sem batentes, sem bandeira, sem vidraça, estaladas, carbonizadas, via
se arder o teto; desmembrava se o telhado, furando se bocas hiantes para a
noite. Os barrotes, acima de invisíveis braseiros, como animados pela dor,
recurvavam crispações terríveis precipitando se no sumidouro.
No meio da multidão comentava se, explicava se,
definia se o incêndio.
"Que felicidade ser o desastre em tempo de
férias! —Dizem que foi proposital..." Afirmava se que o fogo começara de
uma sala onde estavam em pilha os colchões, retirados para a lavagem da casa.
Diziam que começara simultaneamente de vários cantos, por arrombamentos do tubo
de gás perto do soalho. Alguns suspeitavam de Aristarco e aventuravam
considerações a respeito das circunstâncias financeiras do estabelecimento e do
luxo do diretor.
A notícia do incêndio, apesar da hora, espalhara se
em grande parte da cidade. Nas ruas do arrabalde havia um movimento de festa.
Grande número de alunos tinham concorrido a testemunhar. Alguns empenhavam se
com bravura no serviço. Outros cercavam o diretor, em silêncio, ou fazendo
exclamações sem nexo e manifestando os sintomas da mais perigosa desolação.
Aristarco, que se desesperava a principio, refletiu
que o desespero não convinha à dignidade. Recebia com toda a calma as pessoas
importantes que o procuravam, autoridades, amigos, esforçados em minorar lhe a
mágoa com o lenitivo profícuo dos oferecimentos. Afrontava a desgraça
soberanamente, contemplando o aniquilamento de sua fortuna com a tranqüilidade
das grandes vitimas.
Aceitava o rigor da sorte.
"Et
comme il voit en nous des âmes peu communes
Hors de l'ordre commun il nous fait des
fortunes."
.........................................................
Depois de algumas horas de sono, voltei ao colégio.
O fogo abatera. Parte da casa tinha escapado. Refeitório, cozinha, copa, uma ou
duas salas. Foram respeitados os pavilhões independentes, do pátio. Funcionavam
ainda as bombas, refrescando o entalho carbonizado e as paredes. De todos os
lados, como de extensa solfatara, nasciam filetes de fumaça, mantendo um
nevoeiro terroso e um cheiro forte de madeiras queimadas. As paredes mestras
sustentavam se firmes, varadas de janelas, como arrombamentos iguais,
negrejantes como da ação continua de muitas idades de ruína.
Sobre as paredes internas que restavam,
equilibravam se pontas de vigamento, revestidas de um bolor claro de cinza,
tições enormes, apagados. Na atmosfera luminosa da manhã flutuava o sossego
fúnebre que vem no dia seguinte sobre o teatro de um grande desastre.
Informaram me de coisas extraordinárias. O incêndio
fora propositalmente lançado pelo Américo, que para isso rompera o encanamento
do gás no saguão das bacias. Desaparecera depois do atentado.
Desaparecera igualmente durante o incêndio a
senhora do diretor.
Dirigi me para o terraço de mármore do outão. Lá
estava Aristarco, tresnoitado, o infeliz. No jardim continuava a multidão dos
basbaques. Algumas famílias em toilette matinal, passeavam. Em redor do diretor
muitos discípulos tinham ficado desde a véspera, inabaláveis e compadecidos. Lá
estava, a uma cadeira em que passara a noite, imóvel, absorto, sujo de cinza
como um penitente, o pé direito sobre um monte enorme de carvões, o cotovelo
espetado na perna, a grande mão felpuda envolvendo o queixo, dedos perdidos no
bigode branco, sobrolho carregado.
Falavam do incendiário. Imóvel! Contavam que não se
achava a senhora. Imóvel! A própria senhora com quem ele contava para o jardim
de crianças! Dor veneranda! Indiferença suprema dos sofrimentos excepcionais!
Majestade inerte do cedro fulminado! Ele pertencia ao monopólio da mágoa. O
Ateneu devastado! O seu trabalho perdido, a conquista inapreciável dos seus
esforços!... Em paz!... Não era um homem aquilo; era um de profundis.
Lá estava; em roda amontoavam se figuras torradas
de geometria, aparelhos de cosmografia partidos, enormes cartas murais em
tiras, queimadas, enxovalhadas, vísceras dispersas das lições de anatomia,
gravuras quebradas da história santa em quadros, cronologias da história pátria,
ilustrações zoológicas, preceitos morais pelo ladrilho, como ensinamentos
perdidos, esferas terrestres contundidas, esferas celestes rachadas; borra,
chamusco por cima de tudo: despojos negros da vida, da história, da crença
tradicional, da vegetação de outro tempo, lascas de continentes calcinados,
planetas exorbitados de uma astronomia morta, sóis de ouro destronados e
incinerados...
Ele, como um deus caipora, triste, sobre o desastre
universal de sua obra.
Aqui suspendo a crônica das saudades. Saudades
verdadeiramente? Puras recordações, saudades talvez se ponderarmos que o tempo
é a ocasião passageira dos fatos, mas sobretudo — o funeral para sempre das
horas.
Rio de
Janeiro, março de 1888.
Núcleo
de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística