LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio
eletrônico
O Mulato, de Aluízio de Azevedo
Edição de
Referência:
A Biblioteca Virtual do Estudante
Brasileiro
I
Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade
de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia
sair à rua: as pedras escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol
como enormes diamantes, as paredes tinham reverberações de prata polida as
folhas das árvores nem se mexiam as carroças de água passavam ruidosamente a
todo o instante, abalando os prédios; e os aguadeiros, em mangas de camisa e
pernas arregaçadas, invadiam sem cerimônia as casas para encher as banheiras e
os potes. Em certos pontos não se encontrava viva alma na rua; tudo estava
concentrado, adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou
andavam no ganho.
A Praça da Alegria apresentava um ar fúnebre. De um
casebre miserável, de porta e janela, ouviam-se gemer os armadores enferrujados
de uma rede e uma voz tísica e aflautada de mulher, cantar em falsete a
"gentil Carolina era bela", doutro lado da praça, uma preta velha,
vergada por imenso tabuleiro de madeira, sujo, seboso, cheio de sangue e
coberto por uma nuvem de moscas, apregoava em tom muito arrastado e
melancólico: "Fígado, rins e coração!'' Era uma vendedeira de fatos de
boi. As crianças nuas, com as perninhas tortas pelo costume de cavalgar as
ilhargas maternas, as cabeças avermelhadas pelo sol, a pele crestada os
ventrezinhos amarelentos e crescidos, corriam e guinchavam, empinando papagaios
de papel. Um ou outro branco, levado pela necessidade de sair, atravessava a
rua, suado vermelho afogueado, à sombra de um enorme chapéu-de-sol. Os cães,
estendidos pelas calcadas, tinham uivos que pareciam gemidos humanos,
movimentos irascíveis, mordiam o ar querendo morder os mosquitos. Ao longe,
para as bandas de São Pantaleão, ouvia-se apregoar: "Arroz de Veneza!
Mangas! Macajubas!" Às esquinas, nas quitandas vazias, fermentava um
cheiro acre de sabão da terra e aguardente. O quitandeiro, assentado sobre o
balcão, cochilava a sua preguiça morrinhenta, acariciando o seu imenso e
espalmado pé descalço. Da, Praia de Santo Antônio enchiam toda a cidade os sons
invariáveis e monótonos de uma buzina, anunciando que os pescadores chegavam do
mar; para lá convergiam, apressadas e cheias de interesse, as peixeiras, quase
todas negras, muito gordas, o tabuleiro na cabeça, rebolando os grossos quadris
trêmulos e as tetas opulentas.
A Praia Grande e a Rua da Estrela contrastavam
todavia com o resto da cidade, porque era aquela hora justamente a de maior
movimento comercial. Em todas as direções cruzavam-se homens esbofados e rubros
cruzavam-se os negros no carreto e os caixeiros que estavam em serviço na rua;
avultavam os paletós-sacos, de brim pardo, mosqueados nas espáduas e nos
sovacos por grandes manchas de suor. Os corretores de escravos examinavam à
plena luz do sol, os negros e moleques que ali estavam para ser vendidos;
revistavam-lhes os dentes, os pés e as virilhas; faziam-lhes perguntas sobre
perguntas; batiam-lhes com a biqueira do chapéu nos ombros e nas coxas,
experimentando-lhes o vigor da musculatura como se estivessem a comprar
cavalos. Na Casa da Praça, debaixo das amendoeiras, nas portadas dos armazéns,
entre pilhas de caixões de cebolas e batatas portuguesas discutiam-se o câmbio,
o prego do algodão, a taxa do açúcar, a tarifa dos gêneros nacionais; volumosos
comendadores resolviam negócios, faziam transações perdiam, ganhavam tratavam
de embarrilar uns aos outros, com muita manha de gente de negócios falando numa
gíria só deles trocando chalaças pesadas, mas em plena confiança de amizade Os
leiloeiros cantavam em voz alta o preço das mercadorias, com um abrimento
afetado de vogais; diziam: "Mal-rais " em vez de mil-réis. À porta
dos leilões aglomeravam-se os que queriam comprar e os simples curiosos. Corria
um quente e grosseiro zunzum de feira.
O leiloeiro tinha piscos de olhos significativos;
de martelo em punho, entusiasmado, o ar trágico, mostrava com o braço erguido
um cálice de cachaça, ou, comicamente acocorado esbrocava com o furador os
paneiros de farinha e de milho. E, quando chegava a ocasião de ceder a fazenda,
repetia o preço muitas vezes, gritando, e afinal batia o martelo com grande
barulho, arrastando a voz em um tom cantado e estridente.
Viam-se deslizar pela praça os imponentes e
monstruosos abdomens dos capitalistas; viam-se cabeças escarlates e
descabeladas, gotejando suor por debaixo do chapéu de pelo; risinhos de
proteção, bocas sem bigode dilatadas pelo calor, perninhas espertas e suadas na
calça de brim de Hamburgo. E toda esta atividade, posto que um tanto fingida,
era geral e comunicativa; até os ricos ociosos, que iam para ali encher o dia,
e os caixeiros, que "faziam cera" até os próprios vadios
desempregados, aparentavam diligência e prontidão.
A varanda do sobrado de Manuel Pescada, uma varanda
larga e sem forro no teto, deixando ver as ripas e os caibros que sustentavam
as telhas. tinha um aspecto mais ou menos pitoresco com a sua bela vista sobre
o rio Bacanga e as suas rótulas pintadas de verde-paris. Toda ela abria para o
quintal, estreito e longo, onde, à mingua de sol, se minavam duas tristes
pitangueiras e passeava solenemente um pavão da terra.
As paredes, barradas de azulejos portugueses e,
para o alto, cobertas de papel pintado, mostravam, nos seus desenhos repetidos
de assuntos de caça, alguns lugares sem tinta, cujas manchas brancacentas
traziam à idéia joelheiras de calças surradas. Ao lado, dominando a mesa de
jantar, aprumava-se um velho armário de jacarandá polido, muito bem tratado,
com as vidraças bem limpas, expondo as pratas e as porcelanas de gosto moderno;
a um canto dormia, esquecida na sua caixa de pinho envernizado, uma máquina de
costura de Wilson, das primeiras que chegaram ao Maranhão; nos intervalos das
portas simetrizavam-se quatro estudos de Julien, representando em litografia as
estações do ano; defronte do guarda-louça um relógio de corrente embalava
melancolicamente a sua pêndula do tamanho de um prato e apontava para as duas
horas. Duas horas da tarde.
Não obstante, ainda permanecia sobre a mesa a louça
que servira ao almoço. Uma garrafa branca, com uns restos de vinho de Lisboa
cintilava à claridade reverberante que vinha do quintal. De uma gaiola,
dependurada entre as janelas desse lado, chilreava um sabiá.
Fazia preguiça estar ali. A viração do Bacanga
refrescava o ar da varanda e dava ao ambiente um tom momo e aprazível. Havia a
quietação dos dias inúteis, uma vontade lassa de fechar os olhos e esticar as
pernas. Lá defronte, nas margens apostas do do, a silenciosa vegetação do Anjo
da Guarda estava a provocar boas sestas sobre o capim, debaixo das mangueiras;
as árvores pareciam abrir de longe os braços, chamando a gente para a calma
tepidez das suas sombras.
— Então, Ana Rosa, que me respondes?... disse
Manuel esticando se mais na cadeira em que se achava assentado, à cabeceira da
mesa, em frente da filha Bem sabes que te não contrario... desejo este
casamento, desejo... mas. em primeiro lugar, convém saber se ele e do teu
gosto... Vamos.., fala!
Ana Rosa não respondeu e continuou muito embebida,
como estava, rolar sob a ponta cor-de-rosa dos seus dedos as migalhas de pão
que ia encontrando sobre a toalha.
Manuel Pedro da Silva, mais conhecido por Manuel
Pescada, era um português de uns cinqüenta anos, forte, vermelho e trabalhador.
Diziam-no afilado para o comércio e amigo do Brasil. Gostava da sua leitura nas
horas de descanso, assinava respeitosamente os jornais sérios da província e
recebia alguns de Lisboa. Em pequeno meteram-lhe na cabeça vários trechos do
Camões e não lhe esconderam de todo o nome de outros poetas. Prezava com
fanatismo o Marquês de Pombal, de quem sabia muitas anedotas e tinha uma
assinatura no Gabinete Português, a qual lhe aproveitava menos a ele do que à
filha, que era perdida pelo romance.
Manuel Pedro fora casado com uma senhora de
Alcântara chamada Mariana muito virtuosa e como a melhor parte das maranhenses
extremada em pontos de religião; quando morreu, deixou em legado seis escravos
a Nossa Senhora do Carmo.
Bem triste foi essa época tanto para o viúvo como
para a filha orfanada, coitadinha, justamente quando mais precisava do amparo
maternal. Nesse tempo moravam no Caminho Grande, numa casinha térrea para onde
a moléstia de Mariana os levara em busca de ares mais benignos; Manuel, porem,
que era já então negociante e tinha o seu armazém na Praia Grande mudou-se logo
com a pequena para o sobrado da Rua da Estrela, em cujas lojas prosperava,
havia dez anos, no comércio de fazendas por atacado.
Para não ficar só com a filha "que se fazia
uma mulher" convidou a sogra D. Maria Bárbara a abandonar o sitio em que
vivia e ir morar t com ele e mais a neta "A menina precisava de alguém que
a guiasse, que a conduzisse! Um homem nunca podia servir para essas coisas! E,
se fosse a meter em casa uma preceptora — Meu bom Jesus! — que não diriam por
ai?... No Maranhão falava-se de tudo! D. Maria Bárbara que se decidisse a
deixar o mato e fosse de moda para a Rua da Estrelas! Não teria que se
arrepender... havia de estar como em sua própria casa — bom quarto, boa mesa, e
plena liberdade!"
A velha aceitou e lá foi, arrastando os seus
cinqüenta e tantos anos, alojar-se em casa do genro. com um batalhão de
moleques, suas crias, e com os cacaréus ainda do tempo do defunto marido. Em
breve, porém, o bom português estava arrependido do passo que dera: D. Maria
Bárbara apesar de muito piedosa; apesar de não sair do quarto sem vir bem
penteada, sem lhe faltar nenhum dos cachinhos de seda preta, com que ela
emoldurava disparatadamente o rosto enrugado e macilento; apesar do seu grande
fervor pela igreja e apesar das missas que papava por dia, D Mana Bárbara, apesar
de tudo isso, saira-lhe "má dona de casa".
Era uma fúria! Uma víbora! Dava nos escravos por
hábito e por gosto; só falava a gritar e, quando se punha a ralhar, — Deus nos
acuda! — incomodava toda a vizinhança! Insuportável!
Maria Bárbara tinha o verdadeiro tipo das velhas
maranhenses criadas na fazenda Tratava muito dos avós, quase todos portugueses;
muito orgulhosa; muito cheia de escrúpulos de sangue Quando falava nos pretos
dizia "Os sujos" e quando se referia a um mulato dizia "O
cabra". Sempre fora assim e como devota, não havia outra: Em Alcântara
tivera uma capela de Santa Bárbara e obrigava a sua escravatura a rezar ai
todas as noites. em coro de braços abertos às vezes algemados Lembrava-se com
grandes suspiros do marido "do seu João Hipólito" um português fino,
de olhos azuis e cabelos louros.
Este João Hipólito foi brasileiro adotivo e chegou
a fazer alguma posição na secretaria do governo da província Morreu com o posto
de coronel.
Maria Bárbara tinha grande admiração pelos
portugueses, dedicava-lhes um entusiasmo sem limites, preferia-os em tudo aos
brasileiros. Quando a filha foi pedida por Manuel Pedro, então principiante no
comércio da capital, ela dissera: "Bem! Ao menos tenho a certeza de que é
branco!"
Mas o Pescada não compreendeu a esposa, nem foi
amado por ela; a virtude, ou talvez simplesmente a maternidade, apenas
conseguiu fazer de Mariana uma companheira fie!; viveu exclusivamente para a
filha. É que a desgraçada, desde os quinze anos, ainda no irresponsável
arrebatamento do primeiro amor, havia eleito já o homem a quem sua alma teria
de pertencer por toda a vida. Esse homem existe hoje na história do Maranhão,
era o agitador José Candido de Moraes e Silva conhecido popularmente pelo
"Farol". Fez todo o possível para casar com ele, mas foram baldados
os seus esforços, nem só em virtude das perseguições políticas que, tão cedo,
atribularam a curta existência daquela fenomenal criatura, como também pela
inflexível oposição que tal idéia encontrou na própria família da rapariga.
Entretanto, o destino dela se havia prendido à
sorte do desventurado maranhense. Quem diria que aquela pobre moça, nascida e
criada nos sertões do Norte, sentiria, como qualquer filha das grandes capitais,
a mágica influência que os homens superiores exercem sobre o espírito feminino?
Amou-o, sem saber por que. Sentira-lhe a força dominadora do olhar, os ímpetos
revolucionários do seu caráter americano, o heroismo patriótico da sua
individualidade tão superior ao meio em que floresceu; decorara-lhe as frases
apaixonadas e vibrantes de indignação, com que ele fulminava os exploradores da
sua pátria estremecida e os inimigos da integridade nacional; e tudo isso, sem
que ela soubesse explicar, arrebatou-a para o belo e destemido moço com todo o
ardor do seu primeiro desejo de mulher.
Quando, na Rua dos Remédios, que nesse tempo era
ainda um arrabalde, o desditoso herói, apenas com pouco mais de vinte e cinco
anos de idade sucumbiu ao jugo do seu próprio talento e da sua honra política,
oculto, foragido, cheio de miséria, odiado por uns como um assassino e adorado
por outros como um deus, a pobre senhora deixou-se possuir de uma grande
tristeza e foi enfraquecendo e ficando doente. e ficando feia e cada vez mais
triste, até morrer silenciosamente poucos anos depois do seu amado.
Ana Rosa não chegou a conhecer o Farol; a mãe porem
muito em segredo, ensinara-lhe a compreender e respeitar a memória do talentoso
revolucionário, cujo nome de guerra despertava ainda, entre os portugueses, a
raiva antiga do motim de 7 de agosto de 1831. "Minha filha, disse-lhe a
infeliz já nas vésperas da morte, não consintas nunca que te casem, sem que
ames deveras o homem a ti destinado para marido. Não te cases no ar! Lembra-te
que o casamento deve ser sempre a conseqüencia de duas inclinações
irresistíveis. A gente deve casar porque ama, e não ter de amar porque casou Se
fizeres o que te digo, serás feliz!" Concluiu pedindo-lhe que prometesse,
caso algum dia viessem a constrangê-la a aceitar mando contra seu gosto,
arrostar tudo, tudo, para evitar semelhante desgraça, principalmente se então
Ana Rosa já gostasse doutro; e por este, sim. fosse quem fosse, cometesse os
maiores sacrficíos, arriscasse a própria vida, porque era nisso que consistia a
verdadeira honestidade de uma moça.
E mais não foram os conselhos que Mariana deu à
filha. Ana Rosa era criança. não os compreendeu logo, nem tão cedo procuro
compreendê-los; mas, tão estavam eles eles morte da mãe que a idéia desta não
lhe acudia à memória sem as palavras da moribunda.
Manuel Pedro, apesar de bom, era um desses homens
mais que alheados as sutilezas do sentimento; para outra mulher daria talvez um
excelente esposo, não para aquela, cuja sensibilidade romântica, longe de o
comover havia muita vez de importuná-lo. Quando se achou viúvo não sentiu, a
despeito da sua natural bondade, mais do que certo desgosto pela ausência de
uma companheira com que já se tinha habituado- contudo, não pensou em tornar a
casar, convencido de que o afeto da filha lhe chegaria de sobra para amenizar
as canseiras do trabalho, e que o auxílio imediato da sagra bastaria para
garantir a decência da sua casa e a boa regra das suas despesas domésticas.
Ana Rosa cresceu pois, como se vê, entre os
desvelos insuficientes do pai e o mau gênio da avó. Ainda assim aprendera de
cor a gramática do Sotero dos Reis; lera alguma coisa; sabia rudimentos de
francês e tocava modinhas sentimentais ao violão e ao piano Não era estúpida;
tinha a intuição perfeita da virtude, um modo bonito, e por vezes lamentara não
ser mais instruída. Conhecia muitos trabalhos de agulha: bordava como poucas, e
dispunha de uma gargantazinha de contralto que fazia gosto ouvir.
Tanto assim que, em pequena, servira várias vezes
de anjo da verônica nas procissões da quaresma E os cônegos da Sé gabavam-lhe o
metal da voz e davam-lhe grandes cartuchos de amêndoas de mendubim, muito
enfeitados nas suas pinturas, toscas e características, feitas a goma-arábica e
tintas de botica. Nessas ocasiões ela sentia-se radiante, com as faces
carminadas, a cabeça coberta de cachos artificiais, grande roda no vestido
curto, a jeito de dançarina E, muito concha, ufana dos seus galões de prata e
ouro e das suas trêmulas asas de papelão e escumillha, caminhava triunfante e
feliz no meio do cordão das irmandades religiosas, segurando a extremidade de
um lenço do qual o pai segurava a outra. Isto eram promessas feitas pela mãe ou
pela avó em dias de grande enfermidade na família.
E crescera sempre bonita de formas. Tinha os olhos
pretos e os cabelos castanhos de Mariana e puxara ao pai as rijezas de corpo e
os dentes fortes Com a aproximação da puberdade apareceram-lhe caprichos
românticos e fantasias poéticas: gostava dos passeios ao luar, das serenatas;
arranjou ao lado do seu quarto um gabinete de estudo, uma bibliotecazinha de
poetas e romancistas; tinha um Paulo e Virgínia de biscuit sobre a estante e,
escondido por detrás de um espelho, o retrato do Farol, que herdara de Mariana.
Lera com entusiasmo a Graziela de Lamartine Chorou
muito com essa leitura e, desdaí, todas as noites, antes de adormecer,
procurava instintivamente imitar o sorriso de inocência que a procitana
oferecia ao seu amante. Praticava bem com os pobres. adorava os passarinhos e não
podia ver matar perto de si uma borboleta Era um bocadinho supersticiosa: não
queda as chinelas emborcadas debaixo da rede e só aparava os cabelos durante o
quarto crescente da lua. "Não que acreditasse nessas coisas",
justificava-se ela, "mas fazia porque os outros faziam. " Sobre a
cômoda, havia muito tempo, tinha uma estampa litográfica e colorida de Nossa
Senhora dos Remédios e rezava-lhe todas as noites, antes de dormir Nada
conhecia melhor e mais agradável do que um passeio ao Cutim, e, quando soube
que se projetava uma linha de bondes até lá, teve uma satisfação violenta e
nervosa.
Feitos os quinze anos, ela começou pouco e pouco a
descobrir em si estranhas mudanças; percebeu, sentiu que uma transformação
importante se operava no seu espírito e no seu corpo: sobressatavam-na terrores
acometiam-na tristezas sem sem motificável. Um dia, afinal, acordou mais
preocupada; assentou-se na rede, a cismar. E, com surpresa, reparou que seus
membros ultimamente se tinham arredondado; notou que em todo seu corpo a linha
curva suplantara a reta e que as suas formas eram já completamente de mulher.
Veio-lhe então um sobressalto de contentamento mas
logo depois caiu a entristecer: sentia-se muito só, não lhe bastava o amor do
pai e da velha Barbara; queria uma afeição mais exclusiva, mais dela.
Lembrou-se dos seus namoros. Riu-se "coisas de
criança!..."
Aos doze anos namorara um estudante do Liceu.
Haviam conversado três ou quatro vezes na sala do pai e sugunham-se deveras apaixonados
um pelo outro; o estudante seguiu para a Escola Central da Corte, e ela nunca
mais pensou nele Depois foi um oficial de marinha; "Como lhe ficava bem a
farda!... Que moço engraçado! bonito! e como sabia vestir-se... Ana Rosa chegou
a principiar a bordar um par de chinelas para lho oferecer; antes porém de
terminado o primeiro pé, já o bandoleiro havia desaparecido com a corveta
"Baiana". Seguiu-se um empregado do comércio. "Muito bom rapaz!
muito cuidadoso da roupa e das unhas!..." Parecia-lhe que ainda estava a
vê-lo, todo metódico, escolhendo palavras para lhe pedir "a subida honra
de dançar com ela uma quadrilha"
— Ah tempos! tempos!..
E não queria pensar ainda em semelhantes tolices.
"Coisas de criança! Coisas de criança!..." Agora, só o que lhe
convinha era um marido! "O seu", o verdadeiro, o lega!! O homem da
sua casa, o dono do seu corpo, a quem ela pudesse amar abertamente como amante
e obedecer em segredo como escrava. Precisava de dar-se e dedicar-se a alguém;
sentia absoluta necessidade de pôr em ação a competência, que ela em si
reconhecia, para tomar conta de uma casa e educar muitos filhos.
Com estes devaneios, acudia-lhe sempre um
arrepiozinho de febre; ficava excitada, idealizando um homem forte, corajoso,
com um bonito talento, e capaz de matar-se por ela. E, nos seus sonhos
agitados, debuxava-se um vulto confuso, mas encantador, que galgava
precipícios, para chegar onde ela estava e merecer-lhe a ventura de um sorriso,
uma doce esperança de casamento. E sonhava o noivado: um banquete esplêndido! e
junto dela, ao alcance de seus lábios, um mancebo apaixonado e formoso, um
conjunto de força, graça e ternura. que a seus pés ardia de impaciência e
devorava-a com o olhar em fogo.
Depois — via-se dona de casa; pensando muito nos filhos;
sonhava-se feliz, muito dependente na prisão do ninho e no domínio carinhoso do
manco. E sonhava umas criancinhas louras, ternas, balbuciando tolices
engraçadas e comovedoras, chamando-lhe "mama!"
— Oh! Como devia ser bom!.. E pensar que havia por
ai mulheres que eram contra o casamento!...
Não ! Ela não podia admitir o celibato,
principalmente para a mulher!... "Para o homem— ainda passava. . vivera
triste, só; mas em todo o caso&emdash;era um homem... teria outras
distrações! Mas uma pobre mulher, que melhor futuro poderia ambicionar que o
casamento?. . que mais legítimo prazer do que a maternidade; que companhia mais
alegre do que a dos filhos, esses diabinhos tão feiticeiros?.." Além de
que, sempre gostara muito de crianças: muita vez pedira a quem as tinha que
lhas mandasse a fazer-lhe companhia, e, enquanto as pilhava em casa, não
consentia que mais ninguém se incomodasse com elas; queria ser a própria a
dar-lhes a comida, a lavá-las, a vesti-las, e acalentá-las E estava
constantemente a talhar camisinhas e fraldas, a fazer toucas e sapatinhos muita
lá, com muito amor, justamente como, em pequenina, ela fazia com as suas
bonecas. Quando alguma de suas amigas se casava, Ana Rosa exigia dela sempre um
cravo do ramalhete ou um botão das flores de laranjeira da grinalda; este ou
aquele, pregava-os religiosamente no seio com um dos alfinetes dourados da
noiva, e quedava-se a fitá-los, cismado, até que dos lábios lhe partia um
suspiro longo, muito longo, como o do viajante que em meio do caminho já se
sente cansado e ainda não avista o lar.
Mas o noivo por onde andava que não vinha? Esse
belo mancebo, tão ardente e tão apaixonado, por que se não apresentava logo?
Dos homens que Ana Rosa conhecia na província nenhum decerto podia ser!... E,
no entanto, ela amava...
A quem?
Não sabia dizê-lo, mas amava. Sim! Fosse a quem
fosse, ela amava; porque sentia vibrar-lhe todo o corpo, fibra por fibra,
pensando nesse — Alguém — íntimo e desconhecido para ela;
esse&emdash;Alguém — que não vinha e não lhe saia do pensamento, esse —
Alguém — cuja ausência a fazia infeliz e lhe enchia a existência de lágrimas.
Passaram-se meses — nada! Correram três anos. Ana
Rosa principiou a emagrecer visivelmente. Agora dormia menos; estava pálida; à
mesa mal tocava nos pratos.
— O pequena, tu tens alguma coisa! disse-lhe um dia
o pai, já incomodado com aquele ar doentio da filha. Não me pareces a mesma!
Que é isso, Anica?
Não era nada!...
E Ana Rosa sobressaltava-se, como se tivera
cometido uma falta. "Cansaço! Nervos! Não era coisa que valesse a pena!...
"
Mas chorava.
— Olha! Ai temos! Agora o choro! Nada! É preciso
chamar o médico!
— Chamar o médico?... Ora papai, não vale a
pena!...
E tossia. "Que a deixassem em paz! Que neo a
estivessem apoquentando com perguntas!..."
E tossia mais, sufocada.
— Vês?! Estas achacada! Levas nesse "Churra,
chrum! chrum chrum!" E é só "Não vale a pena! Não precisa chamar o
médico!...' Não senhora! com moléstias não se brinca!
O médico receitou banhos de mar na Ponta d'Areia.
Foi um tempo delicioso para ela os três meses que
ai passou. Os ares da costa, os banhos de choque, os longos passeios a pé,
restituíram-lhe o apetite e enriqueceram-lhe o sangue Ficou mais forte; chegou
a engordar.
Na Ponta d'Areia travara uma nova amizade — D.
Eufrasinha. Viúva de um oficial do quinto de infantaria, batalhão que morreu
todo na Guerra do Paraguai. Muito romântica: falava do marido requebrando-se, e
poetizava-lhe a curta história: "Dez dias depois de casados, seguira ele
para o campo de batalha e, no denodo da sua coragem, fora atravessado por uma
bala de artilharia, morrendo logo a balbuciar com o lábio ensangüentado o nome
da esposa estremecida."
E com um suspiro, feito de desejos mel satisfeitos,
a viúva concluía pesarosa que "prazeres nesta vida, conhecera apenas dez
dias e dez noites..."
Ana Rosa compadecia-se da amiga e escutava-lhe de
boa-fé as frioleiras. Na sua ingênua e comovida sinceridade facilmente se
identificava com a história singular daquele casamento tão infeliz e tão
simpático.. Por mais de uma vez chegou a chorar pela morte do pobre moço
oficial de infantaria.
D. Eufrasinha instruiu a sua nova amiga em muitas
coisas que esta mal sonhava; ensinou-lhe certos mistérios da vida conjugal;
pode dizer-se que lhe de amor: falou muito nos "homens", disse-lhe
como a mulher esperta devia lidar com eles; quais eram as manhas e os fracos
dos maridos ou dos namorados; quais eram os tipos preferíveis; o que
significava ter "olhos mortos, beiços grossos, nariz comprido".
A outra ria-se. "Não tomava a sério aquelas
bobagens da Eufrasinha!"
Mas intimamente ia, sem dar por isso, reconstruindo
o seu ideal pelas instruções da viúva Fê-lo menos espiritual, mais humano, mais
verossímil, mais suscetível de ser descoberto; e, desde então, o tipo, apenas
debuxado ao fundo dos seus sonhos, veio para a frente, acentuou-se como uma
figura que recebesse os últimos toques do pintor; e, depois de vê-lo bem
correto, bem emendado e pronto, amou o ainda mais, muito mais, tanto quanto o
amaria se ele fora com efeito uma realidade.
A partir daí, era esse ideal, correto e emendado, a
base das suas deliberações a respeito de casamento; era a bitola, por onde ela
aferia todo aquele que a requestasse. Se o pretendente neo tivesse o nariz, o
olhar, o gesto, o conjunto enfim de que constava o padrão, podia, desde logo,
perder a esperança de cair nas graças da filha de Manuel Pedro.
Eufrasinha mudou-se para a cidade; Ana Rosa já lá
estava. Visitaram-se.
E estas visitas, que se tomaram muito íntimas e
repetidas, serviram mutuamente de consolo, ao afincado celibato de uma e a
precoce viuvez da outra.
Havia, empregado no armazém do pai de Ana Rosa, um
rapaz português, de nome Luís Dias; muito ativo, econômico, discreto,
trabalhador, com uma bonita letra, e muito estimado na Praça. Contavam a seu
favor invejáveis partidas de tino comercial, e ninguém seria capaz de dizer mal
de tão excelente moço.
Ao contrário, quase sempre que falavam dele, diziam
"Coitado!" e este — coitado — era inteiramente sem razão de ser,
porque ao Dias, graças a Deus, nada faltava: tinha casa, comida, roupa lavada e
engomada, e, ainda por cima, os cobres do emprego. Mas a coisa era que o diabo
do homem, apesar das suas prósperas circunstâncias, impunha certa lástima,
impressionava com o seu eterno ar de piedade, de súplica, de resignação e
humildade. Fazia pena, incutia dó em quem o visse, tão submisso, tão passivo,
tão pobre rapaz — tão besta de carga Ninguém, em caso algum, levantaria a mão
sobre ele, sem experimentar a repugnância da covardia.
Elogiavam-no entretanto: "Que não fossem atrás
daquele ar modesto, porque ali estava um empregadão de truz!"
Vários negociantes ofereceram-lhe boas vantagens
para torná-lo ao seu serviço; mas o Dias, sempre humilde e de cabeça baixa,
resistia-lhes a pé firme. E, tal constância opôs as repetidas propostas, que
todo o comércio, dando como certo o seu casamento com a filha do patrão,
elogiou a escolha de Manuel Pedro e profetizou aos nubentes "um futuro
muito bonito e muito rico".
— Foi acertado foi! diziam com o olhar fito.
Manuel Pedro via, com efeito, naquela criatura,
trabalhadora e passiva como um boi de carga e econômico como um usuário, o
homem mais no caso de fazer a felicidade da filha Queria-o para genro e para
sócio; dizia a todos os colegas que o "seu Dias" apenas retirava por
ano, para as suas despesas, a quarta parte do ordenado.
— Tem já o seu pecúlio, tem! considerava ele. A
mulher o quisesse, levava um bom marido! Aquele virá a possuir alguma coisa...
é moço de muito futuro!
E, pouco a pouco foi se habituando a julgá-lo já da
família e a estimá-lo e distingüí-lo como tal; só faltava que a pequena se
decidisse... Mas qual! ela nem queria vê-lo! Tinha-lhe birra; não podia sofrer
aquele cabelo à escovinha, aquele cavanhaque sem bigode, aqueles dentes sujos,
aquela economia torpe e aqueles movimentos de homem sem vontade própria.
— Um somítico! classificava Ana Rosa franzindo o
nariz.
Uma ocasião, o pai tocou-lhe no casamento.
— Com o Dias?... perguntou espantada.
— Sim.
— Ora, papai!
E soltou uma risada.
Manuel não se animou a dizer mais palavra; a noite,
porém, contou tudo em particular ao compadre, um amigo velho, intimo da casa —
o cônego Diogo.
— Optima soepè despecta! sentenciou este. P preciso
dar tempo ao tempo, seu compadre! A coisa há
de ser... deixe correr o barco!
No entanto, o Dias não se alterara; esperava
calado, pacificamente, sem erguer os olhos, cheio sempre de humildade e resignação.
2
Assim era, quando Manuel Pedro, na varanda de sua
casa, pedia a filha uma resposta definitiva a respeito do casamento. Já lá se
iam três meses depois da estada na Ponta d'Areia.
Ana Rosa continuou muda no seu lugar, a fitar a
toalha da mesa, como se procurasse ai uma resolução. O sabiá cantava na gaiola.
— Então, minha filha, não das sequer uma
esperança?...
— Pode ser...
E ela ergueu-se...
Bom. Assim é que te quero ver...
O negociante passou o braço em volta da cintura da rapariga,
disposto a conversar ainda, mas foi interrompido por umas passadas no corredor.
— Dá licença? disse o cônego, já na porta da
varanda.
&emdash;Vá entrando, compadre!
O cônego entrou, devagar, com o seu sorriso
discreto e amável.
Era um velho bonito; teria quando menos sessenta
anos, porém estava ainda forte e bem conservado; o olhar vivo, o corpo teso,
mas ungido de brandura santarrona. Calcava-se com esmero, de polimento; mandava
buscar da Europa, para seu uso, meias e colarinhos especiais, e, quando ria,
mostrava dentes limpos, todos chumbados a ouro. Tinha os movimentos distintos;
mãos brancas e cabelos alvos que fazia gosto.
Diogo era o confidente e o conselheiro do bom e
pesado Manuel; este não dava um passo sem consultar o compadre. Formara-se em
Coimbra, donde contava maravilhas; um bocadinho rico, e não relaxava o seu
passeio a Lisboa, de vez em quando, "para descarregar anos da
costa..." explicava ele, a rir.
Logo que entrou, deu a beijar a Ana Rosa o seu
grande e trabalhado anel de ametista, obra do Porto, feita de encomenda. E
batendo-lhe na face com a mão fina e impregnada de sabonete inglês:
— Então, minha afilhada, como vai essa bizarria?
Ia bem, agradecida. Sorriu.
— Dindinho está bom?
— Como sempre. Que noticias de D. Babita?
Estava de passeio.
— Pois não vê a casa sossegada? interrogou Manuel.
Foi à missa e naturalmente almoçou por ai com alguma amiga. Deus a conserve por
lá! Mas que milagre o trouxe a estas horas cá por casa, seu compadre?
— Um negócio que lhe quero comunicar; particular,
um bocado particular.
Ana Rosa fez logo menção de afastar-se.
— Deixa-te ficar, disse-lhe o pai. Nós vamos aqui
para o escritório.
E os dois compadres, conversando em voz baixa,
encaminharam-se para uma saleta que havia na frente da casa.
A saleta era pequenina com duas janelas para a Rua
da Estrela. Chão esteirado paredes forradas de papel e o teto de travessinhas
de paparaúba pintadas de branco. Havia uma carteira de escrita, muito alta, com
o seu mocho inclinado, um cofre de feno, uma pilha de livros de escrituração
mercantil, uma prensa, o copiador ao lado e mais um copo sujo de pó, em cujas
bordas descansava um pincel chato de cabo largo; uma cadeira de palhinha, um
caixão de papéis inúteis, um bico de gás e duas escarradeira.
Ah! ainda havia na parede, sobre a secretária, um
calendário do ano e outro da semana, ambos com as algibeiras pejadas de notas e
recibos.
Era isto que Manuel Pedro chamava pamposamente
"o seu escritório" e onde fazia a correspondência comercia!. Ai,
quando ele de corpo e alma se entregava aos interesses da sua vida, às suas
especulações, ao seu trabalho enfim, podiam ia fora até morrer, que o bom homem
não dava por isso. Amava deveras o trabalho e seria uma santa criatura se não
fora certa maniazinha de querer especular com tudo, o que as vezes lhe
desvirtuava as melhores intenções.
Quando os dois entraram, ele foi logo fechando a
porta, discretamente, enquanto o outro se esparralhava na cadeira com um suspiro
de cansaço, levantando até ao meio da canela a sua batina lustrosa e de bom
talho. Manuel havia tomado um cigarro de papel amarelo de cima da carteira e
acendia-o sofregamente; o cônego esperava por ele, com uma notícia suspensa dos
lábios como espantado, a boca meio aberta o tronco inclinado para a frente, as
mãos espalmadas nos joelhos, a cabeça erguida e um olhar de sobrancelhas
arregaçadas através do cristal dos óculos
— Sabe quem está a chegar por ai?... perguntou
afinal, quando viu Manuel já instalado no mocho da secretaria.
— Quem?
— O Raimundo!
E o cônego sorveu uma pitada.
— Que Raimundo?
— O Mundico! o filho do José, homem! teu sobrinho!
aquela criança, que teu mano teve da Domingas...
— Sim, sim, já sei, mas então?...
— Está a chegar por dias... Ora espera...
O padre tirou papéis da algibeira e rebuscou entre
eles uma carta, que passou ao negociante.
— E do Peixoto, o Peixoto de Lisboa.
— De Lisboa, como?
— Sim, homem! Do Peixoto de Lisboa, que está há
três anos no Rio.
— Ah!... isso sim, porque tinha idéia de que o
pequeno deveria estar agora na Corte Ah! chegou o vapor do Sul...
— Pois é. Lê!
Manuel armou os óculos no nariz e leu para si a
seguinte carta datada do Rio de Janeiro: "Reverendíssimo amigo e Sr.
Cônego Diogo de Melo Folgamos que esta vá encontrar V. Reverendíssima no gozo
da mais perfeita saúde. Temos por fim comunicar a V. Reverendíssima que, no
paquete de 15 do corrente, segue para essa capital o Dr Raimundo José da Silva,
de quem nos encarregou V. Reverendíssima e o Sr. Manuel Pedro da Silva quando
ainda nos achávamos estabelecidos em Lisboa. Temos também a declarar, se bem
que já em tempo competente o houvéssemos feito, que envidamos então os melhores
esforços para conseguir do nosso recomendado ficasse empregado em nossa casa
comercia! e que, visto não o conseguirmos, tomamos logo a resolução de
remetê-lo para Coimbra com o fim de formar-se ele em Teologia, o que igualmente
não se realizou, porque, feito o curso preparatório, escolheu o nosso
recomendado a carreira de Direito, na qual se acha formado com distinções e
bonitas notas.
Cumpre-nos ainda declarar com prazer a V.
Reverendíssima que o Dr Raimundo foi sempre apreciado pelos seus lentes e
condiscípulos e que tem feito boa figura, tanto em Portugal, como depois na
Alemanha e na Suíça, e como ultimamente nesta Corte, onde, segundo diz ele,
tenciona fundar uma empresa muito importante. Mas, antes de estabelecer-se
aqui, deseja o Dr. Raimundo efetuar nessa província a venda de terras e outras
propriedades de que ai dispõe, e com esse fim segue.
Por esta mesma via escrevemos ao Sr. Manuel Pedro
da Silva, a quem novamente prestamos contas das despesas que fizemos com o
sobrinho. "
Seguiam-se os cumprimentos do estilo.
Manuel terminada a leitura, chamou o Benedito, um
moleque da casa, e ordenou-lhe que fosse ao armazém saber se havia já chegado a
correspondência do Sul. O moleque voltou pouco depois, dizendo que "ainda
não senhor, mas que seu Dias a fora buscar ao correio".
— Homem! ele é isso!... exclamou Pescada. O rapaz
está bem encaminhado, quer liquidar o que tem por cá e estabelecer-se no Rio.
Não! Sempre é outro futuro!.
— Ora! ora! ora! soprou o cônego em três tempos.
Nem falemos nisso! O Rio de Janeiro é o Brasil! Ele faria uma grandíssima
asneira se ficasse aqui.
— Se faria...
— Até lhe digo mais.. nem precisava cá vir,
porque... continuou Diogo, abaixando a voz, ninguém aqui lhe ignora a
biografia; todos sabem de quem ele saiu!
— Que não viesse, não digo, porque enfim..
"quem quer vai e quem não quer manda", como lá diz o outro; mas é
chegar, aviar o que tem a fazer e levantar de novo o ferro!
— Ai, ai!
— E demais, que diabo ficava ele fazendo aqui?
Enchendo as ruas de pernas e gastando o pouco que tem... Sim! que ele tem
alguma coisinha para roer . tem aquelas moradas de casa em São Pantaleão; tem o
seu punhado de ações; tem o jimbo cá na casa, onde por bem dizer é sócio
comanditário, e tem as fazendas do Rosário, isto é — a fazenda, porque uma é tapera...
— Essa e que ninguém a quer!... observou o cônego,
e ferrou o olhar num ponto, deixando perceber que alguma triste reminiscência o
dominava.
— Acreditam nas almas doutro mundo... prosseguiu
Manuel. O caso é que nunca mais consegui dar-lhe destino. Pois olhe, seu
compadre, aquelas terras são bem boas para a cana.
O cônego permanecia preocupado pela lembrança da
tapera.
— Agora... acrescentou o outro, o melhor seria que
ele se tivesse feito padre.
O cônego despertou.
— Padre?!
— Era a vontade do José...
— Ora, deixe-se disso! retrucou Diogo,
levantando-se com ímpeto Nós já temos por ai muito padre de cor!
— Mas, compadre, venha cá não é isso...
— Ora o quê, homem de Deus! É só — ser padre! E no
fim de contas estão se vendo, as duas por três superiores mais negros que as
nossas cozinheiras! Então isto tem jeito?... O governo — E o cônego inchava as
palavras — o governo devia até tomar uma medida séria a este respeito! devia
proibir aos cabras certos misteres!
— Mas, compadre...
— Que conheçam seu lugar!
E o cônego transformava-se ao calor daquela
indignação
— E então, parece já de pirraça, bradou, é nascer
um moleque nas condições deste...
E mostrava a carta, esmurrando-a — pode contar-se
logo com um homem inteligente! Deviam ser burros! burros! que só prestassem
mesmo para nos servir! Malditos!
— Mas, compadre, você desta vez não tem razão...
— Ora o quê homem de Deus. Não diga asneiras! Pois
você queria ver sua filha confessada, casada. por um negro? você queria seu
Manuel que a Dona Anica beijasse a mão de um filho da Domingas? Se você viesse
a ter netos queria que eles apanhassem palmatoadas de um professor mais negro
que esta batina? Ora, seu compadre, você ÀS vezes até me parece tolo!
Manuel abaixou a cabeça, derrotado.
— Ora, ora, ora! respingava o sacerdote, como as
últimas gotas de um aguaceiro. E passeava vivamente em toda a extensão da
saleta, atirando de uma para a outra mão o seu lenço fino de seda da Índia.—
Ora! ora, deixe-se disso, seu compadre! Stultorum honor inglorius!...
Nisto bateram à porta. Era o Dias com a
correspondência do Sul.
— De cá
A carta de Manuel pouco adiantava da outra.
— Mas afina! que acha você, compadre?... disse ele,
passando a carta ao cônego, depois de a ler
— Que diabo posso achar?.. A coisa esta feita por
si.. Deixe correr o barco! Você não disse uma vez que queria entrar em negócio
com a fazenda do Cancela? Não há melhor ocasião&emdash;trate-a com o
próprio dono. mesmo as casas de São Pantaleão convinham-lhe... olhe se ele as
desse em conta, eu talvez ficasse com alguma.
— Mas o que eu digo, compadre, é se devo recebê-lo
na qualidade de meu sobrinho.
— Sobrinho bastardo, está claro! Que diabo tem você
com as cabeçadas de seu mano José?. Homessa!
— Mas, compadre, você acha que não me fica mal? .
— Mal por quê, homem de Deus? Isso nada tem que ver
com você...
— Lá isso é verdade. Ah! outra coisa! devo
hospedá-lo aqui em casa?
— É!... por um lado, devia ser assim... Todos sabem
as obrigações que você deve ao defunto José e poderiam boquejar por ai, no caso
que não hospedasse o filho... mas, por outro lado, meu amigo, amigo sei o que
lhe diga!...
E depois de uma pausa em que o outro não falou:
— Homem, seu compadre, isto de meter rapazes em
casa... é o diabo!
— De sorte que...
— Omnem aditum malis prejudica!
Manuel não compreendeu, porem acrescentou:
— Mas eu hospedo constantemente os meus fregueses
do interior...
— Isso é muito diferente!
— E meus caixeiros? não moram aqui comigo?...
— Sim! disse o cônego, impacientando-se, mas os
pobres dos caixeiros são todos uns moscas-mortas, nós não sabemos a que nos
saiu o tal doutor de Coimbra!... Homem, compadre, o melro vem de Paris, deve
estar mitrado!...
— Talvez não...
— Sim, mas é mais natural que esteja!
E o cônego intumescia a papada com certo ar
experimentado.
— Em todo caso... arriscou Manuel, é por pouco
tempo... Talvez coisa de um mês...
E sopeando a voz discretamente com medo: Além
disso... não me convinha desagradar o rapaz... Sim! tenho de entrar em negócio
com ele, e... isto cá para nós... seria uma fineza, que me ficava a dever...
porque enfim... você sabe que...
— Ah! interrompeu o cônego, tomando uma nova
atitude. Isso é outro cantar!... Por ai é que você devia ter principiado!
— Sim tornou Manuel. com mais animo. Você bem sabe
que não tenho obrigação de estar a moer-me com o nhonhô Mundico... e, se bem
que...
— Pchio!... fez o padre, cortando a conversa, e
disse: — Hóspede o homem!
E saiu da saleta, revestindo logo o seu pachorrento
e estudado ar de santarrão.
Ao chegarem à varanda Ana Rosa, já em trajes de
passeio, os esperava para sair toda debruçada no parapeito da janela e
derramando sobre o Bacanga um olhar mole e cheio de incertezas.
— Então, sempre te resolveste, minha caprichosa?...
disse o pai.
E contemplava a filha, com um risinho de orgulho.
Ela estava realmente boa com o seu vestido muito alvo de fustão, alegre, todo
cheirando aos jasmins da gaveta: com o seu chapéu de palhinha de Itália
emoldurando o rosto oval, fresco e bem feito com o seu cabelo castanho, farto e
sedoso, que aparecia em bandós no alto da cabeça e reaparecia no pescoço
enrodilhado despretensiosamente.
— Tinhas dito que não ias...
— Vá se vestir, papai.
E assentou-se.
— Lá vou! Lá vou!
Manuel bateu no ombro do cônego:
— Meto-lhe inveja, hein, compadre?.. Olhe como o
diacho da pequena esta faceira, não é?
— Ne
insultes miseris!
— Quê?... interjeicionou o negociante, olhando para
o relógio da varanda. Quatro e meia! E eu que ainda tinha de ir hoje tratar do
despacho de um açúcar!...
E foi entrando apressado no quarto, a gritar para o
Benedito "que lhe levasse água morna para banhar o rosto".
O cônego assentou-se defronte de Ana Rosa.
— Então onde é hoje o passeio minha rica afilhada?
— À casa do Freitas. Não se lembra? Lindoca faz
anos hoje.
— Cáspite! Temos então peru de forno!..
— Papai fica para o jantar... vossemecê não vai
dindinho?
— Talvez apareça à noite... Com certeza há dança...
— Hum-hum... mas creio que o Freitas conta com uma
surpresa da Filarmônica.. disse Ana Rosa, entretida a endireitar os folhos de
seu vestido com a biqueira da sombrinha.
Nisto ouviram-se bater embaixo as portas do
armazém, que se fechavam com grande n ido de fechaduras, e logo em seguida o
som pesado de passos repetidos na escada. Eram os caixeiros que subiam para
jantar.
Entrou primeiro na varanda o Bento Cordeiro.
Português dos seus trinta e tantos anos arruivado, feio de bigode e barba a
cavanhaque Gabava-se de grande prática de balcão chamavam-lhe "Um
alho". Para aviar encomendas do interior não havia outro! Cordeiro
"metia no bolso o capurreiro mais sabido".
Dos empregados da casa era o mais antigo; nunca,
porém lograra ter interesse na sociedade, continuava sempre de fora e tinha por
isso um ódio surdo ao patrão ódio, que o patife disfarçava por um constante
sorriso de boa vontade Mas o seu maior defeito o que deveras depunha contra ele
aos olhos das — raposas — do comércio; o que explicava na Praga a sua não
entrada na sociedade da casa em que trabalhava havia tanto tempo era sem duvida
a sua queda para o vinho. Aos domingos metia-se na tiorga e ficava de todo
insuportável.
Bento atravessou silencioso a varanda cortejando
com afetada humildade o cônego e Ana Rosa, e seguiu logo para o mirante, onde
moravam todos os caixeiros da casa.
O segundo a passar foi Gustavo de Vila Rica;
simpático e bonito mocetão de dezesseis anos, com as suas soberbas cores
portuguesas, que o clima do Maranhão ainda não tinha conseguido destruir.
Estava sempre de bom humor; lisonjeava-se de um apetite inquebrantável e de
nunca haver ficado de cama no Brasil. Em casa todavia ganhara fama de
extravagante; é que mandava fazer fatos de casimira a moda, para passear aos
domingos e para ir aos bailes familiares de contribuição, e queimava charutos
de dois vinténs. O grande defeito deste era uma assinatura no Gabinete
Português, o que levava a boa gente do comércio a dizer "que ele era um
grande biltre, um peralta, que estava sempre procurando o que ler!"
O Bento Ribeiro bradava-lhe as vezes, furioso:
— Com os diabos! o patrão já lhe tem dado a
entender que não gosta de caixeiros amigos de gazeta?.. Se você quer ser letrado,
vá pra Coimbra, seu burro!
Gustavo ouvia constantemente destas e doutras
amabilidades, mas, que fazer? precisava ganhar a vida!... O outro era caixeiro
mais antigo na casa... Conformava-se, sem respingar, e em certas ocasiões até
satisfeito, graças ao seu bom humor.
Ao passar pela varanda foi menos brusco no seu
cumprimento à filha do patrão; chegou mesmo a parar, sorrir, e dizer,
inclinando a cabeça: "Minha senhora!..."
O cônego teve uma risota.
— Que mitra! . julgou com os seus botões.
Em seguida, atravessou a varanda, muito apressado,
com as mãos escondidas nas enormes mangas de um jaquetão, cuja gola subia ate à
nuca, uma criança de uns dez anos de idade. Tinha o cabelo à escovinha; os
sapatos grandemente desproporcionados; calças de zuarte dobradas na bainha;
olhos espantados; gestos desconfiados, e um certo movimento rápido de esconder
a cabeça nos ombros, que lhe traia o hábito de levar pescoções.
Este era em tudo mais novo que os outros — em
idade, na casa, e no Brasil. Chegara havia coisa de seis meses da sua aldeia no
Porto; dizia chamar-se Manuelzinho e tinha sempre os olhos vermelhos de chorar
à noite com saudades da mãe e da terra.
Por ser o mais novo na casa varria o armazém
limpava as balanças e bumia os pesos de latão. Todos lhe batiam sem
responsabilidade, não tinha a quem se queixar. Divertiam-se à custa dele;
riam-se com repugnância das suas orelhas cheias de cera escura.
Desfeava-lhe a testa uma grande cicatriz; foi um
trambolhão que levou na primeira noite em que lhe deram uma rede para dormir O
pobre desterradozinho, que não sabia haver-se com semelhante engenhoca, caiu na
asneira de meter primeiro os pés, e zás! lá foi por cima de uma caixa de pinho
de um dos companheiros. Desde esse dia ficou conhecido em casa pela alcunha de
"Salta-chão". Punham-lhe nomes feios e chamavam-lhe "O coisa! —
Ó maroto! — O bisca!" tudo servia para o chamarem, menos o seu verdadeiro
nome.
Ia atravessando a varanda, como um bicho assustado,
quase a correr. O cônego gritou por ele:
— O pequeno? anda cá!
Manuelzinho voltou, confuso, coçando a nuca, muito
contrariado sem levantar os olhos.
Ana Rosa teve um olhar de piedade.
— Então que e isso? disse o cônego. Pareces-me um
bicho do mato! Fala direito com a gente, rapaz! Levanta essa cachimônia!
E, com a sua mão branca e fina, suspendeu-lhe pelo
queixo a cabeça, que Manuelzinho insistia em ter baixa.
— Este ainda está muito peludo!... acrescentou. E
perguntou-lhe depois uma porção de coisas: "Se tinha vontade de
enriquecer, se não sonhava já com uma comenda: se tinha visto o pássaro
guariba, se encontrara a árvore das patacas." O pequeno mastigava
respostas inarticuladas, com um sorriso aflito...
— Como te chamas?
Ele não respondeu.
— Então não respondes?... Com certeza és Manuel!
O portuguesinho meneou a cabeça afirmativamente, e
apertou a boca, para conter o riso que procurava uma válvula.
— Então é com a cabeça que se responde? Tu não
sabes falar, mariola?
E, voltando-se para Ana Rosa:
— Isto é um sonso, minha afilhada! olhe em que
estado ele traz as orelhas! Se tens a alma como tens o corpo, podes dá-la ao
diabo! Tu já te confessaste aqui, maroto?
Manuelzinho não podendo já suster os beiços, abriu
a boca e, com a forca de uma caldeira, soprou o riso que a tanto custo
refreada.
— Olha que estas a cuspir-me, o patife! gritou o
cônego. Bom, bom! vai-te! vai-te!
Repeliu-o e limpou a batina com o lenço.
Ana Rosa então correu os dedos pela cabeça do
menino e puxou-o para si. Arregaçou-lhe as mangas da jaqueta e revistou-lhe as
unhas. Estavam crescidas e sujas.
— Ah! censurou ela, você também não tão pequeno,
que se desculpe isto!...
E, tirando do seu indispensável uma tesourinha,
começou, com grande surpresa do caixeiro e até do cônego, a limpar as unhas da
criança, dizendo ao outro, baixinho:
— Não sei como há mães que se separam de filhos
desta idade... Também, coitados! devem amargar muito!...
A sua voz tinha já completa solicitudes de amor
materno.
O cônego levantou-se e foi encostar-se ao parapeito
da varanda, enquanto Ana Rosa, que continuava a cortar as unhas do menino, ia
em segredo perguntando a este se não tinha saudades da sua terra e se não
chorava ao lembrar-se da mãe.
Manuelzinho estava pasmado. Era a primeira vez que
no Brasil lhe falavam com aquela ternura. Levantou a cabeça e encarou Ana Rosa;
ele, que tinha sempre o olhar baixo e terrestre, procurou, sem vacilar, os
olhos da rapariga e fitou-os, cheio de confiança, sentindo por ela um súbito
respeito, uma espécie de adoração inesperada. Afigurava-se extraordinário ao
pobrezito desprezado de todos, que aquela senhora brasileira, tão limpa, tão
bem vestida, tão perfumada e com as mãos tão macias, estivesse ali a cortar-lhe
e assear-lhe as unhas.
A principio foi isto para ele um sacrifício
horrível, um suplício insuportável. Desejava, de si para si, ver terminada
aquela cena incômoda; queria fugir daquela posição difícil; resfolegava, sem
ousar mexer com a cabeça, olhando para os lados, de esguelha, como a procura de
uma saida, de algum lugar onde se escondesse ou de qualquer pretexto que o
arrancasse dali.
Senha-se mal com aquilo, que dúvida! Não se animava
a respirar livremente, receoso de fazer notar o seu hálito pela senhora; já lhe
doíam as juntas do corpo, tal era a sua imobilidade contrafeita; não mexia
sequer com um dedo. Depois do primeiro minuto de sacrifício, o suor começou
logo a correr-lhe em bagas da cabeça pela gola do jaquetão, e o pequeno teve
verdadeiros calafrios; mas quando Ana Rosa lhe falou da pátria e da mãe, com
aquela penetrante meiguice que só as próprias mães sabem fazer, as lágrimas
rebentaram-lhe dos olhos e desceram-lhe em silêncio pela cara.
Pois se era a primeira vez que no Brasil lhe
falavam dessas coisas!...
O cônego assistia a tudo isto, calado, rufando
sobre a sua tabaqueira de ouro as unhas burnidas a cinza de charuto e a sorrir
como um bom velho. E, enquanto Ana Rosa, de cabeça baixa, toda desvelos,
tratava do desgraçadinho, provocando-lhe as lágrimas e contendo as próprias,
sabe Deus como! passava o Dias pelo fundo da varanda, sem ser sentido, o andar
de gato, levando no coração uma grande raiva, só pelo fato de ver a filha do
patrão acarinhando o outro.
Ralava-o aquela caridade. "Ele nunca tivera
quem lhe cortasse as unhas!..." Amorfinava-o ver a Sra. D. Ana Rosa as
voltas com semelhante bisca. "Punha a perder de todo a peste do
pequeno!&emdash;Ora para que lhe havia de dar!... embonecar o súcio!
Queria-o com certeza para seu chichisbéu! Contava já com ele para levar-lhe as
cartas do desaforo e trazer-lhe os presentinhos de flores e os recados dos
pelintras!... Ah! mas ele, o Dias, ali estava para lhes cortar as vazas!"
O Dias, que completava o pessoal da casa de Manuel
Pescada, era um tipo fechado como um ovo, um ovo choco que mal denuncia na
casca a podridão interior. Todavia, nas cores biliosas do rosto, no desprezo do
próprio corpo, na taciturnidade paciente daquela exagerada economia,
adivinhava-se-lhe uma idéia fixa um alvo, para o qual caminhava o acrobata, sem
olhar dos lados, preocupado, nem que se equilibrasse sobre um corda tesa. Não
desdenhava qualquer meio para chegar mais depressa aos fins; aceitava, sem
examinar, qualquer caminho desde que lhe parecesse mais curto; tudo servia, tudo
era bom, contanto que o levasse mais rapidamente ao ponto desejado. Lama ou
brasa — havia de passar por cima; havia de chegar ao alvo — enriquecer.
Quanto à figura, repugnante: magro e macilento, um
tanto baixo um tanto curvado, pouca barba, testa curta e olhos fundos. O uso
constante dos chinelos de trança fizera-lhe os pés monstruosos e chatos quando
ele andava, lançava-os desairosamente para os lados, como o movimento dos
palmípedes nadando. Aborrecia-o o charuto, o passeio, o teatro e as reuniões em
que fosse necessário despender alguma coisa; quando estava perto da gente
senta-se logo um cheiro azedo de roupas sugas.
Ana Rosa não podia conceber como uma mulher de
certa ordem pudesse suportar semelhante porco "Enfim, resumia ela, quando,
conversando com amigas, queria dar-lhes uma idéia justa do que era o Dias —
sempre há um homem que não tem coragem de comprar uma escova de dentes!"
As amigas respondiam "Iche!" mas em geral tínhamos na conta de moço
benfazejo e de conduta exemplar.
À noite só deixava a porta do patrão nos sábados,
para ir ao peixe frito em casa de uma mulata gorda que morava com duas filhas
lá para os confins da Rua das Crioulas. Ia sempre sozinho. "Nada de
troças!"
— Não tenho amigos... dizia ele constantemente,
tenho apenas alguns conhecidos...
Nesses passeios levava às vezes uma garrafa de
vinho do Porto ou uma lata de marmelada, e chamava a isso "fazer as suas
extravagâncias". A mulata votava-lhe grande admiração e punha nele muita
confiança: dava-lhe a guardar "os seus ouros" e as suas economias.
Além desta, ninguém lhe conhecia outra relação particular; uma bela manhã,
porém, o "exemplar moço" aparecera incomodado e pedira ao patrão que
lhe deixasse ficar aquele dia no quarto. Manuel, todo solicito pelo seu bom
empregado, mandou-lhe lã o médico.
— Então, que tinha o rapaz?
— Aquilo é mais porcaria que outra coisa, respondeu
o facultativo, franzindo o nariz; mas receitou, recomendando banhos momos.
"Banhos! de banhos principalmente é que ele precisava!"
E, quando viu o doente pela segunda vez, não se
pôde ter, que lhe não dissesse:
— Olhe lá, meu amigo, que o asseio também faz parte
do tratamento!
E acabou provando que a limpeza não era menos
necessária ao corpo do que a alimentação, principalmente em um clima daqueles
em que um homem esta sempre a transpirar.
Manuel foi à noite ao quarto do caixeiro. Falou-lhe
com brandura paternal; lamentou-o com palavras amigáveis, e desatou um
protesto, em forma de sermão contra o clima e os costumes do Brasil.
— Uma terrinha com que é preciso cuidado! Perigosa!
Perigosa! dizia ele. Aqui a gente tem a vida por um fio de cabelo!
Tratou depois, com entusiasmo, de Portugal; lembrou
as boas comezainas portuguesas: "As caldeiradas d'eirozes, a orelheira de
porco com feijão branco, a acorda, o caldo gordo, o famoso bacalhau do
Algarve!"
— Ai! o pescado! suspirou o Dias, saudoso pela
terra. Que rico pitéu!
— E os nossos figos de comadre, e as nossas
castanhas assadas, e o vinho verde?
Dias escutava com água
— Ai! a terra! .
O patrão falou-lhe também das comodidades, dos
ares, das frutas e por fim dos divertimentos de Lisboa, terminando por contar
fatos de moléstia; casos idênticos ao do Dias; transportou-se rindo ao seu
tempo de rapaz, e, já de pé, pronto para sair, bateu-lhe no ombro,
carinhosamente:
— Você, homem, o que devia era casar!...
E jurou-lhe que o casamento lhe estava mesmo
calhando. "O Dias, com aquele gênio e com aquele método, dava por força um
bom marido!... Que se casasse, e havia de ver se neo teria outra
importância!..."
— Olhe! concluiu, digo-lhe agora como o doutor
"Banhos! banhos, meu amigo" mas que sejam de igreja, compreende?
E, rindo com a própria pilhéria e todo cheio de
sorrisos de boa intenção, saiu do quarto na ponta dos pés, cautelosamente, para
que os outros caixeiros, a quem ele não dava a honra de uma visita daquelas,
não lhe ouvissem as pisadas.
Quando Ana Rosa acabou de cortar as unhas de
Manuelzinho deu-lhe de conselho que estudasse alguma coisa; prometeu que
arranjaria com o pai metê-lo em uma aula noturna de primeiras letras, e
recomendou-lhe que todos os dias de manhã tomasse o seu banho debaixo da bomba
do poço.
— Faça isso, que serei por você, rematou a moça,
afastando-o com uma ligeira palmada na cabeça.
O menino retirou-se, muito comovido, para o andar
de cima, mas o Dias, de pé, no tope da escada, esperava por ele, furioso.
— Que estava fazendo, seu traste?
— Nada, respondeu a criança, a tremer. Fora a
senhora que o chamara!...
Dias, com um muno, explicou que o maroto não podia
pôr-se de palestra na varanda, em vez de cuidar das obrigações.
— E se me constar, acrescentou, cada vez mais
zangado, que você me toma a ir com lamúrias para o lado de D. Anica, comigo se
tem de haver, Seu mariola! Vai tudo aos ouvidos do patrão!
Manuelzinho arredou-se dali, convencido de que
havia praticado uma tremenda falta; no íntimo, porém, ia muito satisfeito com a
idéia de que já neo estava tão desamparado, e sentindo renascer-lhe, na obscura
mágoa do seu desterro, um desejo alegre de continuar a viver.
A reunião em casa do Freitas esteve animada. Houve
violão, cantoria, muita dança Chegaram a deitar chorado da Bahia.
Mas, pela volta da meia-noite, Ana Rosa, depois de
uma valsa fora acometida de um ataque de nervos. Era o terceiro que lhe dava
assim, sem mais nem menos.
Felizmente o médico, chamado a toda a pressa
afiançou que aquilo não valia nada. "Distrações e bom passadio!"
receitou ele, e, ao despedir-se de Manuel, segredou-lhe sorrindo:
— Se quiser dar saúde á sua filha, trate de
casá-la...
— Mas o que tem ela, doutor?...
— Ora o que tem! Tem vinte anos! Está na idade de
fazer o ninho! mas, enquanto não chega o casamento, ela que vá dando os seus
passeios a pé. Banhos frios exercícios, bom passadio e distrações! Percebe?
Manuel na sua ignorância, imaginou que a filha
alimentava ocultamente algum amor mal correspondido. Sacudiu os ombros.
"Não era então coisa de cuidado." E, em cumprimento as ordens do
médico, inaugurou com a enferma longos passeios pela fresca da madrugada.
Daí a dias, o cônego Diogo, contra a todos os seus
hábitos, procurava o compadre às sete horas da manhã.
Atravessou o armazém, apressado como quem traz
grande novidade, e, mal chegou ao negociante, foi lhe dizendo em tom
misterioso:
— Sabe? Faz sinal de aparecer, e é o Cruzeiro...
Manuel largou logo de mão o serviço que fazia,
subiu à varanda, deu as suas providências para receber um hóspede, e em seguida
ganhou a rua com o amigo.
Eles a saírem de casa e a fortaleza de São Marcos a
salvar, anunciando com um tiro, a entrada de paquete brasileiro.
Os dois tomaram um escaler e foram a bordo.
3
Daí a pouco, entre as vistas interrogadoras dos
curiosos, atravessou a Praça do Comércio um rapaz bem parecido, que ia
acompanhado pelo cônego Diogo e por Manuel.
A novidade foi logo comentada. Os portugueses
vinham, com as suas grandes barrigas. às portas dos armazéns de secos e
molhados os barraqueiros espiavam por cima dos óculos de tartaruga: os pretos
cangueiros paravam para "mirar o cara-nova". O Perua-gorda, em mangas
de camisa, como quase todos os outros, acudiu logo à rua:
— Quem será esse gajo, ó coisa? perguntou ele
ruidosamente a um súcio que passava na ocasião.
— Algum parente ou recomendado do Manuel Pescada.
Veio do Sul.
— Ó aquele! sabes quem é o lanceiro que vai com o
Pescada?
— Não sei, homem, mas é um rapagão!
Manuel apresentou o sobrinho a vários grupos. Houve
sorrisos de delicadezas e grandes apertos de mão.
— É o filho de um mano do Pescada... diziam depois.
Conhecemos-lhe muito a vida! Chama-se Raimundo Estava nos estudos.
— Vem estabelecer-se aqui? indagou o José Buxo.
— Não, creio que vem montar uma companhia...
Outros afiançavam que Raimundo era sócio
capitalista da casa de Manuel. Discutiam-lhe a roupa, o modo de andar, a cor e
os cabelos. O Luisinho Língua de Prata afirmava que ele "tinha
casta".
Entretanto os três subiam a Rua da Estrela.
Chegados a casa, onde já havia pronto um quarto
para o Sr. Dr. Raimundo José da Silva, o cônego e Manuel desfizeram-se em
delicadezas com o rapaz.
— Benedito! vê cerveja! Ou prefere conhaque,
doutor?... Olha moleque, prepara guaraná! Doutor, venha antes para este lado
que esta mais fresco... não faça cerimônias! Vá entrando! vá entrando para a
varanda! O senhor está em sua casa!...
Raimundo queixava-se do calor.
— Está horrível! dizia ele, a limpar o rosto com o
lenço. Nunca suei tanto!
— O melhor então é recolher-se um pouco e ficar à
vontade. Pode mudar de roupa, arejar-se A bagagem não tarda ai. Olhe, doutor,
entre, entre e veja se fica bem aqui!
Os três penetraram no quarto destinado ao hóspede.
— O senhor, disse Manuel, tem aqui janelas para a
rua e para o quintal. Ponha-se a gosto. Se precisar qualquer coisa, é só chamar
pelo Benedito. Nada de cerimônias!
Raimundo agradeceu muito penhorado.
— Mandei dar-lhe cama, acrescentou o negociante,
porque o senhor naturalmente não está afeito à rede, no entanto se quiser...
— Não, não muito obrigado. Está tudo muito bom. O
que desejo é repousar um pouco justamente. Ainda tenho a cabeça a andar à roda.
— Pois então descanse, descanse, para depois
almoçar com mais apetite.. Até logo.
E Manuel e mais o compadre afastaram-se, cheios de
cortesia e sorrisos de afabilidade.
Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo
acabado de brasileiro se não foram os grandes olhos azuis, que puxara do pai.
Cabelos muito pretos lustrosos e crespos; tez morena e amulatada, mas fina;
dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode; estatura alta e elegante;
pescoço largo, nariz direito e fronte espaçosa. A parte mais característica da
sua fisionomia era os olhos— grandes, ramalhudos, cheios de sombras azuis;
pestanas eriçadas e negras, pálpebras de um roxo vaporoso e úmido as
sobrancelhas, muito desenhadas no rosto, como a nanquim faziam sobressair a
frescura da epiderme, que, no lugar da barba raspada lembrava os tons suaves e
transparentes de uma aquarela sobre papel de arroz.
Tinha os gestos bem educados. sóbrios, despidos de
pretensão, falava em voz baixa, distintamente sem armar ao efeito; vestia-se
com seriedade e bom gosto; amava as artes, as ciências, a literatura e, um
pouco menos, a política.
Em toda a sua vida, sempre longe da pátria, entre
povos diversos, cheia de impressões diferentes tomada de preocupações de
estudos, jamais conseguira chegar a uma dedução lógica e satisfatória a
respeito da sua procedência. Não sabia ao certo quais eram as circunstâncias em
que viera ao mundo não sabia a quem devia agradecer a vida e os bens de que
dispunha. Lembrava-se no entanto de haver saído em pequeno do Brasil e podia
jurar que nunca lhe faltara o necessário e até o supérfluo. Em Lisboa tinha
ordem franca.
Mas quem vinha a ser essa pessoa encarregada de
acompanhá-la de tão longe?... Seu tutor, com certeza, ou coisa que o valha, ou
talvez seu próprio tio pois, quanto ao pai sabia Raimundo que já o não tinha
quando foi para Lisboa. Não porque chegasse a conhecê-lo, nem porque se
recordasse de ter ouvido de alguém o doce nome de filho, mas sabia-o por
intermédio do seu correspondente e pelo que deduzia de algumas vagas
reminiscências da meninice.
"Sua mãe, porem, quem seria?..." Talvez
alguma senhora culpada e receosa de patentear a sua vergonha!... "Seria
boa? Seria virtuosa?..."
Raimundo perdia-se em conjeturas e, malgrado o seu
desprendimento pelo passado, sentia alguma coisa atraí-lo irresistivelmente
para a pátria. "Quem sabia se ai não descobriria a ponta do enigma?...
Ele, que sempre vivera órfão de afeições legítimas e duradouras, como então
seria feliz!... Ah, se chegasse a saber quem era sua mãe, perdoar-lhe-ia tudo,
tudo!"
O quinhão de ternura, que a ela pertencia, estava
intacto no coração do filho. Era preciso entregá-lo a alguém! Era preciso
desvendar as circunstâncias que determinaram o seu nascimento!
"Mas, no fim de contas, refletia Raimundo em
um retrocesso natural de impressões, que diabo tinha ele com tudo isso, se até
ai, na ignorância desses fatos, vivera estimado e feliz!... Não foi decerto
para semelhante coisa que viera à província! Por conseguinte, era liquidar os
seus negócios, vender os seus bens e — por aqui é o caminho! O Rio de Janeiro
lá estava a sua espera!
"Abriria, ao chegar lá, o seu escritório, e,
ao lado da mulher com quem casasse e dos filhos que viesse a ter, nem sequer
havia de lembrar-se do passado!
"Sim, que mais poderia desejar melhor?...
Concluíra os estudos viajara muito, tinha saúde, possuía alguns bens de
fortuna. — Era caminhar pra frente e deixar em paz o tal — passado! — O
passado, passado! Ora adeus!"
E, chegando a esta conclusão, sentia-se feliz,
independente, seguro contra as misérias da vida, cheio de confiança no futuro.
"E por que não havia de fazer carreira? Ninguém podia ter melhores
intenções do que ele?.. Não era um vadio, nem homem de maus instintos; aspirava
ao casamento, à estabilidade; queria, no remanso de sua casa, entregar-se ao
trabalho sério, tirar partido do que estudara, do que aprendera na Alemanha, na
França, na Suíça e nos Estados Unidos. Faltava-lhe apenas vir ao Maranhão e
liquidar os seus negócios. — Pois bem! cá estava — era aviar e pôr-se de novo a
caminho!"
Foi com estas idéias que ele chegou à cidade de São
Luís. E agora, na restauradora liberdade do quarto, depois de um banho tépido,
o corpo ainda meio quebrado da viagem, o charuto entre os dedos, sentia se
perfeitamente feliz, satisfeito com a sua sorte e com a sua consciência
— Ah! bocejou fechando os olhos. É liquidar os
negócios e pôr-me ao fresco!...
E, com um novo bocejo, deixou cair ao chão o
charuto, e adormeceu tranqüilamente.
No entanto, a história de Raimundo, a história que
ele ignorava, era sabida por quantos conheceram os seus parentes no Maranhão.
Nasceu numa fazenda de escravos na Vila do Rosário,
muitos anos depois que seu pai, José Pedro da Silva ai se refugiara, corrido do
Pará ao grito de "Mata bicudo!" nas revoltas de 1831.
José da Silva havia enriquecido no contrabando dos
negros da África e fora sempre mais ou menos perseguido e malquisto pelo povo
do Pará; até que, um belo dia, se levantou contra ele a própria escravatura,
que o teria exterminado, se uma das suas escravas mais moças por nome Domingas,
não o prevenisse a tempo. Logrou passar incólume ao Maranhão, não sem pena de
abandonar seus haveres e risco de cair em novos ódios, que esta província, como
vizinha e tributária do comércio da outra, sustentava instigada pelo Farol
contra os brasileiros adotivos e contra os portugueses. Todavia, conseguiu
sempre salvar algum ouro; metal que naquele bom tempo corria abundante por todo
o Brasil e que mais tarde a Guerra do Paraguai tinha de transformar em
condecorações e fumaça.
A fuga fizeram eles, senhor e escrava, a pé, por
maus caminhos, atravessando os sertões. Ainda não existia a companhia de
vapores e os transportes marítimos dependiam então de vagarosas barcas, a vela
e remo e, às vezes, puxadas a corda, nos igarapés. Foram dar com os ossos no
Rosário. O contrabandista arranjou-se o melhor que pôde com a escrava que :. e
restava, e, mais tarde, no lugar denominado São Brás, veio a comprar uma
fazendola, onde cultivou café, algodão, tabaco e arroz.
Depois de vários abortos, Domingas deu à luz um
filho de José da Silva. Chamou-se o vigário da freguesia e, no ato do batismo
da criança, esta, como a mãe, receberam solenemente a carta de alforria.
Essa criança era Raimundo.
Na capital, entretanto, acalmavam-se os ânimos.
José prosperou rapidamente no Rosário; cercou a amante e o filho de cuidados;
relacionou-se com a vizinhança, criou amizades, e, no fim de pouco tempo,
recebia em casamento a Sra. D. Quitéria Inocência de Freitas Santiago, viúva,
brasileira rica, de muita religião e escrúpulos de sangue, e para quem um
escravo não era um homem, e o fato de não ser branco, constituía só por si um
crime.
Foi uma fera! a suas mãos, ou por ordem dela,
vários escravos sucumbiram ao relho, ao tronco, à fome, à sede, e ao ferro em
brasa. Mas nunca deixou de ser devota, cheia de superstições; tinha uma capela
na fazenda, onde a escravatura, todas as noites com as mãos inchadas pelos
bolos, ou as costas lanhadas pelo chicote, entoava súplicas à Virgem
Santíssima. mãe dos infelizes.
Ao lado da capela o cemitério das suas vítimas.
Casara com José da Silva por dois motivos
simplesmente: porque precisava de um homem, e ali não havia muito onde
escolher, e porque lhe diziam que os portugueses são brancos de primeira água.
Nunca tivera filhos Um dia reparou que o marido, a
titulo de padrinho, distinguia com certa ternura, o crioulo da Domingas e
declarou logo que não admitia, nem mais um instante, aquele moleque na fazenda.
— Seu negreiro! gritava ela ao marido, fula de
raiva. Você pensa que lhe deixarei criar, em minha companhia, os filhos que
você tem das negras?... Era só também o que faltava' Não trate de despachar-me,
quanto antes, o moleque, que serei eu quem o despacha, mas há de ser para ali,
para junto da capela!
José, que sabia perfeitamente de quanto ela era
capaz, correu logo à vila para dar as providências necessárias à segurança do
filho. Mas, ao voltar à fazenda, gritos horrorosos atrairam-no ao rancho dos
pretos. entrou descoroçoado e viu o seguinte:
Estendida por terra, com os pés no tronco, cabeça
raspada e mãos amarradas para trás, permanecia Domingos, completamente nua e
com as partes genitais queimadas a ferro em brasa. Ao lado, o filhinho de três
anos, gritava como um possesso, tentando abraçá-la, e, de cada vez que ele se
aproximava da mãe, dois negros, a ordem de Quitéria, desviavam o relho das
costas da escrava para dardejá-lo contra a criança. A megera, de pé, horrível,
bêbada de cólera, ria-se, praguejava obscenidades, uivando nos espasmos
flagrantes da cólera Domingas, quase morta, gemia, estorcendo-se no chão O
desarranjo de suas palavras e dos seus gestos denunciava já sintomas de
loucura.
O pai de Raimundo, no primeiro assomo de
indignação, tão furioso acometeu sobre a esposa, que a fez cair. Em seguida, ordenou
que recolhessem Domingas à casa dos brancos e que lhe prodigalizassem todos os
cuidados.
Quitéria, a conselho do vigário do lugar, um padre
ainda moço, chamado Diogo, o mesmo que batizara Raimundo, fugiu essa noite para
a fazenda de sua mãe, D. Úrsula Santiago, a meia légua dali.
O vigário era muito da casa das Santiago; dizia-se
até aparentado com elas. O caso é que foi na qualidade de confessor, parente e
amigo, que ele acompanhou Quitéria.
José da Silva, por esse tempo, chegava à cidade de São
Luís com o filho. Procurou seu irmão mais moço, o Manuel Pedro, e entregou-lhe
o pequeno, que ficaria sob as vistas do tio até ter idade para matricular-se
num colégio de Lisboa.
Feito isso, tornou de novo para a sua roga.
"Agora contava viver mais descansado. era natural que a mulher se deixasse
ficar em casa da mãe." Ao chegar lá, sabendo que não o esperavam essa
noite e como visse luz no quarto da esposa, apeou-se em distância e, para não
se encontrar com ela, guardou o cavalo e entrou silenciosamente na fazenda.
Os cães conheceram-no pelo faro e apenas rosnaram.
Mas, na ocasião em que ele passava de fronte do quarto de Quitéria, ouviu aí
sussurros de vozes que conversavam. Aproximou-se levado pela curiosidade e
encostou o ouvido à porta. Reconheceu logo a voz da mulher.
"Mas, com quem diabo ela conversaria aquela
hora?..."
Conteve a impaciência e esperou de ouvido alerta.
"Não havia dúvida! — a outra voz era de um
homem!..."
Sem esperar mais nada, meteu ombros à porta e,
precipitou-se dentro do quarto, atirando-se com fúria sobre a esposa, que
perdera logo os sentidos.
O padre Diogo, pois era dele a outra voz, não
tivera tempo de fugir e caíra, trêmulo, aos pés de José. Quando este largou das
mãos a traidora, para se apossar do outro, reparou que a tinha estrangulado.
Ficou perplexo e tolhido de assombro.
Houve então um silêncio ansioso. Ouvia-se o
resfolegar dos dois homens. A situação dificultava-se; mas o vigário,
recuperando o sangue-frio, ergueu-se, concertou as roupas e, apontando para o
corpo da amante, disse com firmeza:
— Matou-a! Você é um criminoso!
— Cachorro! E tu?! Tu serás porventura menos
criminoso do que eu?
— Perante as leis, decerto! porque você nunca
poderá provar a minha suposta culpa e, se tentasse fazê-lo, a vergonha do fato
recairia toda sobre a sua própria cabeça, ao passo que eu, além do crime de
injúria consumado na minha sagrada pessoa, sou testemunha do assassínio desta
minha infeliz e inocente confessada, assassínio que facilmente documentarei com
o corpo de delito que aqui está!
E mostrava a marca das mãos de José na garganta do
cadáver.
O assassino ficou aterrado e abaixou a cabeça.
— Vamos lá!... disse o padre afinal, sorrindo e
batendo no ombro do português. Tudo neste mundo se pode arranjar, com a divina
ajuda de Deus... só para a morte não há remédio! Se quiser, a defunta será
sepultada com todas as formalidades civis e religiosas...
E, dando à voz um cunho particular de autoridade: —
Apenas pelo meu silêncio sobre o crime, exijo em troca o seu para a minha
culpa... Aceita?
José saiu do quarto, cego de cólera, de vergonha e
de remorso.
— Que vida a sua! exclamava. Que vida, santo Deus!
O padre cumpriu a promessa o cadáver enterrou-se na
capela de São Brás, ao lado das suas vítimas; e todos os do lugar, até mesmo os
de casa, atribuíram a morte de Quitéria ao espírito maligno que se lhe havia
metido no corpo.
O vigário confirmava esses boatos e continuava a
pastorar tranqüilamente o seu rebanho, sempre tido por homem de muita saudade e
de grandes virtudes teologais. Os devotos continuaram a trazer-lhe, de muitas
léguas de distância, os melhores bácoros, galinhas e perus dos seus cercados.
Em breve, as coisas voltavam todas aos eixos: José
entregou a fazenda a Domingas e mais três pretos velhos, que alforriou logo, e,
acompanhado pelo resto da escravatura, seguiu para a cidade de São Luís, no
propósito de liquidar seus bens e recolher-se à pátria com o filho.
A mãe de Raimundo conseguiu enfim descansar. São
Brás criou a sua lenda e foi aos poucos ganhando fama de amaldiçoada.
Entretanto, o pequeno, quando chegou à casa do tio na capital, estava, como
facilmente se pode julgar, com a pele sobre os ossos. A falta de cuidados
espalhara-lhe na carinha opada uma expressão triste de moléstia; quase que não
conseguia abrir os olhos. Todo ele era mau trato e fraqueza; tinha o estômago
muito sujo, a língua saburrenta, o corpo a finar-se de reumatismo e tosse
convulsa, o sangue predisposto à anemia escrofulosa. Apesar do instinto
materno, que a tudo resiste e vence, a pobre escrava não podia olhar nunca pelo
filho: lá estava Quitéria para desviá-la dele, para cortar-lhe as carícias a
chicote; tanto assim, que, quando José lhe anunciou que Raimundo ia para a casa
do fio na cidade, a infeliz abençoou com lágrimas desesperadas aquela
separação.
Todavia, o desgraçadinho foi encontrar em Mariana,
cunhada de seu pai, a mais carinhosa e terna das projetoras. A boa senhora,
como sabia que o marido o pouco que tinha devia à generosidade do irmão,
julgou-se logo obrigada a servir de mãe ao filho deste. Ana Rosa, único fruto
do seu casamento, ainda não era nascida nesse tempo, de sorte que as premissas
da sua maternidade pertenceram ao pupilo.
Dentro em pouco, no agasalho carinhoso daquelas
asas de mãe, Raimundo, de feio que era, tornou-se uma criança forte, sã e
bonita.
Foi então que Ana Rosa veio ao mundo; a principio
muito fraquinha e quase sem dar acordo de si. Manuel andava aflito, com medo de
perdê-la. Que luta, os três primeiros meses de sua vida! Parecia morrer a todo
instante, coitadinha! Ninguém dormia na casa; o negociante chorava como um
perdido, enquanto a mulher fazia promessas aos santos da sua devoção.
Era por isto que a menina, mais tarde, se recordava
agradavelmente de ter feito o anjo da verônica nas procissões da quaresma.
E ao lado de Mariana, que noite e dia velava o
berço da filhinha enferma, estava Mundico, o outro filho, que este também a
chamava de mãe e já se não lembrava da verdadeira, da preta que o trouxera nas
entranhas.
A menina salvou-se, graças aos bons serviços de um
médico, que chegara havia pouco da universidade de Montpellier, Dr. Jauffret,
e, a partir daí Manuel não quis saber de outro facultativo em sua casa.
Por essa época, mais ou menos, chegava do Rosário a
notícia de haver D. Quitéria sucumbido a uma congestão cerebral.
— Deu-lhe de repente! explicava o correio, com o
seu saco de couro às costas. Foi obra do sujo, credo!
E, pouco depois, José Pedro da Silva, todo coberto
de luto, muito encanecido e desfeito, vinha liquidar os seus negócios e partir
logo para Portugal. Manuel estimava-o deveras e sentia-se de vê-lo naquele
estado.
Aprontou-se tudo para a viagem e José recolheu-se a
última noite em casa do irmão. Mas não pôde pregar olho, estava excitado, e a
lembrança dos terríveis sucessos, que ultimamente se haviam dado com ele, nunca
o apoquentara tanto. Levantou-se e começou a passear no quarto, a falar
sozinho, nervoso, delirante, vendo surgir espectros de todos os lados.
Pelas quatro horas da madrugada, Manuel,
impressionado, porque, de todas as vezes que acordava, via luz no quarto do
hóspede e ouvia-lhe o som dos passos trôpegos e vacilantes, e sentia-lhe os
gemidos abafados e o vozear frouxo e doloroso, não se pôde ter e levantou-se.
"Terá alguma coisa o José?..." pensou ele, embrulhando-se no lençol e
tomando aquela direção. A porta achava-se apenas no trinco, abriu-a devagar e
entrou. O viúvo, ao sentir alguém, voltou-se assombrado e dando com o fantasma
que lhe invadia a alcova, recuou de braços erguidos, entre gritos terror.
Manuel correu sobre ele; mas antes que se desse a conhecer, já o assassino de
Quitéria havia caldo desamparadamente no chão.
Fez-se logo um grande motim por toda a casa, que
era nesse tempo no Caminho Grande, e na qual os caixeiros do negociante ainda
neo moravam com o patrão. A boa Mariana acudiu pronta cheia de zelo. "Um
escalda-pés! depressa!" dizia, apalpando os contraídos e volumosos pós do
cunhado. Tisanas, mezinhas de toda a espécie, foram lembradas; pôs-se em campo
a medicina doméstica, e, daí a uma hora o desfalecido voltava a si.
Mas não pôde erguer-se: ficara muito prostrado. À
síncope sobreveio-lhe uma febre violenta, que durou até à noite, quando chegou
afinal o Jauffret.
Era uma febre gástrica, explicou este. E mais: que
a moléstia; requeria certo cuidado&emdash;muito sossego de espírito! Nada
de bulha, principalmente!
José, malgrado a recomendação do médico, quis ver o
filho. Abraçou-o soluçando, disse-lhe que estava para morrer. E no outro dia
ainda de cama, perfilhou-o; pediu um tabelião, fez testamento e, chorando,
chamou Manuel para seu lado.
— Meu irmão, recomendou-lhe. Se eu for desta... o
que é possível, remete-me logo o pequeno para a casa do Peixoto em Lisboa.
Terminou dizendo "que o queria — com muito
saber — que o metessem num colégio de primeira sorte. Ficava ai bastante
dinheiro... não tivessem pena de gastar com o seu filho; que lhe dessem do
melhor e do mais fino". Estas coisas fizeram-no piorar; já todos os
choravam como morto, e, pelos dias de mais risco, quando José delirava na sua
febre, apareceu em casa do Manuel o pároco do Rosário; vinha muito solicito,
saber do estado do seu amigo José "do seu irmão" dizia ele com uma
grande piedade.
E daí, não abandonava a casa. Prestava-se a um
tudo, serviçal discreto, às vezes choramingando porque lhe vedavam a entrada no
quarto do enfermo Manuel e Mariana não se furtavam de apreciar aquela
solicitude do bom padre, o interesse com que ele chegava todos os dias para
pedir noticias do amigo. Dispensavam-lhe um grande acolhimento; achavam-no
meigo, jeitoso e simpático.
— É um santo homem! dizia Manuel convencido.
Mariana confirmava acrescentando em voz baixa:
— Por adulação não é, coitado! Todos sabem que o
padre Diogo não precisa de migalhas!...
— É remediado de fortuna, pois não! Mas, olhe, que
sabe aplicar bem o que possui...
Seguia-se uma longa resenha dos episódios louváveis
da vida do santo vigário; citavam-se rasgos de abnegação, boas esmolas a
criaturas desamparadas, perdões de ofensas graves, provas de amizade e provas
de desinteresse. "Um santo! Um verdadeiro santo!"
E assim foi o padre Diogo tomando pé em casa de
Manuel e fazendo-se todo de lá. Já contavam com ele para padrinho de Ana Rosa;
esperavam-no todas as tardes com café, e à noite, nos serões da família, marido
e mulher não perdiam ocasião de contar as boas pilhérias do senhor vigário,
glorificar-lhe as virtudes religiosas e recomendá-lo às visitas como um
excelente amigo e magnífico protetor. Um dia em que ele, como sempre, cheio de
solicitude, perguntava pelo "seu doente" disseram-lhe que José estava
livre de maior perigo e que o restabelecimento seria completo com a viagem à
Europa. Diogo sorriu, aparentemente satisfeito; mas, se alguém lhe pudesse
ouvir o que resmungava ao descer as escadas, ter-se-ia admirado de ouvir estas
e outras frases:
— Diabo!... Querem ver que ainda não se vai desta,
o maldito?... E eu, que já o tinha por despachado!...
No dia seguinte, dizia o velhaco ao futuro
compadre: — Bom, agora que o nosso homem está livre de perigo, posso ir mais
sossegado para a minha paróquia... Já não vou sem tempo!...
E despediu-se, todo boas palavras e sorrisos
angélicos, acompanhado pelas bênçãos da família.
— Senhor vigário! gritou-lhe Mariana do patamar da
escada. Não faça agora como os médicos, que só aparecem com as moléstias!...
Seja cá de casa!
&emdash;Venha de vez em quando, padre!
acrescentou Manuel. Apareça!
Diogo prometeu vagamente, e nesse mesmo dia
atravessou o Boqueirão em demanda da sua freguesia.
Essa noite, nas salas de Manuel, só se conversou
sobre as boas qualidades e os bons precedentes do estimado cura do Rosário.
José, com geral contentamento dos de casa,
convalescia prodigiosamente. Manuel e Mariana cercavam-no de afagos, desejosos
por fazê-lo esquecer a imprudência da madrugada fatal, o que, supunham, fosse o
único motivo da moléstia; daí a coisa de um mês, o convalescente resolveu tomar
à fazenda, a despeito das instâncias contrárias da cunhada e dos conselhos do
irmão.
— Que vais lã fazer, homem de Deus? perguntava
este. Se era por causa da Domingas, que diabo! fizesse-a vir! O melhor porém,
segundo a sua fraca opinião, seria deixá-la lã onde estava. Uma preta da roça,
que nunca saiu do mato!...
Não! não era isso! respondia o outro. Mas neo iria
para a terra, sem ter dado uma vista d'olhos ao Rosário!
— Ao menos não vai só, José. Eu posso
acompanhar-te.
José agradeceu. Que já estava perfeitamente bom. E,
em caso de necessidade, podia contar com os canoeiros, que eram todos seus
homens.
E dizia as inúmeras viagens que tinha feito até
ali; contava episódios a respeito do Boqueirão. "E que se deixassem disso!
Não estivessem a fazer daquela viagem um bicho de sete cabeças!... Haviam de
ver que, antes do fim do mês, estava ele de velas para Lisboa."
Partiu. A viagem correu-lhe estúpida, como de
costume naquele tempo, em que o Maranhão ainda não tinha vapores. Demais, a sua
fazenda era longe, muito dentro, a cinco léguas da vila. Urgia, por
conseguinte, demorar-se aí algumas horas antes de internar-se no mato; comer,
beber, tratar dos animais; arranjar condução e fazer a matalotagem.
Os poucos familiarizados com tais caminhos tomam
sempre, por precaução, um "pajem", é este o nome que ali
romanticamente se dá ao guia; e o pajem menos serve para guiar o viajante, que
a estrada é boa, do que para lhe afugentar o tenor dos mocambos, das onças e
cobras de que falam com assombro os moradores do lugar.
Não é tão infundado aquele tenor: o sertão da
província está cheio de mocambeiros, onde vivem os escravos fugidos com suas
mulheres e seus filhos, formando uma grande família de malfeitores. Esses
desgraçados, quando não podem ou não querem viver da caça, que é por lá muito
abundante e de fácil venda na vila, lançam-se à rapinagem e atacam na estrada
os viajantes; travando-se, às vezes, entre uns e outros, verdadeiras
guerrilhas, em que ficam por terra muitas vítimas.
José da Silva comprou na vila o que lhe convinha e
seguiu, sem pajem para a fazenda.
Ah! Ele conhecia perfeitamente essas paragens!...
E quantas recordações não lhe despertavam aquelas
carnaubeiras solitárias, aqueles pindovais ermos e silenciosos e aqueles
trêmulos horizontes de verdura! Quantas vezes, perseguindo uma paca ou um
veado, não atravessou ele, a galope, aqueles barrancos perigosos que se perdiam
da estrada!
Pungia-lhe agora deixar tudo isso; abandonar o
encanto selvagem das florestas brasileiras O europeu sentia-se americano,
familiar às vozes misteriosas daqueles caités sempre verdejantes, habituado à
companhia austera daquelas árvores seculares, às sestas preguiçosas da fazenda,
ao viver amplo da roga, descalço, o peito nu, a rede embalada pela viração
cheirosa das matas, o sono vigiado por escravos.
E tinha de deixar tudo isso!
"Para que negar? Havia de custar-lhe
muito!" considerou ele, fazendo estacar o seu animal. Havia andado quatro
léguas e precisava comer alguma coisa.
No interior do Maranhão o viajante, de ordinário,
"pousa" e come nas fazendas que vai encontrando pelo caminho, tanto
que todas elas, contando já com isso, têm sempre cômodos especiais, destinados
exclusivamente aos hóspedes adventícios; mas com José da Silva, que, aliás
muitas e muitas vezes pernoitara em diversas e conhecia de perto a
hospitalidade dos seus vizinhos, a coisa mudava agora de figura: não queria de
forma alguma suportar a companhia de ninguém; receava que o interrogassem sobre
a morte da mulher. Preferiu pois jantar mesmo ao relento, e seguir logo sua
viagem.
Não obstante, ia já escurecendo, as cigarras
estridulavam em coro; ouvia-se o lamentoso piar das rolas que se aninhavam para
dormir; toda a natureza se embuçava em sombras, bocejando.
Anoitecia lentamente.
Então, José da Silva sentiu mais negra por dentro a
sua viuvez; sentiu um grande desejo de chegar a casa, mas queria encontrar uma
boa mesa, onde comesse e bebesse à vontade, como dantes; queria a sua cama
larga, de casados, o seu cachimbo, o seu trajo de casa.
Ah! Nada disso encontraria!... O quarto, em que
ele, durante tantos anos, dormia feliz, devia ser àquela hora um ermo pavoroso;
a cozinha devia estar gelada, os armários vazios, a horta murcha, os potes
secos, o leito sem mulher!
Que desconsolo!
Apesar de tudo sentia fundas saudades da esposa.
— Como o homem precisa de família! .. lamentava ele
no seu isolamento. Ah padre! Aquele maldito padre! E daí, quem sabe?... se eu
perdoasse?... ela talvez se arrependesse e viesse ainda a dar uma boa
companheira, virtuosa e dócil!... Mas... e ele?... Oh nunca! Ele existiria! A
duvida continuava na mesma! Ele, só ele é que eu devia ter matado!
E depois de refletir um instante:
— Não! antes assim! Assim foi melhor!
Esta conclusão, arrancada só pelo seu espírita
religioso, foi seguida de um movimento rápido de esporas. O cavalo disparou.
Fez-se então um correr vertiginoso, em que José, todo vergado sobre a sela,
parecia dormir na cadeia do galope. Mas, de súbito, contraiu as rédeas e o animal
estacou.
O cavaleiro torceu a cabeça, concheando a mão atrás
da orelha. Vinha de longe uma toada estranha de vozes sussurrantes, e um
confuso tropel de cavalgaduras.
A noite exalava da floresta. Sentiam-se ainda as
derradeiras claridades do dia e já também um crescente acumular de sombras. A
lua erguia se, brilhando com a altivez de um novo monarca que inspeciona os
seus domínios, e o céu ainda estava todo ensangüentado da púrpura do último
sol, que fugia no horizonte, trêmulo. como um rei expulso e envergonhado.
José da Silva, entregue todo aos seus tormentos.
assistia, sem apreciar, ao espetáculo maravilhoso de um crepúsculo de verão no
extremo norte do Brasil.
O sol descambava no ocaso, retocando de tons
quentes e vigorosos, com a minuciosidade de um pintor flamengo, tudo aquilo que
o cercava. Desse lado, montes e vales tinham orlas de ouro; era tudo vermelho e
esfogueado: ao passo que, do ponto contrário, lhe opunha o luar o doce
contraste da sua luz argentina e fresca, debuxando contra o horizonte o trêmulo
e duvidoso perfil das carnaubeiras e dos pindovais.
Destas bandas, no conflito boreal daquelas duas
luzes inimigas, um grupo mal definido e rumoroso agitava-se e crescia
progressivamente.
Era uma caravana de ciganos que se aproximava.
Vinha lentamente, com o passo frouxo de uma boiada.
Na solidão tristonha e sombria da floresta iam-se pouco a pouco distinguindo
vozes de tons diversos e acentuavam-se grupo de homens. mulheres e crianças, de
todas as cores e de todas as idades, cavalgando magníficos animais. Uns
cantavam ao embalo monótono da besta; outros tocavam viola; esta acalentava o
filho, aquela repetia as modas que lhe ensinara a gajoa. Viam-se moços. de
calça e quinzena, cabelos grandes, o ar indolente, o cachimbo ao canto da boca,
o olhar vago e cheio de volúpia, ao lado de raparigas fortes, queimadas do sol,
com as melenas muito negras e lisas escorrendo sobre a opulência das espáduas.
Sentavam-se à moda de odaliscas em volumosas trouxas, que serviam, a um tempo,
de alforje e de sela. Algumas delas traziam filhos ao colo ou na garupa do
cavalo.
E, lenta e pesadamente, a caravana dos ciganos se
aproximava. José escondeu-se no mato, para a ver passar.
Com certeza vinha enxotada de alguma fazenda,
porque o chefe, um velho membrudo, de grandes barbas brancas, olhos cor de
fumo, cavados e sombrios, mas irrequietos e vivos, erguia, de vez em quando, o
braço e ameaçava o poente:
— Jacarés te piquem diabo! Atravessado tu sejas na
boca de um bacamarte!
E a voz rouca e profunda do ancião perdia-se na
floresta.
Meio deitada nas pernas dele, cingindo-lhe a
cintura, uma mulher bela, o colo nu e fresco, a garganta lisa e carnuda,
procurava, com o olhar muito mole de uma ternura úmida e escrava, diminuir-lhe
a cólera.
E a caravana, iluminada pelos últímos raios da
claridade poente, foi passando. E a pouco e pouco o sussurrar das vozes foi se
perdendo no tristonho murmúrio das matas, como no horizonte se perdia a última
réstia de luz vermelha.
Em breve, tudo recaiu no silêncio primitivo, e a
lua, do alto, baldeava com a sua luz misteriosa e triste a solidão das
clareiras.
José ficou imóvel, pensativo, perdido num desgosto
invencível. O espetáculo daquele velho boêmio, abraçado a uma mulher bonita e
sem dúvida fiel, mordia-o por dentro com o dente mais agudo da inveja.
"Aquele. um vagabundo, um miserável. sem lar, sem dinheiro, sem mocidade
ao menos, tinha contudo nesta vida uma fêmea que o acarinhava e seguia como
escrava: ao passo que ele, ali, no meio do campo, desacompanhado, inteiramente
esquecido, chorava, porque lhe arrancaram tudo, tudo — a casa, a mulher e a
felicidade!" E depois pela associação natural das idéias, punha-se a
lembrar do rosto pálido de Diogo. A despeito do ódio que lhe votava, achava-o
bonito, com o seu cabelo todo anelado, o sorriso temo e piedoso, olhos e lábios
de uma expressão sensual e ao mesmo tempo religiosa. Este contraste devia por
força agradar às mulheres, vencê-las pelos mistérios, pelo incognoscível. E
chorava, chorava cada vez mais.
"Como eles não se amariam!... Quanto prazer
não teriam desfrutado!... "
Instintivamente comparava-se ao padre e, cheio de
raiva, de inveja, reconhecia-se inferior. De repente, veio-lhe esta idéia:
"E se eu o matasse?..."
Repeliu-a logo, sem querer nem ao menos escutá-la;
mas a idéia não ia e agarrava-se-lhe ao cérebro, com uma obstinação de
parasita.
Então, vieram-lhe à lembrança, sob uma
reminiscência lúcida e saudosa&emdash;o seu casamento, os sobressaltos
felizes do noivado, o namoro de Quitéria. Tudo isso nunca lhe pareceu tão bom,
tão apetecível como naquele momento. Agora, descobria na mulher virtudes e
belas qualidades, para as quais nunca atentara dantes.
"Seria eu o culpado de tudo?... Não teria
cumprido com os meus deveres de bom esposo?.. Seriam insuficientes os meus
carinhos?.." interrogava ele à própria consciência; esta respondia
opondo-lhe duvidas que valiam acusações. Ele defendia-se, explicava os fatos,
citava provas em favor, lembrava a sua dedicação e a sua amizade pela defunta;
mas a maldita rezingueira não se acomodava e não aceitava razões. E José abriu
a chorar como um perdido.
Surpreendeu-se neste estado; quis fugir de si
mesmo, e cravou as esporas no cavalo. Correu muito, à rédea solta como se
fugira perseguido pela própria sombra.
"E se eu o matasse?..."
Era a maldita idéia que vinha de novo à superfície
dos seus pensamentos.
"Não! Não!" E ele a repelia de novo
empurrando-a para o fundo da sua imaginação, como o assassino que repele no mar
o cadáver da sua vítima; ela mergulhava com o impulso, mas logo reaparecia,
boiando.
"E se eu o matasse?..."
— Não! não! exclamou, desferindo um grito no
silêncio da floresta. Já basta a outra!
E assanhavam-se-lhe os remorsos.
Nesse momento uma nuvem escondera a lua. Espectros
surgiam no caminho; José suava e tremia sobre a sela; o mais leve mexer de
galhos eriçava-lhe os cabelos.
No entanto — corria.
Pouco lhe faltava já para chegar à fazenda, muito
pouco, uma miserável distancia, e, contudo, mais lhe custava esse pouco do que
todo o resto da viagem. Fechou os olhos e deixou que o cavalo corresse à toa,
galopando ruidosamente na terra úmida de orvalho. Ele ofegava, acossado por
fantasmas Via a sua vitima. com a boca muito aberta, os olhos convulsos, a
falar-lhe coisas estranhas numa voz de moribunda, a língua de fora, enorme e
negra, entre gorgolhões de sangue. E via também surgir aquele padre infame,
bater-lhe no ombro, apresentar-lhe, sorrindo, um alvitre, propor uma condição e
passar logo à ameaça brutal: "Tenho-te na mão, assassino! Se quiseres
punir-me, entrego-te à justiça! "
E José gritou, como doido, soluçando:
— E eu aceitei, diabo! Eu aceitei!
Nisto, o cavalo acuou. Um vulto negro agitou-se por
detrás do tronco de um ingazeiro, e uma bala, seguida pela detonação de um
tiro, varou o peito de José da Silva.
Os negros de São Brás viram aparecer lá o animal as
soltas, e todo salpicado de sangue, tinham ouvido um tiro para as bandas da
estrada, correram todos nessa direção à procura da vítima.
Foi Domingas que a descobriu, e, num delito,
precipitou-se contra o cadáver, a beijar-lhe as mãos e as faces.
— Meu senhor! meu querido' meus amores! exclamava
ela, a soluçar convulsivamente.
Mas, tomada de uma idéia súbita, ergueu-se, e
gritou, apontando vagamente para o lado da vila.
— Foi ele! Não foi outro! Foi aquele malvado! Foi
aquele padre do diabo!
E pôs-se a rir e a dançar, batendo palmas e
cantando. Era a loucura que voltava.
O crime foi atribuído aos mocambeiros e o corpo de
José da Silva enterrado junto à sepultura da mulher, ao lado da capela, que
principiava a desmoronar com a mingua dos antigos cuidados.
A fazenda aos poucos se converteu em tapera e
lendas e superstições de todo o gênero se inventaram para explicar-lhe o abandono.
O vigário do lugar, pessoa insuspeita e criteriosa, nem só confirmava o que
diziam, como aconselhava a que não fossem lá. ''Aquilo eram terras
amaldiçoadas!"
Anos depois, contavam que nas ruínas de São Brás
vivia uma preta feiticeira, que, por alta noite, saia pelos campos a imitar o
canto da mãe-da-lua.
Ninguém se animava a passar perto dali, e o
caminheiro descuidado, que se perdesse em tais paragens, via percorrer o
cemitério, a cantar e a rodar, um vulto alto e magro de mulher, coberto de andrajos.
A morte inesperada de José causou grande abalo no
irmão e ainda mais em Mariana. Raimundo era muito criança, não a compreendeu;
por esse tempo teria ele cinco anos, se tanto. Vestiram-no de sarja preta e
disseram-lhe que estava de luto pelo pai. Manuel tratou do inventário; recebeu
o que lhe coube e mais a mulher na herança; depositou no recém-criado banco da
província o que pertencia ao órfão e, apesar das vantagens que propôs para
vender ou arrendar a fazenda de São Brás, ninguém a quis. Isto feito, escreveu
logo para Lisboa, pedindo esclarecimentos à Casa Peixoto, Costa & Cia., e
uma vez bem informado no que desejava, remeteu o sobrinho para um colégio
daquela cidade.
Muito custou à bondosa Mariana separar-se de
Raimundo. Doía aquele coração amoroso ver expatriar-se, assim, tão sem mãe, uma
pobre criança de cinco anos. O pequeno, todavia, depois de preparado com todo o
desvelo, foi metido, a chorar, dentro de um navio, e partiu.
Ia recomendado ao comandante e lamentava-se muito
em viagem. Quando chegou a Lisboa teve horror de tudo que o cercava.
Entretanto, foi sempre bem tratado: seu correspondente hospedou-o como a um
parente, tratou o como filho; depois, meteu-o num colégio dos melhores.
Raimundo envergou o uniforme da casa, recebeu um
número, e freqüentou as aulas. A princípio, logo que o deixavam sozinho,
punha-se a chorar. Tinha muito medo do escuro; à noite, cosia-se contra a
parede, abraçado aos travesseiros. Não gostava dos outros meninos, porque lhe
chamavam "Macaquinho". Era teimoso, cheio de capuchos, ressentia-se
muito da má educação que os portugueses trouxeram para o Brasil.
No colégio era o único estudante que se chamava
Raimundo e os colegas ridicularizavam-lhe o nome, "Raimundo Mundico
Nico!" diziam lhe, puxando-lhe a blusa e batendo-lhe na cabeça tosquiada à
escovinha; até que ele se retirava enfiado, sem querer tomar ao recreio, a
chorar e a berrar que o mandassem para a sua terra. Mas, com o tempo,
apareceram lhe amigos e a vida então se lhe afigurou melhor. Já faziam as suas
palestras; os companheiros não se cansavam de pedir-lhe informação sobre o
Brasil. "Como eram os selvagens?... E se a gente encontrava, pelas ruas,
mulheres despidas: e se Raimundo nunca fora varado por alguma flecha dos
caboclos."
Um dia recebeu uma carta de Mariana e, pela
primeira vez, deu-se ao cuidado de pensar em si. Mas as suas reminiscências não
iam além da casa do tio; no entanto, queria parecer-lhe que a sua verdadeira
mãe não era aquela senhora aquela vinha a ser sua tia, porque era a mulher de
seu tio Manuel: e até, se lhe não falhava a memória, por mais de uma vez ouvira
dela própria falar na outra, na sua verdadeira mãe... 'Mas quem seria a outra?
Como se chamava?... Nunca lho disseram!..."
Quanto a seu pai, devia ser aquele homem barbado
que, numa noite, lhe apareceu, muito pálido e aflito, e por quem pouco depois o
cobriram de luto. Da cena dessa noite lembrava-se perfeitamente! Já estava
recolhido, foram buscá-lo à rede e trouxeram-no, estremunhado, para as pernas do
tal sujeito, por sinal que as suas barbas tinham na ocasião certa umidade
aborrecida, que Raimundo agora calculava ser produzida pelas lágrimas; depois
foi se deitar e não pensou mais nisso. Recordava-se também. mas não com tamanha
lucidez, do tempo em que aquele mesmo homem esteve doente, lembrava-se de ter
recebido dele muitos beijos e abraços, e só agora notava que todos esses afagos
eram sempre ocultos e assustados, feitos como que ilegalmente, às escondidas, e
quase sempre acompanhados de choro.
Depois destas e outras divagações pelo passado,
Raimundo, se bem que muito novo ainda, punha-se a pensar e os véus misteriosos
da sua infância assombravam-lhe já o coração com uma tristeza vaga e obscura,
numa perplexidade cheia de desgosto. Todo o seu desejo era correr aos braços de
Mariana e pedir-lhe que lhe dissesse, por amor de Deus, quem afinal vinha a ser
seu pai e, principalmente, sua mãe.
Passaram-se anos, e ele permaneceu enleado nas
mesmas dúvidas. Concluiu os seus preparatórios, habilitou-se a entrar para a
Academia. E sempre as mesmas incertezas a respeito da sua procedência.
Matriculou-se em Coimbra. Desde então a sua vida
mudou radicalmente; todo ele se transformou nos seus modos de ver e julgar.
Principiou a ser alegre.
Mas um golpe terrível veio de novo entristecê-lo —
a morte da sua mãe adotiva. Chorou-a longa e amargamente; não só por ela, mas
também muito por si próprio: perdendo Mariana, perdia tudo que o ligava ao
passado e à pátria. Nunca se considerou tão órfão. Todavia, com o correr dos
tempos, dispersaram-se-lhe as magoas e a mocidade triunfou; a criança
melancólica produziu um rapaz cheio de vida e bom humor; sentiu-se bem dentro
da sua romântica batina de estudante; meteu-se em pândega com os colegas;
contraiu novos amigos, e afinal reparou que tinha talento e graça; escreveu
sátiras, ridicularizando os professores antipatizados; ganhou ódios e
admiradores; teve quem o temesse e teve quem o imitasse. No segundo ano deu
para namorador: atirou-se aos versos líricos, cantou o amor em todos os metros
depois vieram-lhe idéias revolucionárias, meteu-se em clubes incendiários,
falou muito, e foi aplaudido pelos seus companheiros. No terceiro ano tornou-se
janota, gastou mais do que nos outros, teve amantes, em compensação veio-lhe a
febre dos jornais, escreveu com entusiasmo sobre todos os assuntos, desde o
artigo de fundo até à crônica teatral. No quarto, porém, distinguiu-se na
Academia, criou gosto pela ciência, e daí em diante fez-se homem, firmou a sua
imputabilidade, tomou-se muito estudioso e sério. Seus discursos acadêmicos
foram apreciados; elogiaram-lhe a tese. Formou-se.
Veio-lhe então à idéia fazer uma viagem. Em Coimbra
todos o diziam rico; tinha ordem franca. Preparou as malas. Sua principal
ambição era instruir-se, instruir-se muito, abranger a maior quantidade de
conhecimentos que pudesse; e senha-se cheio de coragem para a luta e cheio de
confiança no seu esforço.
Às vezes, porém uma sombra de tristeza mesquinha
toldava-lhe as aspirações — não sabia ao certo de quem descendia, e de que modo
e por quem, fora adquirido aquele dinheiro que lhe enchia as algibeiras.
Procurou o seu correspondente em Lisboa, pediu-lhe esclarecimentos a esse
respeito — Nada! O Peixoto dizia-lhe, em tom muito seco, "que o pai de
Raimundo havia morrido antes da chegada deste a Portugal, e o fio, o tutor,
esse estava no Maranhão, estabelecido na Rua da Estrela com um armazém de
fazendas por atacado". De sua mãe — nem uma palavra, nem uma
atribuição!...
Era para enlouquecer! "Mas, afinal, quem seria
ela?... Talvez irmã daquela santa senhora que foi para ele uma segunda mãe...
Mas então por que tanto mistério?... Seta alguma história, a tal ponto
vergonhosa, que ninguém se atrevesse a revelar-lhe?... Seria ele enjeitado?...
Não, decerto, porque era herdeiro de seu pai..." E Raimundo, quanto mais
tentava por a limpo a sua existência, mais e mais se perdia no dédalo das
conjeturas.
Das cartas que recebia do Brasil, nem uma só lhe
falava no passado, e todavia, era tanto o seu empenho em penetrá-lo, que às
vezes, com muito esforço de memória, conseguia reconstruir e articular
fragmentos dispersos de algumas reminiscências, incompletas e vagas, da sua
infância. Lograva recordar-se da Aniquinha, que tantas noites, adormecera a seu
lado, na mesma esteira, ouvindo cantar por D. Mariana o "Boizinho do
curral, vem papar neném"; recordava-se também da Sra. D. Maria Bárbara, a
sogra de Manuel, que ia, com muito aparato, visitar a neta; passar dias. Em
geral, ela chegava à boca da noite, no seu palanquim carregado por dois
escravos, vestida de enorme roda cercada de crias e moleques, precedida por um
preto encarregado de alumiar a n a com um lampião de folha, oitavado, duas
velas no centro. E o demônio da mulher sempre a ralhar, sempre zangada, batendo
nos negros e a implicar com ele, Raimundo, a quem, todas as vezes que lhe dava
a mão a beijar, pespegava com as costas destas uma pancada na boca. E
recordava-se bem do rosto macilento de Mana Bárbara, já então meio descaído;
recordava-se dos seus olhos castanho-claros, de seus dentes triangulares,
truncados a navalha, como barbaramente faziam dantes, por luxo, as senhoras do
Maranhão, criadas em fazenda.
Raimundo, uma vez, ainda em Coimbra, aspirando o
cheiro de alfazema queimada, sentiu, como por encanto, sugerirem-lhe à memória
muitos fatos de que nunca se recordara até então. Lembrou-se logo do nascimento
de Ana Rosa: A casa estava toda silenciosa e impregnada daquele odor; Mariana
gemia no seu quarto; Manuel andava, de um para outro lado da varanda, inquieto
e desorientado; mas, de repente, apareceu na porta do quarto uma mulata gorda,
a quem davam o tratamento de "Inhá comadre", e esta, que vinha
alvoroçada, chamou de parte o dono da casa, disse-lhe alguma coisa em segredo,
e daí a pouco estavam todos felizes e satisfeitos. E ouvia-se vir lá de dentro
um grunhido fanhoso, que parecia uma gaita. Na ocasião, Raimundo nada
compreendeu de tudo isto; disseram-lhe que Mariana recebera uma menina de
França, e ele acreditou piamente.
Assim lhe acudiam outras recordações; por exemplo a
do macassar cheiroso, então muito em uso na província, com que D. Mariana lhe
perfumava os cabelos todas as manhãs antes do café; mas, dentre tudo, do que
melhor ele se recordava era dos lampiões com que iluminavam a cidade. Ainda lá
não havia gás, nem querosene; ao bater d'AveMarias vinha o acendedor, desatava
a corrente do lampião, descia-o, abria-o, despejava-lhe dentro aguarrás
misturada com álcool, acendia-lhe o pavio, guindava-o novamente para o seu
lugar, e seguia adiante. "E que mau cheiro em todas as esquinas em que
havia iluminação!... Oh! a não ser que estivesse muito transformada a sua
província devia ser simplesmente horrível!"
Não obstante, queria lá ir. Sentia atrações por
essa pátria, quase tão desconhecida para ele como o seu próprio nascimento
misterioso. "Com a viagem descobriria tudo! Mas, primeiro, era preciso dar
um passeio à Europa."
E, resolvido, foi ao escritório de Peixoto, Costa
& Cia., sacou a quanta de que precisava, abraçou os amigos, e fez-se de
vela para a França.
Passou pela Espanha, visitou a Itália, foi à Suíça,
esteve na Alemanha, percorreu a Inglaterra, e, no fim de três anos de viagem,
chegou ao Rio de Janeiro, onde encontrou os seus antigos correspondentes de
Lisboa. Demorou-se um ano na Corte, gostou da cidade, relacionou-se, fez
projetos de vida e resolveu estabelecer ai a sua residência.
"E o Maranhão?... Oh, que maçada! Mas não
podia deixar de lá ir! Não podia instalar-se na Corte, sem ter ido primeiro à
sua província! Era indispensável conhecer a família; liquidar os seus bens
e..."
— Verdade, verdade, dizia ele, conversando com um
amigo, a quem confiara os seus projetos, a coisa não é tão feia como quer
parecer, porque, no fim de contas, fico conhecendo todo o norte do Brasil, dou
um pulo ao Pará e ao Amazonas, que desejo ver, e, afinal, volto descansado para
cá com a vida em ordem, a consciência descarregada e o pouco que possuo
reduzido a moeda. Não posso queixar-me da sorte!
O passeio à Europa não só lhe beneficiara o
espírito, como o corpo. Estava muito mais forte bem exercitado e com uma saúde
invejável Gabava-se de ter adquirindo grande experiência do mundo; conversava à
vontade sobre qualquer assunto tão bem sabia entrar numa sala de primeira ordem
como dar uma palestra entre rapazes numa redação de jornal ou na caixa de um
teatro. E em pontos de honra e lealdade, não admitia, com todo o direito, que
houvesse alguem mais escrupuloso do que ele.
Foi nessa bela disposição de espírito, feliz e
cheio de esperanças no futuro que Raimundo tomou o "Cruzeiro" e
partiu para a capital de São Luís do Maranhão.
4
Entretanto, com a chegada de Raimundo, reuniram-se
em casa de Manuel as velhas amizades da família. Vieram as Sarmentos com os
seus enormes penteados: moças feias, mas de grandes cabelos, muito elogiados e
conhecidos na província. "Tranças como as das Sarmentos!... Cabelo bonito
como o das Sarmentos! Cachos como os das Sarmentos!..." Estas e outras
tantas frases se haviam convertido em preceitos invariáveis. Fora das
Sarmentos! não conheciam termo de comparação para cabelos; e elas, cônscias
daquela popularidade, ostentavam sempre o objeto de tais admirações em
penteados: assustadores, de tamanhos fantásticos.
— Tenho pena, afetava às vezes D. Bibina Sarmento
(esta era Bernardina) de ter tanto cabelo!... Para desembrulhá-lo é um
martírio. E, quando depois do banho, não me penteio logo, ou quando passo um
dia sem botar óleo... Ah, dona, nem lhe digo nada!...
E arregalava os olhos e sacudia a juba, como se
descrevesse uma caçada de leões.
A família Sarmento compunha-se, além desta D.
Bibina, de outra rapariga e de uma senhora de cinqüenta anos, muito nervosa,
tia das duas moças. A velha só falava em moléstias e sabia remédios para tudo;
tinha um grosso livro de receitas, que ela em geral trazia no bolso; em casa
uma variadíssima coleção de vidros, garrafas e púcaros; guardava sempre as
cascas de laranja, de romã e os caroços de tuturubá, os quais, dizia
pateticamente "Abaixo de Deus, eram santo remédio para as dores de
ouvido!" Chamava-se Maria do Carmo, e as sobrinhas tratavam-na por
"Mamãe outrinha". Era sumamente apreensiva e entendida de doces.
Viúva. Passara a mocidade no Recolhimento de Nossa
Senhora da Anunciação e Remédios, onde concebera o seu primeiro filho do homem
com quem depois veio a casar — o tenente Espigão, tenente do exército, um
espalhafateiro dos quatro costados, que andava sempre de farda e desembainhava
a durindana por dá cá aquela palha. Contavam dele que, um dia, num jantar de
festa, perdendo a paciência com o peru assado, que parecia disposto a resistir
ao trinchante, arranca do chanfalho e esquarteja a golpes de espada o inocente
animal.
Gostava de fazer medo as crianças, fingindo que as
prendia ou afiando a lamina reluzente no tijolo do chão; e ficava muito
lisonjeado quando lhe diziam que se parecia com o Pedro II. Tinha-se na conta
de muito abalado e a todos contava que fora poeta em rapaz: referia-se a meia
dúzia de acrósticos e recitativos, que lhe inspirava D. Maria do Carmo, no seu
tempo de recolhida.
Coitado! Morreu de uma tremenda indigestão no dia
seguinte a uma cela, ainda mais tremenda, na qual praticara a imprudência de
comer uma salada inteira de pepinos, seu pratinho predileto. A viúva ficou
inconsolável, e, em homenagem à memória do Espigão, nunca mais comeu daquele
legume; seu ódio estendeu-se implacável por toda a família do maldito; não quis
ouvir mais falar de maxixes. nem de abóboras, nem de jerimuns.
— Ai o meu rico tenente! lamentava-se ela quando
alguém lhe lembrava o esposo. Que maneiras de homem! que coração de pomba'
aquilo é que era um marido como hoje em dia não se vê!...
A outra sobrinha de D. Mata do Carmo, chamava-se
Etelvina. Criaturinha sumamente magra, e tão nervosa como a tia: nariz muito
fino grande e gelado, mãos ossudas e frias, olhos sensuais e dentes podres Era
detestável: os rapazes do comércio chamavam-lhe "Lagartixa".
Fazia-se muito romântica; prezava a sua cor
horrivelmente pálida; suspirava de cinco em cinco minutos e sabia estropiar
modinhas sentimentais ao violão. diziam, em ar muito sério, que ela tivera aos
dezesseis anos uma formidável paixão por um italiano professor de canto o qual
fugira aos credores para o Pará e que, desde então, Etelvina nunca mais tomara
corpo.
Apresentou-se também em casa de Manuel a Srª D.
Amância Sousellas, velha de grande memória para citar fatos, datas e nomes;
lembrava-se sempre do aniversário natalício dos seus inúmeros conhecidos e
nesse dia filava-lhes impreterivelmente o jantar. Estava sempre a falar mal da
vida alheia, à sombra da qual aliás vivia; quinze dias em casa de uma amiga,
outros quinze em casa de um parente, o mês seguinte em casa de um parente e
amigo, e assim por diante; sempre, sempre de passeio. Ia a qualquer parte,
fosse ou não fosse desejada, e, às duas por três, era da casa. Conhecia todo o
Maranhão contava, sem reservas, os escândalos que lhe calam no bico e andava
sozinha na rua passarinhando por toda a cidade de xale metendo o nariz em tudo.
Se morria algum conhecido seu lá estava ela a vestir o cadáver, a cortar-lhe as
unhas, a dizer os lugares-comuns da consolação, tida e citada por muito
serviçal, ativa e prestimosa.
Era cronicamente virgem, mas afirmava que em moça,
rejeitara muito casamento bom. Dava-se a coisas de igreja; sabia vestir anjos
de procissão e pintava os cabelos com cosmético preto.
Detestava o progresso.
— No seu tempo, dizia ela com azedume, as meninas
tinham a sua tarefa de costura para tantas horas e haviam de pôr pr'ali o
trabalho! se o acabavam mais cedo iam descansar?... Boas! desmanchavam minha
senhora! desmanchavam para fazer de novo! E hoje?... perguntava dando um
pulinho, com as mãos nas ilhargas — hoje é o maquiavelismo da máquina de
costura! Dá-se uma tarefa grande e é só "zuc-zuc-zuc!" e está pronto
o serviço! E daí, vai a sirigaita pôr-se de leitura nos jornais, tomar conta do
romance ou então vai para a indecência do piano!
E jurava que filha sua não havia de aprender
semelhante instrumento, porque as desavergonhadas só queriam aquilo para melhor
conversar com os namorados sem que os outros dessem pela patifaria!
Também dizia mal da iluminação a gás:
— Dantes os escravos tinham que fazer! Mal serviam
a janta iam aprontar e acender os candeeiros deitar-lhes novo azeite e
colocá-los no seu lugar... E hoje? É só chegar o palitinho de fogo à bruxaria
do bico de gás e... caia-se na pândega! Já não há tarefa! Já não há cativeiro!
É por isso que eles andam tão descarados! Chicote! chicote, até dizer basta! que
é do que eles precisam. Tivesse eu muitos, que lhes juro, pela bênção de minha
madrinha, que lhes havia de tirar sangue do lombo!
Mas a especialidade de D. Amância Sousellas, o que
a tornava adorável para certos rapazes e detestada por muitos pais de família
que iam de nariz torcido lhe recebendo visitas e obséquios de cortesia, era sem
dúvida, o seu antigo hábito de contar anedotas baixas e grosseiras Sempre fora
muito desbocada; no entanto alguns basbaques da sua roda, diziam dela, num
frouxo de riso: "Com a D. Amância não pode a gente estar séria! — O diabo
da velha tem uma graça!..."
Lá estava também em casa de Manuel a Eufrasinha,
viúva do oficial de infantaria. Toda enfeitada de lacinhos de fita roxa,
moreninha apesar da superabundância do pó de arroz; as feições muito desenhadas
à superfície do rosto e com um sinal de nitrato de prata ao lado esquerdo da
boca, desastradamente imitado do de uma francesa excantora com quem ela se
dava. O sinal era para ficar do tamanho de uma pulga e saiu do tamanho e do
feitio de um feijão-preto. Saracoteava-se, cheia de novidades, levantando-se de
vez em quando para ir dizer um segredinho ao ouvido de Ana Rosa, enquanto
disfarçadamente lhe endireitava o penteado; nestes passeios olhava de esguelha
para os quartos e para a varanda — dando fé — e voltava à sua cadeira,
mirando-se a furto nos espelhos da sala, sempre muito curiosa, irrequieta,
querendo achar em tudo que lhe diziam, uma significação dupla, trejeitando
sorrisos e momices expressivas quando não entendia, para fingir que
compreendera perfeitamente. Tinha a voz sibilante e afetada, associava os SS, e
dela silabadas.
O Freitas, em cuja casa Ana Rosa tivera o seu
último histérico, também se achava presente, com a filha, a sua querida
Lindoca.
O Freitas era um homem desquitado da mulher
"que se atirara aos cães", explicava friamente, muito teso, magro,
alto, com o pescocinho comprido no seu grande colarinho em pé. Não relaxava as
calças brancas, e gabava-e do segredo de conservá-las limpas e engomadas
durante uma semana; trazia sempre, apesar do calor da província, o colarinho
duro e o peito da camisa irrepreensível; gravata preta — invariavelmente.
Tratava uma enorme unha no dedo mínimo, com a qual costumava pentear o bigode,
feito de longos fios, tingidos e lisos, que lhe velavam a boca. Jamais
consentira que barbeiro algum lhe encostasse a mão no rosto"; fazia ele
mesmo a sua barba, um dia sim, outro não. Escondia a calva com as
compridíssimas farripas do cabelo, muito espichadas, como que grudadas a
goma-arábica sobre o crânio. Dispunha de uma memória prodigiosa, gabada por
toda a cidade; fazia-se grande conhecedor da história antiga; quando falava
escolhia termos, procurava fazer estilo, e, sempre que se referia ao Imperador
dizia gravemente: "O nosso defensor perpétuo!" Afiançavam que era
habilidoso, em tempo fizera, com muita paciência, uma árvore genealógica de sua
família e mandara-a litografar no Rio de Janeiro. Este trabalho foi muito
apreciado e comentado na província.
Era empregado público havia vinte e cinco anos e só
faltara à repartição três vezes — por uma queda, um antraz, e no dia do seu
malfadado casamento; contava isto a todos, com glória. Quando temia
constipar-se, aspirava cautelosamente o fartum do conhaque. "Isto e o
bastante para me fazer ficar tonto!..." afirmava com uma repugnância
virtuosa. Tinha honor às cartas e sabia tocar clarinete, mas nunca tocava,
porque o médico lhe dissera ''não achar prudente". Fumara em tempo, mas o
médico dissera do charuto o mesmo que do clarinete. — Nunca mais fumou. Não
dançava, para não suar; falava com raiva das mulheres e, nem caindo de fome,
seria capaz de comer à noite. "Além do chá, nada! nada!" protestava
com firmeza; estivesse onde estivesse, havia de retirar-se impreterivelmente à meia-noite.
Usava sapatos rasos, de polimento, e nunca se esquecia do chapéu-de-sol.
Jamais arredara o pé da ilha de São Luís do
Maranhão, tal era o medo que tinha do mar.
— Nem para ir a Alcântara! jurava ele, conversando
essa noite em casa do Manuel. Daqui — para o Gavião! Nada, meu caro senhor
quero morrer na minha caminha, sossegado, bem com Deus!
— Com toda a comodidade, observou Raimundo, a rir.
Era devoto: todos os anos carregava na procissão o
andor do milagroso Senhor Bom Jesus dos Passos. E muito arranjadinho: "Em
casa dele havia de tudo, como na botica." Diziam os seus íntimos. "Só
falta dinheiro..." completava o Freitas em ar discreto de pilhéria. No
mais: — sempre o mesmo homem; nunca fora de estroinices; mesmo em rapaz, era já
consigo; não gostava de dever nada a ninguém; colecionava selos velhos; dava
homeopatia de graça aos amigos, e tinha a fama do maior maçante do Maranhão.
A tal "sua querida Lindoca" era uma
menina de dezesseis anos, pequenina, extremamente gorda, quase redonda, bonitinha
de feições, curta de idéias, bom coração e temperamento honesto. A Etelvina
dissera uma vez que ela estava engordando até nos miolos.
Lindoca Freitas não escondia o seu desejo de casar
e amava extremosamente o pai, a quem só tratava por "Nhozinho".
— Tenho um desgosto desta gordura!... Lamentava-se
ela às camaradas, que lhe elogiavam a exuberância adiposa. Se eu soubesse de um
remédio para emagrecer... tomava!
As amigas procuravam consolá-la: "Dá-me
gordura que te darei formosura! — Gordura é saúde!"
Mas a repolhuda moça não se conformava com aquela
desgraça. Vivia triste. As banhas cresciam-lhe cada vez mais; estava vermelho;
cansava por cinco passos. Era um desgosto sério! Recorria ao vinagre; dava-se a
longos exercícios pela varanda; mas qual! — as enxúndias aumentavam sempre.
Lindoca estava cada vez mais redonda, mais boleada; a casa estremecia cada vez
mais com o seu peso; os olhos desapareciam-lhe na abundância das bochechas; o
seu nariz parecia um lombinho; as suas costas uma almofada. Bufava.
Dias, o piedoso, o doce Luís Dias, também
comparecera aquela noite à sala do patrão. Lá estava, metido a um canto, roendo
ferozmente as unhas, o olhar imóvel sobre Ana Rosa, que, ao piano, dispunha-se
a tocar alguma coisa e experimentava as teclas.
Em uma das janelas da frente, encostados contra a
sacada, Manuel e o cônego Diogo ouviam de Raimundo a descrição em voz baixa de
um passeio de Paris à Suíça. No resto da sala coma o sussurro das senhoras, que
conversavam.
— Então! Estamos passando o Boqueirão? exclamou o
Freitas, erguendo-se do sofá, a sacudir as calças, para evitar as joelheiras.
E, voltando-se para uma das sobrinhas de D. Maria do Carmo: — Diga alguma
coisa, D. Etelvina!...
Etelvina ergueu os olhos para o teto e soltou um
suspiro.
— Por quem suspiras? perguntou-lhe. em misterioso
falsete, a velha Amância que lhe ficava ao lado.
— Por ninguém... respondeu a Lagartixa, sorrindo
melancolicamente com os caquinhos dos dentes.
— Ele não é feio... a senhora não acha D.
Bibina?... segredava Lindoca à outra sobrinha de D. Maria do Carmo, olhando
furtivamente para o lado de Raimundo.
— Quem? O primo d Ana Rosa?
— Primo? Eu creio que ele não é primo dona!
— É! sustentou Bibina quase com arrelia E primo, sim,
por parte de pai!. E olhe ali está quem lhe sabe bem a história!...
E indicava a fia com o beiço inferior.
— An... resmungou a gorducha, passando a considerar
da cabeça aos pés o objeto da discussão.
Por outro lado, Maria do Carmo segredava a Amância
Sousellas:
— Pois é o que lhe digo D. Amância muito boa
preta!... negra como este vestido! Cá está quem a conheceu!...
E batia no seu peito sem seios. — Muita vez a vi no
relho. Iche!
— Ora quem houvera de dizer!... resmungou a outra
fingindo ignorar da existência de Domingas, para ouvir mais. Uma coisa assim só
no Maranhão! Credo!
— É como lhe minha rica! O sujeitinho foi farto à
pia, e hoje olhe só pr'aquilo! está todo cheio de fumaças e de filáucias!...
Pergunte ao cônego, que está ao lado dele.
— Cruz! T'arrenego, pé de paro!
E Amância bateu por hábito nas faces engelhadas.
Nisto, ouviu-se um grande moam, que vinha da
varanda.
— Ó Benedito! Moleque! Ó peste! Estás dormindo, sem
vergonha?!
E logo o estalo de uma bofetada. — Arre! que ate me
fazes zangar com visitas na sala!...
Era Maria Bárbara, que andava às voltas com o
Benedito.
— Vai deitar a mesa do chá moleque!
Manuel correu logo à varanda, contrariado.
— Ó senhora!... disse à sogra. Que inferneira! Olhe
que está ai gente de fora!...
Freitas passou-se à janela de Raimundo, e
aproveitou a oportunidade para despejar contra este uma estopada a respeito do
mau serviço doméstico feito pelos escravos.
— Reconheço que nos são necessários, reconheço!...
mas não podem ser mais imorais do que são!... As negras, principalmente as
negras!... São umas muruxabas, que um pai de família tem em casa, e que domem
debaixo da rede das filhas e que lhes contam histórias indecentes! f uma
imoralidade! Ainda outro dia, em certa casa, uma menina, coitada apareceu
coberta de piolhos indecorosos, que pegara da negra! Sei de outro caso de uma
escrava que contagiou a uma família inteira de impigens e dartros de caráter
feio! E note doutor que isto e o menos, o pior é que elas contam às suas
sinhazinhas tudo o que praticam ai por essas ruas! Ficam as pobres moças sujas
de corpo e alma na companhia de semelhante corja! Afianço-lhe meu caro senhor
doutor, que, se conservo pretos ao meu serviço, é porque não tenho outro remédio!
Contudo...
Foi interrompido por Benedito que nu da cintura
para cima e acossado pela velha Bárbara, atravessou a sala com agilidade de
macaco. As senhoras espantaram-se, mas abriram logo em gargalhadas. O moleque
alcançara a porta da escada e fugira. Então, o Dias, que até ai se conservara
quieto no seu canto, ergueu-se de um pulo e deitou a correr atrás dele.
Desapareceram ambos.
Benedito era cria de Maria Bárbara; um pretinho
seco, retinto, muito levado dos diabos; pernas compridas, beiços enormes dentes
branquíssimos. Quebrava muita louça e fugia de casa constantemente.
A velha estacara no meio da sala furiosa.
— Ai, gentes! não reparem!.. bradou. Aquele não sei
que diga! aquele maldito moleque!... Pois o desavergonhado não queria vir
trazer água na sala, sem pôr uma camisa?... Patife! Ah, se o pego!... Mas deixa
estar, que não as perdes, malvado!
E correndo à janela: — Se seu Dias não te alcançar,
tens amanhã um campeche te seguindo a pista, sem-vergonha!
E saiu de novo para a varanda, muito atarefada,
gritando pela Brígida:
— Ó Brígida! Também estás dormindo, seu diabo?!
Na sala as visitas discutiam rindo a cena do
moleque e o mau gênio de Maria Bárbara, mas tiveram de abafar a voz, porque Ana
Rosa pôs-se a tocar uma polca ao piano.
Pouco depois, ouviu-se um farfalhar de saias
engomadas, e em seguida apresentou-se a Brígida, uma mulata corpulenta a
carapinha muito trançada e cheia de flores, um vestido de chita com três palmos
de cauda, recendendo a cumaru. Preparava-se daquele modo, para ir à sala,
oferecer água. com ambas as mãos uma enorme salva de prata, cheia de copos,
dirigia-se a todos, um por um, a bambalear as ancas volumosas.
A criadagem de Manuel e Maria Bárbara constava,
além de Brígida, e Benedito, de uma cafuza já idosa, chamada Mônica, que
amamentara Ana Rosa e lavava a roupa da casa, e mais de uma preta só para
engomar, e outra só para cozinhar, e outra só para sacudir o pó dos trastes e
levar recados à rua. Pois, apesar deste pessoal, o serviço era sempre tardio e
malfeito.
— Estas escravas de hoje tem luxos!... observou
Amância em voz baixa a Maria do Carmo, apontando com o olhar para o vulto
empantufado de Brígida.
E entraram a conversar sobre o escândalo das
mulatas se prepararem tão bem como as senhoras. "Já se não contentavam com
a sua saia curta e cabeção de renda; queriam vestido de cauda; em vez das
chinelas, queriam botinas! Uma patifaria!" Depois falaram nos caixeiros,
que roubavam do patrão para enfeitar as suas pininchas; e, por uma transição
natural, estenderam a crítica até aos passeios a cano, às festas de largo e aos
bailes dos pretos.
— Os chinfrins, como lhes chamava o meu defunto
Espigão, acudiu Maria do Carmo, Conheço! ora se conheço!... Bastante quizília
tivemos nós por amor deles!...
— É uma sem-vergonheira! Ver as escravas todas de
cambraia, laços de fita, água de cheiro no lenço, a requebrarem as chandangas
na dança!...
— Ah, um bom chicote!... disseram as duas velhas ao
mesmo tempo
— E elas dançam direito?... perguntou a do Carmo,
— Se dançam!... O serviço é que não sabem fazer a
tempo e a horas! Lá para dançar estão sempre prontas! Nem o João Enxova!
A indgnação secava-lhe a voz.
— Até parecem senhoras, Deus me perdoe! Todas a se
fazerem de gente! os negros a darem-lhe excelência "E porque minha senhora
pra cá! Vossa Senhoria pra lá!" E uma pouca vergonha, a senhora neo
imagina!... Uma vez, em que fui espiar um chinfrim, porque me disseram que o
meu defunto estava lá metido, fiquei pasma! E o melhor é que os descarados não
se tratam pelo nome deles tratam-se pelo nome dos seus senhores!... Não sabe
Filomeno?... aquele mulato do presidente?... Pois a esse só davam "Sr.
Presidente!" Outros são "Srs. Desembargadores, Doutores, Majores e
Coronéis!" Um desaforo que deveria acabar na palmatória da polida!
Ana Rosa terminou a sua polca.
— Bravo! Bravo!
— Muito bem, D. Anica!
E estalaram palmas.
— Tocou às mil maravilhas!...
— Não senhor foi uma polca do Marinho.
Correram a cumprimentar a pianista. O Freitas
profetizou logo "que ali estava um segundo Lira!"
Raimundo foi o único que não se abalou. Estava
fumando à janela, e fumando deixou-se ficar. Ana Rosa, sem dar a perceber,
sentiu por isso uma ligeira decepção. Esforçara-se por tocar bem e ele, nem
assim! "Até parecia não ter notado nada!... E um malcriado!" concluiu
ela, de si para si. E, com uma pontinha de mau humor, assentou-se ao lado de
Lindoca. Eufrásia correu logo para junto da amiga.
— Que tal o achas?... perguntou em segredo,
assentando-se, com muito interesse.
— Quem? disse Ana Rosa, fingindo distração e
franzindo o nariz.
A outra indicou misteriosamente a janela com um dos
polegares.
— Assim, assim...
E a filha do negociante fez um bico de indiferença.
— Nem por isso!...
— Um peixão! opinou Eufrásia com entusiasmo.
— Gentes!... Que é isto, Eufrasinha?...
— É uma tetéia!
E a viúva mordia os beiços.
— Sim, ele neo é feio... tornou Ana Rosa, impacientando-se,
Mas também não é lá essas coisas!...
— Que olhos! que cabelos! e que gestos!... olha,
olha, menina! como ele brinca com o charuto!... olha como ele se encosta à
grade da janela!... Parece um fidalgo, o diabo do homem!...
Ana Rosa, sem desfranzir o nariz enviesada os olhos
contra o primo e Sentia melhor do que a amiga a evidencia do que esta lhe
dizia. "Raimundo era com efeito elegante e bem bonito mas, que diabo,
desde que chegara ainda lhe não tinha dispensado uma única palavra de distinção,
um só gesto que a especializassem, quando ali, no entanto, era ela,
incontestavelmente a mais chique, a mais simpática, e, além disso — sua prima!
(Ana Rosa pouco ou nada sabia ao certo do grau do seu parentesco com ele) Não!
Não fora correto! Falara-lhe como às outras, igualmente frio e reservado; não
fizera como os rapazes do Maranhão, que, mal se aproximavam dela estavam
desfeitos em elogios e protestos de amor!" Aquela indiferença de Raimundo
doía-lhe como uma injustiça: sentia-se lesada roubada, nos seus direitos de
moça irresistivel. "Um pedante é o que ele é! Um enfatuado! Pensa que vale
muito, porque se formou em Coimbra e correu a Europa! Um tolo!..."
Nessa ocasião, entraram na sala, com ruídos, dois
novos tipos — o José Roberto e o Sebastião Campos.
Foram logo apresentados a Raimundo e seguiram a
cumprimentar as senhoras, dando a cada qual uma frase ou uma palavra ou um
gesto de galanteio familiar: "D. Eufrasinha sempre bela como os amores,
que pena ser eu já papel queimado! — Então D. Lindoca, onde vai com essa
gordura? divida a metade comigo! — Quando se come doce desse casamento, D.
Bibina?... E tinham sempre na ponta da língua uma pilhéria, um dito, para bulir
com as moças; coisas desengraçadas e sediças, mas que as faziam rebentar de riso.
— Deus os fez e o diabo os ajuntou! explodiu, com
um estalo de boca, a velha Amância quando os dois passaram por ela.
José Roberto, a quem só tratavam por "Seu
Casusa" era moço de vinte e tantos anos; magro, moreno crivado de
espinhas, olhos muito negros, boca em ruínas, uma enorme cabeleira, rica toda
encaracolada e reluzente de óleo cheiroso, preta bem preta dividida
pacientemente ao meio da cabeça. Usava lunetas azuis e cantava ao violão
modinhas da sua própria lavra e de outros, apimentadas à baiana com o travo
sensual e árabe dos lundus africanos. Quando tocava, tinha o amaneirado
voluptuoso do trovador de esquina; vergava-se todo sobre o instrumento, picando
as notas com as unhas cujos dedos pareciam as pernas de um caranguejo doido, ou
abafando com a palma da mão o som das cordas, que gemiam e choravam como gente.
Tipo do Norte, perfeito, cheio de franquezas, com
honor ao dinheiro, muito orgulhoso e prevenido contra os portugueses, a quem
perseguia com as suas constantes chalaças, imitando-lhes o sotaque, o andar e
os gestos. Tinha alguma coisinha de seu e passava por estróina. Gostava das
serenatas, das pândega com moças; pilhando dança — não perdia quadrilha nem
pulada, mas no dia seguinte ficava de cama, estrompado.
Havia muito que José Roberto procurava agradar a
Ana Rosa, esta sempre o repelia a rir. Também poucos o tomavam a sério:
"Um pancada" diziam mas queriam-lhe bem.
O Sebastião Campos, esse era viúvo da primeira
filha de Maria Bárbara e, como aquele, um tipo legítimo do Maranhão; nada,
porém, tinha do outro senão o orgulho e a birra aos portugueses, a quem na
ausência só chamava "marinheiros — puçás — galegos".
Senhor de engenho, de um engenho de cana, lá para
as bandas do Munim, onde passava três meses no tempo da colheita; o resto do
ano passava-o na cidade. Devia ter quase o duplo da idade de José Roberto,
baixote, muito asseado, mas com a roupa sempre malfeita. Usava calças curtas,
em geral brancas, deixando aparecer, desde o tornozelo, os seus pezinhos
ridiculamente pequenos e mimosos; barba cerrada, ainda preta, desproporcionada
do corpo, beiços grossos e vermelhos, mostrando a dentadura miudinha e gasta,
porém muito bem tratada, tratada a mel de fumo de corda, que era com que ele
asseada a boca.
Bairrista, isso ao último ponto: a tudo preferia o
que fosse nacional. "Não trocava a sua boa cana-capim — e o seu vinho de
caju por quantos cognacs e vinhos do Porto havia por ai! nem o seu gostoso e
cheiroso fumo de molho, fabricado no Maranhão, pelo melhor tabaco estrangeiro,
ou mesmo importado das outras províncias! Ou bem que se era maranhense ou bem
que se não era!"
Não cochilava com os seus escravos. Na roga era
temido até pelo feitor, um pouco devoto e cheio de escrúpulos de raça.
"Preto é preto; branco é branco! Moleque é moleque menino é menino!"
E estava sempre a repetir que o Brasil teria ganho muito, se perdesse a Guerra
dos Guararapes.
— A nossa desgraça, rezava ele, é termos caldo nas
mãos destas bestas! Uns lesmas! Uma gente sem progresso, que só cuida de encher
o papo e aferrolhar dinheiro!
Favores, de quem quer que fosse, não os aceitava
"que não queria dever obrigações a nenhum filho da mãe!..." Mas
também, quando dava para meter as botas em qualquer pessoa — era aquela
desgraça! Não tinha papas na língua! Era nervoso e ativo; gostava todavia de
ler ou conversar, escarranchado na rede durante horas esquecidas, em ceroulas
fumando o seu cachimbo de cabeça preta, fabricado na província. Na rua
encontravam-no de sobrecasaca aberta, coletinho de chamalote, camisa bordada,
guarnecida por três brilhantes grandes; ao pescoço, prendendo o cebolão, um
trancelim muito comprido, de ouro maciço, obra antiga, com passador. Adorava os
perfumes ativos, as jóias e as cores vivas, para ele, nada havia, porém, como
um passeio ao sitio embarcado, à fresca da madrugada, bebericando o seu trago
de cachaça e pitando o seu fumo do Codó. Em casa muito obsequiador. Passava à
farta.
Com a vinda destes dois, a reunião tornou-se mais
animada. Reclamou-se logo o violão, e seu Casusa, depois de muito rogado,
afinou o instrumento e principiou a cantar Gonçalves Dias:
"Se queres saber o meio Por que às vezes me
arrebata Nas asas do pensamento A poesia tão grata;"
Nisto, rebentou uma corda do violão.
— Ora pistolas!... resmungou o trovador. E gritou:
— Ó D. Anica! a senhora não terá uma prima?
Ana Rosa foi ver se tinha, andou remexendo lá por
dentro da casa, e voltou com uma segunda. "Era o que havia." O Casusa
arranjou-se com a segunda e prosseguiu, depois de repetir os versos já
cantados; ao passo que o Freitas, na janela, importunava Raimundo, a propósito
do autor daquela poesia e de outros vultos notáveis do Maranhão "da sua
Atenas brasileira" como a denominava ele. O cônego fugiu logo para a
varanda, covardemente, com medo à seca.
— Não sou bairrista. não senhor... dizia o maçante,
mas o nosso Maranhãozinho é um torrão privilegiado!...
E citava, com orgulho, "os Cunha, os Odorico
Mendes, os Pindaré e os Sotero etcetera! etcetera!'' O seu modo de dizer etcetera
era esplêndido!
— Temos os nossos faustos, temos!
Passou então a falar nas belezas da sua Atenas: no
dique das Mercês, "estava em construção, mas havia de ficar obra muito de
se ver e gostar..." afiançava ele cheio de gestos respeitosos. Falou do
Cais da Sagração, "também não estava concluído" dos Quartéis,
"iam entrar em conserto", na igreja de Santo Antônio, "nunca
chegaram a terminá-la, mas se o conseguissem, seria um belo templo!"
Elogiou muito o teatro São Luís. "Dizia o cônego que era o São Carlos de
Lisboa, em ponto pequeno!" Lembrou respeitosamente a companhia lírica do
Ramonda, o Remorini o tenor "morrera de febre amarela, depois de ser muito
aplaudido na Gemma de Vergi. Ah, como aquela, jurava não voltaria outra
companhia ao Maranhão! Mas que, mesmo na província havia moços de grande
habilidade..." Referia-se a uma sociedade particular, de curiosos.
"Tinham seu jeito, sim senhor!" E, engrossando a voz, com muita
autoridade: "Representavam Os Sete Infantes de Lara! — Os Renegados! — O
Homem da Máscara Negra, e outras peças de igual merecimento! Tinham a sua queda
para a coisa, tinham!... Não se pode negar!..." E assoava-se, meneando a
cabeça, convencido "Principalmente a dama... sim! o moço que fazia de
dama!... Não havia que desejar — o pegar do leque, o revirar dos olhos, certos
requebros, certas faceirices!... Enfim, senhores! era perfeito, perfeito,
perfeito!"
Raimundo bocejava.
E o Freitas nem cuspia. Acudiam-lhe fatos
engraçados sobre o teatrinho. soltava as anedotas em rebanho, sem intervalos.
Raimundo já não achava posição na janela; virava-se da esquerda. da direita,
firmava-se ora numa perna, ora na outra deixando afinal pender a cabeça e
olhando para os pés entristecido pelo tédio. "Que maçante!..."
pensava.
Entretanto, o Freitas a sacudir-lhe a manga do
fraque, que Raimundo sujara na caliça da janela, ia confessando que
"estavam em vazante de divertimentos; que a sua distração única era
cavaquear um bocado com os amigos..."
— Ah! exclamou, minto! minto! Há uma festa nova! —
a de Santa Filomena! Mas não será como a dos Remédios, isso, tenham
paciência!...
— Sim, decerto, balbuciou Raimundo, fingindo
prestar atenção.
E espreguiçou-se.
— A festa dos Remédios!... repetiu o outro,
estalando os dedos e assoviando prolongadamente, como quem diz: "Vai
longe!"
Raimundo estremeceu, ficou gelado ate a raiz dos
cabelos, percebeu aquela tremenda ameaça e mediu instivamente a altura da
janela, como se premeditasse uma fuga.
— O nosso João Lisboa... disse o Freitas. E meteu
profundamente as mãos nas algibeiras das calças. O nosso João Lisboa já, em um
folhetim publicado no numero... Ora qual é o número do Publicador
Maranhense?... Espere!...
E fitou o teto.
— 1173 — Sim! 1173, de 15 de outubro de 1851. Pois
nesse folhetim descreve ele, circunstanciadamente e com muito donaire e
gentilezas de estilo, a nossa popular e pitoresca festa dos Remédios.
Raimundo, aterrado, prometeu, sob palavra de honra,
ler o tal folhetim na primeira ocasião.
— Ah!... volveu terrível o Freitas é que ela hoje é
outra coisa!... Hoje não se compara! — há muito mais luxo, mas muito!
E segurando com ambas as mãos a gola do fraque de
Raimundo e ferrando-lhe em cima dos olhos arregalados, acrescentou
energicamente: — Creia, meu doutor, mete pena o dinheirão que se gasta naquela
festa! faz dó ver as sedas, os veludos, as anáguas de renda, arrastarem-se pela
terra vermelha dos Remédios!...
Raimundo empenhou a cabeça como faria idéia
aproximada.
— Qual! Qual! Tenha paciência meu amigo, não é
possível! E Freitas repeliu com torça a vitima. Aquilo só vendo e sentindo, Sr.
Dr. Raimundo José da Silva!
E descreveu minuciosamente a cor, a sutileza da
terra; como a maldita manchava o lugar em que caia; como se insinuava pelas
costuras dos vestidos, das botas, nas abas dos chapéus, nas máquinas dos
relógios; como se introduzia pelo nariz, pela boca, pelas unhas, por todos os
poros!
— Aquilo, meu caro amigo...
Raimundo queixou-se inopinadamente de que tinha
muito calor.
Freitas levou-o pelo braço até a varanda; deu-lhe
uma preguiçosa, passou-lhe uma ventarola de Bristol preparou-lhe uma garapada,
e, depois de havê-lo regalado bem, como antigamente se fazia com os
sentenciados antes do suplício, de pé, implacável, verdadeiro carrasco em face
do paciente, despejou inteira uma descrição do dia da festa dos Remédios,
recorrendo a todos os mistérios da tortura, escolhendo palavras e gestos,
repetindo as frases, frisando os termos, repisando o que lhe parecia de mais
interesse, cheio de atitudes como se discursasse para um grande auditório.
Principiou expondo minuciosamente o Largo dos
Remédios, com a sua ermida toda branca, seus bancos em derredor; muitos ariris,
muita bandeira, muito foguete, muito toque de sino. Descreveu com assombro o
luxo exagerado em que se apresentavam todos, todos! para a missa das seis e
para a missa das dez nas quais, dizia ele circunspectamente,
reúne-se a nata da nossa judiciosa
sociedade!..." Era tudo em folha, e do mais caro, e do mais fino. Nesse
dia todos luxavam, desde o capitalista até o ralé caixeiro de balcão: velho ou
moço, branco ou preto, ninguém lá ia, sem se haver preparado da cabeça aos pés;
não se encontrava roupa velha, nem coração triste!
— As quatro horas da tarde, acrescentou o narrador,
torna-se o largo a encher. Pensará talvez o meu amigo que tragam a mesma
fatiota da manhã...
— Naturalmente...
— Pois engana-se! e tudo outra vez novo! são novos
vestidos, novas calças, novas...
— Etc., etc.! Vamos adiante.
— Afirmam alguns estrangeiros... e dizendo isto
tenho dito tudo!... que não há, em parte alguma do mundo festa de mais luso!...
E a voz do maçante tomava a solenidade de um
juramento.
— O que lhe posso afiançar, doutor, é que não há
criança que, nessa tarde, não tenha a sua pratinha amarrada na ponta do lenço.
Aparecem cédulas gordas moedas amarelas; troca-se dinheiro; queimam-se charutos
caros, no bazar (há um bazar) as prendas sobem a um preço escandaloso! Digo-lhe
mais: nesse dia não há homem, por mais pichelingue, que não gaste seu bocado
nos leilões, nas barracas, nos tabuleiros de doce ou nas casas de sorte; nem há
mulher senhora ou moça-dama, que não arrote grandeza, pelo menos seu vestidinho
novo de popelina. Vêem-se enormes trouxas de doce seco, corações unidos de
cocada, navios de massa com mastreação de alfenim jurarás dourados, cutias
enfeitadas dentro da gaiola pombos cheios de fitas frascos de compota de
murici, bacuri, buriti, o diabo, meu caro senhor! As pretas-minas cativas, ou
forras surgem com os seus ouros as suas ricas telhas de tartaruga as suas ricas
toalhas de rendas, suas belas saias de veludo. suas chinelas de polimento seus
anéis em todos os dedos aos dois e aos três em cada um... E este povo mesclado.
coberto de luso, radiante, com a barriga confortada e o coração contente,
passeia, exibe-se, ancho de si pensando erradamente chamar a atenção de todos,
quando aliás cada qual só pensa e repara em si próprio e na sua própria roupa!
Raimundo ria-se por delicadeza, e espreguigava-se
na cadeira, bocejando.
— À noite, continuou o Freitas, ilumina-se todo o
largo. Armam-se grandes e deslumbrantes arcos transparentes, com a imagem da
santa e os emblemas do Comercio e da Navegação. que Nossa Senhora dos Remédios
é padroeira do Comércio, e é este que lhe dá a festa. Mas bem, faz-se a
iluminação — armas brasileiras estrelas vasos caprichosos, o nome da santa,
tudo a bico de gás. não contando uma infinidade de balõezinhos chineses que
brilham por entre as bandeiras, os florões os ariris, as casas de música; em
uma palavra fica tudo, tudo, claro como o dia!
Raimundo soltou um suspiro profundo e mudou de
posição.
— Há também para os moleques, um pau-de-sebo
balanços e cavalinhos. E verdade! o doutor sabe o que e um pau-de-sebo?...
— Perfeitamente Tenha a bondade de não explicar.
— Com franqueza! Se não sabe, diga, que eu posso...
— Ora por amor de Deus! faz-me o favor em não se
incomodar juro-lhe! Estou impaciente pelo resultado da festa. Continue!
— Pois sim, senhor Dão oito horas.. Ah. meu caro
amigo! então surge de todos os cantos da cidade uma aluvião interminável de
famílias, de velhos, moços, meninos, mulatinhas e negrinhas que enchem o largo
que nem um ovo! Pretos de ambos os sexos e de todas as idades desde o moleque
até o tio velho, acodem, trazendo equilibradas nas cabeças imensas pilhas de
cadeiras, e, com estas cadeiras, formam-se grandes rodas mesmo na praça, ao ar
livre, e as famílias, ou ficam ai assentadas, ou, a titulo de passeio,
acotovelam-se entre o povo. Fazem-se grupos, a gente ri, discute, critica,
namora, zanga-se, ralha..
— Ralha?
— Ora! Já houve uma senhora que castigou um moleque
a chicote, lá mesmo no largo!
— A chicote?
— Sim, a chicote! Aquilo, meu caro doutor, é uma
espécie de romaria! As famílias levam consigo potes de água, cuscuz, castanhas
assadas, biscoitos e o mais . E tudo isto ao som desordenado da pancadaria de
três bandas de música, dos gritos do leiloeiro e da inqualificável algazarra do
povo!
Raimundo quis levantar-se; o outro obrigou-o a
ficar sentado, pondo-lhe as mãos nos ombros.
— Estamos no apogeu da festa! exclamou o maçante.
— Ah! gemeu Raimundo.
— Soltam-se balões de pape! fino; cruzam-se moças
aos pares; giram aos pares os janotas; vendem-se roletos de cana, sorvetes,
garapa, cerveja, doces, pasteis, chupas de laranja; sentem-se arder charutos de
canela; gastam-se os últimos cartuchos; esvaziam-se de todo as algibeiras e,
finalmente, com grande jubilo geral arde o invariável fogo de artifício. Então
rebentam todas as bandas de música a um só tempo, levanta-se uma fumarada capaz
de sufocar um fole, e, no meio do estralejar das bombas e do infrene entusiasmo
da multidão, aparece no castelo, deslumbrante de luzes, a imagem de Nossa
Senhora dos Remédios. Foguetes de lágrimas voam aos milhares pelo espaço; o céu
some-se. Todos se descobrem em atenção à santa, e abrem o chapéu-de-sol com
medo das tabocas. Há uma chuva de luzes multicores; tudo se ilumina
fantasticamente; todos os grupos, todas as fisionomias, todas as casas, tomam.
sucessivamente as irradiações do prisma. Durante esta apoteose o povo se
concentra numa contemplação mística, terminada a qual, está terminada a festa!
E Freitas tomou fôlego. Raimundo ia falar, ele
atalhou:
— De repente, o povo acorda e quer sair! Cone,
precipita-se em massa à Rua dos Remédios, aglomera-se, disputa os carros,
pragueja, assanha-se! Cada um entende que deve chegar primeiro a casa; há
trambolhões, descomposturas, gritos, gargalhadas, gemidos, rinchos de cavalos,
tabuleiros de doce derramados, vestidos rotos, pés esmagados, crianças
perdidas, homens bêbados; mas, de súbito, como por encanto, esvazia-se o largo
e desaparece a multidão!
— Como? por quê?
— Daí a pouco estão todos recolhidos, sonhando já
com a festa do ano seguinte, calculando economias, pensando em ganhar dinheiro,
para na outra fazer ainda melhor figura!
E o Freitas resfolegou prostrado, com a língua
seca.
— Mas por que diabo se retiram tão depressa?...
perguntou Raimundo.
Freitas engoliu sofregamente três goles de água e
voltou-se logo.
— E porque este povinho, por fogo de vista, é pior
que macaco por banana! Tirem-lhe de lá o fogo que ninguém se abalará de casa!
— Com efeito! E é muito antiga esta festa, sabe?
— Bastante. Ela já tem seu tempo. Ora espere!
E o memorião atirou logo o olhar para o teto.
— No tempo dos governadores portugueses, disse,
depois de uma pausa, era ali o convento de São Francisco; isso foi... poderia
ser... em.. em mil, setecentos... e dezenove! Chamava-se então a ponta, que
forma hoje o Largo dos Remédios, "Ponta do Romeu". Ora, os frades
cederam esse terreno a um tal Monteiro de Carvalho, que fez a ermida, como se
pode calcular, no mato. Uma ocasião, porém, um preto fugido matou nesse lugar o
seu senhor, e os romeiros, que lá iam constantemente, abandonaram receosos a
devoção. Só depois de cinqüenta e seis anos, é que o governador Joaquim de Melo
e Póvoas mandou abrir uma boa estrada, a qual vem a ser hoje a nossa pitoresca
Rua dos Remédios. A ermida caiu em ruínas, mas o ermitão, Francisco Xavier
mandou, em 1818, construir a que lá está presentemente; e daí data a festa, que
tive a honra e o gosto de descrever-lhe.
— De tudo isso, aventurou Raimundo, o que mais me
admira é a sua memória: o senhor com efeito tem uma memória de anjo.
— Ora! O senhor ainda não viu nada! Vou
contar-lhe...
O outro ia disparatar sem mais considerações,
quando, felizmente, acudiram todos à varanda. Criou alma nova.
— Apre! disse Raimundo consigo, respirando. É de
primeira força!...
Serviu-se o chocolate.
O cônego vinha a discretear para Manuel em voz
sotuna:
— Pois é o que lhe digo, compadre, fique você com
as casas e divida-as em meias-moradas que rendem?...
— Acha então que vou bem, dando quatro contos de
réis por cada uma...
— Decerto, são de graça!... Homem aquilo é pedra e
cal — construção antiga! — deita séculos! Além disso, as casinhas têm bom
quintal, bom poço e não são devassadas pela vizinhança... verdade é que não
deixam de ser um bocadinho quentes mas...
— Abrem-se-lhe janelas para o nascente, concluiu o
negociante.
E, assim, conversando, chegaram à varanda, onde já
estavam à mesa.
José Roberto e Sebastião Campos serviam às senhoras
acompanhando com uma pilhéria cada prato que lhes ofereciam. Raimundo pediu
dispensa do chá, com medo do Freitas que lhe abrira um lugar ao lado do seu.
Ouvia-se mastigar as torradas e sorver, aos
golinhos, o chocolate quente.
— Doutor, exclamou o cônego, procurando espetar com
o garfo uma fatia de um bolo de tapioca. Prove ao menos do nosso "Bolo do
Maranhão". Também o chamam por ai "Bolo podre". Prove, que isto
não há fora de cá... é uma especialidade da terra!
— Não é mau... disse Raimundo, fazendo-lhe a
vontade. Muito saboroso, mas parece-me um tanto pesado...
— E de substância — acrescentou Maria Bárbara.
Faz-se de tapioca de forno e ovos.
— D. Bibina! chamou Ana Rosa, apontando para os
beijus. São fresquinhos...
Amância, com a boca cheia, dizia baixo a Maria do
Carmo:
— Pois minha amiga, quando precisar de missa com
cerimônia, não tem mais do que se entender com o padre que lhe digo.. P muito
pontual e contenta-se com o que a gente lhe da! Est'r'o dia, apanhou-me dezoito
mil-réis por uma missinha cantada, mas também podia se ver a obra que o homem
apresentou!.. Pois então! Há de dar uma criatura seus cobrinhos, que tanto
custam a juntar, a muito padre, como há por aí, desses que, mal chegam ao
altar, estão pensando no almoço e na comadre?... Deus te livre, credo! Até pesa
na consciência de um cristão!
— Como o padre Murta! .. lembrou a outra.
— Oh! Esse, nem se fala! Às vezes, Deus me perdoe!
nos enterros, até se apresenta bêbado!
E Maria do Carmo bateu na boca — Cá está,
acrescentou, quem já o viu a todo o pano encomendar o corpo de José Caroxo!...
— Não! que hoj'em dia a gente perde a fé. . isso
está se metendo pelos olhos!... Mas é o que já não tem o outro... porta-se
muito bem! muito bem procedido! muito cumpridor das suas obrigações! Zeloso da
religião! Acredite, minha amiga, que faz gosto... Dizem até...
E Amância, segredou alguma coisa à vizinha Maria do
Carmo baixou os olhos. e resmungou beaticamente:
— Deus lhe leve em conta. coitado!
Houve um rumor de cadeiras que se arrastam. Os
comensais afastaram-se dos seus lugares
— Mesa feita. companhia desfeita!...gritou logo
José Roberto chupando os restos dos dentes E tratou de seguir as senhoras, que
se encaminhavam silenciosas para a sala.
Nisto, entrou o Dias, trazendo o Benedito pelo cós.
Vinha a deitar os botes pela boca e, quase sem poder falar, contou que
"seguira o ladrão até o fim da Rua Grande, e que c, ladrão quebrara para o
Largo dos Quartéis e quase que alcança o mato da Camboa". Dito isto,
conduziu ele mesmo o moleque lá para dentro. Anda, peste! Vai preparando o
pelo, que ainda hoje te metes em relho!"
Apreciaram muito o serviço da Dias, e conversaram
sobre aquele ato de dedicação, elogiando o zelo do bom amigo e caixeiro de
Manuel. Daí a uma hora despediam-se as moças. entre grande barafunda de beijos
e abraços.
— Lindoca! gritava Ana Rosa, agora não arribe de novo,
ouviu?...
— Sim, minha vida. hei de aparecer... olha!
E subiu dois degraus para lhe dizer m um
segredinho.
— Sim, sim! E Eufrasinha adeus! D. Mana do Carmo,
não deixe de levar essas meninas à quinta no dia de São João. Temos torta de
caranguejos, olhe lá!
— Adeus, coracão!
— Etelvina, não se esqueça daquilo!...
— Bibina, despeça-se da gente!... guarde seus
quatro vinténs!...
— Olhe, observou o Sebastião Campos, que as tais
moças, para se despedirem... são terríveis!
— "Pudesse uma só nau contê-las todas..."
recitou o Freitas. coçando o bigode com a sua unha de estimação, "e o
piloto fosse eu... triunfo eterno!..." E.. após uma gargalhada seca,
voltou-se para Raimundo e ofereceu-lhe com ar pretensioso "um talher na sua
parca mesa".
— Vá doutor, vá por aquela choupana, disse. Vá
aborrecer-se um pouco...
Raimundo prometeu distraidamente. Bocejava. Por
mera delicadeza, perguntou se alguma das senhoras `'queria um criado para
acompanhá-las a casa".
As Sarmentos aceitaram logo, com muitos trejeitos
de cortesia. Ele interiormente contrariado, levou-as até às Mercês, onde
moravam, ali mesmo, perto. Voltou pouco depois.
— Recolha-se. doutor, trate de recolher-se...
aconselhou-lhe Manuel, que o esperava de pé. O senhor deve estar com o corpo a
pedir descanso...
Raimundo confessou que sim, apertou-lhe a mão.
"Boas noites, e obrigado".
— Até amanhã! Olhe! se precisar de qualquer coisa,
chame pelo Benedito, ele dorme na varanda. Mas deve estar tudo lá; a Brígida é
cuidadosa Passe bem!
Raimundo fechou-se no quarto: despiu se, acendeu um
cigarro e deitou-se. Abriu por hábito um livro; mas, no fim da primeira página,
as pálpebras se lhe fechavam Soprou a vela. Então sentiu um bem-estar infinito,
profundamente agradável: abraçou-se aos travesseiros e, antes que algum dos
acontecimentos desse dia lhe assaltasse o espírito, adormeceu.
Todavia, a pouca distância dali, alguém velava,
pensando nele.
5
Era Ana Rosa. Logo que ela se recolhera ao quarto,
gritara pela Mônica.
— Mãe- pretinha!
Assim tratava a cafuza que a criara e que dormia
todas as noites debaixo da sua rede...
— Mãe-pretinha! Ó senhores!
— O que é, laiá? Não se agaste!
— Você tem um sono de pedra! oh!
Deu um estalo com a língua.
— Dispa-me!
E estendeu-se negligentemente em uma cadeira,
entregando à criada os pés pequeninos e bem calçados.
Mônica tomou-os, com amor, entre as suas mãos
negras e calejadas; descalçou-lhe cuidadosamente as botinas, sacou-lhe fora as
meias; depois, com um desvelo religioso, como um devoto a despir a imagem de
Nossa Senhora, começou a tirar as roupas de Ana Rosa; desatou-lhe o cadarço das
anáguas; desapertou-lhe o colete e, quando a deixou só em camisa, disse,
apalpando-lhe as costas:
— laiá? vos vossemecê está tão suada!...
E correu logo ao baú.
A senhora pusera-se a cismar, distraída, coçando de
leve a cintura, o lugar das ligas e as outras partes do seu corpo que estiveram
comprimidas por muito tempo. Mônica voltou com uma camisola toda cheirosa,
impregnada de junco, a qual, abrindo-a com os braços, enfiou pela cabeça de Ana
Rosa, esta ergueu-se e deixou cair a seus pés a camisa servida e conchegou a
outra à pele, afagando os seus peitos virgens num estremecimento de rola.
Depois suspirou baixinho e deu uma carreira para a rede, na pontinha dos pés,
como se neo quisesse tocar no chão.
A cafuza ajuntou zelosamente a roupa dispersa pelo
quarto e guardou as jóias.
— laiá quer mais alguma coisa?
— Água, disse a moça, aninhando-se já nos lençóis
defumados de alfazema. Só se lhe via a graciosa cabeça, saindo despenteada
dentre nuvens de pano branco.
A cafuza trouxe-lhe uma bilha de água, e a senhora,
depois de servida, beijou-lhe a mão.
— Boas noites mãe-pretinha. Abaixe a luz e feche a
porta.
— Deus te faça uma santa! respondeu Mônica,
traçando no ar uma cruz com a mão aberta.
E retirou-se humildemente, toda bons modos e gestos
carinhosos.
Mônica orçava pelos cinqüenta anos; era gorda,
sadia e muito asseada; tetas grandes e descaidas dentro do cabeção Tinha ao
pescoço um barbante, com um crucifixo de metal, uma pratinha de 200 réis, uma
fava de cumaru, um dente de cão e um pedaço de lacre encastoado em ouro. Desde
que amamentara Ana Rosa, dedicara-lhe um amor maternalmente extremoso, uma
dedicação desinteressada e passiva. Iaiá fora sempre o seu ídolo, o seu único
'querer bem", porque os próprios filhos esses lhos arrancaram e venderam
para o Sul. Dantes, nunca vinha da fonte, onde passava os dias a lavar, sem lhe
trazer frutas e borboletas, o que, para a pequenina, constituía o melhor prazer
desta vida. Chamava-lhe "sua filha, seu cativeiro" e todas as noites,
e todas as manhãs, quando chegava ou quando saia para o trabalho, lançava lhe a
bênção, sempre com estas mesmas palavras: "Deus te faça uma santa! — Deus
te ajude! Deus te abençoe!" Se Ana Rosa fazia em casa qualquer diabrura,
que desagradasse a mãe-preta, esta a repreendia imediatamente, com autoridade;
desde, porém, que a acusação ou a reprimenda partissem de outro, fosse embora
do pai ou da avó, punia logo pela menina e voltava-se contra os mais.
Havia seis anos que era forra. Manuel dera-lhe a
carta a pedido da filha, o que muita gente desaprovou, "terás o
pago!..." diziam-lhe. Mas a boa preta deixou-se ficar em casa dos seus
senhores e continuou a desvelar-se pela laia melhor que até então, mais cativa
do que nunca.
Ana Rosa, mal ficou sozinha, no aconchego
confidencial da sua rede, intima tranqüilidade do seu quarto frouxamente iluminado
à luz mortiça do candeeiro de azeite, principiou a passar em revista todos os
acontecimentos desse dia. Raimundo avultava dentre a multidão dos fatos como
uma letra maiúscula no meio de um período de Lucena; aquele rosto quente, de
olhos sombrios, olhos feitos do azul do mar em dias de tempestade, aqueles
lábios vermelhos e fortes, aqueles dentes mais brancos que as presas de Uma
fera, impressionavam-na profundamente. "Que espécie de homem estaria
ali!..."
Procurava com insistência recordar-se dele em algum
dos episódios da sua infância&emdash;nada! diziam-lhe. entretanto, que
brincara com ela em pequenino, e que foram amigos, companheiros de berço
criados juntos, que nem irmãos. E todas estas coisas lhe produziam no espírito
um efeito muito estranho e singular. As meias sombras, as reservas e as
reticências, com que a medo lhe falavam dele, ainda mais interessante o tomavam
aos olhos dela. "Mas, afinal, quem seria ao certo aquele belo moço?...
Nunca '"o explicaram; paravam em certos pontos, saltavam sobre outros como
por cima de brasas; e tudo isto, todos estes claros que deixavam abertos a
respeito do passado de Raimundo, todos esses véus em que o envolviam como a Uma
estátua que se não pode ver emprestavam-lhe atrações magnéticas, Um encanto
irresistível e perigoso de mistério, uma fascinação romântica de abismo.
Entontecia de pensar nele. O hibridismo daquela
figura, em que a distinção e a fidalguia do porte se harmonizavam
caprichosamente com a rude e orgulhosa franqueza de um selvagem produzia-lhe na
razão o efeito de Um vinho forte, mas de Uma doçura irresistível e traidora
ficava estonteada; perturbava-se toda com a lembrança do contraste daquela
fisionomia, com a expressão contraditória daqueles olhos, suplicantes e
dominadores a Um tempo; sentia-se vencida, humilhada defronte daquele mito;
reconhecia-lhe certo império, certa preponderância que jamais descobrira em
ninguém; quanto mais o comparava aos outros, mais o achava superior, único,
excepcional.
E Ana Rosa deixava-se invadir lentamente por aquela
embriaguez esquecendo-se, alheando-se de tudo, sem querer pensar em outro
objeto que não fosse Raimundo. De repente surpreendeu-se a dizer: "Como
deve ser bom o seu amor!..." E ficou a cismar, a fazer conjeturas, a
julgá-lo minuciosamente, da cabeça aos pés. Parou nos olhos: "Quantos
tesouros de ternura não estariam neles escondidos? neles, do feitio de
amêndoas, banhados de bondade e cercados de pestadas crespas e negras, como os
pêlos de um bicho venenoso; aquelas pestanas lembravam-lhe as sedas de uma
aranha caranguejera." Estremeceu, porém, vieram-lhe desejos de os apalpar
com os lábios. "Como devia ser bom ouvir dizer — Eu te amo! — por aquela
boca e por aquela voz!..." E ficava assustada, como se de fato, no
silêncio da alcova, Uma voz de homem estivesse a segredar-lhe, junto ao rosto,
palavras de amor.
Mas logo tomava a si com a idéia do porte austero e
frio de Raimundo. Esta indiferença, ao mesmo tempo que lhe pungia e atormentava
o orgulhoso, levanta-lhe. na sua vaidade de mulher, Um apetite nervoso de ver
rendida a seus pés aquela misteriosa criatura, aquele espectro inalterável e
sombrio, que a vira e contemplara sem o menor sobressalto.
E entre mil devaneios deste gênero, com o sangue a
percorrer-lhe mais apressado as artérias, conseguir afina! adormecer. vencida
de cansaço. E, quem pudesse observá-la pela noite adiante. vê la-ia de vez em
quando abraçar-se aos travesseiros e, trêmula, estender os lábios, entre
abertos e sôfregos. como quem procura um beijo no espaço.
Na manhã seguinte acordara pálido e nervosa, a
semelhança de uma noiva no dia imediato às núpcias. Faltava-lhe animo até para
se preparar e sair do quarto: deixava-se ficar deitada na rede, a cismar, sem
abrir de todo os olhos cheia de fadiga.
Parecia-lhe sentir ainda na face o calor do rosto
de Raimundo.
Decorreram duas horas e ela continuava na mesma
irresolução: as pálpebra]s lânguidas, as narinas dilatadas pelo hálito quente e
doendo: os beiços secos e ásperos; o corpo moido sob um fastio geral, que lhe
dava espreguiçamentos de febre e má vontade. E., assim prostrada, deixava-se
ficar entre os lençóis, tolhida de vexame e enleio, pelas loucuras da noite.
A voz clara de Raimundo que conversava na varanda
enquanto tomava café, despertou-a; Ana Rosa estremeceu, mas, num abrir e fechar
de olhos, ergueu-se. lavou se e vestiu-se. Ao fitar o espelho, achou-se feia e
mal enforcada, posto não estivesse pior que nos outros dias, endireitou-se
toda, cobriu o rosto de pó de arroz, arranjou melhor os cabelos e escovou um sorriso.
Apareceu lá fora com grande acanhamento; deu a
Raimundo um "Bons dias" frio. de olhos baixos. Não podia encará-lo.
Maria Bárbara já lá estava na labutação, a cuidar da casa, a dar voltas. a
gritar com os escravos.
— Olha esse bilhete da Eufrásia. disse ela, ao ver
a neta. E passou-lhe uma tira de papel. engenhosamente dobrada em laço c com um
galhinho de alecrim enfiado no centro.
Ana Rosa teve um gesto involuntário de
contrariedade. Aborrecia-lhe agora sem saber por quê, a amizade da viúva, dela,
que era ate ai a sua íntima, a sua confidente, a sua melhor amiga; dos outros
havia muito que se tinha enfastiado o seu desejo, naquele instante, era ficar
só, bem só, num lugar em que ninguém pudesse importuná-la.
Serviu-se de uma xícara de café, deu-se por
incomodada.
— V. Exª sente alguma coisa? perguntou Raimundo com
delicadeza.
Ana Rosa sobressaltou-se ligeiramente, ergueu os
olhos, viu os do rapaz, abaixou logo os seus e entressorrindo, gaguejou:
— Não é nada... Nervoso...
— É isto! acudiu Maria Bárbara, que parara para
ouvir a resposta da neta. Nervoso! Olhem que estas moças dagora são tão cheias
de tanta novidade e de tantas invenções!... E o nervoso! é a tal da enxaqueca!
é o flato! é o faniquito! Ah, meu tempo, meu tempo!...
Raimundo riu-se e Ana Rosa deu de ombros, simulando
indiferença pelo que dizia a velha.
— Não faça caso, moço! Esta menina está assim já de
tempos, e ninguém me tira que foi quebranto que lira botaram!...
Raimundo tomou a rir. e Ana Rosa endireitou-se na
cadeira em que acabava de assentar-se. 'Esta vovó!... pensou ela envergonhada.
Que idéia não ficará ele fazendo da gente!..."
— Não se ria, nhô Mundico! não se ria, prosseguiu a
sogra de Manuel, que aqui esta — e bateu no peito — quem já andou de quebranto
a dar-não-dá com os ossinhos no Gavião!
E, tirando do seio um trancelim, com uma enorme
figa de chifre encastoada em ouro:&emdash;Ai, minha rica figa, a ti o devo!
a ti o devo, que me livraste do mau-olhado!
— Mas, Srª D. Maria Bárbara, conte-me como foi essa
história do quebranto, pediu Raimundo.
— Ora o quê! Pois então o senhor não sabe que o
mau-olhado pegando Uma criatura de Deus &emdash;está despachadinha?...
Então, credo! que andou o senhor aprendendo lá por essas paragens que correu?!
— V. Ex.ª, minha prima, também acredita no
quebranto? interrogou o moço, voltando-se para Ana Rosa.
— Bobagens... murmurou esta, afetando
superioridade.
— Ah, então não é supersticiosa?...
— Não, felizmente. Além disso — e abaixou a voz,
rindo-se mais — ainda que acreditasse, não corria risco... dizem que o
quebranto só ataca em geral as pessoas bonitas...
E sorriu para Raimundo.
— Nesse caso, é prudente acautelar-se... volveu ele
galanteando.
E, como se Ana Rosa lhe chamara a atenção para a
própria beleza passou a considerá-la melhor; enquanto a velha taramelava:
— Meu caro senhor Mundico, hoj' em dia já não se
acredita em coisa alguma!... por isso é que os tempos estão como estão — cheios
de febres, de bexigas, de tísicas e de paralisias, que nem mesmo os doutores de
carta sabem o que aquilo é! Diz que é "beribéri" ou não sei quê; o
caso é que nunca vi em dias de minha vida semelhante diabo de moléstia, e que o
tal como-chama está matando de repente que nem obra do sujo, credo! Até parece
castigo! Deus me perdoe! Isto vai, mas é tudo caminhando para uma república há
de dar-lhes uma. que os faça ficar ai de dente arreganhado! Pois o que, senhor!
se já não há tementes de Deus! já poucos são os que rezam!.. Hoje, com perdão
da Virgem Santíssima — e bateu uma palmada na boca — até podres! até há padres
que não prestam!
Raimundo continuava a rir.
— Quanto mais, observou ele de bom humor para a
fazer falar quanto mais se V. Ex.a conhecesse certos povos da Europa
meridional.
Então e que ficaria pasma deveras!
— Credo, minha Nossa Senhora! que inferno não irá
,: ir esse mundão de esconjurados! Por isso e que agora está se vendo li sue se
vê, benza-me Deus!
E, benzendo-se ela própria com ambas as mãos, pediu
que a deixassem ir dar uma vista de olhos pela cozinha.
— É eu não estar lá e o serviço fica logo pra
trás!. Caem no remancho, diabo das pestes!
Afastou-se gritando, desde a varanda pela Brígida:
Aí estavam a pingar as nove, e nem sinal de almoço!..."
Raimundo e Ana Rosa ficaram a sós defronte um ,
outro, ela de olhos baixos, confusa, na aparência quase aborrecida; e ele. de
cara alegre, a observá-la com interesse, gozando em contemplar, assim de perto,
aquela provinciana simples e bem disposta, que se lhe afigurava agora uma irmã,
de quem ele estivera ausente desde a infância "Deve ser, com certeza, uma
excelente moca... calculou de si para si Pelo seu todo esta a dizer que é boa
de coração e honesta por natureza Além do que, bonita..."
Sim, que até ai Raimundo ainda não tinha reparado
que sua prima era bonita. Notou-lhe então a frescura da pele, a pureza da boca,
a abundância cabelos. Achou-a bem tratada; as mãos claras, os dentes asseados,
a tez muito limpa, fina e lustrosa, na sua palidez simpática de flor do Norte.
Principiaram a conversar, depois de algum silêncio,
com muita cerimônia. Ele continuava a dar-lhe excelência, o que a constrangia
um tanto, perguntou lhe pelo pai
Que tinha ido para o armazém, como de costume, e só
subiria para almoçar e para jantar. Daí, queixou-se da solidão em que vivia no
aborrecimento daquela casa "Um cemitério de triste!..." Lamentou não
ter um irmão e, em resposta a uma pergunta que lhe fez o rapaz, disse que lia
para se distrair, mas que a leitura muitas vezes a fatigava também. O primo, se
tinha um romance bom, que lho emprestasse.
Raimundo prometeu ver entre os seus livros, logo
que abrisse um caixão que ainda estava pregado.
A propósito do romance, entrou a conversa pelas
viagens. Ana Rosa lamentou não ter saido nunca do Maranhão. Tinha vontade de
conhecer outros climas, outros costumes; entusiasmava-se com a descrição de
certos lugares; falou, suspirando, da Itália. "Ah, Nápoles!...""
— Não, não! objetou o rapaz. Não é o que V. Exª
supõe! Os poetas exageram muito! É bom não acreditar em tudo o que eles dizem,
os mentirosos!
E, depois de uma ligeira súmula das impressões
recebidas na Itália, perguntou à prima se queria ver os seus desenhos. A menina
disse que sim e Raimundo, muito solicito, correu a buscar o seu álbum.
Logo que ele se levantou, Ana Rosa sentiu um grande
alívio: respirou como se lhe houvessem tirado um peso das costas. Mas já não
estava tão nervosa e até parecia disposta a rir e gracejar; é que Raimundo, no
meio da conversa, dissera despretensiosamente que simpatizava muito com ela;
que a achava interessante e bonita, e isto sem precisar de mais nada, tornou-a
logo bem disposta e restituiu-lhe ao semblante a sua natural expressão de bom
humor.
Ele voltou com o álbum e abriu-o de par em par
defronte da rapariga.
Começaram a ver. Ana Rosa era toda atenção para os
desenhos; enquanto Raimundo, ao seu lado ia virando as folhas com os seus dedos
morenos e roliços. e explicando as paisagens montanhosas da Suíça os edifícios
e os jardins de França, os arrabaldes de Itália. E contava os passeios que
realizara, os almoços que tivera em viagem, as serenatas em gôndola; ia dizendo
tudo o que aqueles desenhos lhe chamavam à memória: como chegara a certo lago;
como passara tal ponte; como fora servido em tais e tais hotéis e o que sabia
daquele chalezinho verde, que a aquarela representava escondido entre árvores
sonolentas e misteriosas.
Ana Rosa escutava com um silêncio de inveja.
— Que é isto? perguntou ela, ao ver um esboço, que
expunha dois bispos, já amortalhados dentro dos competentes caixões de defunto,
como à espera do momento de baixarem a tenra. Um estava imóvel, de mãos postas
e olhos cerrados; o outro, porém, erguia-se a meio e parecia voltar à vida. Ao
lado deles havia um frade.
— Ah! fez ele rindo, e explicou: Isso é copiado de
um quadro, que vi na sacristia do velho convento de São Francisco, da Paraíba
do Norte. Não vale nada, como todos os quadros que lá estão, e não poucos,
pintados sobre madeira; um colorido impossível; as figuras mal desenhadas,
muito duras. Esse é um dos mais antigos; copiei-o por isso. Pura curiosidade
cronológica. Vê esse escudo nas mãos do frade? Tenha a bondade de virar a
página; que V. Exª encontrará um soneto que aí estava escrito a pincel.
Ana Rosa virou a folha e leu:
"Este quadro, Leitor, onde a figura Vivo um
Bispo te põe. que morto estar a, Mostra quanto Francisco o estimava Pois não
quer vá com culpa à sepultura.
Olha o outro defronte. em que a pintura Jugulado o
expõe: este formava Contra a Ordem mil queixas. que esperava Fossem dos Frades
trágico jatura.
Tu agora, Leitor, que a diferente Sorte u es nestes
dois acontecida Toma a ti a que for mais conducente:
O primeiro ama a Ordem e toma à vida: O segundo a
aborrece e o golpe sente. Ambos prêmios têm por igual medida."
— Quem há de gostar disto. é vovó... ela tem muita
devoção com São Francisco!
— Olhe! ai tem Vossa Exª um dos pontos mais bonitos
de Paris.— É desenho de um pintor meu amigo; muito forte! — Essas ruínas, que
aparecem ao fundo, são das Tulherias.
E passaram a conversar sobre a Guerra
Franco-Prussiana, extinta pouco antes. Ana Rosa, sem desprender os olhos do
álbum, via e ouvia tudo, com muito empenho; queria explicações; não lhe
escapava nada. Raimundo, debruçado nas costas da cadeira em que ela estava.
tinha às vezes de abaixar a cabeça para afirmar o desenho e rogava
involuntariamente o rosto nos cabelos da rapariga.
Ao virar de uma folha deram de súbito com um cartão
fotográfico, que estava solto dentro do livro; um retrato de mulher sorrindo
maliciosamente numa posição de teatro: com as suas saias de cambraia,
curtíssimas, formando-lhe uma nuvem vaporosa em torno dos quadris; colo nu,
pernas e braços de meia.
— Oh! articulou a moça, espantando-se como se o
retrato fosse uma pessoa estranha que viesse entremter-se no seu colóquio.
E maquinalmente, desviou os olhos daquele rosto
expressivo que lhe sorria do cartão com um descaramento muito real e uma ironia
atrevida. Declarou-a logo detestável.
— Ah, certamente!... E uma dançarina parisiense,
explicou Raimundo, fingindo pouco caso. Tem algum merecimento artístico...
E, tomando a fotografia com cuidado, para que Ana
Rosa não percebesse a dedicatória nas costas do retrato, colocou-a entre as
folhas já vistas do álbum.
Ao terminarem, ele falou muito da Europa e, como a
música viesse à conversa, pediu a Ana Rosa que tocasse alguma coisa antes do
almoço. Passaram-se para a sala de visitas, e ela, com um grande acanhamento e
um pouco de desafinação, executou vários trecho italianos.
Benedito apareceu à porta de corpo nu.
— laiá! Sinhô está chamando pra mesa.
O almoço correu pilheriado e alegre. O cônego Diogo
viera a convite de Manuel, no propósito de sairem os dois mais o Raimundo. para
dar uma vista d'olhos pelas casinhas de São Pantaleão.
Servida a segunda mesa, os caixeiros subiram com
grande ruído de pés.
Por esse tempo aqueles três surgiam na rua,
formando cada qual mais vivo contraste com os outros: Manuel no seu tipo pesado
e chato de negociante, calças de brim e paletó de alpaca; o cônego imponente na
sua batina lustrosa, aristocrata, mostrando as meias de seda escarlate e o pé
mimoso, apertadinho no sapato de polimento; Raimundo, todo europeu, elegante,
com uma roupa de casimira leve adequada ao clima do Maranhão, escandalizando o
bairro comercial com o seu chapéu-de-sol coberto de linho claro e forrado de
verde pela parte de dentro. "Formavam dizia este último, chasqueando, sem
tirar o charuto da boca uma respeitável trindade filosófica, na qual, ali, o
Sr. Cônego representava a teologia, o Sr. Manuel a metafísica, e ele, Raimundo,
a filosofia política; o que, aplicado à política, traduzia-se na prodigiosa
aliança dos três governos — o do papado, o monárquico e o republicano!"
Ana Rosa espreitava-os e seguia-os com a vista,
curiosa, por entre as folhas semicerradas de uma janela.
Por onde seguiam, Raimundo ia levantando a atenção
a todos. As negrinhas comam ao interior das casas, chamando em gritos a
sinhá-moça para ver passar "Um moço bonito!" Na rua, os linguarudos
paravam com ar estúpido, para examiná-lo bem; os olhares mediam-no
grosseiramente da cabeça aos pés, como em desafio; interrompiam-se as conversas
dos grupos que ele encontrava na calçada.
— Quem e aquele sujeito, que ali vai de roupa clara
e um chapéu de palha?
— Or'essa! Pois ainda não sabes? respondia um
Bento. É o hóspede de Manuel Pescada!
— Ah! este é que é o tal doutor de Coimbra?
— O cujo! afirmava o Bento.
— Mas Brito, vem cá! disse o outro, com grande
mistério, como quem faz uma revelação importante. — Ouvi dizer que é mulato!...
E a voz do Brito tinha o assombro de uma denúncia
de crime.
— Que queres, meu Bento? São assim estes pomadas cá
da terra dos papagaios! E ainda se zangam quando queremos limpar lhes a raça,
sem cobrar nada por isso!
— Branquinho nacional! É gentinha com quem eu
embirro. ó Bento, como com o vento, disse Brito com uma troca e baldroca de VV
e BB, que denunciava a sua genealogia galega.
Em outra parte, dizia-se:
— Olé Um cara nova? Que achado!
— É o Dr. Raimundo da Silva...
— Médico?
— Não. Formado em Direito
— Ah! É advogado? Que faz ele? do que vive? o que
possui?
— Vem advogar a própria causa por cá! Está tratando
do que lhe pertence e do que lhe não pertence!
— O que me conta você, homem?...
— Coisas da vida, meu amigo! Estes doutores pensam
que aqui os casamentos ricos andam a ufa!...
Em uma casa de família:
— Sabem? passou por aí o Raimundo!
— Que Raimundo? perguntam logo em coro.
— Aquele mulato, que diz que é doutor e está às
sopas do Manuel Pescada!
— Dizem que ele tem alguma coisa...
— Pulha, minha rica, todos estes aventureiros, que
arribam por cá, trazem o rei na barriga!
— E o Pescada para que o quer em casa?
Qual quer o quê! O Manuel despachou-o bonito, porem
o mitra deixou-se ficar!
— Sempre há muita gente sem vergonha!...
Em outras partes, juraram que Raimundo era filho do
cônego Diogo e que vinha dos estudos; ainda noutras, viam em Raimundo uma carta
do Partido Conservador; o redator do "Maritacaca" dizia a um
correligionário: "Espere um pouco! deixe chegarem as eleições e então você
verá este sujeito de cama e mesa com o presidente. Olhe! eles hão de dar-se
perfeitamente, porque, tanto cara de safado tem um, como o outro!"
E assim ia Raimundo, sendo inconscientemente,
objeto de mil comentários diversos e estúpidas conjeturas.
À noite estava fechado o negócio das casas, e
decidido que, mel fizesse bom tempo, iria ele ao Rosário com o Manuel, resolver
o da fazenda.
No dia imediato, Raimundo deu um passeio ao Alto da
Carneira; no outro dia foi até São Tiago; no outro percorreu a praça do
Mercado; foi três ou quatro vezes ao Remédios; repetiu a visita aos pontos
citados e — não tinha mais onde ir. Meteu-se em casa, disposto a cultivar as
relações familiares do tio e visitá-las de vez em quando, para se distrair;
mas, posto lhe repetissem com insistência que o Maranhão em uma província muito
hospitaleira, como é de fato, reparava despeitado, que, sempre e por toda a
parte, o recebiam constrangidos. Não lhe chegava as mãos um só convite para
baile ou para simples sarau; cortavam muita vez a conversação, quando ele se
aproximava; tinham escrúpulo em falar na sua presença de assuntos, aliás,
inocentes e comuns; enfim — isolavam-no, e o infeliz, convencido de que era
gratuitamente antipatizado por toda a província, sepultou-se no seu quarto e só
saía para fazer exercício, ir a uma reunião pública, ou então quando algum dos
seus negócios o chamava à rua. Todavia, uma circunstância o intrigava, e era
que, se os chefes de família lhe fechavam a casa, as moças não lhe fechavam o
coração; em sociedade o repeliam todas, isso e exato, mas em particular o
chamavam para a alcova. Raimundo via-se provocado por várias damas, solteiras,
casadas e viúvas, cuja leviandade chegava ao ponto de mandarem-lhe flores e
recados, que ele fingia não receber, porque, no seu caráter educado, achava a
coisa ridícula e tola. Muitos e muitos dias neo se despregava do quarto, senão
para comer ou, o que sucedia com freqüência, para ir à varanda dar dois dedos
de palestra à prima.
Estes cavacos faziam-se pelo alto dia, a horas de
mais calor, e, muita vez, também a noite, das sete às nove, durante o serão. O
rapaz, sempre respeitoso, assentava-se, defronte da maquina em que Ana Rosa
costa, e com um livro entre os dedos ou a rabiscar algum desenho, conversavam tranqüilamente,
com grandes intervalos. As vezes dava lhe para pedir explicações sobre a
costura; queria saber, com um interesse pueril e carinhoso, o modo de arrematar
as bainhas, de tirar os alinhavos; outras vezes, distraídos, falavam de
religião, política, literatura, e Raimundo, de bom humor, concordava em geral
com tudo o que ela entendia, mas, quando lhe dava na cabeça, discordava, de
manhoso, para que a menina se exaltasse, discorresse sobre o ponto, e ralhasse
com ele, procurando, muito seria, chamá-lo a verdade religiosa, dizendo-lhe
"que não fosse maçom e respeitasse a Deus!"
Raimundo, que nunca, depois de homem, vivera na
intimidade da família, dedicava-se com aquilo. D. Maria Bárbara, porem, vinha
quase sempre quebrar com o seu mau gênio aquele remanso de felicidade. Em cada
vez mais insuportável o diabo da velha! berrava horas inteiras tinha ataques de
cólera; não podia passar muito tempo sem dar pancadas nos escravos. O rapaz,
por diversas vezes, enterrara o chapéu na cabeça e saíra protestando mudar-se.
— Que carrasco! dizia a descer a quatro e quatro os
degraus. Da bordoada por gosto! Diverte-se em fazer cantar o relho e a
palmatória!
E aquele castigo bárbaro e covarde revoltava-o profundamente,
punha-o triste, dava-lhe ímpetos de fazer um despropósito na casa alheia.
"Estúpidos!" exclamava a sós, indignado. Mas, como a mudança não
fosse tão fácil, contentava-se ele com o passar uma parte do dia no bilhar do
único restaurante da província, não sem pena de abandonar as inocentes
palestras da varanda.
Em breve criou fama de jogador e bêbado.
O fato era que, por tudo isto, lhe minava o
espírito uma surda repugnância pela província e contra aquela maldita velha.
Quando o estalo do chicote ou dos bolos rebentava no quintal ou na cozinha,
Raimundo repelia a pena com que trabalhava no quarto.
— Lá está o diabo! Nem me deixa fazer nada! arre!
E saía furioso para o bilhar.
Ora, Ana Rosa, era também contra o castigo, e o
procedimento da avó foi um pretexto para a sua primeira solidariedade de pontos
de vista com o primo; os dois conversavam em voz baixa contra Maria Bárbara, e
esta conspiração aproximava-os mais um do outro, unia-os. Mas um belo dia, em
que o Benedito levou uma mela mais estrada, Raimundo chegou-se a Manuel e
falou-lhe resolutamente em mudança. "Que sabia estava incomodando e não
queria abusar. O Sr. Manuel que tivesse paciência e lhe arranjasse uma casinha
mobiliada e um criado..."
— O que, homem!... protestou logo Manuel, a quem
não convinha a mudança do seu hóspede antes de realizada a compra da fazenda. O
doutor pensa que está na Europa ou no Rio?... Pois então casinhas mobiliadas e
com criado, isto é lá coisa que se encontre por cá?... Ora deixe-se disso!
E, como o sobrinho insistisse, continuou declarando
que semelhante exigência, sobre ser quase inexeqüível acarretava para ele,
Manuel, certa odiosidade. "Que não diriam por ai?... Diriam que Raimundo
fora tão maltratado pelos parentes de seu pai que preferira sepultar-se entre
quatro paredes a ter de aturá-los!"
— Não senhor! concluiu ele, afagando-lhe o ombro
com uma palmada, deixe-se ficar cá em casa, pelo menos ate o verão — em agosto,
iremos juntos ver a fazenda — e, como por esse tempo já todos os seus negócios
estarão liquidados. ou o senhor volta para a Corte, ou se instala aqui mesmo na
província, porém com decência! Não lhe parece isto acertado? Para que fazer as
coisas mal feitas?...
Raimundo consentiu afinal, e, desde então, esperava
o mês de agosto com uma impaciência de faminto. Não era tanto a vontade de
fugir a Maria Bárbara o que lhe fazia desejar com tamanha febre aquela viagem
ao Rosário, mas o empenho a sede velha de tornar a ver o lugar, em que lhe
diziam, tão secamente, ter ele nascido e vivido os seus primeiros anos. "E
daí, quem sabe lá se não iria encontrar a decifração do mistério da sua
vida?..."
Esperou, e na espera entretinha-se todos os dias
com Ana Rosa, tanto e com tal satisfação, que ainda nos princípios de junho,
confessava já não lamentar a dificuldade da mudança. Ao contrario, pressentia
até que já não podia realizá-la, sem sofrer pela falta daquele conchegozinho de
família sem curtir grandes saudades por aquela irmã, sua amiga, franca e
delicada, que lhe dera a provar pela primeira vez o suavíssimo prazer da
convivência em família.
Efetivamente, a filha de Manuel já era muito
chegada a Raimundo...
O tratamento de excelência desaparecera como inútil
entre parentes que se estimam; os sustos, os sobressaltas, as desconfianças,
que dantes a acometiam na presença daquele moço austero e na aparência tão
pouco comunicativo, foram substituídos, graças às providências do negociante
sobre Maria Bárbara, por momentos agradáveis, cheios de doçura, em que o primo,
ora contava com graça as peripécias de uma jornada; ora desenhava a lápis a
caricatura dos conhecidos da casa; ora solfejava alguma melodia alemã ou algum
romance italiano; ou, quando menos, lia versas e contos escolhidos.
Ana Rosa sentia em tudo isso um grande encanto, mas
incompleto: Raimundo, pelos modos, parecia que lhe não tributava mais do que
respeitosa amizade de irmão; e isto, para ela, não bastava. Raro era o dia em
que a maca sob qualquer pretexto, não lhe fazia uma carícia disfarçada; dizia
por exemplo: 'Esta varanda e muito fresca... Não acha primo? Olhe, veja como
tenho as mãos frias..." E entregava-lhe as mãos, que ele tenteava
frouxamente, com medo de ser indiscreto. Outras vezes fingia reparar que o
rapaz tinha os dedos muito longos e vinha-lhe à fantasia medi-los com os seus.
ou queixava-se de ameaças de febre e pedia-lhe que lhe tomasse o pulso. Mas, a
todas estas dissimulações da ternura. a todas estas tímidas hipocrisias do
amor, sujeitava-se ele frio, indiferente e por vezes distraído.
Este pouco caso desesperava-a; doía-lhe aquela
falta de entusiasmo, aquele nenhum carinho. por ela, que tanto se desvelava em
merecê-lo. Cercos dias a pobre moca aparecia sem querer dar lhe palavra e com
os olhos vermelhos s e pisados; Raimundo atribuia tudo a qualquer indisposição
nervosa e procurava distraí-la por meio da conversa, da música. sem nunca lhe
falar do aspecto triste e abatido que lhe notava; tinha receio de
impressioná-la e só conseguia afligi-la mais, porque Ana Rosa, quando, ao
levantar-se da rede, se percebia pálida e triste, esforçava-se por conservar
intacta na fisionomia a expressão da sua mágoa, na esperança de comovê-lo; de
ser interrogada por ele, de ter enfim uma ocasião de confessar-lhe o seu amor.
O ar friamente atencioso de Raimundo, as suas perguntas calmas, cristalizadas
pela delicadeza, com que ele se informava da saúde da prima, a
imperturbabilidade médica com que falava daquelas tristezas, daquela insônia e
daquela falta de apetite, a formal condescendência que afetava, como por
obséquio a uma pobre convalescente que se não deve contrariar, enchiam-na de
raiva e despedaçavam-lhe a esperança de ser correspondida.
Uma ocasião, em que ela se lhe apresentou muito
mais desfeita e pálida, Raimundo chamou a atenção de Manuel para a saúde da
filha:
— Tenha cuidado! disse-lhe Aquela idade é muito
perigosa nas mulheres solteiras... Talvez fosse acertado uma viagem... Em todo
o caso, não há efeito sem causa.. E bom consultar o médico.
Manuel coçou a cabeça, em silêncio; a verdadeira
causa já o Jauffret lhe havia declarado; mas. como Raimundo voltasse à questão
e pintasse o caso muito feio, insistindo em que era preciso fazer alguma coisa,
teve o bom português, nessa mesma tarde, uma conferência com o compadre e com o
seu caixeiro Dias a quem prometeu sociedade comercial, na hipótese de que se
efetuasse para o seguinte mês, como ficava resolvido, o casamento dele com Ana
Rosa.
— Mas a D. Anica levará em gosto?... perguntou o
Dias, abaixando os olhos, com o melhor sorriso hipócrita do seu repertório.
— Naturalmente... respondeu Manuel. porque da
última vez que lhe toquei nisso, ela deu-me esperança... agora é provável que
dê certeza!
— De não casar talvez! observou o cônego.
— Como não casar?...
— Como? Eu lho digo...
E o cônego apresentou as suas razões, fez bons
argumentos, estabeleceu premissas, tirou conclusões, citou máximas latinas, e
declarou que aquela hospedagem do cabrocha, no seio da família, nunca fora do
seu gosto; e que, para se tratar do casamento de Ana Rosa, a primeira coisa a
fazer era afastá-lo da casa.
Mas o negociante, que colocava os seus interesses
pecuniários acima de tudo, abanou as orelhas às palavras do compadre, e
descreveu a atitude respeitosa e desinteressada de Raimundo ao lado de Ana
Rosa; falou no empenho com que o sobrinho quis mudar-se; no seu honor pela
província; no seu entusiasmo pela Corte; e lembrou que fora ele próprio até,
coitado! quem provocara aquela conferência dos três. Terminou dizendo que, por
esse lado, nada temia. Além de que, depositava bastante confiança no bom senso
de sua filha. "Não! por ai podiam estar descansados! Não havia perigo a
recear!"
— Veremos... veremos... Enquanto não assistir ao
casamento deste aqui com a minha afilhada, estou no que disse!... Cui fidas
vide!
E o cônego assoou-se com estrondo.
Nessa mesma noite, Manuel, aproveitando a ausência
do hóspede, levou a filha ao quarto de Maria Bárbara.. A velha embalava-se na
rede, "bebendo" o seu fumo de corda no cachimbo e fitando um velho
oratório de pau-santo. Ana Rosa, intrigada com a situação, encostou-se a uma
cômoda, e o pai, depois de discorrer sobre várias coisas indiferentes, disse
que, no dia seguinte, viriam as amostras da casa do Vilarinho, para a noiva
escolher as fazendas do seu enxoval!
— Quem vai casar?... perguntou a menina, num
alvoroço.
— Faze-te desentendida, minha sonsa!... Ora qual de
nós aqui tem mais cara de noivo — eu ou tua avó?...
E Manuel fez uma festinha no queixo da filha.
— Casar! eu? mas com quem, papai?
E Ana Rosa sorriu, porque calculou que Raimundo a
pedira em casamento.
— Ora com quem havia de ser, minha disfarçada?
E desta vez foi Manuel que riu, iludido pelo bom
acolhimento que a filha dera à noticia.
— Não sei, neo senhor... respondeu ela, com ar de
quem sabe perfeitamente. Com quem é?...
— Anda lá, sonsinha? Não sabes outra coisa!...
E, enquanto Ana Rosa parecia muito ocupada em
raspar com a unha uns pingos de cera velha, espalhados pela madeira da cômoda,
continuou o negociante:
— Mas por que não me falaste com franqueza há mais
tempo, sua caprichosa, fazendo o pobre rapaz supor que o neo querias?...
Ana Rosa ficou seria.
O pai acrescentou:
— A fazê-lo, coitado! andar por ai tão derreado,
que até metia dó!...
— Como?!
— Pois então não sabes como andava o nosso Dias?...
— O Dias?! interrogou Ana Rosa empalidecendo.
E fez-se muda, a cismar; só despertou, com estas
palavras:
— Ora senhores!... Tem graça!
&emdash;Tem graça, não senhora! vossemecê disse
que o aceitava para marido! Que diabo quer dizer agora esta mudança?... Ah, que
temos mouros na costa! .. Bem me dizia o compadre!...
— Não sei o que lhe disse o padrinho, mas o que eu
lhe digo, papai, é que definitivamente não me casarei com o Dias. Nunca,
percebe?
— Mas, tu, se já não o queres, e porque tens outro
de olho!...
— Não sei não senhor...
E abaixou os olhos.
— Bem! vê lá! Isto já me vai cheirando mal!... Ora
dizes uma coisa; ora dizes outra!.. O mês passado respondeste-me na varanda:
"Pode ser" e agora, às duas por três, dizes que não! Sabes que só
quero a tua felicidade... não te contrario.. mas tu também não deves abusar!...
— Mas, gentes, o que foi que eu fiz?...
— Não estou dizendo que fizesses alguma coisa!...
Só te aviso que prestes toda a atenção na tua escolha de noivo!.. Nem quero
imaginar que seda capaz de escolher uma pessoa indigna de ti!...
— Mas, como, papai?... Fale claro!
— Isto vai a quem toca! Não sei se me entendes!...
— Ora, seu Manuel! exclamou Maria Bárbara,
levantando-se e pousando no chão o enorme cachimbo de taquari do Pará Você às
vezes tem lembranças que parecem esquecimento! Pois então, uma menina, que eu
eduquei, ia olhar... — E gritou com mais forca — para quem, seu Manuel!?
— Bem, bem...
— Vejam se não é mesmo vontade de provocar uma
criatura!...
— Bem, bem! Eu não digo isto para ofender!...
desculpou-se o negociante. Mas é que temos cá um rapaz bem-aparecido, que...
— Um cabra! berrou a sogra. E era muito bem feito
que acontecesse qualquer coisa, para você ter mais cuidado no futuro com as
suas hospedagens! Também só nessa cabeça entrava a maluqueira de andar metendo
em casa crioulos cheios de fumaças! Hoje todos eles são assim! Súcia de
apistolados! Dá-se-lhes o pé e tomam a mão! Corja! Julgue-se mas é muito feliz
em não lhe ter recebido o coice! porém fique você sabendo que só a mim o
deve!&emdash;sei a educação que dei a minha neta!... por esta respondo
eu!.. E, quanto ao cabra... é tratar de despachá-lo já, e já, se não quiser ao
depois ter de pegar-se com trapos quentes!...
— Pois bem, pois bem, senhora! Amanhã mesmo
tratarei disso! Oh!
E Manuel pensou logo em aconselhar-se com o cônego.
Ana Rosa continha o choro.
— Vou para meu quarto! disse ela, com mau modo.
— Ouça!... opôs-lhe o pai, detendo-a. A senhora...
— Não diga asneiras!... atalhou a velha, empurrando
a neta para fora. Vai-te! e reza à Virgem Santíssima para que te proteja e te
dê juízo!
Ana Rosa fechou-se, no seu quarto, rezou muito, não
quis tomar chá, e soluçou até às quatro horas da manhã.
No dia seguinte, Manuel, depois de entender-se com
o compadre, preveniu a Raimundo que se preparasse para ir ao Rosário.
— Estou às suas ordens, mas o senhor tinha dito que
iríamos no mês de agosto.
— É certo! porem o tempo está seco e para a semana
temos lua cheia. Podemos ir no sábado Convém-lhe?
— Como quiser. estou pronto.
E, daí a pouco, Raimundo foi ao quarto verificar se
os seus pertences de viagens, a borracha de aguardente, as botas de montar, as
esporas e o chicote, achavam-se em bom estado de servir. Estranhou encontrar
tudo isso mexido e remexido de muito fresco, como se alguém houvera se servido
daqueles objetos Já não era o primeiro reparo que fazia desse gênero. por
outras vezes quis parecer que alguém curioso de mau gosto se divertia a
remexer-lhe os papéis e a roupa "Talvez bisbilhotice do moleque!"
Mas, no dia seguinte, por ocasião de deitar-se
achou sobre o travesseiro um atracador de tartaruga preso a um laço de veludo
preto. Reconheceu logo estes objetos; pertenciam a Ana Rosa. "Mas, como
diabo vieram eles imoralmente parar ali, na sua cama?... Havia nisso, com
certeza, um mistério ridículo, que convinha por a limpo!..." Lembrou-se
então de ter ficado uma vez muito intrigado por descobrir, na escova e no pente
de seu uso, fios compridos de cabelo, cabelo de mulher, sem dúvida, e mulher
branca.
Já maçado, resolveu passar busca minuciosa em todo
o quarto e encontrou os seguintes corpos de delito: dois ganchos de pentear, um
jasmim seco, um botão de vestido e três pétalas de rosa. "Ora. estes
objetos lhe pertenciam tanto quanto o pentinho de tartaruga e o laço de
veludo.. Quem fazia a limpeza e arrumava o quarto era o Benedito; este também
não usava laços nem ganchos na cabeça... Logo, como havia pensado, alguém se
divertia em vir, na sua ausência, revistar o que era dele, e esse alguém só
poderia ser Ana Rosa!... Mas, que diabo vinha ela fazer ali?... Como adivinhar
o fim daquelas visitas extravagantes?... Seria simples curiosidade ou andaria
naquilo a base de alguma intriga maranhense, tramada contra o morador do
quarto, ou talvez, quem sabe? contra a pobre menina?... Fosse o que fosse, em
todo o caso, era urgente pôr cobro a semelhante patacoada!"
Desde esse dia, Raimundo prestou atenção a todos os
objetos que deixava no quarto; marcou o ponto em que ficava o álbum, o
despertador um livro, o estojo de barba ou qualquer coisa, que o moleque não
precisasse tirar do lugar para fazer a limpeza. E com estas experiências, cada
vez mais se convencia das visitas misteriosas; os corpos de delito
reproduziam-se escandalosamente; uma vez encontrou toda riscada a unha a cara
da dançarina, cuja fotografia ele, com tanto cuidado, escondera de sua prima,
porque nas costas do cartão, havia a seguinte dedicatória: A mon brésillen
bien-aimé, Raymond.
Que dúvida! Todas as suspeitas recaiam sobre a bela
filha do dono da casa! A graça, porem. é que Raimundo, apesar de não agradar à
sua índole de homem sério e franco tudo que cheirasse a subterfúgio e
ilegalidade, sentia no entanto certo gosto vaidoso em preocupar tanto a
imaginação de uma mulher bonita; lisonjeava-lhe aquele interesse, aquela
espécie de revelação tímida e discreta; gostou de perceber que seu retrato era de
todos os objetos, o mais violado, e, como bom policia chegou a descobrir-lhe
manchas de saliva que significavam becos. Mas ou fosse levado pela curiosidade
ou fosse na desconfiança de ser tudo aquilo obra de algum patife, ou fosse,
enfim, porque o fato repugnasse ao seu caráter honesto verdade é que deliberou
aproveitar a primeira oportunidade para acabar com aquela mistificação.
Poucos dias depois, saindo de casa e demorando-se
defronte da porta a conversar com alguém, viu da rua fecharem cuidadosamente as
rótulas do seu quarto. Não hesitou — subiu pé ante pé, atravessou a varanda
deserta, e foi direito ao seu aposento.
6
Ana Rosa, com efeito, de algum tempo a essa parte,
fazia visitas ao quarto de Raimundo, durante a ausência morador.
Entrava disfarçadarnente, fechava as rótulas da
janela, e como sabia que o morador não aparecia àquela hora, começava a bulir
nos livros, a remexer nas gavetas abertas, a experimentar as fechadas a ler os
cartões de visita e todos os pedacinhos de papel escrito. que lhe caiam nas
mãos. Sempre que encontrava um lenço já servido no chão ou atirado sobre a
cômoda apoderava-se dele e cheirava-o sofregamente, como fazia também com os
chapéus de cabeça e com a travesseirinha da cama.
Estas bisbilhotices deixavam-na caída numa
enervação voluptuosa e doentia, que lhe punha no corpo arrepios de febre. Uma
vez encontrou uma banda de luva cor de cinza, esquecida atrás de uma das mulas
calçou-a logo, com avidez e facilidade, e pôs-se a fixá-la muito a interrogá-la
com os olhos, abrir e fechar a mão distraída, acompanhando as rugas da pelica.
E esta luva arrancava-lhe conjeturas sobre o passado de Raimundo; fazia-lhe
imaginar os bailes ruidosos de Paris as festas, os passeios, as estações dos
caminhos de ferro as manhãs frescas em viagem de mar, as ceias nos hotéis, as
corridas a cavalo e toda uma vida de movimento, de gargalhadas de almoços com
mulheres uma existência que se desenrolava defronte da sua imaginação, como um
panorama feito com os desenhos do álbum de Raimundo e em cujo primeiro plano
atravessava este, rindo fumando braço dado à dançarina da fotografia, que lhe
dizia, cheia de um amor teatral: "Raymond! mon bien-aimé!"
Foi num desses sonhos que Ana Rosa,
irrefletidamente, arranhou o rosto do retrato, com a mesma raiva como que no
colégio fazia outro tanto aos judeus mal desenhados do seu compêndio de
doutrina cristã.
Aquelas visitas eram agora toda a sua preocupação;
os seus melhores instantes eram os que passava ali, entregue de corpo e alma
àquele segredo; o resto do tempo servia apenas para esperar a hora do prazer
querido; e quando, por qualquer motivo, não podia realizá-lo ficava
insuportavelmente frenética e nervosa. Até já nem queria saber das amigas;
tomara-se de birra pela Eufrasinha e não pagava uma só das visitas que lhe
faziam. E nem por sombras lhe falassem de festas e divertimentos — seu único
divertimento, a sua única festa era estar lá naquele quarto proibido, sozinha,
à vontade, conversando intimamente com os objetos de Raimundo, lendo os seus
papéis, mexendo em tudo a palpitar num gosto novo e desconhecido secreto, cheio
de sobressaltos, quase criminoso; saboreando aos poucos, em goles compassados,
como um vinho bom, gozos extremamente fortes, violentos, sentindo-se embriagar,
consumir, absorver por aquela loucura de perseguir um nada, uma esperança que
lhe fugia, que a atormentava porém melhor e mais deliciosa, para ela, que os
melhores e mais brilhantes prazeres da sociedade.
No dia em que Raimundo subira, pé ante pé, ao seu
quarto, Ana Rosa tinha entrado havia pouco e, como de costume, fechara-se por
dentro. O ambiente fizera-se de um tom morno e duvidoso, em que havia mescla de
claridade e sombra. Ela, depois de varrer o olhar em torno de si, assentara-se
na cama e tomara, distraidamente de uma cadeira ao lado, no lugar do velador,
um tratado de fisiologia que o rapaz estivera a ler na véspera, antes de
dormir, e que havia deixado junto ao castiçal, marcado pela caixa de fósforos.
Ao abrir o livro, Ana Rosa soltou logo uma
envergonhada exclamação: dera com um desenho, em que o autor da obra, com a
fria sem cerimônia da ciência, expunha aos seus leitores uma mulher no momento
de dar à luz o filho. A fidelidade, indecorosa e séria, da estampa, produziu no
ânimo da moça uma impressão estranha de respeito e de vexame. Sem compreender
cabalmente o que tinha diante dos olhos, fixava a página, voltando-a de um para
outro lado, à procura de entender melhor. Virou algumas folhas e, com o pouco
que sabia do francês, tentou apanhar o sentindo do que vinha escrito sobre os
vários fenômenos da gestação e do parto; ao chegar, porem. a uma das gravuras,
fechou o livro com ímpeto e olhou em torno, como para certificar-se de que
estava completamente só. Tinha visto de surpresa um espetáculo, que os seus sentindo
ainda mal formulavam por instinto&emdash;o ato da fecundação. Fizera-se cor
de romã e repelira o indiscreto volume com um ligeiro e espontâneo movimento do
seu pudor, mas, pouco depois, pensando bem no caso, convencendo-se de que tudo
aquilo não era feito por malícia, mas, ao contrário, para estudo, muniu-se de
coragem e afrontou a página.
Aquele desenho abriu-se, defronte dela, como um
postigo. para um mundo vasto e nebuloso, um mundo desconhecido, povoado de
dores, mas ao mesmo tempo irresistível; estranho paraíso de lágrimas, que
simultaneamente a intimidava e atraia. Observou-o com profunda atenção,
enquanto dentro dela se travava a batalha dos desejos. Todo o ser se lhe
revolucionou; o sangue gritava-lhe, reclamando o pão do amor; seu organismo
inteiro protestava irritado contra a ociosidade. E ela então sentiu bem nítida
a responsabilidade dos seus deveres de mulher perante a natureza, compreendeu o
seu destino de ternura e de sacrifícios, percebeu que viera ao mundo para ser
mãe; concluiu que a própria vida lhe impunha, como lei indefectível, a missão
sagrada de procriar muitos filhos, sãos, bonitos, alimentados com seu leite,
que seria bom e abundante, e que faria deles um punhado de homens inteligentes
e fortes.
E tinha já defronte dos seus olhos os seus queridos
filhinhos, nus, muito tenros e roliços, com a moleira descascando, os pezinhos
vermelhos, narizinhos quase imperceptíveis, pequeninas bocas desdentadas, a lhe
chuparem os peitos, com a engraçada sofreguidão irracional das criancinhas. E,
a pensar neles, enlanguescia toda, -numa postura indolente e comovida — os
braços estendidos sobre as coxas, a cabeça mole, pendida para o seio, o olhar
quebrado, fito, com preguiça de mover-se, o livro descansado nos joelhos, entre
os dedos insensibilizados. E cismava: "Sim, precisava casar, fazer
família, ter um marido, um homem só dela, que a amasse vigorosamente!" E
via-se dona de casa, com o molho das chaves na cintura — a ralhar, a zelar
pelos interesses do casal, cheia de obrigações, a evitar o que contrariasse o
esposo, a dar as suas ordens para que ele encontrasse o jantar pronto. E queria
fazer-lhe todas as vontades todos os caprichos — tornar-se passiva servi-lo
como uma escrava amorosa dócil fraca que confessa sua fraqueza, seus medos, sua
covardia, satisfeita de achar-se inferior ao seu homem, feliz por não poder
dispensá-lo. E cismava, muito, muito, no marido, e esse mando aparecia-lhe na
imaginação sob a esbelta figura de Raimundo.
Nisto, abriu-se por detrás dela o cortinado da
cama, com um leve rumor de rendas engomadas.
Ana Rosa voltou-se em sobressalto e deu, cara a
cara com Raimundo, que a fitava repreensivo, soltou um grito e tentou fugir. O
livro caiu ao chão escancarando uma página onde se via desenhado o interior de
um ventre, cheio com o seu grande novelo de tripas amarelas e cor-de-rosa.
O rapaz não lhe tempo para sair, colocando-se entre
a cama e a parede.
— Tenha a bondade de esperar... disse, muito sério.
— Deixe-me por amor de Deus! suplicou ela, torcendo
a cabeça para evitar os olhos de Raimundo.
— Não senhora, há de ouvir-me primeiro, respondeu
este com delicada autoridade. E acrescentou, depois de uma pausa, pondo nas
palavras certo cunho de superioridade paternal: Custa-me, mas é necessário
repreendê-la... tanto mais, por me achar na casa de seu pai, que é também
sua!... A senhora, porém, cometeu uma falta, e eu cometeria outra maior se me
calasse.
— Deixe-me!
— A senhora sairá deste quarto prometendo que não
tomara a fazer o que tem feito!... Se descobrissem as suas visitas clandestinas
que não julgariam de mim?... de mim, e da sua pessoa, o que e muito mais
grave!... Que não diriam?... E, vamos lá! — com direito!... Pois a reputação de
uma senhora é coisa que se exponha deste modo?... Isto tem lugar?... Mas,
quando assim fosse, quando, por uma aberração imperdoável, minha prima assim
entendesse, poderia barateá-la, sem enxovalhar sua família? Fique sabendo minha
senhora, que a obrigação que cada qual tem de zelar pelo seu nome, não se
baseia só no amor próprio, mas no respeito que devemos aos solidários do nosso
credito! Uma senhora nada tem que fazer no quarto de um rapaz!... E muito feio!
Minha prima comete com isso uma ingratidão a quem deve tudo — a seu pai!
O pranto nervoso da menina, sustido ate ali com
dificuldade rebentou-lhe da garganta e dos olhos, como um regato que quebrasse
as represas; as lágrimas corriam-lhe quentes pela face e pingavam-lhe grossas
bagas nas carnes brancas e palpitantes do seio.
Raimundo comoveu-se, mas procurou esconder a sua
comoção. E desviando o corpo, para lhe dar passagem, acrescentou com a voz
pouco alterada.
— Peço-lhe que se retire e não volte em
circunstâncias idênticas...
Queria acusá-la ainda, repreendê-la... mais, porem
as sobrancelhas desfranziam-se-lhe defronte daquele vestidinho honesto de
chita, daquelas singelas tranças castanhas, daquelas lágrimas inocentes.
Ana Rosa ouviu-o de cabeça baixa, sem uma palavra,
com o rosto escondido no lenço. Quando Raimundo acabou de falar, ela deva
grandes soluços, muito suspirados, como de uma criança inconsolável.
— Então que tolice é esta?... Agora está soluçando
deste modo!... Vamos, não seja criança!..
Ana Rosa chorava mais.
— Olhe que, desse modo, podem ouvi-la da varanda!...
E Raimundo atrapalhava-se de comoção e de medo; já
não acertava com o que queria dizer; faltavam-lhe os termos; sentia-se
estúpido. Começou a temer a situação.
— Vamos, minha amiga... tartamudeou inquieto, se a
ofendi, desculpe, perdoe-me, era para seu interesse...
E chegou-se para ela, ameigou-a; estava arrependido
de ter sido tão ríspido. "Fora grosseiro! No fim de contas, bem sabia que
a pobre moça neo era responsável por aquilo!..." Sentia remorsos. E tentou
destruir o mau efeito das suas primeiras palavras:
— Então, vamos... Eu sou seu amigo, diga-me por que
chora...
Ana Rosa não respondia, soluçava sempre. Raimundo
não pode conter um movimento de impaciência, e coçou a cabeça.
— Ai, que vai mal a história!
Estava já sinceramente arrependido de ter vindo
surpreendê-la. "Que lhe valesse a paciência!" Todo o seu receio era
que a ouvissem da varanda. "Descobriam tudo!... Com certeza que
descobriam!"
E, sem saber o que fazer, atarantado, foi à porta,
voltou, tornou a ir, aflito, sobre brasas.
— Então minha prima tenciona ficar?... Não chore
mais!... Que imprudência a sua!... Lembre-se que está no meu quarto... Tenha a
bondade — retire-se. Não fique ressentida, mas vá, que podemos comprometer-nos
muito seriamente!...
Redobrou o pranto.
— A senhora não tem motivo para chorar!...
— Tenho sim! respondeu ela por detrás do lenço.
— Ora essa! Então por que é?...
— É porque o amo muito. muito, entende? declarou
entre soluços, com os olhos fechados e gotejantes, e assoando-se devagarinho,
sem afastar do nariz o lenço ensopado de lágrimas e entrouxado na mão. — Desde
que o vi! Desde o primeiro instante! percebe? E no entanto meu primo nem...
E desatou a chorar mais forte ainda, desorientada,
apaixonadamente.
Raimundo perdeu de todo a esperança de acabar com
aquilo de um modo conveniente. Não obstante, sentia que gostava bastante de Ana
Rosa mais do que ela podia julgar talvez, mais do que ele mesmo podia esperar
de si. "Mas, se assim era, que diabo! que se casassem como toda a gente!
Era levá-la à igreja, em público, com decência, ao lado da família! e não tê-la
ali, a lacrimejar no seu quarto as escondidas, romanticamente! Não! não
admitia! Era simplesmente ridículo!" E disparatou:
— De acordo minha senhora, mas eu não tenho o
direito de detê-la no meu quarto. Queira retirar-se!... o lugar e a ocasião são
os menos próprios para revelações tão delicadas!... Falaremos depois!
Ana Rosa continuou a chorar, imóvel.
Raimundo chegou a conceber a idéia de ir à varanda,
chamar por alguém, fazer bulha, contar tudo! mas teve pena dela; "Iria
prejudicá-la, ofendê-la, seria brutal; além disso escandaloso... oh! um
formidável escândalo! . Que diabo então devia fazer?... Sim, no fim de contas,
seria estúpido revoltar-se contra a rapariga'... ela o amava, tinha vinte anos,
e queria casar nada mais justo!" E resolveu mudar de tática, empregar
meios brandos e carinhosos para acabar com aquela situação. "Era o caminho
mais curto e mais seguro!" Aproximou-se pois de Ana Rosa, muito temo. e
disse-lhe afetuosamente, depois de enxugar-lhe o suor da testa e consertar-lhe
o desalinho dos cabelos:
— Mas, querida prima, o fato de amar-me não e
motivo de choro!... ao contrário&emdash;devemos alegrar-nos! Veja como
estou satisfeito, estou rindo! Siga o meu exemplo! E sabe o que nos compete
fazer de melhor? — Não é chorar certamente! — é casar-nos! Não acha? Não lhe
parece mais acertado? Não me aceita para seu esposo?...
Ao ouvir isto, Ana Rosa tirou logo o lenço do rosto
e, o que ainda não tinha feito, encarou Raimundo, desassombrada, feliz,
rindo-se, com os olhos ainda vermelhos e molhados, a respiração soluçosa, sem
poder articular palavra. E, em seguida, com um desembaraço, que abismou o primo
e de que ela própria não se julgaria capaz, abraçou-o amplamente, com expansão,
pousando-lhe a cabeça no ombro e estendendo-lhe os lábios numa ansiedade
suplicante.
O rapaz não teve remédio — deu-lhe na boca um beijo
tímido. Ela respondeu logo com dois — ardentes. Então, o moço, a despeito de
toda a sua energia moral, perturbou-se — esteve a desabar — um fogo subiu-lhe à
cabeça; latejaram-lhe as fontes; e, no seu rosto congestionado e cálido
sofregamente o nariz muito frio de Ana Rosa. Porém teve mão em si:
desprendeu-se dos braços dela com muita brandura, beijou-lhe respeitosamente as
mãos e pediu-lhe que saísse.
— Vá, sim? Podem vê-la!... Isto não é digno de
qualquer de nós...
&emdash;Você está maçado comigo Raimundo?
— Não que lembrança! mas vai-te, sim?
— Tens razão! mas olha, quando me pedes a papai?
— Na primeira ocasião, dou-te a minha palavra! mas
não voltes aqui, hein?
— Sim.
E saiu.
Raimundo fechou a porta e começou a passear pelo
quarto, bastante agitado. Estava satisfeito consigo mesmo: apesar dos seus
belos vinte e seis anos, tinha sido leal e generoso com uma pobre rapariga que
o amava.
E, de contente, cantarolou, com a voz ainda um
pouco trêmula:
"Sento uma forza indômita!"
Mas bateram duas pancadas na porta.
Era o Benedito.
— Sinhô mandou dizer para vossemecê fazer o favor
de chegar no quarto dele.
&emdash;Vou já
A viagem ao Rosário ficou transferida para o outro
mês, em razão de Manuel haver&emdash;caído&emdash;com uma tremenda
papeira, justamente no dia em que Raimundo surpreendera Ana Rosa no seu quarto.
Nessa noite encheu-se a casa de amigos; o Freitas
apareceu logo, trazendo uma dose homeopática; discutiu-se a moléstia;
contaram-se fatos adequados Cada qual tivera um caso muito pior que o de Manuel!
Choviam receitas de todos os lados.
— Laranja da-terra! laranja-da-terra! gritava D.
Maria do Carmo. E afiançava que "abaixo de Deus, não havia remédio melhor
para aquele mal! "
— Não! olhe que as papas de linhaça têm provado
muito bem... considerou Amância.
— Pois eu me achei foi com a folha de tajá,
observou a sobrinha mais velha de D. Mana do Carmo
— E eu, disse Etelvina com um suspiro, se quis dar
cabo de uma que tive, recorri ao óleo de amêndoa doce!
Ana Rosa acendera uma vela a São Manuel do Buraco e
Maria Bárbara prometera uma bochecha de cera a Santa Rita dos Milagres.
A Eufrasinha apareceu, e receitou logo — leite de
janaúba.
— Corta-se o cipó e escorre um leite branco, tão
grosso que é um azeite! explicava ela com grande mímica. A gente apara numa
xícara e depois ensopa algodão bem ensopado, e planta na cara do doente. É uma
vez só, menina!
Na varanda conversavam sobre o desanimo do doente.
— É muito esmorecido!... protestava Maria Bárbara.
Por qualquer coisa parece que está morrendo! Fica todo "Ai, ai, ai, eu
mono desta!" Uma febrinha põe-no assim!
E Maria Bárbara, para mostrar ao vivo como ficava o
genro, puxou as faces com os dedos e arregalou disformemente os olhos.
— Credo! exclamou Amância. e citou a morte de um
conhecido seu.
Maria do Carmo passou a contar, patética, o
falecimento do Espigão. Aquilo é que era morte! Só vendo!...
Seguiu-se uma enfiada de anedotas fúnebres.
Freitas, na sala, examinava, com minuciosidade
patriótica, umas litografias, que descansavam na pedra dos consolos. Eram
episódios da Guerra do Paraguai — havia a tomada de Paissandu, a passagem de
Humaitá, e outros, impressos no Rio e mel desenhados. Via-se o general Osório,
a cavalo, sobressair com o seu bigode preto e a barba branca. E o pai de
Lindoca despregava de vez em quando os olhos do quadro e passeava-os pela sala,
à procura de uma vítima para a seca. Raimundo, logo que o bispou, escondera se
no quarto, com medo.
Ana Rosa cumpriu o prometido de neo voltar ao
quarto de Raimundo, mas em compensação falava-lhe todos os dias no casamento.
Depois do seu ajuste com o primo, andava escorreita, alegre, vivia a
cantarolar, tanto na costura, como passarinhando pela varanda, a pretexto de
ajudar a avo nos arranjos da casa, ao que ela agora ligava muito mais
interesse. Maria Bárbara, por outro lado, deva aos diabos a papeira de Manuel e
com esta a tranferência da viagem ao Rosário. "Aquela demora do cabra em
companhia de sua neta embrulhava-lhe o estômago! — Não sossegada enquanto não o
visse pelas costas!..."
Entretanto, aproximava-se o dia de São João. Em
casa do Freitas, em casa de Maria do Carmo, como em casa do Manuel, falava-se
da festa. A pagodeira seda, como todos os anos, no sítio de Maria Bárbara. Era
um antigo costume ainda do tempo do defunto coronel, avo materno de Ana Rosa. A
velha não relaxava a ladainha de São João. "Tudo! menos de deixar de fazer
nesse dia a sua festa costumeira!" Aquela data representava para ela o
aníversário dos acontecimentos mais notáveis da sua vida — nesse dia nascera o
nunca assaz chorado coronel, o seu João Hipólito; também nesse dia fora pedida
em casamento, e, um ano depois, justamente no dia de São João, casara; ainda
nesse dia batizara a sua primeira filha — a defunta mulher de Sebastião Campos
— e nesse dia enfim &emdash;Mariana esposara Manuel.
Fez-se uma congregação em casa do negociante,
composta por Amância, Maria do Carmo as sobrinhas desta, e presidida por Maria
Bárbara. Falou-se muito em capados, carneiros e perus de forno; discutiu-se com
o que se devia encher o papo do peru — se de farinha ou com os próprios
intestinos do animal, decidiu a maioria que se enchera com farofa, "à moda
de Pernambuco", explicava Etelvina. Fizeram-se grandes encomendas de
dúzias de ovos; lembraram-se os doces menos lembrados; receitaram-se processos
dificultosíssimos da arte culinária: consultou-se o "Cozinheiro
Imperial", houve oferecimentos de louça, compoteiras, talheres, moleques e
negrinhas, para ajudarem no serviço; citaram-se pessoas privilegiadas na
confecção de tais e tais quitutes; falou-se em caruru da Bahia e presunto de
fiambre.
— No dia seguinte encarregou se a um pedreiro de
correr uma caiação geral na casa do sitio; os escravos tiveram ordem de assear
a quinta, limpar as estradas, os tanques, os pombais; e preveniu-se o padre
Lamparinas. que era quem, todos os anos, cantava lã a ladainha de São João.
Haveria dança e fogos Seda um festão de arromba! "O diabo! pensava Maria
Barbara, era que o — cabra — só se ida do Maranhão para o outro mês!..."
No entanto, Raimundo aborrecia-se; a província
parecia lhe cada vez mais feia, mais acanhada, mais tola, mais intrigante e
menos sociável. Por desfátio, escreveu e publicou alguns folhetins; não
agradaram — falavam muito a sério; passou então a dar contos, em prosa e verso;
eram observações do real, trabalhadas com estilo, pintavam espirituosamente e
os tipos ridículos do Maranhão "De nossa Atenas" como dizia o
Freitas.
Houve um alvoroço! Gritaram que Raimundo atacava a
moralidade pública e satirizava as pessoas mais respeitáveis da província.
E foi o bastante: os atenienses saltaram logo,
espinoteando com a novidade. Meteram-lhe as botas; chamaram-lhe por toda a
parte "besta! cabra atrevido!" Os lojistas, os amanuenses de secretaria,
os caixeiros frequentadores de clubes literários, em que se discutia, durante
anos, a imortalidade da alma, e os inúmeros professores de gramática, incapazes
de escrever um período original, declararam que era preciso — meter-lhe o pau!
"Escová-lo, para se não fazer de atrevido e desrespeitador das coisas mais
sagradas desta vida: — a inocência das donzelas, a virtude das casadas e a
mágoa das viúvas maranhenses!" Nas portas de botica, nas esquinas do Largo
do Carmo no fundo das vendas em que se vendia vinho branco e no interior de
todas as casas particulares juravam nunca ter visto semelhante escândalo de
linguagem pelas folhas. Falou-se muito nos jornais em Gonçalves Dias, Odorico
Mendes, Sotero dos Reis e João Lisboa; apareceram descomposturas anônimos,
pasquins, contra Raimundo; escreveram-se obscenidades pelas paredes, a giz e
blac-verniz, contra o "Novo poeta d'água doce!" Ele foi a ordem do
dia de muitos dias; apontaram-no a dedo, boquejaram, por portas travessas, que
ia sair um jornalzinho, intitulado O Bode" só para botar os podres do
ordinário na rua! Os moleques cantavam, contra o perseguido, torpezas tais, que
este nem sequer as compreendia.
E, alheio ao verdadeiro sentido das descomposturas
e das indiretas, jurou, pasmado, nunca mais publicar coisa alguma no Maranhão.
— Apre! Com efeito! Dizia.
E tomou deveras um invencível nojo por aquela
província indigna dele; impacientou-se por consumar o seu casamento com Ana
Rosa e retirar-se!... daquele chiqueiro de pretensiosos maus.
— Safa! terrinha estúpida! resmungava sozinho, a
fumar cigarros, de barriga para o ar, no seu quarto.
Todavia, o pior lhe estava reservado para o mês de
junho.
7
Junho chegou, com as suas manhãs muito claras e muito
brasileiras.
É o mês mais bonito do Maranhão. Aparecem os
primeiros ventos gerais, doidamente, que nem um bando solto de demônios
travessos e brincalhões, que vão em troça percorrer a cidade, assoviando a quem
passa, atirando ao ar o chapéu dos transeuntes, virando-lhes do avesso os
guarda-sois abertos, levantando as saias das mulheres e mostrando-lhes
brejeiramente as pernas.
Manhãs alegres! O céu varre-se nesse dia como para
uma festa, fica limpo, todo azul, sem uma nuvem; a natureza prepara-se, enfeita-se;
as arvores penteiam-se, os ventos gerais catam-lhes as folhas secas e
sacodem-lhes a frondosa cabeleira verdejante; asseiam-se as estradas, escova-se
a grama dos prados e das campinas, bate-se a água, que fica mais clara e
fresca. E o bando turbulento não pára nunca e, sempre remoinhando, zumbindo,
cantando lá vai por diante, dando piparotes em tudo que encontra, acordando as
pequeninas plantas, rasteiras e preguiçosas, não deixando dormir uma só flor,
enxotando dos ninhos toda a chilradora república das asas. E as borboletas, em
cardumes multicolores, soltam-se por aqui e por ali, doidejando: e nuvens de
abelhas revoam, peralteando, gazeando o trabalho, e as lavadeiras, que samente
costumes e os tipos ridículos do Maranhão "De nossa Atenas" como dizia
o Freitas.
Houve um alvoroço! Gritaram que Raimundo atacava a
moralidade pública e satirizava as pessoas mais respeitáveis da província.
E foi o bastante: os atenienses saltaram logo,
espinoteando com a novidade. Meteram-lhe as botas; chamaram-lhe por toda a
parte "besta! cabra atrevido!" Os lojistas, os amanuenses de
secretaria, os caixeiros freqüêntadores de clubes literários, em que se
discutia, durante anos, a imortalidade da alma, e os inúmeros professores de
gramática, incapazes de escrever um período original, declararam que era
preciso — meter-lhe o pau! "Escová-lo, para se não fazer de atrevido e
desrespeitador das coisas mais sagradas desta vida: — a inocência das donzelas,
a virtude das casadas e a mágoa das viúvas maranhenses!" Nas portas de
botica, nas esquinas do Largo do Carmo, no fundo das vendas em que se vendia
vinho branco e no interior de todas as casas particulares juravam nunca ter
visto semelhante escândalo de linguagem pelas folhas. Falou-se muito nos
jornais em Gonçalves Dias, Odorico Mendes, Sotero dos Reis e João Lisboa;
apareceram descomposturas anônimos, pasquins, contra Raimundo; escreveram-se
obscenidades pelas paredes, a giz e blac-verniz, contra o "Novo poeta
d'água doce!" Ele foi a ordem do dia de muitos dias; apontaram-no a dedo;
boquejaram, por portas travessas, que ia sair um jornalzinho, intitulado O
Bode" só para botar os podres do ordinário na rua! Os moleques cantavam,
contra o perseguido, torpezas tais, que este nem sequer as compreendia.
E, alheio ao verdadeiro sentido das descomposturas
e das indiretas, jurou, pasmado, nunca mais publicar coisa alguma no Maranhão.
— Apre! Com efeito! dizia
E tomou deveras um invencível nojo por aquela
província indigna dele; impacientou-se por consumar o seu casamento com Ana
Rosa e retirar-se daquele chiqueiro de pretensiosos maus.
— Safa! terrinha estúpida! resmungava sozinho, a
fumar cigarros, de barriga para o ar, no seu quarto.
Todavia, o pior lhe estava reservado para o mês de
junho.
7
Junho chegou, com as suas manhãs muito claras e
muito brasileiras.
É o mês mais bonito do Maranhão. Aparecem os
primeiros ventos gerais, doidamente, que nem um bando solto de demônios
travessos e brincalhões, que vão em troca percorrer a cidade, assoviando a quem
passa, atirando ao ar o chapéu dos transeuntes, virando-lhes do avesso os
guarda-sóis abertos, levantando as saias das mulheres e mostrando-lhes
brejeiramente as pernas.
Manhãs alegres! O céu varre-se nesse dia como para
uma festa, fica limpo, todo azul, sem uma nuvem; a natureza prepara-se,
enfeita-se; as arvores penteiam-se, os ventos gerais catam-lhes as folhas secas
e sacodem-lhes a frondosa cabeleira verdejante; asseiam-se as estradas,
escova-se a grama dos prados e das campinas, bate-se a água, que fica mais
clara e fresca. E o bando turbulento não pára nunca e, sempre remoinhando,
zumbindo, cantando lá vai por diante, dando piparotes em tudo que encontra,
acordando as pequeninas plantas, rasteiras e preguiçosas, não deixando dormir
uma só flor, enxotando dos ninhos toda a chilradora república das asas. E as
borboletas, em cardumes multicolores, soltam-se por aqui e por ali, doidejando;
e nuvens de abelhas revoam, peralteando, gazeando o trabalho' e as lavadeiras,
que vadias! brincam ao sol, sobre os lagos, dançando ao som de uma orquestra de
cigarras.
A gente bem conformada, nessas manhãs, acorda
lépida, depois de um sono bom, completo, bebido de uma vez, como um copo de
água fresca. E não resiste ao convite do bando endemoninhado que lhe salta pela
janela e lhe invade o quarto, atirando ao chão os papéis da mesa, arrancando os
quadros da parede e desfraldando as cortinas, que tremulam no ar em flutuações
alegres de bandeira; não resiste &emdash;veste-se rindo, cantarolando, e
vai para a rua, para o campo, mete uma flor na lapela do fraque, agita a
bengala, fala muito, ri, tem vontade de correr e almoça nesse dia com um
apetite selvagem.
A madrugada da véspera de São João era dessas.
Raimundo, antes de raiar o dia, já se achava de pé e em caminho, junto com
Maria Bárbara, Manuel e Ana Rosa, para o sitio, onde seria realizada a grande
festa tradicional dos tempos do defunto coronel. A velha arrependia-se de não
ter esperado pelo bonde das seis horas e, de cansada, assentou-se com o genro
no banco de Uma das quintas do Caminho Grande; Raimundo continuou a andar
distraidamente, de braço dado à rapariga.
Clareava o tempo; a este o horizonte tingia-se de
vermelho para o seu grande parto quotidiano e deslumbrante; ia nascer o sol.
Houve uma grande alegria rubra em torno do ventre de ouro e púrpura, que se
rasgou afinal, num turbilhão de fogo, jorrando luz pelo céu e pela terra. Um
hino de gorjeios partiu dos bosques; a natureza inteira cantou, saudando o seu
monarca!
Raimundo, estático ao lado de Ana Rosa, não podia
conter o seu entusiasmo.
— Como é belo! como é belo! exclamava ele,
apontando para o nascente.
E, numa comoção de pintor, amarrotando entre os
dedos o seu chapéu de feltro, parecia beber avidamente, pelos olhos
deslumbrados, aquele maravilhoso nascimento do sol meridional de junho. Depois,
sempre emocionado, segurava o braço da prima, chamando a atenção desta, sem
despregar a vista da paisagem, para o lindo efeito da luz, filtrada por entre as
folhas, na espessura das árvores; para as gotas de orvalho, que cintilavam como
diamantes; para a esfogueada selagem dos planos afastados; para a luminosa
cercadura dos casebres ao longe, em torno dos quais pasciam bois e
acogulavam-se carroções com grandes feixes de capim novo.
E vinham do campo para o mercado da cidade enormes
tabuleiros de hortaliças, gotejantes da última rega, e pirâmides de
ramalhetinhos de vintém, para se vender às mulatas; e cofos de frutas, que espalhavam
no ar um perfume desenjoativo; e matutos traziam. dependuradas de um pau sobre
o ombro, as pacas e as cutias, caçadas no mato; e os carros da roga passavam
gemendo, com as suas imensas rodas inteiriças; e os caboclos, seguidos pelas
mulheres e pelo bandão dos filhos, num passo sacudido e ligeiro, chegavam da
Vila do Paço e de São José de Ribamar, muito carregados, depois de engolir
léguas e léguas a pé descalço, para vir vender à boca do Caminho Grande o seu
peixe pescado e mosqueado na véspera, os seus beijus fresquinhos, o azeite de
gergelim, a massa de água, a macaxeira e os bolos de mandioca.
Ana Rosa não parecia a mesma daqueles últimos
tempos: estava alegre, despreocupada; dir-se-ia ter voltado a um dos seus dias
de colégio. Os ventos gerais como que lhe levantaram o véu das suas melancolias
de donzela e arejaram-lhe o coração com uma rajada.
— Deixe lá a paisagem, e dê-me o braço, primo!
disse ela arquejante, tendo ido de carreira comprar tangerinas à mão de um
roceiro. Ah!... cansada!
E, sem poder falar, prendeu-se ao braço de
Raimundo. Este vergou-se sobre ela, depois de contemplá-la muito.
— Sabe? segredou-lhe, você hoje está bonita como
nunca, minha prima! Suas faces são duas rosas!
— F debique seu... Se me achasse bonita, já me
teria pedido a papai...
— Confesso que nunca a vi tão linda...
— São os ventos gerais! Limparam-lhe os olhos!...
— Não diga brincando! Quer que lhe confesse Uma
coisa?... Não sei que singular efeito me produz esta manhã. F esquisito, mas eu
mesmo me desconheço! Sinto-me transformado! A idéia, por exemplo, da minha
sisudez habitual, dessa gravidade exagerada, de que por mais de uma vez a prima
se queixou a mim próprio parece-me agora tão pueril e ridícula como o estilo do
Freitinhas e o orgulho do Sebastião Campos! F exato! Creia que neste instante
lamento não ser mais expansivo mais alegre mais rapaz! Deploro ter esperdiçado
tantas madrugada a estudar, a matar-me de trabalho; ter adormecido esfalfado ao
raiar do dia quando os outros se levantavam satisfeitos e confortados. Com
franqueza toda a obra de uma geração inteira de investigadores da ciência; tudo
quanto ensinam as melhores academias, não vale a boa lição que em algumas horas
de passeio ao seu lado me dá a natureza, a grande mestra! Com esta única lição
renasce-me a mocidade que eu estupidamente me empenhava em sufocar! Sinto-me
disposto a ser feliz, sinto-me capaz de amá-la, minha querida amiga!
Ana Rosa abaixou o rosto, afogada em pejo e
contentamento, sem querer intenrompê-lo, para não desperdiçar uma só daquelas
palavras, que lhe faziam tanto bem. O que Raimundo lhe dizia dava-lhe vontade
de chorar e cair-lhe agradecida nos braços, traduzindo em beijos todas as
ternuras, que o pudor vedava aos lábios proferissem.
Haviam parado, junto um do outro; batia-lhes em
cheio no rosto o sol nascente. Emudeceram. O moço tomou-lhe as mãos, e os dois
fitaram-se com um juramento nos olhos, e r ao falaram mais em amor, enquanto
esperavam por Manuel e Mana Bárbara, que de novo se tinham posto a caminhar.
Meia hora depois chegavam todos ao sitio. Raimundo
fazia pasmar com o seu bom humor confessava-se no momento mais feliz da sua
vida; deu até para brincalhão e ferrou, ao entrar na casa, um abraço em D.
Amância, que viera recebê-los à porta A velha afastou-se, benzendo-se:
— Credo! Pra lá mandado!
Ela já lá se achava, desde a véspera, preparando
tudo, arrumando, dando ordens, ralhando, prometendo castigos, como se estivesse
em fazenda própria e cercada de escravos seus.
A quinta de Maria Bárbara como quase todas as
quintas do Maranhão, era aprazível e rústica. Um velho portal de ferro, com o
competente lampião de corrente, abria sobre duas longas filas de mangueiras
seculares, que iam terminar defronte da casa. formando sombrosa e úmida
galeria, onde o sol penetrava horizontalmente, por entre os grossos troncos
nodosos e encascados. Por uma e outra banda sem ordem nem simetria, viam-se
plantações, na maior pane úteis e bem tratadas destacava-se o verde alegre dos
canteiros de hortaliças donde voava um cheiro fresco de salsa e coentro. Mais
para o interior do sitio encontravam-se tanques cheios esverdeados de limo;
sinuosas calhas espalhavam, suspensas por estacas de acapu, levando água para
todos os lados; extensas latadas vergavam ao peso das abóboras, dos jerimuns e
dos maracujás de diversos tamanhos, desde o da laranja até ao da melancia.
Ainda mais para o interior, destacavam-se, em qualquer dia do ano, o
verde-escuro e lustroso das jaqueiras colossais e das árvores da fruta-pão,
ambas com as suas folhas grandes e recortadas caprichosamente, contrastando com
as massas fuscas da folhagem miudinha dos eternos tamarindeiros, com os tons
dourados do pé de cajá e com os altivos jenipapeiros, as graciosas pitombeiras,
cercados de goiabais floridos e cheirosos. Em outros pontos adivinhavam-se
olhos-d'água pela abundância das juçareiras Parasitas de mil espécies
enfeitavam com as suas flores, extravagantes e admiráveis, as árvores e os
pombais, numa variedade prodigiosa de cores E por toda a parte doidejavam,
cantando, os passarinhos e saltitavam rolas, a mariscar na relva.
A habitação olhava de frente para os dois renques
de mangueiras, franqueando as suas varandas sem parede; toda ela aberta,
deixando-se invadir pelas plantas do jardim que a rodeava. Uma dessas
pitorescas vivendas acaçapadas, muito comuns nos sertões da ilha de São Luís.
Grande telheiro quadrado, telha vã, formando bico na cumeeira e sustentado nas
quatro faces por moitões de piqui pintados de verde, e firmados estes em
anteparos de pedra e cal, que formavam uma espécie de amurada, alta pela parte
de fora e rasa pela de dentro. No meio, distanciado da antepara uns vinte
palmos seguros, estava a casa feita de paredes inteiriças, caiadas de cima a
baixo. O chão era todo forrado de tijolos vermelhos. A entrada uma cancela,
três degraus de cantaria, jasmins de Itália, bancos de pau e uma confusão de
trepadeiras, que se enroscavam pelos moitões e galgavam o telhado,
vitoriosamente. erguendo lá em cima os seus rebentões novos, ávidos de sol.
Esta quinta fora a menina dos olhos de Maria
Bárbara; ai passara ela grandes delicias no tempo do coronel. Ainda estava
muito forte e bem conservada, mas, havia dez anos, desde que a velha foi fazer
companhia à neta, achava-se entregue aos cuidados do português Antônio e ao
trabalho de três pretos velhos, que iam diariamente à cidade vender hortaliças,
flores e frutas.
As seis e meia da manhã chegou o bonde com os
convidados.
Trazia música. Era uma "surpresa"
arranjada pelo Casusa. E este, encarrapitado na plataforma do cano, doido de
entusiasmo, dava vivas a São João, vivas "ao belo madamismo
maranhense!" e vivas à música.
Os músicos romperam com o Hino Nacional.
O Casusa, inteiramente fora de si, rouco já, um
bocadinho picado pelo conhaque, cujo como de delito ele trazia a tiracolo
enforcado num pedaço de cabinho, saltava, ia e vinha, singrando por entre
todos, atravessando o bonde com as senhoras ainda assentadas, fazendo-as apear,
assustando-as com os seus gritos, machucando nas costas dos bancos os dedos dos
que desciam, provocando gemidos, protestos, e fazendo rir ao mesmo tempo. Deu
um beijo em D. Amância que lhe chamou furiosa, "Cachaceiro! Pancada!
Moleque!"; bateu na barriga de Manuel, que o exprobrava por se ter incomodado,
feito despesas, contratado músico.
— É gosto, é gosto, seu Manuel! Não faca caso! Hoje
há de sair cinza nesta pândega!
E os convidados saltavam do bonde. O primeiro a
descer foi o Freitinhas, todo vestido de brim branco de Hamburgo irrepreensível
rodaque de botões de osso, uma enorme cadeia de cabelo prendendo o relógio e
dependurado nela um anel de ouro, onde se lia esmaltado 'Saudade". Trazia,
por causa do pó, umas lunetas azuis, grandes, verdadeiras vidraças, que lhe
davam à grande fisionomia o tom pitoresco de uma casa de campo; Um chapéu de
feltro branco, peludo, alto, a que os gaiatos da província denominavam
"Carneiro" e do qual o dono contava maravilhosas propriedades.
"Era uma pena!... Podia a gente machucá-lo à vontade sem ofender o pêlo,
de bom que era! Custara vinte mil-réis, mas valia cinqüenta a olhos
fechados!" E, com a bengala de unicorne debaixo do braço, ajudava a sua
gorda Lindoca a descer do bonde com dificuldade. As meninas Sarmento,
acompanhadas da tia de Eufrasinha e um cachorrinho branco e felpudo. que esta
trazia ao colo, saltaram, cheias de espalhafato, muitos risos, latidos, cores
vivas nos chapéus e nas sombrinhas. O famoso cabelo ostentava-se, mais que
nunca, em cachos acastelados e trescalantes de óleo de babosa. O cônego,
discretamente risonho e sempre janota, vinha seguido por um padrezinho
magricela, que desfrutava na província a especialidade de cantar ladainhas;
alcunhavam-no de "Frei Lamparinas". O Sebastião Campos, vestido de
branco como o Freitas, porém de paletó e chapéu-do-chile, pulara em terra,
abraçado a uma grande cesta de busca-pés, pistolas, carretilhas e bombas.
— E o mantimento! respondia ele aos olhares
curiosos.
Tinha paixão pelos fogos.
— Sou perdido por isto! dizia mostrando uma luva
grosseira feita de sola, com que tocava os formidáveis busca-pés.
Nos sábados de Aleluia era o seu luxo queimar um
judas defronte da casa; não perdia fogo de vista nas festas de arraial e sabia
fazer bichinhas, carretilhas e foguetes.
Apresentaram-se também, fora da rodinha do costume,
dois novos convidados; Um levado por Manuel e o outro pelo Casusa. O primeiro
era o Joaquim Furtado da Serra, bom homem, do comércio, muito amigo da família
e tapado como um ovo, o que, alias, não impedia que estivesse rico. Só entendia
e só conversava sobre negócios, gostava de fazer bem e era membro de várias
sociedades filantrópicas. Vivia contente da vida, cheio de amigos e
obsequiados, estava sempre a rir e a falar das suas três filhas. "Não
puderam ir à festa de Manuel, coitadinhas! porque ficaram à cabeceira de Uma
doente..." Não queria comendas nem grandezas; contava a todos como
principiara no Brasil descalço, com um barril as costas, e orgulhava-se, entre
gargalhadas, da sua atual independência. O outro era um rapazola de vinte e
dois anos, que à primeira vista, parecia ter apenas dezesseis: magro, puxado,
muito penteado e muito míope, com as unhas burmidas, o colarinho enorme e os
pés apertadinhos em sapatos de polimento. Estudava no Liceu da província, u
sava uma cadeia de plaquê brilhantes falsos no peito da camisa e uma bengalinha
equilibrada entre o indicador e o índex da mão direita; tinha uma coleção de
acrósticos e recitativos da própria lavra, uns inéditos e outros já publicados
a dinheiro nos jornais aos quais qualificava desvanecidamente de "seu
tesouro!" Chamava-se Boaventura Rosa dos Santos; era conhecido por
"Dr. Faisca" e gostava de fazer e adivinhar charadas.
Entraram todos em casa, numa desordem, acossados
pela música, que atropelava Uma polca do Colas, e por Uma intempestiva
carretilha que soltara Sebastião. Houve sarilho. José Roberto, debaixo de
tempestuosa descompostura, obrigava D. Amância a dar meia dúzia de voltas pela
varanda, indo cair ambos, perseguidos pelo Joli, sobre um banco de paparaúba.
Joli era o cãozinho da Eufrásia.
No furor da terrível dança, desprendera-se o coque
de Amância e fora parar no jardim. Joli saltara-lhe logo atrás e destripava-o
freneticamente com os dentes.
— Olhe, seu Casusa! Gritou a velha, quase sem
fôlego, você não de perca o respeito, seu pica-fumo! Quando tomar suas monas,
meta-se em casa com os diabos! Credo! Que cachaceiro acabado! Vá tomar
liberdade com quem lhas dá! Diabo do sem brios!
O coque foi arrancado das garras do Joli e
restituído à dona.
— Vejam! Vejam em que bonito gosto me puseram o meu
coque de pita! Parece uma rodilha de limpar panelas! Diabo da brincadeira
estúpida! Também, em vez de criar xirimbabos, sena melhor que cada Um cuidasse
de sua vida, que teria muito do que cuidar!
E voltando-se para Sebastião:
— Mas o culpado é você, seu Sebastião; com você e
que me tenho de haver! Não posso perder o meu coque novo!
— Novo quê! . contestou Casusa Eu vi pular de
dentro dele uma aranha!
— É novo, e quero outro p'r'aqui!
— Está bom, meus senhores, deixem-se disso,
interveio Manuel, e vamos ao café, que está esfriando!
— Mas o meu coque? Isto não pode ficar assim!
— A senhora terá outro. descanse!
Mal se serviram de café com leite e bolo de tapioca
com manteiga, formou-se uma quadrilha. na qual o Casusa, de par com Eufrasinha,
fez o que ele chamava "pintar o padre''' Ditado este que sobremaneira
escandalizava o especialista das ladainhas. de cujos olhos partiam, por cima
dos óculos, chispas repreensivas sobre aquele.
Este Frei Lamparinas era um homenzinho escorrido,
feio, natural de Caxias. Não conseguira nunca ordenar-se em razão da sua
extremada estupidez: soletrava ainda as ladainhas que havia vinte anos
recitava; jamais entrara com o latim. Os rapazes do Liceu mexiam com ele e
atiravam limões verdes por detrás do muro do convento do Carmo, quando o
infeliz passava defronte Tinha uma biografia engraçada, cheia de disparates mas
todos diziam que era bom de coração e não fazia mal a ninguém.
— O chorado! Venha o chorado! gritavam do fundo da
varanda batendo palmas.
E a música, sem se fazer rogada gemeu a lânguida e
sensual dança brasileira.
De pronto, Casusa e Sebastião pularam ao meio da
sala e puseram-se a sapatear agilmente. com barulho. estalando os dedos e
requebrando todo o corpo Em breve arrastaram o Serra, o Faisca e o Freitas: e
as mocas. chamadas por aqueles, entraram na irresistível brincadeira. Elas
rodavam na portina dos pés, o passo miudinho e ligeiro, os braços dobrados e a
cabeça inclinada, ora para um lado, ora para outro, estalando a língua contra o
céu da boca, numa volúpia original e graciosa.
Os velhos babavam-se
— Quebra! berrava o Casusa entusiasmado. Quebra meu
bem!
E regamboleava furiosamente a perna.
O chorado atingira afinal a sua fase de loucura Os
que não podiam dançar espectavam, acompanhando a música com movimentos de corpo
inteiro e palmas cadenciado e espontâneas.
— Bravo! Assim, seu Casusa!
— Picadinho! Picadinho!
De repente, ouviu-se um trambolhão e um grito: era
o Faisca. que cedera a um "cambite" do Casusa, indo cair aos pés de
Maria do Carmo Todos riram.
— Credo! gritou a velha Pois este homem neo me
queda agarrar a perna?... Cruz capeta!
— Não aumente, minha senhora, foi no tornozelo...Este
ossinho do pé!
— Mas eu tenho muita cócega, e, depois do defunto
Espigão, ninguém mais me tocou no corpo!
Daí a pouco, chamavam para o almoço, e o
divertimento continuou sem intenrupção.
No dia de São João nunca se abria o armazém de
Manuel, e naquele ano a véspera caíra num domingo! "Eram dois dias
cheios!" como dizia satisfeito o Vila Rica.
Desde a véspera que o Benedito, e mais uma preta,
haviam seguido para o sítio, carregados de fogos e dos paramentos necessários
para se armar o altar: na madrugada do dia foi a Brígida, em companhia de
Mônica Lá estava D. Amância para tomar conta de tudo. Os empregados iriam
também todos; não havia, por conseguinte, necessitado de ficar escravo nenhum
em casa.
O quarto dos caixeiros tinha então um aspecto
domingueiro: botas engraxadas sobre os baús; roupas de casimira cuidadosamente
estendidas nas costas de cadeiras; camisas engomadas por aqui e por ali, a
espera da serventia, e um cheiro ativo de extratos para o lenço. Os rapazes
vestiam-se. Seriam, quando muito, oito horas da manhã.
Mas, apesar do aspecto festival dos colegas, Dias
conservava-se em trajos menores, a varrer o soalho.
— Você não se apronta, seu Dias?... perguntou-lhe o
Cordeiro, ocupado a enfiar um par de calcas cor de alecrim. Você neo vem
conosco à quinta?
— Vão andando, que eu já vou.
Não trocaram mais palavra. Os três saíram, e o
Dias, encostando no queixo o cabo da vassoura, ficou pensativo. Mal ouviu,
porém, bater embaixo o trinco da porta da rua, atirou a vassoura para um canto
e desceu cautelosamente à varanda.
A casa tinha a tranqüilidade saudosa de Um lugar
abandonado. Só o sabiá chilreava na gaiola.
O caixeiro predileto de Manuel fechou à chave a
cancela de madeira polida, que separava a varanda do corredor, e, depois de
olhar em torno, seguiu para o quarto de Raimundo, fariscando, nem ele sabia bem
o quê. Pôs-se a esquadrinhar o que lá havia, não com a curiosidade amorosa da
primitiva bisbilhoteira, porém frio, calculado, com a prudência de quem sabe
que está cometendo uma baixeza. E abria gavetas, lia os manuscritos que
encontrava, revistava as algibeiras da roupa estendida no cabide, folheava os
livros, examinando tudo, todos os cantinhos. Em Uma das malas encontrou um
folheto de capa verde, guardou-o logo, depois de lhe ter lido o frontispício, e
afinal, quando já nada mais tinha para dar fé, retirou-se sem deixar o menor
vestígio do que fez. Daí seguiu para o aposento de Ana Rosa, mas teve logo uma
contrariedade: a porta estava fechada; resbuscou a chave na varanda, pelos
cantos, não a encontrou, e subiu então rapidamente ao segundo andar, donde
trouxe um pedaço de cera, com que modelou a fechadura. Em seguida atirou-se
para o quarto de Maria Bárbara, experimentou a porta; estava também fechada.
Mas havia um postigo Dias espremeu-se por esse e conseguiu entrar.
O aposento da velha conduzia com a dona. Sobre uma
cômoda antiga, de pau-santo, com puxadores de metal e coberta por um oleado já
puído e gasto, equilibrava-se um oratório de madeira, caprichosamente trabalhado
e cheio de uma porção variadíssima de santos, havia entre eles, feitos de casca
de cajá, de gesso, de terra vermelha e de porcelana. O Santo Antônio de Lisboa,
vindo de encomenda, com o pequeno ao colo, lá estava, muito rubicundo e
lustroso; a Santa Ana, ensinando a filha a ler: um São José de cores cruas,
detestavelmente pintado; um São Benedito, vestido de frade, pretinho, de beiços
encarnados e olhos de vidro: um São Pedro, cujas proporções o faziam criança ao
lado dos outros, uma miuçalha de santinhos, pequenitos e caricatos, que a gente
não podia ver sem rir e que se escondam na peanha dos grandes; e, finalmente,
um grande São Raimundo Nonato, calvíssimo, barbado, feio, e com um cálice na
mão direita. Ao fundo do oratório litografias de carregação representavam Santa
Filomena, a fugida de São José com a família, Cristo crucificado e outros
assuntos religiosos. O grupo dos santos ressentia-se de uma falta, a de João
Batista, que havia desertado para a quinta. Havia ainda sobre a cômoda dois
castiçais de latão, guarnecidos de papel rendado, com as velas de cera meio
gastas; um grupo de biscuit representando a Mater dolorosa e um menino Jesus,
fechado numa manga de vidro, por causa das moscas. Encostada a parede, uma
palma de pindoba benta a qual, segundo a voz do povo, tinha a virtuosa
propriedade de apaziguar os elementos em dias de tempestade, duas outras palmas
casquilhas, enfeitadas de pano e malacacheta, guarneciam os lados do oratório.
Viam-se ainda, por toda a parte, quadrinhos de gravuras e cromos, onde se liam
orações milagrosas, a do Monte Serrate, a do Parto, a da Virgem, e outras, sem
desenho, com que os tipógrafos espertos da província exploravam a carolice das
beatas.
Contrastando com tudo isto, destacava-se,
dependurada na parede, uma formidáveis palmatória de dar bolos, negra, terrível
e muito lustrosa de uso.
Defronte do oratório simetrizavam duas molduras
envidraçadas, expondo cada qual uma talagarça cheia de amostras dos diversos
bordados de lã, que as meninas aprendem no colégio. "Panos de tapete"
como se diz no Maranhão. Em uma delas liam-se no centro as iniciais M. R. S. e
"Colégio da Trindade em 1838", e na outra, que estava em melhor
estado de conservação "A. R. S. S." e Uma data muito mais recente. A
julgar por estas letras, os dois quadros tinham sido bordados por Mariana e Ana
Rosa, mãe e filha. Tudo isso foi minuciosamente esmerilhado pelo Dias; leu as
Horas Marianas, apalpou as roupas de Maria Barbara, provou a ponta do molho do
fumo com que esta "espairecia os passados dissabores", e. depois,
quando nada mais tinha para esmiuçar, pos-se a refletir, pensando, no que devia
fazer. Afinal veio-lhe uma idéia, que lhe deu um sorriso de contentamento,
acendeu logo uma das grossas velas de cera, tomou pelas pernas a imagem de São
Raimundo e tisnou-lhe a cara e a careca de encontro à chama do pavio. Depois da
operação, o pobre santo parecia um carvoeiro; ficara tão negro como o seu
companheiro de oratório, o engraçado São Benedito.
Dias contemplou a sua obra, riu de novo, calculando
o bom efeito que ela produziria, colocou em seguida a imagem no seu lugar, e
saiu apressado, por lhe parecer que ouvira rumor na porta da rua. Enganara-se.
Daí a meia hora, vestido de pano preto, segundo o
seu invariável costume. o acreditado caixeiro de Manuel Pescada, tomava o bonde
do Cutim, com destino ao sitio da sogra do patrão.
8
Eram cinco da tarde.
A festa de Maria Bárbara continuara sempre muito
animada; havia uma boa disposição geral. Os homens bebericaram durante o dia
cálices de conhaque, e sopravam agora o fumo dos seus charutos domingueiros,
com um grande ar de pessoas de importância: as senhoras melaram galantemente os
beiços com licor de rosa e hortelã-pimenta Dançara-se muito. Brincou-se o
Padre-cura o Anel, o Peixinho de Muquém Afinal. foram todos lá pra fora,
apreciar a tarde, assentados nos bancos fronteiros a casa. A sociedade estava
engrossada pelos quatro caixeiros de Manuel e por um sertanejo que a divertia
com as suas cantigas. "Lamparinas" havia saido para ir ali perto, à
quinta de um amigo, mas prometera não faltar à ladainha.
O sol escondera-se. Uma tarde formosa, com o seu
poente esfogueado, rubrava as caras suadas dos homens e os vestidos machucados
das senhoras, que se arejavam debaixo das latadas de maracujás e jasmins da
Itália. As damas, comodamente assentadas, tinham requebros de etiqueta, gestos
cheios de conveniência, risos com a boca fechada, olhares por debaixo das
pálpebras, o leque nos lábios e o dedo mínimo levantado com galanteria.
Minava um apetite surdo pelo jantar: alguns
estômagos resmungavam indiscretamente. Contudo, todos os olhares e todas as
atenções convergiam, na aparência, para o sertanejo, que a certa distância, de
pé, isolado, a cabeça erguida com desembaraço mal-educado, o chapéu de couro
atirado para a cerviz e preso ao pescoço por uma correia, a camisa de algodão
cru por fora das calcas de zuarte, arregaçadas no joelho, o pé descalço, curto
e espalmado, pé de andarilho, o peito liso e cor de cedro à mostra, braço nu e
sem cabelos — vibrava entusiasmado as cordas metálicas de uma viola ordinária,
acompanhando, com um repinicado muito original, os versos que improvisava e
outros que trazia de cor:
"Lá vai a garça voando Para as bandas do
sertão! Leva Maria no bico, Teresa no coração!"
Ao terminar de cada estrofe, rebentava um coro de
risadas, durante o qual se ouvia o sapatear surdo do sertanejo, socando a
terra, a dançar.
"Não tenho medo da onça, Que todos têm medo
dela!.. Não tenho medo de ti, Que fará de Micaela!"
E o matuto, depois do sapateado, dirigiu-se a Ana
Rosa:
"Me diga, minha senhora: (Quem pergunta quer
saber...) Se eu sair daqui agora, Onde vou amanhecer? "
— Este foi de sentimento!... considerou Etelvina
com um gesto aprovativo.
— Gostei, gostei... confirmava o Freitas,
protetoramente.
E o sertanejo ferrou o olhar em Ana Rosa:
"Sinhá dona, se eu pedisse... Responda, mas
não se ria... Uma flor do seu cabelo... Sinhá dona que diria?.."
— Bravo!
— Sim senhor!
Houve um sussurro alegre
— D. Anica, de a flor!...
Ana Rosa hesitava.
— Então, menina... repreendeu Manuel em voz baixa.
Ana Rosa tirou um bogari da cabeça e passou-o ao
trovador, que versejou logo:
"O minha senhora dona, Deus lhe pague eu
agradeço; Seus quindingues são dos ricos Eu sou pobre e não mereço!... "
E, colocando a flor atrás da orelha, continuou,
depois de olhar intencionalmente para Raimundo:
"Ó nhá dona feiticeira! Me cativa seu favor
Mas não vá meter ciúmes Agora pro moa e a flor!..."
Em seguida, desprendeu o chapéu e estendeu-o a um
por um.
Consultaram-se as algibeiras do colete, pingaram os
vinténs e as pratinhas de tostão. O menestrel, com a cabeça erguida em ar de
exigência, dizia:
"Vamos, vamos, pingue o cobre, Qu 'eu não
gosto de maçada! Dos homens aceito a paga, Das mocas não quero nada!"
E, quando se chegou a Manuel:
"Manuelzinho cravo roxo, Me desculpe a
;impertinência; Se puder dar eu aceito, Se não puder — paciência!..."
Entre gargalhadas, enchiam-lhe o chapéu de moedas.
Ao chegar a vez do Faisca, este. em vez de dinheiro, lançou-lhe a ponta do
cigarro; o matuto, como de costume, cavaqueou com a pilhéria e gritou zangado:
"Seu lanceiro da Bahia, Casaquinha do Pará A
gente recebe o coice, Conforme a besta que o dá!"
A hilaridade aumentou e o Faisca enfureceu-se,
chegando a ameaçar o caboclo, que lhe soma em ar de mofa.
— Eu ainda atiro com alguma coisa à cara daquele
diabo! resmungou o estudante, lívido.
— Deixe-se disso! . aconselharam-lhe, você já sabe
que esta gente é assim, para que se mete?...
— Tome lá! disse Manuel ao sertanejo beba e vá
embora!
E passou-lhe um copo de vinho, que ele emborcou,
trovando, depois de estalar a língua:
"O vinho é sangue de Cristo, É alma de
Satanás. É sangue quando ele é pouco, É alma quando é demais!"
E, fazendo um grande cumprimento com o chapéu:
"Meus senhores e nhás donas, Vou-me embora de
partida Deus lhes de muita fortuna E muitos anos de vida!"
E virou de costas e retirou-se, a dançar, cantando
uma passagem do — bumba-meu-boi:
"Isto não, isto não pode sê. Isto não, isto
não pode sê A filha de meu amo casar com você! .. O caboclo me prendeu Meu
amor! Foi tão cena da razão, Coração! Que ocabo... "
E perdeu-se nas fundas sombras do mangueiral a voz do
sertanejo e o som da viola.
Iam-lhe discutir o talento poético e a graça,
quando de ama, Manuel, Maria Barbara e Amância, todos três a um tempo, chamaram
para a mesa, com autoridade benfazeja.
Houve um sussurro de prazer.
— Olha, filha, que já tinha o estômago a dar
horas!... cochichou D. Maria do Carmo, ao passar por Ana Rosa.
Subiram todos para a varanda e foram tomando
vivamente os seus lugares à mesa, entre uma confusão de vozes, a discutirem mil
assuntos.
— Homem! exclamou Sebastião Campos, parece que
tomaram alma nova só com o cheiro!...
O Freitas amolava Raimundo sobre poesia popular;
falou, com assombro, de Juvenal Galeno.
— Muito original! muito original!
— Do Ceará. não?
— Todo inteiro! Ah, o senhor não imagina o que é
aquela provinciazinha para as trovas populares!
E, antes que Raimundo desse alguma providência
contra a maçada já o Freitas lhe recitava junto ao ouvido:
"Quando passares na nua, Escarra, cospe no
chão! Qu'estou cosendo à candeia Não sei se passas ou não!"
— Pois não há como uma festa no sido! dizia
Sebastião por outro lado. Isto de pâdegas, ou bem que é pândega ou bem que não
é!
O Freitas insista:
"Sinhá, me de qualquer coisa, Inda que só uma
banana, Que a barriga é bicho burro Com qualquer coisa s engana!"
Raimundo já não o ouvia: prestava atenção a uma
conversa entre Bibina, Lindoca e Eufrásia
— Vocês não tiraram a sorte esta noite? perguntou a
última.
— Como não? disse a gorda, porém não vi nada, ou
pelo menos não acertei com 0 que apareceu .
— Não, pois eu, declarou a viúva, tirei uma sorte
bem bonita...
— Que foi? Que foi?
— Um véu branco e uma grinalda!
— Casamento! gritaram varias vozes.
— Eu tirei um "túmulo"!... disse do canto
da mesa a Lagartixa, suspirando funebremente.
— Credo! exclamou Amância, passando com uma salada
de agrião, que acabava de preparar.
Raimundo, assentado, contra a vontade, ao lado do
Freitas, falava com saudade nos costumes portugueses nas noites de São João e
São Pedro; contou como era que as raparigas queimavam alcachofras e
plantavam-nas em vasos à janela, para ver com elas grelar a sorte; citou o
costume das favas sobre o travesseiro, os bochechos de água à meia-noite para
se ouvir nome do namorado, as fogueiras de alecrim seco, e enfim aquele uso do
copo de água, de que as moças ali falavam.
— Um antigo uso! explicava o Freitas, a mastigar
pedacinhos de pão. Consiste em deitar ao sereno, na noite de São João, um copo
de água com a gema de um ovo...
— E a clara! reclamou D. Maria do Carmo, que
acompanhava a conversa com muito interesse.
— Pois seja assim! a gema e a clara; e, no outro
dia, pela manhã, dizem que a sorte do individuo aparece representada no
interior do copo. Patacoadas!
— Patacoadas, não! retorquiu a velha, tomando lugar
junto das sobrinhas. Cá está quem recebeu a noticia da morte do Espigão muito
antes do dia fatal!
E levou o guardanapo aos olhos num movimento
patético.
— Há outros usos, continuou Freitas, passando
adiante um prato de sopa. O banho de São João, por exemplo!
— Imitações de Portugal...
— Quem não se banha amanhã de madrugada, fica com a
alma suja! Dizem!
— Então seu Cordeiro! seu Dias! e você lá, menino!
neo tratam de se assentar? intimou Manuel.
&emdash;Nós esperamos a outra mesa... respondeu
modestamente o Dias. Não há mais lugares...
— Qual outra mesa, o quê! Não, senhor! Sente-se cá,
seu Dias!
E o negociante abriu um lugar ao lado da filha.
Luís Dias todo vexado foi assentar-se, sorrindo, ao
lado de Ana Rosa, que fez logo um gesto de contrariedade e repugnância.
— E lá os senhores? seu Cordeiro! seu Vila Rica! e
esse menino! Venham se chegando!
— Nós esperamos.. Faz-se depois outra mesa!...
— E a darem com a outra mesa! Não, senhor! e a
senhora, minha sogra? D. Amância, onde ficam?
— Tem aqui um lugar, minha senhora!... disse
Raimundo levantando-se. E ofereceu a cadeira.
— Meu amigo, censurou Manuel, deixe-se dessas
coisas! Olhe que estamos no sítio! Isto cá não e cidade para se fazer
cerimônias!
— Pagode de sitio não presta, quando nada falta!...
arriscou o Serra, mexendo e soprando uma colherada de sopa.
— Não! contradisse o Freitas. Quero a minha
comodidade até no inferno!
— Ora está tudo arranjado! gritou Amância, que
acabava de preparar outra mesa. Ficamos nós aqui! Somos poucos, porém bons!...
— E eles lá?... interrogou Vila Rica, contando as
pessoas da mesa grande, pela seguinte ordem, a partir da cabeceira: "O
patrão — um, senhor cônego — dois, D. Maria do Carmo — três, sobrinhas — cinco,
o Dr. Raimundo — seis, seu Freitas e a filha — oito, D. Eufrasinha — nove, seu
Serra e aquele moço — era o Faisca — onze, o Dias e D. Anica — treze ao todo!
— Treze?! bradou D. Maria do Carmo, soprando o
macarrão que tinha na boca. Treze!
— Treze! repetiram todas as senhoras, assustadas.
— Saia um! reclamaram.
Ninguém se mexeu.
— Ou venha outro... lembrou o cônego, largando a
colher. Em treze não pode ficar!
Suspendeu-se o jantar.
O Freitas passou logo a dar explicações a Raimundo
do que aquilo queria dizer, posto haver este declarado de pronto que já sabia
perfeitamente.
— Não há mais ninguém por ai?
Maria Bárbara levantou-se e foi buscar lá dentro
uma negrinha de três anos.
— Aqui tem!
— E verdade! E o Casusa?!...
— É verdade, gente, seu Casusa!...
— Venha o Casusa!
Casusa dormia. tinha tomado um banho e recolhera se
cansado. A pequena foi novamente levada para a cozinha.
— Moleque! Chama seu Casusa ai no quarto!
O Casusa veio bocejando e esticando os braços.
— Para que jantar tão cedo?... Não tenho apetite
algum!... resmungava ele, abrindo a boca.
— Cedo!... Se lhe parece!... Já deram cinco horas!
— Quase que ficavas a ver navios!... considerou
Sebastião, rindo.
— Olha o prejuízo!... desdenhou Amância, com um
esgar de pouco caso.
— Tu já queres inticar comigo, coração?... Depois
te queixa!... Mas, enfim onde me assento? O que neo vejo é lugar! Ah, exclamou,
voltando-se para a mesa pequena. Tenho-o cá, e em boa companhia!
— Pra lá, opôs-se Amância, escandalizada.
&emdash;Venha pra cá, homem de Deus! Você é cá
necessário!
E com dificuldade arranjou-se uma cadeira ao lado
de Sebastião,
— Ora até que afinal! disse Manuel, assentando-se
descansadamente.
— Tollitur quaestio!
E o cônego sorveu uma colherada de sopa
Fez-se silêncio por um instante; só se ouvia o
arrastar das colheres no fundo do prato e os assovios dos que chuchurreavam o
macarrão.
O Cordeiro cercava Amância, e Maria Barbara de
cuidados, cuja delicadeza procurava acentuar à forca de diminutivos:
— Uma coxinha de galinha, senhora D. Amancinha!...
— E um perfeito cavalheiro!... segredava esta à
outra velha. Compare-o só com a peste do Casusa!...
— Não! que os rapazes de lá são mais aqueles...
está provado!
— Têm outro assento que não têm os de cá!
— O senhor Serra, passa-me o pires das
azeitonas?... E bondade.
— Quer mais pirão, D. Lindoca?
— Muito obrigada, assim! chega! Um tiquinho só!
— Gentes?... você come essa pimenta toda, D.
Etelvina?!...
— Basta, oh! Não quero afogar-me em caldo!
— Tenha o obséquio de encolher as asas, meu amigo!
— Não enchas a boca desse modo!... dizia a velha
Sarmento a uma das sobrinhas. Era o que tinha o Espigão!&emdash;comia como
um danado, mas ninguém dava por isso!
— Olhe que você me suja de gordura, seu Casusa! Que
diabo de homem!...
— Então! Quem mexe esta salada?!
— A salada, sentenciou judiciosamente o Freitas com
um sorriso, deve ser mexida por um doido!
— Então, tome conta, seu Casusa!
— Quanto quer o menino pela graça?... Se tivesse um
vintém aqui, dava-lho, "seu poeta!"
Isto era entre o Casusa e o Faisca
— Doutor, não deixe apagar a lanterna! recomendava
Manuel a Raimundo.
— Uma fatia de porco, D. Maria Bárbara.
— Deite menos, minha vida! Assinzinho!
— Dona Etelvina! a senhora está magra de não
comer!...
&emdash;Ai! suspirou ela fitando o talher
cruzado sobre o prato.
— Não queres arroz, ó Sebastião?
&emdash;Não! Vou à farinha-d'água.
— Um brinde! gritou Casusa, levantando-se e
suspendendo o copo à altura da cabeça. Ao belo madamismo maranhense, que hoje
nos honra!
— Hup!
Hup! bangüê!
&emdash;Aproveito a ocasião, meus senhores,
para agradecer o obséquio que me fazem, e à minha sogra, comparecendo a esta
nossa velha festa da família!
Era Manuel que falava. Seguiu-se um inferno de
vivas e hurras que se prolongaram em medonha berraria. Os caixeiros do autor do
brinde, já um pouco eletrizados pelo vinho, gritaram familiarmente: "Viva
o Manuel!"
Houve uma voz indiscreta que gritou: — Manuel
Pescada.
Mas restabeleceu-se a ordem, e só se ouvia, além do
rumor dos talheres e dos queixos, a voz avinhada do Cordeiro, que gritava para
a sua vizinha da direita com uma solicitude exagerada:
— Beba! beba, D. Amancinha! Ataque-lhe pra baixo,
que é o que se leva desta vida!
E batia-lhe no ombro, revirando os olhos, em que o
álcool pusera faiscas.
— Credo! O senhor quer m'embebedar?!...
E, como o Cordeiro insistisse em servi-la de
Lisboa, Amância retirou o copo e o vinho derramou-se-lhe no prato, pela mesa e
sobre as pernas.
— Ui! fez ela, arredando súbito a cadeira, e
gritou: — Que selvageria, Virgem Santíssima!
— Farinha! Farinha seca, D. Amância! Farinha seca!
receitavam de todos os lados.
O Cordeiro, já pronto, tomou a cuia da farinha e
despejou-a em cheio sobre a pobre velha, que entrou a tossir muito sufocada.
Foi um gargalhadão geral e prolongado.
— Cruzes! Valha-me Deus, com os diabos! berrou
Amância, quando pôde falar, e a sacudir-se toda, muito enfarinhada Arre! Aqui
mesmo não me sento mais!
— Vem cá, pro meu lado, perdição! dizia Casusa,
convidando Amância entre o riso da mesa inteira
— Se a farinha e o antídoto cure-se agora com este!
aconselhou Raimundo por pilhéria.
— Até você?! esbravejou Amância, cega de raiva. Ora
mire-se! Quer um espelho?!...
— Preferia uma escova, minha senhora, para
limpar-lhe a roupa
As gargalhadas repetiam-se já sem intervalo,
contagiosamente, sem precisar de mais nada para as provocar.
— Vinho derramado — sinal de alegria! decidiu
Freitas, preocupado a esbrugar uma canela de frango, sem querer lambuzar os
bigodes.
Serviu-se a sobremesa e reformou-se a bebida. Veio
Porto em cálice.
— Uma saúde! exigiu Cordeiro, mal podendo ter-se
nas pernas.
Criou-se logo silêncio, em que se destacavam estas
frases:
&emdash;Mau!... Temos carraspana?...
— Cabeça fraca de rapaz!...
— Esse bruto a teima em beber! Forte birra!
— Diabo do homem não pode ir a parte alguma!
— Vai já tudo isto raso!
— Pscio... pscio!...
— Meus senhores... e minhas senhoras, de ambos os
sexos! Eu vou beber à saúde do melhor... sim! do melhor por que não?! do melhor
patrão que todos nós temos tido, aquele que está me olhando, o Manuel Pescada!
Houve um sussurro de repreensão.
— Ou da Silva! emendou o orador. É um homem sem
aquelas! E um mel!... para um serviço... quer dizer, quando a gente precisa
dele pode falar, que é o mesmo! Mas...
O sussurro aumentou.
— Cale-se! dizia baixo o Vila Rica, a puxar o
paletó do Cordeiro. Cale-se com os diabos! Você está servindo de bobo!
— Mas! berrou o espingardeira, sem fazer caso das
advertências do colega, o que eu não posso admitir, é a porção de picardias e
desaforos, que ele me está a fazer constantemente!...
O sussurro transformou-se em um coro de protestos,
que apagava os berros do orador; as mocas atiravam-lhe bolas de miolo de pão;
Manuelzinho, muito vermelho, possuia-se de uma hilaridade excepcional; Vila
Rica puxava com ambas as mãos o paletó do Cordeiro.
— Solte-me! roncou este. Solte-me, com todos os
diabos! ou vou-lhe aos queixos! Meta-se lá com a sua vida, e deixe-me, quero
desabafar! Sebo! Não me calo, entende?! Não me calo, porque não quero! não me
calo! não me calo! — Sim! continuou em tom de discurso, não admito os seus
desaforos!... Ainda outro dia...
— Viva o Manuel! gritou um.
— Vivô! respondia o coro.
— Seu Manuel! à sua!
— A sua!
— Hup! hup! hurra!
— Bangüê! gritou Cordeiro, e quebrou o copo na mesa
é de quebrar.
— Só se fosse a tua cabeça, grandíssimo borracho!
resmungou o Sena, muito maçado.
— Atenção! atenção, meus senhores!...
Em a voz do Faisca, acompanhada de palmas.
— Atenção!
E tirou da algibeira uma folha de papel.
Fez-se algum silêncio, e o Faísca, depois de puxar
os punhos, começou a falar, com uma voz aflautada, cheia de afetações e com a
minuciosa dos míopes; a cabecinha inquieta muito arrebitada, os olhos
esticados, procurando alcançar o vidro das lunetas; a boca aberta e as ventas
distendidas.
— Meus senhores!... Em tal dia... eu não podia
deixar de fazer... uma poesia!...
— É verso! E verso! declarou Bibina, a bater
palmas, contente.
— Eu creio também que sim... é uma poesia em
verso!...
— E por isso... continuou Faísca, calcando a
luneta, que o suor fazia escorregar — recomendo às musas, ouso erguer a minha
débil voz, para oferecer, como penhor de estima e consideração, ao senhor
Manuel, digno negociante matriculado da nossa Praça, este modesto soneto,
que... se não prima... sim!... se não prima...
— Primasse! gritou o Cordeiro.
Faísca, todo atrapalhado, procurava uma palavra.
— Venham os versos!
— Venha a poesia! Reclamavam.
"Filho da antiga terra de Camões!"
principiou o Faísca a recitar, trêmulo.
— Filho da antiga terra de Camões! repetiu o
Cordeiro, arremedando-lhe a voz.
— Homem! você neo se calará? repreendeu Manuel.
O recitador prosseguiu:
"Filho da antiga terra de Camões! E nosso
irmão de leite e companhia!..."
— Leite e companhia?... considerou o Sena na sua
seriedade, meditando. Não! me é estranha a firma!... Ora espere!... Será com o
José e Cia., do Piauí?!...
Faísca continuou, muito enfiado:
"Eu quero vos saudar no augusto dia Em que só
juntos estão amigos bons!"
— Bravo! Bravo!
— Olha, gentes! — rimou!
— Pscio!... Pscio!...
— Diga outro, seu Rosinha?
— Diga outro verso!
— Diga um de transporte!... lembrou Etelvina com um
suspiro.
— Silêncio!
Mas o poeta não pôde continuar, porque, em um
movimento de atrapalhação, caíra-lhe o pince-nez dentro de uma compoteira de
doce de cada.
— Um brinde! pediu Casusa. Um brinde!
— Silêncio!
— Espere!
— Ordem!
— Ne quid nimis!
E, depois destas palavras, ouviu-se a voz de Maria
Bárbara, dizendo a D. Maria do Carmo:
— Minha vida, coma uma naquinha de melão!
Passou-lhe o prato.
— Ai, filha! não sei se poderei entrar nele!...
considerou lamentosa a viúva do Espigão, lembrando-se do protesto que fizera
contra os pepinos e a sua competente família — senhor doutor, inquiriu ela de
Raimundo, melão será dos pepinos?
— Sim, minha senhora, pertencem ambos à dos
cucurbitáceos.
— Como? perguntou a velha com a boca cheia de
arroz-doce.
— Quer dizer, explicou logo o Freitas, radiante por
pilhar uma ocasião de expor os seus conhecimentos, — quer dizer que é um fruto
cucurbitáceo, da importante família dos dicotiledôneos, segundo Jussieu, ou das
calicífloras, segundo De Candole.
— Fiquei na mesma com a tal família dos
califorchons!
— Que família? que família? O que foi que fez ela?!
Algum escândalo, aposto? fariscou Amância, pensando, assanhada já, a sentir o
cheiro de uma intriga. Quando eu digo!... Não há em quem fiar hoje em dia! Mas
quem são esses danados? qual é a família?
— É a dos cucurbitáceos.
— Ah! são estrangeiros!... Já sei, já sei! é uma
família de bifes, que esta morando no Hotel da Boavista! É certo, agora me
lembro que ainda est'outr'dia uma sujeita ruiva... deve ser mulher ou filha do
tal... como se chama mesmo?..
— Quem, D. Amância? A senhora está fazendo uma
embrulhada da nossa morte!...
— O tal inglês!
— Que inglês? Ninguém aqui falou em ingleses, nem
franceses!
E Mana do Carmo passou a explicar à amiga que se
tratava de pepinos e melões.
Casusa continuava a discursar num brinde feito ao
Serra (a uma de cujas filhas pretendia); já lhe tinha chamado gênio e agora
comparava-o a um lírio pendido na estrada; o bom homem escutava-o, sorrindo,
sem compreender; enquanto Raimundo, com a cabeça quase dentro do prato,
suportava o Freitas, suspirando pelo fim do jantar, para fugir-lhe. O maçante,
elogiava a sua própria memória com a vaidade do costume:
— O senhor ainda não viu nada... segredava ele ao
outro. Sei discursos inteiros, longos, que ouvi há dez anos! sei de cor, meu
caro doutor, extensas poesias que apenas li duas vezes! Não acha
extraordinário?...
— Decerto...
E o desalmado, como prova, entrou a recitar "A
Judia" de Tomas Ribeiro, que tinha nesse tempo no Maranhão um cheiro ativo
de novidade:
"Coma branda a noite. O Tejo era
sereno!..."
— Mais alto! reclamou, da mesa pequena, o Cordeiro,
com um grito. Não chega até cá. Queremos ouvir o recitativo!...
E, como Raimundo conseguisse fazer calar o Freitas,
aquele levantou-se arrebatadamente e pôs-se a estropiar uma chula:
"Carolina que horas são estas?... Nove horas
no bronze da torre!"
— Cante antes o "Não quero que ninguém me
prenda!" aconselhou Eufrasinha, com uma risada.
— Gentes! disseram outras moças, admiradas do
desembaraço da viúva.
Cordeiro obedeceu, e, trepando na cadeira, tomou
uma garrafa pelo gargalo, ergueu-a e, berrou o que então representava na
província o hino dos borrachos:
"Eu não quero que ninguém de prenda; Aihée!
Debaixo do meu pifão! Quando fores de noite à nua, Aihée! Leva cheio o
garrafão! Seu soldado não me prenda, Não me leve pro quartel Eu não vim fazer
barulho, Vim buscar minha mulhé! Aihée! Debaixo do meu pifão! Quando fores de
noite à rua, Aihée! Leva cheio o garrafão!
A pouco e pouco, iam todos. menos o Dias,
acompanhando em coro o terrível "Aihée!" e batendo. até algumas
senhoras, com a faca nos pratos. Daí a nada, era uma algazarra em que ninguém
já se entendia.
A confusão tomou-se, afinal completa faziam-se
brindes de braço entrançado, bebia-se de copos trocados; misturavam-se vinhos
soltavam-se gargalhadas estrepitosas; cruzavam-se projéteis de miolo de pão
quebravam-se copos e, dentro de todo esse tumulto, destacava-se a voz rouca do
Casusa, que insista no seu brinde ao Serra, a quem agora chamava berrando:
"Poeta do Comércio! Colosso de negócios!"
As senhoras tinham-se já levantado dos lugares e palitavam
os dentes encostadas às competentes cadeiras, meio entorpecidas na replexão do
estômago. A noite fechava-se Maria Barbara afastara-se para dar providencias
sobre a luz Ouvia-se uma voz a discutir gramática com o Faisca: Cordeiro. que
se calara. afinal, caíra em prostração, derreado na cadeira e com as pernas
estendidas em cima da que Amânia deixara vazia Entretanto, o Freitas, sempre
teso, sem alteração alguma na sua roupa de brim engomado, pediu
"vênia" para erguer um modesto brinde...
Limpou a superfície dos lábios com o guardanapo
dobrado, que pousou depois vagarosamente sobre a mesa; passou a enorme unha do
seu dedo mínimo no desfibrado bigode, e, fitando uma compoteira de doce de
pacovas — erguida a mão direita, na atitude de quem mostra uma pitada
&emdash;declamou com ênfase:
— Meus ilustres senhores e respeitabilíssimas
senhoras!...
Houve uma pausa.
Não poderíamos, pela ventura. terminar
satisfatóriamente esta, tão pequena quão antiga e tradicional festa de família,
sem brincarmos uma pessoa respeitável e digna de toda a consideração e.
respeito! Por isso... eu! eu, senhores, o mais insignificante, mais
insuficiente de todos nós! ...
— Não apoiado! Não apoiado!
— Apoiado! dizia o Cordeiro com os olhos, vidrados.
— Sim! eu, cuja voz não foi bafejada pelo dom
sagrado de eloqüência! Eu, que não possuo a palavra divina dos Cícero, dos
Demóstenes, dos Mirabeau, dos José Estevão. etcetera, etcetera! eu, meus
senhores! vou brindar... a quem?!.
E desenrolou um repertório interminável de fórmulas
misteriosas apropriadas à situação, exclamando no fim, cheio de sibilos:
— Inútil é dizer o nome!
Todos perguntavam entre si com quem seria o brinde.
Houve teimas, fizeram-se apostas.
— Mais do que inútil é dizer o nome, prosseguiu o
discursador, saboreando o efeito da sua impenetrável alusão, mais do que inútil
é dizer o nome! porquanto já sabeis de sobre que falo com referência a
Excelentíssima Srª Dona... (nova pausa! Maria Bárbara Mendonça de Melo!...
Fez-se uma balbúrdia de exclamações
— D. Maria Bárbara! D. Mana Barbara! gritavam
muitas vozes.
E todos se voltavam para o interior da casa
— Minha sogra!
— Minha sogra!
— D. Babu!
— D. Maria Bárbara!
Ela apareceu afinal, trazendo na mão um candeeiro
aceso.
— Cá estou! cá estou!
E, toda desfeita em risos, pôs o candeeiro sobre a
mesa e bebeu do primeiro copo que lhe levaram à boca.
Seguiu-se um formidável "hup! hup!
hurra!" E a música atacou o Hino Brasileiro.
— O nosso hino! disse misteriosamente o Freitas a
Raimundo tocando-lhe no ombro. Um dos mais lindos que conheço!...
— Chit! Com os diabos! resmungou o Dias,
empalidecendo e levando as mãos à cabeça.
— Que é? que é?
Voltavam-se todos para ele.
— Nada... nada... disfarçou sem despregar mais os
lábios.
É que só agora, à vista da luz, se lembrara de não
haver apagado a vela do quarto de Maria Bárbara.
Serviu-se o café vieram os licores, o conhaque e a
cana-capim.
O Dias sentia-se cada vez mais preocupado Ora que
ferro!
Esquecer-se de soprar aquela maldita vela!... Que
diabo! podia haver um incêndio e lá ir tudo pelos ares!...
Sebastião Campos desapareceu com o Casusa, levando
a sua cesta de fogos, e todos os outros, mais ou menos excitados pelas libações
aproximaram-se das anteparas da varanda. Cerrara-se completamente a noite;
viam-se já os pirilampos da quinta palpitando na sombra; punha-se nova mesa,
para os músicos, que continuavam a tocar o Cordeiro sapateava um fadinho ao som
do Hino Nacional, mal podendo ter-se nas pernas; o Serra, boleando o seu
respeitável ventre foi desafiado pela gorda Lindoca, e dançaram ambos; o Serra
puxou Manuel, e, com o exemplo do patrão, atiraram-se também o Vila Rica e
Manuelzinho, sem mais contemplações com a rigorosa pragmática comercial. O
Faísca, que era fraco da cabeça e do estômago, dava para chorar
espetaculosamente, lamentando-se com ânsias e suores frios dizia sentir um
desgosto tremendo da vida, uma inabalável resolução de suicidar-se e uma
vontade estúpida de vomitar.
Então um busca-pé, descrevendo no ar incendiados
caracóis de grossas faiscas, foi cravar-se no rebordo da varanda, bem junto ao
lugar em que estava Amância.
— Credo!
Fez-se um espalhafato. A velha pulou para trás,
tossindo sufocada e o Cordeiro afiançava que, indo ela tomar fôlego engolira um
busca-pé aceso. Ana Rosa, com o susto, correu até ao lado oposto da varanda,
onde não chegava claridade. e caiu trêmula nos braços de Raimundo, que, contra
os seus hábitos de rapaz sério, ferrou-lhe dois beijos mestres.
Os busca-pés repetiam-se lá fora sem interrupção.
Acenderam-se afinal, os candeeiros e iluminou-se, a velas de cera ao fundo do
lado esquerda da varanda, o vistoso altar, onde São João Batista, no meio de
uma fulgência de luzes e flores de papel dourado, resplandeceu com o seu
cordeirinho nos braços e segurando um cajado de prata.
Ficou tudo claro e alegre. Os músicos foram para a
mesa, e Manuel distribuiu fogos por todos os convidados As mocas queimavam
pistolas; os homens carretilhas, foguetes e bombas. Levantou-se defronte da
casa uma grande fogueira de barricas alcatroadas, depois outras; e a varanda,
com os seus estampidos, afogueada pelo clarão vermelho, cuspindo baias
brilhantes e multicores, parecia um baluarte em guerra.
Dias, alheio a tudo isso, passeava de um para outro
lado, embebido na sua preocupação Aquelas pistolas brancas e compridas, ainda
mais o irritavam, porque pareciam velas de cera.
Depois de jantar, a banda de musica retirou-se,
tocando uma coisa alegre.
— Seu Freitas, dizia Bibina, me acenda esta
rodinha!
— Ui! gritava ao mesmo tempo a Eufrasinha,
procurando queimar uma pistola, tenho medo disto que me pelo!
— Pegue com o lenço, aconselhava a tia Sarmento
— Seu moço, me escorve isto, por seu favor...
Sebastião e Casusa continuavam lá embaixo as voltas
com os busca-pés, que se cruzavam no ar freneticamente.
Raimundo, ao lado de Ana Rosa, acendia no seu
charuto os fogos que ela tocava, e falava-lhe baixinho em casamento.
— Na primeira ocasião falo a teu pai...
— E por que não falas amanhã?... mamãe foi pedida
justamente num dia de São João!
— Pois bem, amanhã!. .
— Não m'enganas?.
— Não. E tu, dize, tu me estimas deveras?... Olha
que o casamento e coisa muito séria!.
— Eu adoro-te meu amor!...
— Está ai o padre! Gritou Sebastião lá de baixo.
— Chegou o padre! Chegou o padre! repetiram muitas
vozes.
Frei Lamparinas, efetivamente, chegava para cantar
a ladainha. Acompanhavam-no quatro sujeitos de ar farandulesco; caras
avermelhadas pela cachaça, cabeleiras à nazarena, paletós insuficientes,
olhares cansados; um todo cheio de insônia e movimentos reservados de quem não
conhece o dono da casa em que se apresenta Eram músicos de contrato, pândegos
afeitos às serenatas, aos chinfrins de todo o gênero, estômagos vitimados às
comezaínas fora de horas, cujas digestões põem manchas biliosas na face. Um
trazia um violão debaixo do braço, outro uma flauta, outro um pistão e outro
uma rabeca. Entraram em rebanho, com os pés surdos e foram assentar-se,
modestamente risonhos, na amurada varanda, a cochicharem entre si, olhando com
tristeza gástrica para os destroços da mesa.
Casusa. que os seguiu desde lá debaixo, foi o único
a cumprimenta-los, a cada um de per si, dando-lhes o nome e recebendo o tratamento
de tu. Fez logo vir uma garrafa e serviu com intimidade, a rir lembrando-lhes
outras patuscadas em que estiveram juntos Manuel acudiu também, oferecendo-lhes
de comer. e insistindo principalmente com Frei Lamparinas que ainda não tinha
jantado, conforme ele próprio confessava Recusaram-se todos, prometendo cear
depois da ladainha. "Comeriam mais -1 vontade!"
— Pois então vamos à ladainha!
E dispuseram-se para a nova festa que ia
principiar. Sebastião Campos continuava na quinta, a soltar os seus busca-pés e
as suas formidáveis bombas, que estrondavam como canhões. "Ah! só tocava
fogo fabricado por ele próprio! Não tinha confiança nesses fogueteiros de
meia-tigela!..." As barricas estalavam em labaredas fiscalizadas por
Benedito. Havia por toda a parte uma reverberação vermelha e Um cheiro marcial
de pólvora queimada. Defronte da casa as arvores erguiam-se arremedando uma
apoteose de inferno. As mãos encardiam-se, as roupas saraqueimavam-se com
faísca. Algumas pessoas saltavam as fogueiras; outras, de mãos dadas e braços
erguidos, passeavam em tomo dela, com solenidade, arranjando compradescos.
— Quer ser minha comadre, D Anica? perguntou Casusa
a Ana Rosa.
— Vamos lá!
E desceram à quinta. Aí, com a fogueira entre
ambos, deram a mão um ao outro e passaram três voltas rápidas em tomo das
chamas, com os braços erguidos, a dizer de cada vez:
— Por São João! Por São Pedro! Por São Paulo! E por
toda a corte do céu!
Na varanda, Lamparinas dava tranqüilamente, no meio
de um grupo, a notícia de ter havido incêndio na cidade.
— Onde? perguntaram a sustados.
— Na Praia Grande.
Dias, sem dar uma palavra, atirou-se de carreira
para a quinta e desapareceu logo na alameda de mangueiras.
Freitas expôs a Raimundo o grande inconveniente
daquele brinquedo bárbaro do fogo. "Quase sempre, nos dias de São João e
São Pedro havia incêndios na cidade!... Os negociantes apertados aproveitavam a
ocasião para liquidar a casa!..." Entretanto, o Serra apontando para o
lugar onde desaparecera o caixeiro de Manuel, dizia ao ouvido deste:
"Aquilo é que é Um empregado de truz, seu colega! Tenho inveja de você,
acredite! Vale quanto pesa! "
Lamparinas procurava tranqüilizar o animo dos dois
negociantes, declarando que o fogo era na Praça do Comércio e que não atingira
grandes proporções. "Aquela hora talvez já não houvesse vestígio
dele!..."
Varreu-se a varanda em todos os seus quatro lados;
estenderam-se esteiras de meaçaba sobre o tijolo, no lugar em que as devotas
teriam de ajoelhar-se; acenderam-se mais algumas velas no altar, onde Frei
Lamparina ia recitar a sua 'milésima ladainha", segundo o que nesse
momento acabava de dizer o Freitas.
— Milésima?... perguntou Raimundo, pasmado.
— Admira-se, heis?... volveu o homem da unha
grande. Pois olhe, só neste sítio, a julgar de um pequeno cálculo, que me dei
ao trabalho de fazer, tem ele enrolado nunca menos de 657 ladainhas!
E, a propósito, Freitas contou minuciosamente o
clássico costume daquela festa de São João.
— Hoje não se faz nada, à vista do que já se
fez!... dizia Bons rega-bofes tivemos no tempo do coronel em que se faziam
novenas e trezenas de São João! E era dançar pra aí toda a noite, sem
descansar! Meu amigo, era uma brincadeirazinha que rendia seguramente meio mês
de verdadeira folia!
E, com um ar misterioso, como quem vai fazer uma
revelação de suma importância:
— Quer que lhe diga, aqui entre nós?... As moça de
hoje não valem as velha daquele tempo! ..
E o maroto cascalhou uma risada, como se houvera
dito alguma coisa com graça.
Os fogos continuavam ainda e os ânimos persistiam
quentes, quando, de improviso, se abriu a porta de um quarto, e o padre
Lamparinas apareceu, todo aparamentado com a sua sobrepeliz nova; o livro da
reza entre os dedos, os óculos montados no nariz adunco, os passos solenes, o
ar cheio de religião. E arvorou-se nos degraus do altar, anunciando que ia dar
começo à ladainha.
Houve um prolongado rumor de saias, e as mulheres
ajoelharam defronte do padre.
Do ato, contra a luz da velas de cera, desenhava-se
em sombrinha o vulto do Lamparinas, anguloso, com os braços levantados para o
teto, num êxtase convencional. Os homens aproximaram-se todos, à exceção do
Faisca, que dormia. Alguns ajoelharam-se também. Atiraram-se fora os charutos
em meio; deixaram-se em paz os busca-pés e as bombas; correu silencio. E a voz
fúnebre do Lamparinas chiou confusamente a Tua Domine.
— Então não temos jaculatória?... perguntou
Amância, escandalizada.
Lamparinas atirou-lhe uma olhadela repreensiva e
concentrou-se de novo em sua oração, concluindo:
— Presentamos, Senhor, estas ofertas, sobre os
vossos altares, para celebrarmos esta festa, com a honra que é devida ao
nascimento daquele santo, que, além de anunciar a vinda do Salvador ao mundo,
nos mostrou também que era já nascido o mesmo Jesus Cristo Nosso Senhor, que
conosco vive e reina em unidade.
— Apoiado! gritou o Cordeiro.
Desencadeou-se um sussuro de indignacão. Todavia,
entre a tosse, os escarros secos e alguns espirros dispersos, que se acusavam
daqui e dali, continuou fanhoso o Lamparinas:
— Gratiam tuam, quoesumus, Domine, mentibus nostris
infunde, ut qui Angelo nuntiante Christi Filii tui incamationem cognovimus, per
pressionem ejus et crucem ad ressurrectionis gloriam perducamus. Per eumdem
Christum Dominum Nostrum. Amen!
— Amen! disseram em coro.
E a voz do Lamparina chilreava, acompanhada pela
música:
— Kyrie eleison!
Os devotos e devota respondiam cantando em todos os
tons:
— Ora... pro... nobis!
E este bis fina ia longe!
— Christe eleison!
— Ora pro nobis!
Destacava-se a voz grossa e avinhada do Cordeiro,
que sempre demorava no canto e arrastava escandalosamente o bis.
— Diabo do herege!... resmungou Amância, sem desfazer
a sua atitude beata.
— Pater de caelis, Deus, miserere nobis!...
— Ora pro nobis!... insistia o coro
— Fili Redemptor mundi, Deus miserere nobis.
— Ora pro nobis!
E o pobre Lamparina, no fim de um quarto de hora
desta música, sentia-se plenamente no seu elemento, entusiasmava-se, cantava,
marcando frenético o compasso com o pé, e quase dançando Já não espera pelo
"Ora pro nobis", ia gritando:
— Santa Maria!
— Santa Dei genitrix!
— Santa virgo Virginum!
— Mater puríssima!
E o coro, e a musica, a correrem atrás dele, a toda
a força.
Mas o especialista das ladainhas teve de
interromper o seu entusiasmo, porque, em torno de Maria do Carmo, levantava-se
um zunzum.
— Que terá minha tia?!... exclamou Etelvina a alvoroçada.
— Mamãe outrinha! Jesus! Valha-me Deus!
— O que é?
— Que foi?
— Que tem?
— Que sucedeu?
Ninguém sabia. Entretanto, Maria do Carmo ajoelhada
hirta, com o queixo enterrado entre as clavículas, tinha uma imobilidade
aterradora no olhar.
— Credo! gritou Amância, benzendo-se.
As sobrinhas puseram-se logo a chorar ruidosamente;
Ana Rosa Eufrásia e Lindoca imitaram-nas no mesmo instante.
Correram todos para o lugar sinistro; os músicos
com os instrumentos debaixo do braço; Lamparinas com o manual de rezas marcado
pelo indicador da mão direita.
Ouvia-se roncar estranhamente o ventre de Maria do
Carmo. Raimundo abriu caminho, chegou onde ela estava, suspendeu-lhe a cabeça
e, ao soltá-la de novo, uma golfada de vômito podre jorrou pelo corpo da velha.
— E um vólvulo! disse ele, voltando a cabeça.
— Do latim — volvulus — segredou-lhe o Freitas, que
o acompanhara até lá.
Maria do Carmo foi carregada para o quarto.
Estenderam-na em uma marquesa. Pingava-lhe de todo o corpo um suor copioso e
frio; tinha o ventre duro como pedra. Raimundo fez darem-lhe azeite doce e
aconselhou que mandassem comprar, quanto antes, eletuário de sena. Correu-se a
chamar o médico na cidade.
A doente voltou a si, mas sentia cólicas horríveis,
comichão por todo o corpo; queixava-se de grande secura, e delirava de instante
a instante. Daí a meia hora vieram de novo os vômitos; cresceram-lhe as
agonias; aumentavam-lhe os rebates intestinais. A pobre velha arranhava a palhinha
da marquesa, cravando as unhas na madeira.
Em tomo dela fazia-se um silêncio aterrador. Afinal
chegou-lhe a reação: deu um arranco dos pés à cabeça e ficou logo imóvel.
Raimundo pediu um espelho; colocou-o defronte da
boca de Maria do Carmo, observou-o depois e disse secamente:
— Está morta.
Foi um berreiro gera,. Etelvina caiu para trás,
estrebuchando num histérico; Manuel arredou a filha daquele lugar Acudiram
todos os de casa Os ânimos que o vinho entorpecia, acordaram como por encanto.
A situação incontinenti tornou-se lúgubre.
O Cordeiro, já em seu juízo perfeito, ajudou a
carregar o cadáver, afastou cadeiras, arrastou uma cômoda, e preparou a
encenação da morte. Invadiram o quarto. Os pretos do sítio chegavam-se com medo
apavorados, resmungando monossílabos guturais; o olhar parvo, a boca aberta.
Em menos de duas horas, Maria do Carmo estava
estendida em um canapé, iluminada por velas de cera, lavada, vestida de novo e
penteada Sobre a cômoda, perto dela, a inalterável imagem de São João Batista,
e, ajoelhado no tijolo, com o olhar fito no santo, o cônego, de braços abertos,
balbuciava uma oração.
Manuel expediu recados para a cidade; seus
caixeiros partiram todos; Maria Bárbara fechara-se no quarto e pusera-se a
rezar com desespero de beata velha. A agitação era comum. Só Amância conservava
o sangue-frio; estava no seu elemento — ia e vinha, deva ordens, dispunha tudo,
aconselhava, ralhava, chorando quando era preciso, consolando os desanimados,
dizendo rezas, citando fatos, governado, repreendendo aos que não obedeciam, e
pondo ela mesma em prática as suas prescrições.
As dez horas da noite, uma rede de algodão, enfiada
numa taboca de muitas cores, cujas extremidades dois pretos vigorosos
sustentavam no ombro, conduzia o cadáver de Maria do Carmo para o sobrado do
Largo das Mercês, com grande acompanhamento de homens e mulheres. Benedito ia
na frente, iluminando o fúnebre cortejo à luz ruiva de um enorme archote
alcatroado que ele erguia sobre a cabeça.
Lamparinas caminhava atrás furioso, fazendo voar
ante seus pés as pedrinhas soltas da estrada, e dando-se aos diabos pela má
observância do antigo e confortador provérbio: "O padre onde canta lá
janta!"
9
Logo depois da partida do cadáver, Maria Barbara e
Ana Rosa desceram do sitio, em um carro que se mandou buscar; foram diretamente
para o Largo das Mercês. Manuel e Raimundo vieram de bonde e seguiram para
casa. Mas o rapaz, apesar de fatigado, não conseguiu repousar. Precisava de ar
livre. Mudou de roupa e tomou a sair.
Passava já de meia-noite. A cidade tinha o caráter
especial das vésperas de São João: viam-se restos de fogueiras fulgurando ao
longe, em diversos pontos, de quando em quando ouviam-se estalos destacados.
Raimundo tomou a direção das Mercês. "Seria crível, pensava pelo caminho,
que estivesse deveras enfeitiçado por sua prima?... ou seria tudo aquilo uma
dessas impressões passageiras, que nos produz em dias de bom humor um rosto
bonito de moça?... Verdade era que nunca se sentira tão preocupado por outra
mulher."
— Em todo o caso, concluiu ele, convém dar tempo ao
tempo!... Nada de precipitações!
Assim raciocinando, no antegosto do seu casamento
provável com Ana Rosa, chegou à casa das Sarmentos.
Nessa ocasião reuniram-se aí as velhas amizades da
defunta, prevenidas logo do triste acontecimento pelos empregados de Manuel. O
enterro seria no dia seguinte à tarde. Os conhecidos do comercio mandaram lá os
seus caixeiros para ajudarem a encher as cartas de convite e fazerem quarto.
Chamou-se logo um armador, para preparar a casa, conforme o uso da província;
falou-se a um desenhista para fazer o retrato do cadáver - tomou-se medida e
encomendou-se o caixão; discutiu-se a vestimenta que devia levar Maria do
Carmo, e resolveu-se que seria a de Nossa Senhora da Conceição, por ser a mais
bonita e vistosa. Amância ofereceu-se prontamente para talhar a roupa.
"Que não valia a pena encomendá-la ao armador, sobre vir malfeita e mal
cosida, sairia por um dinheirão!"
— Não sei! dizia ela. Todas estas coisas pra
enterro custam sempre quatro vezes mais do que podem valer! É uma ladroeira
descarada! Por isso enriquecem tão depressa os armadores! diabo dos gatunos!
Desta vez a velha tinha razão.
Mandaram comprar cetim cor-de-rosa, azul e branco,
sapatinhos de baile, escumilha e filó para o véu, que seria franjado de ouro.
Uns teimavam que a morta devia levar um ramalhete de cravos na mão, outros
negavam, considerando, nem só a idade da defunta, como o seu estado de viúva.
E choviam exemplos de parte a parte:
— Outro dia D. Pulquéria das Dores apesar dos seus
sessenta anos, levou na mão um enorme ramo de rosas vermelhas! E demais, era
casada.
— E o que tem isso?! D. Chiquinha Vasconcelos foi
de caixão aberto, porém não levava ramalhete, e, até digo-lhe mais, nem palma
nem capela! no entanto era solteira e tinha a metade da idade de D. Maria do
Carmo.
— Mas ia com as faces pintadas de carmim, que é
muito pior! Ora aí está!... Além disso, dizia-se da Chiquinha o que todos nós
sabemos. Deus me perdoe! Uma mulata obesa cortou o nó górdio da questão,
declarando que o ramalhete bem podia ir escondido por debaixo do hábito. Todos
concordaram logo.
Deu Uma hora. Vários caixeiros retiraram-se já com
um maço de cartas, que entregariam pela manhã; algumas famílias, vestidas de
preto, despediam-se com beijos, pedindo desculpa por não ficarem ate à hora do
enterro. O armador martelava na sala. A noite cala no silêncio ouvia-se um ou
outro busca-pé retardado. Na n a, grupos pândegos passavam em troça para o
banho de São João do Alto da Carneira vinha um sussurro longínquo de
"bumba-meu-boi". Cantavam os primeiros galos; cães uivavam distante,
prolongadamente; no céu azul e tranqüilo uma talhada de lua, triste sonolenta
mostrava-se como por honra da firma, e, todavia, um homem, de escada ao ombro,
ia apagando os lampiões da rua.
Raimundo parara um instante olhando o mar, defronte
da casa das Sarmentos. À porta de entrada havia um grande reposteiro de veludo
negro, com uma cruz de galões amarelos. Ele considerou o prédio: era um casarão
velho, um desses antigos sobrados do Maranhão, que já se vão fazendo raros.
Cinqüenta palmos de alto e outros tantos de largo, barra pintada de piche,
mostrando a caliça em vários pontos, cinco janelas de peitoril, enfileiradas
sobre quatro portas lisas, com um portão entre elas, pesado, batente de
cantaria; cheirando tudo a construção dos tempos coloniais, quando a pedra e a
madeira de lei estavam ali a dois passos e se levantavam, em terrenos aforados,
paredes de uma braça de grossura e degrau de pau santo.
Entrou. O corredor transpirava um caráter
sepulcral. Subia-se uma escada feia, acompanhada de um corrimão negro e
lustrado pelo uso; nas paredes, via-se, à insuficiente claridade de uma
lanterna suja, o sinal gorduroso das mãos dos escravos, e no teto havia lugares
encarvoados de fumaça.
A escada era dividida em dois lances, dispostos em
sentido contrário um do outro; Raimundo chegou ao fim do primeiro lance
sufocado e galgou o segundo de carreira, dando aos diabos o maldito costume de
fechar toda a casa, quando ela mais precisa de ar porque tem dentro um cadáver.
Numa das salas da frente, forrada então pelo tapete do armador, tapete velho e,
tão crivado de pingos de cera, que o pé escorregava nele, estava um grande
tabuleiro de paparaúba, cheio de tochas e enormes castiçais de madeira e
folha-de-flandres, pintados de amarelo. Em uma das quatro paredes, cobertas de
alto a baixo de veludo preto e orladas de galões de ouro destacava-se um altar,
ainda não aceso, todo estrelado de lantejoulas; carregado de adornos, com uma
toalha de rendas no centro, sobre a qual pousavam dois castiçais de latão,
pintalgados pelas moscas, tendo entre eles um crucifixo do mesmo metal,
extremamente azinhavrado. Defronte estava a essa, enfeitada de acordo com o
resto, à espera do caixão, que aquelas horas se reparava em casa do Manuel
Serigueiro.
Empoleirado numa escada e de martelo em punho um
homem, em mangas de camisa, pregava sobre as portas bambinelas bordadas.
— A que horas e o enterro? perguntou-lhe Raimundo.
— Às quatro e meia, disse o armador, sem voltar o
rosto.
Da varanda vinha um murmúrio de vozes. Raimundo
seguiu para lá.
Varanda larga e alta caiada, toda aberta para o
quintal; telha vã, mostrando os caibros irregulares, donde pendiam melancólicas
teias de aranha. Num dos cantos um banco de pau roxo, muito escuro,
sustentando, em buracos redondos, dois grandes potes bojudos de barro vermelho;
sobre o parapeito da varanda, uma fila de quartinhas também de barro, esfriavam
água. Aberto na parede um imenso armário tosco, e logo ao pé um alçapão
nosoalho, resguardado por uma grade, com a cancela despejada sobre uma escada
tenebrosa.
Encostado à grade — um sujeito gordo, sem bigode,
de óculos e barba debaixo do queixo, dizia a outro do mesmo feitio, batendo com
o pé nas largas tábuas do chão.
Hoje ninguém mais pilha deste madeiramento! Repare!
E tudo pau-d'arco, pau-santo, pau-cetim, bacuri, jacarandá e pequi! Madeiras
que valem o ferro e que nem o machado pode com elas!
Em volta de uma mesa, dez homens, a título de fazer
quarto à defunta, jogavam cartas, conversando em voz discreta repetindo xícaras
de café e cálices de conhaque, entre pilhérias segredadas, risos abafados e o
fumo espesso dos cigarros.
Quando Raimundo entrou, confidenciava um deles ao
vizinho:
— Já não sou homem para estas coisas!... Não posso
perder uma noite!... Por mais que beba café, sinto sono!... Porém não podia
deixar de vir, era uma ocasião de encontrar-me com a pequena... Não tenho
entrada na casa dela...
E bocejava.
— Conhecias esta velha que morreu? interrogou-lhe o
outro.
— Não. Creio que a encontrei uma vez em casa do
Manuel Pescada... Já estive a olhá-la — é horrível!
— Pois aqui onde me vês, estou furioso! O patrão
mandou-me para cá, mas com poucas arribo! Tenho um pagode no Cutim e não o
perco!
— Também porque a velha não escolheu melhor dia pra
morrer!...
— Logo na véspera de São João! Que espiga!
E bocejavam ambos.
— Quem é este tipo? perguntou um dos jogadores,
vendo entrar Raimundo. Corte com o três de espadas!
— É um tal Raimundo... um sujeito que o Pescada tem
em casa por compaixão.
— O que faz ele? — Dama!
— Diz que é doutor. — É meu!
— Não parece mau rapaz...
— Fia-te!
— Já te pregou alguma hein? conta-nos isso!
&emdash;Não te digo mais nada... Fia-te na
Virgem e não corras!... Fizeram uma pausa, em que se ouvia atirar cartas à
mesa, com uma pancada de dedos no tapete.
— Mas do que vive ele? perguntou o curioso que se
informava de Raimundo. — Venha o ás!
— Ora do que vive!... Você não tem copas?...
Pergunte a toda essa gente sem emprego, de quem oficialmente se de "vive
de agências" e ficarás sabendo.
— Ganhei!
— Mas o que é ele do Manuel?
— Diz que primo... respondeu o outro, baralhando as
cartas.
&emdash;Ah!...
— Dê cartas.
Raimundo cumprimentou-os e perguntou pela família
da defunta.
Estava fazendo quarto. Que entrasse por ali,
responderam-lhe, indicando uma porta.
Logo que o rapaz deu as costas, o maledicente
levantou o braço e fez-lhe uma ação feia.
— Gosto muito destes tipos, acrescentou, então em
voz alta, para o grupo inteiro, depois de um silêncio, todos eles são uma coisa
lá por fora "Porque eu fiz! e porque eu aconteci! Porque isto é uma
aldeia! É um chiqueiro!" E no entanto metem-se no chiqueiro e daqui não
saem!...
— Meu amigo, neo há Maranhão como este!...
— Mas dizem que este cabra tem alguma coisa...
arriscou um terceiro.
— Qual nada!... Você ainda come araras! Todos eles
dizem ter mundos e fundos!... Gosto deste Maranhãozinho, porque não perdoa os
tipos que vêm pra cá com pomadas!... O sujeito aqui, que se quiser fazer mais
sabichão do que os outros, há de levar na cuia dos quiabos, para não ser pedante!
Diabo dos burros! Se sabe muita coisa guarde pra si a sabedoria, que ninguém
por cá precisa dela, nem lha pediu! E não se meta a escrevinhar livrinhos e
artigos para os jornais, que isso é ridículo!... Lá o meu patrão é quem sabe
haver-se com esses espoletas! Ainda há pouco tempo ele precisou ai não sei de
que pape! — para o sobrinho que tinha chegado do Porto — e vai — pede a um
doutorzinho, muito nosso conhecido, que lhe arranjasse a história... Pois o que
pensam vocês que respondeu o tal bisca ao patrão?...
Não sabiam.
— Pois mandou-o plantar batatas! Chamou-o de
toleirão! "Que o que ele queria, era um absurdo!"
— Sim, hein?...
— Com estas palavras!... Estou lhe dizendo!... Ah,
meu amigo mas também o patrão pregou-lhe uma de respeito!... Você sabe que o
Lopes, em questões de capricho, não se importa de gastar dois vinténs... — Sim,
como naquela história da comenda...
— Bom. Pois ele foi ai a um outro tipo e
encomendou-lhe uma dessas descomposturas de criar bicho!
— E então?
— Ora! Se bem o patrão o disse, melhor o tipo o
faz... Ora, espera! Como era mesmo o nome da coisa?... Era... Estou com o diabo
na ponta da língua... Ah! Era um anônimo!
— Ah! Um anônimo!
— Uma descomponenga, que pôs o tal doutorzinho de
borra mais raso que o chão!
— Ah! Isso foi com o Melinho!... : — Foi. Você leu,
hein?
— Ora, mas aquilo do Lopes foi demais. Desacreditou
o pobre moço!...
— Não sei! Bem feito!
— E, segundo me consta, nem tudo era verdade no tal
anônimo!
— Não sei!... o caso é que esfregou o tipo!
— Sim, mas o que não se pode negar é que o Melinho
é um rapaz inteligente e honesto a toda a prova!...
— Que lhe faça muito bom proveito! Coma agora da
sua inteligência e beba da sua honestidade! Meu menino, deixemo-nos de
patacoadas! O tempo hoje é de cobre! Honesto e inteligente é isto!...
E com os dedos fazia sinal de dinheiro.
— Tenha eu o jimbo seguro acrescentou, e bem que me
importa a boca do mundo! E senão&emdash;olhe ai para a nossa sociedade!...
E citava nomes muito conhecidos, contava histórias
medonhas de contrabandos de grande ladroeiras de notas falsas, do diabo!
— Sim! sim isso é velho mas que fim levou o
Melinho?
— Sei cá! muscou-se para o Sul! Que o leve o diabo!
— Pois olhe, gosto daquele moço!...
— Não lhe gabo o gosto! Raimundo, depois de
atravessar um quarto espaçoso, penetrou na sala de visitas e achou-se defronte
de uma roda de senhoras de todas as idades, na maior parte vestidas de luto, e
que, assentadas, fitavam, de cabeça à banda com o olhar cansado e sonolento, o
corpo inanimado de Maria do Carmo. Numa rede a um canto, soluçava Etelvina,
escondendo a cabeça entre travesseiros; ao lado, uma mulata gorda e enfeitada
de ouro — sala de chamalote preto e toalha de rendas sobre os omros — dizia
maquinalmente as frases da consolação. Assentada no sobrado sobre uma esteira.
Amância talhava o hábito de Nossa Senhora da Conceição, com que a defunta devia
ir vestida à fantasia para a sepultura, como se fosse para um baile de máscaras.
Nas paredes, os retratos de família estavam cobertos por um vasto crepe; o do
tenente Espigão horrorosamente pintado a óleo, com um colorido cru, tinha
através do véu, um sorriso duro de beiços vermelhos. No meio da sala, em um
sofá de gosto antigo com encosto de palhinha envernizada, decompunha-se o
cadáver da velha Sarmento; tinha o rosto coberto por um lenço de labirinto
encharcado de água-flórida; as mãos cruzadas sobre o peito e amarradas à força
por uma fita de seda azul; as pernas esticadas o cabelo muito puxado para trás,
bem penteado, o corpo todo se mirrando hirto um pouco empenado na tensão dos
músculos. Em cima do ventre opado um prato cheio de sal.
À cabeceira do canapé numa mesinha coberta de
rendas, um Cristo colorido, de braços abertos pendia da cruz, e duas velas de
cera derretiam-se no lugar do bom e do mau ladrão. Logo junto, uma vasilha de
água benta com um galinho de alecrim; mais para a frente, uma Nossa Senhora
pequenina, de barro pintado.
Ouviam-se soluços discretos e o crepitar seco das
velas.
Raimundo aproximou-se do cadáver e, por mera
curiosidade descobriu-lhe o rosto&emdash;estava lívido, com os raros dentes
à mostra, os olhos mal fechados mostrando um branco baço, cor de sebo; dos
queixos subia-lhe ao alto da cabeça um lenço, amarrado para segurar o queixo.
Principiava a cheirar mal.
Então, apareceu na sala uma negrinha com uma
bandeja de xícaras de café.
Serviram-se.
Raimundo foi levar uma chávena a Ana Rosa, que se
achava entre as senhoras.
— Obrigada, disse ela, chorosa, eu já tomei ainda
agorinha mesmo.
De vez em quando ouvia-se um suspiro estalado e o
froon nasal das moças que assoavam as lágrimas. Um grupo de mulheres, de saia e
camisa, conversava soturnamente sobre as boas qualidades e as virtudes da
defunta. Tinham a voz medrosa de quem receia acordar alguém ou ser ouvido pelo
objeto de conversação.
— Era pra um tudo!... afirmava uma delas,
compungida. Devo-lhas muitas!... que lhas hei de pagar com padre-nossos! Inda
s'tr'oudia, quando me atacou a pneumonia na pequena, com quem foi que me
achei?!... Pois olhe que os doutores de carta não lhe souberam dar voltas! E
hoje, minha rica?... Ela está aí fina e lampeira, que faz gosto, ao passo que a
pobre da senhora D. Maria do Carmo... Deus me perdoe, até parece feitiçaria! —
E apontou para o cadáver com um gesto desconsolado. — Ao menos descansou,
coitada!
— Não semos nada neste mundo!... suspirou, com a
mão no queixo, uma mulherinha magra e pisca-pisca, que ate então se conservara
numa imobilidade enternecida.
E contou a história de uma sua camarada, que, havia
trinta anos, morreu na flor da idade.
Este caso puxou outros. Foi um cordão de anedotas
fúnebres. A mulata obesa fechou a rosca, narrando, muito sentida, a história de
um papagaio de grande estimação, que ela possuía, e que, um belo dia, cantando,
coitado! a "Maria Cachucha", caíra para três — morto! — Credo!
exclamou Amância. E, voltando-se para a mulata, com os óculos na ponta do
nariz.
— Nhá Maria! esta espiguilha é toda para o véu, ou
tem de se tirar daqui também os laçarotes?...
Depois do enterro, quando Maria Barbara, de volta a
casa entrou no seu quarto, dera logo com a vela de cera gasta até o fim e com a
singular mascara do seu milagroso São Raimundo; ficou aterrada, sem saber o que
pensar, e, na sua cegueira supersticiosa, atirou-se de joelhos defronte do
oratório e pôs-se a rezar fervurosamente.
Nessa noite, apesar da canseira em que vinha, neo
pode dormir senão pesa volta da madrugada; e, à força de meditar o caso, acabou
por enxergar nele um milagre. Sim, um milagre, justamente como o explicam os
catecismos que se dão na escola e como a sua própria mestra lhe
ensinara&emdash;um mistério incompreensível. "Não havia que duvidar —
Deus Nosso Senhor servira-se daquele engenhoso ardil] para preveni-la de
presentes e futuras calamidades!..."
Entretanto, só ao cônego se animou de confiar o
fato, e até lhe pediu segredo, que, se o genro viesse a conhecê-lo, havia de
sair-se com alguma das suas. Já lhe estava a ouvir resmungar com o seu
insuportável risinho de homem sem fé "Pomadas de minha sogra!..."
Além disso, se São Raimundo quisesse tomar público o seu sagrado aviso, não
usaria dos meios que empregou!...
— Agora, o que está entrando pelos olhos, senhor
cônego, é que aquele maldito cabra do Mundico tem parte nisto! Deus queira que
eu me engane, porém a coisa toca-lhe a ele por casa!
— Pode ser, pode ser... Davus sum non Edipus!...
— E o que devo fazer?...
— Ofereça uma missa a São Raimundo. Cantada, não
seria mau... Uma missinha cantada!
Ficaram nisto; mas a velha não podia
tranqüilizar-se assim só: afigurava-se-lhe que, em tomo dela, grandes
transformações se operavam. Verdade é que a morte de Maria do Carmo como que
viera perturbar o ramerrão daquela panelinha de Manuel Pescada. Uma semana
depois do passamento, chegara de Alcântara um irmão da defunta, e em seguida à
missa do sétimo dia, carregou consigo as duas ]inconsoláveis sobrinhas. Etelvina,
embrulhada no seu vestido preto, de lã, encarecera o costume de dar suspiros;
Bibina, com grande abnegação, ocultara o cabelo numa coifa de retrós. D.
Amância Sousellas, para carpir mais à vontade a perda da amiga, fora passar
algumas semanas no recolhimento de Nossa Senhora da Anunciação e Remédios, ao
calor confortável das rezas e do caldo forro do refeitório. Eufrasinha,
percebendo frieza em Ana Rosa, dera-se por magoada e não lhe aparecia.
"Que, de algum tempo àquela parte, notava-lhe certo aninho de
constrangimento e fastio, bem aborrecido! A Anica já não era a mesma! Não sabia
quem lhe pisara o cachorrinho; tinha plena convicção de estar sendo intrigada
por alguma insoneira, mas também tinha alma grande e deixava correr o barco pra
Caxias!" A repolhuda Lindoca igualmente se retraira, mas esta, coitada!
por desgosto das suas banhas; já não queria aparecer a pessoa alguma, de
vergonha. Entrara, por conselho do pai, a dar longos passeios de madrugada,
enquanto houvesse pouca gente na rua, para ver se lhe descaiam as enxúndias,
mas qual! a enchente de gordura continuava bolear-lhe cada vez mais os membros.
A pobre moça já não tinha feitio; quando sala era obrigada a descansar de vez
em quando, provocando olhares de admiração, que a irrintavam; já não podia usar
botinas, ficara condenada ao sapato de pano, raso, quase redondo; as suas mãos
perderam o direito de tocar nos seus quadris; trazia os braços sempre abertos;
o pescoço apresentava roscas assustadoras; os olhos, o nariz e a boca ameaçavam
desaparecer afogados nas bochechas Entretanto, afeiçoava-se pela linha reta,
tinha predileções por tudo que era seco e escorrido, olhava com inveja para as
magricelas. Freitas gastava os lazeres a conltar tratados de medicina, a ver se
descobria remédio contra aquele mal, o bom homem maçava-se; as cadeiras de sua
casa estavam todas desconjuntadas: "Daquele modo, não lhe chegaria o
ordenado só para mobilia" e, como homem fino mandou fazer uma cadeira
especial para Lindoca, com parafusos fortes, de madeira de lei. Viviam ambos
tristes.
E tudo isto, todo esse desgosto surdo que minava na
panelinha, era atirado por Maria Bárbara à conta de Raimundo. Queixava-se dele
a todos, amargamente; dizia que, depois da chegada de semelhante criatura, a
casa parecia amaldiçoada "Tudo agora lhe saia torto!" Chegou a pedir
ao cônego que lhe benzesse o quarto e juntou à promessa da missa mais a de dez
libras de cera virgem, que mandaria entregar ao cura da Sé no dia em que o
cabra se pusesse ao fresco.
Mas, pouco depois, a sogra de Manuel chamou o padre
em particular, e disse-lhe radiante de vitória:
— Sabe? Já descobri tudo!
— Tudo, o quê?
— O motivo de todas as desgraças, que nos têm
acontecido ultimamente.
— E qual é?
— O cabra é "bode!..."
— Bode?! Como?
Maria Bárbara chegou a boca ao ouvido de Diogo e
segredou-lhe horripilada:
— E maçom!
— Ora o que me conta a senhora!... exclamou Diogo,
fingindo uma grande indignação.
— E o que lhe digo, senhor cônego! O cabra é bode!
— Mas isso é sério?... Como veio a senhora a
saber?...
— Se é sério... Veja isto!
E, cheia de repugnância e trejeitos misteriosos
sacou da algibeira da saia o folhetinho de capa verde, que Dias subtraira da
gaveta de Raimundo.
— Veja esta bruxaria, reverendo! Veja, e diga ao depois
se o danado tem ou não parte com o cão tinhosos! Pois se eu cá senta um
palpite!...
E apontava horrorizada para a brochura, em cujo
frontipício havia desenhado um xadrez, duas colunas amparando dois globos
terrestres e outros emblemas. O cônego apoderou-se do folheto e leu na primeira
página "Lenda maçônica ou condutor das lojas regulares, segundo o rito
francês reformado.
— Sim senhora! tem toda a razão! Cá estão os três
pontinhos da patifaria!... patifaria!... E leu na introdução da obra, possuindo-se
de uma raiva de partido: "Maçons, penetremo-nos da nossa dignidade! A
retidão de nossos votos, a união de nossos trabalhos, e a harmonia de nossos
corações, alimentem sem cessar o fogo sagrado, cuja claridade resplandecente
ilumina o interior de nossos templos!"
— Sim senhora! Tem mais essa prenda... resmungou,
entregando o folheto à velha; além de cabra, é bode!
E sem transição, duro:
— É preciso pôr esse homem fora de cá!
— E quanto antes!...
— O compadre está aí?
— Creio que sim, no armazém.
— Pois vou convencê-lo. Até logo.
— Veja se consegue, reverendo! Olhe lembra-me até
que seria melhor desistir de tal compra da fazenda... Esta gente, quando
nãotisna suja! Não imagina a arrelia que me faz vê-lo todo o santo dia 1a mesa
de janta ao lado de minha neta!... Também nunca esperei esta de meu genro! É
preciso pôr o homem pra fora! Isto não tem jeito! As Limas já falaram muito;
disse a Brígida que na quitanda do Zé Xorro lhe perguntaram se era certo que
ele estava para casar com Anica... Ora isto não se atura! Cada um que ponha o
caso em si!... Pois então aquele não-sei-que-diga precisa que lhe gritem aos
ouvidos qual é o seu lugar?... No fim de contas quantos somos nós?!... Nada!
Nada! é precioso pôr cobro a semelhante coisa. Fale a meu genro, senhor cônego
fale-lhe com franqueza! Olhe pode dizer-lhe até que se ele não quiser tratar
disto, eu m'encarrego de pôr a peste no olho da rua! A porta da nua é a
serventia da casa! Não vê que entre paredes, onde cheira a Mendonça de Melo, se
tem aquelas com um pedaço de negro! Iche cacá!
— Está bom está bom!... Não se arrenegue, Dona
Babu! Pode arranjar-se tudo, com a divina ajuda de Deus!...
E o cônego foi entender-se com o negociante.
— Homem... respondeu Manuel tendo ouvido as razões
do compadre, lá de recambiá-lo para o diabo, convenho! porque enfim sempre é um
perigo que um pai de família tem dentro de casa!... mas essa agora de não
negociar a fazenda, é pelo que não estou! Seria asnice de minha parte! E boa!
Pois se o Cancela me escreveu quer entrar em negócio, e eu posso meter para a
algibeira uma comissãozinha menos má, sem empregar capital algum e quase sem
trabalho — hei de agora meter os pés e deixar o pobre rapaz às tontas, em risco
até de cair nas mãos de algum finório!... Porque, venha cá seu compadre, mesmo
deitando de parte o interesse, com quem a não ser comigo podia o Mundico,
coitado! haver-se neste negócio? Também a gente deve olhar p'r'estas coisas!...
Ficou resolvida a viagem para o sábado seguinte.
Raimundo acolheu a noticia com uma satisfação que
espantou a todos. "Até que afinal ia visitar o lugar em que lhe diziam
do!..."
— Olhe! disse ele a Manuel, tenho um importante
pedido a fazer-lhe... — Se estiver em minhas mãos...
— Esta...
— Oque é?
— Coisa muito séria... Em viagem para o Rosário
conversaremos.
Manuel coçou a nuca.
9
Logo depois da partida do cadáver, Maria Barbara e
Ana Rosa desceram do sitio, em um carro que se mandou buscar; foram diretamente
para o Largo das Mercês. Manuel e Raimundo vieram de bonde e seguiram para
casa. Mas o rapaz, apesar de fatigado, não conseguiu repousar. Precisava de ar
livre. Mudou de roupa e tomou a sair.
Passava já de meia-noite. A cidade tinha o caráter
especial das vésperas de São João: viam-se restos de fogueiras fulgurando ao
longe, em diversos pontos, de quando em quando ouviam-se estalos destacados.
Raimundo tomou a direção das Mercês. "Seria crível, pensava pelo caminho,
que estivesse deveras enfeitiçado por sua prima?... ou seria tudo aquilo uma
dessas impressões passageiras, que nos produz em dias de bom humor um rosto
bonito de moça?... Verdade era que nunca se sentira tão preocupado por outra
mulher."
— Em todo o caso, concluiu ele, convém dar tempo ao
tempo!... Nada de precipitações!
Assim raciocinando, no antegosto do seu casamento
provável com Ana Rosa, chegou à casa das Sarmentos.
Nessa ocasião reuniram-se aí as velhas amizades da
defunta, prevenidas logo do triste acontecimento pelos empregados de Manuel. O
enterro seria no dia seguinte à tarde. Os conhecidos do comercio mandaram lá os
seus caixeiros para ajudarem a encher as cartas de convite e fazerem quarto.
Chamou-se logo um armador, para preparar a casa, conforme o uso da província;
falou-se a um desenhista para fazer o retrato do cadáver - tomou-se medida e
encomendou-se o caixão; discutiu-se a vestimenta que devia levar Maria do
Carmo, e resolveu-se que seria a de Nossa Senhora da Conceição, por ser a mais
bonita e vistosa. Amância ofereceu-se prontamente para talhar a roupa.
"Que não valia a pena encomendá-la ao armador, sobre vir malfeita e mal
cosida, sairia por um dinheirão!"
— Não sei! dizia ela. Todas estas coisas pra
enterro custam sempre quatro vezes mais do que podem valer! É uma ladroeira
descarada! Por isso enriquecem tão depressa os armadores! diabo dos gatunos!
Desta vez a velha tinha razão.
Mandaram comprar cetim cor-de-rosa, azul e branco,
sapatinhos de baile, escumilha e filó para o véu, que seria franjado de ouro.
Uns teimavam que a morta devia levar um ramalhete de cravos na mão, outros
negavam, considerando, nem só a idade da defunta, como o seu estado de viúva.
E choviam exemplos de parte a parte:
— Outro dia D. Pulquéria das Dores apesar dos seus
sessenta anos, levou na mão um enorme ramo de rosas vermelhas! E demais, era
casada.
— E o que tem isso?! D. Chiquinha Vasconcelos foi
de caixão aberto, porém não levava ramalhete, e, até digo-lhe mais, nem palma
nem capela! no entanto era solteira e tinha a metade da idade de D. Maria do
Carmo.
— Mas ia com as faces pintadas de carmim, que é
muito pior! Ora aí está!... Além disso, dizia-se da Chiquinha o que todos nós
sabemos. Deus me perdoe! Uma mulata obesa cortou o nó górdio da questão,
declarando que o ramalhete bem podia ir escondido por debaixo do hábito. Todos
concordaram logo.
Deu Uma hora. Vários caixeiros retiraram-se já com
um maço de cartas, que entregariam pela manhã; algumas famílias, vestidas de
preto, despediam-se com beijos, pedindo desculpa por não ficarem ate à hora do
enterro. O armador martelava na sala. A noite cala no silêncio ouvia-se um ou
outro busca-pé retardado. Na n a, grupos pândegos passavam em troça para o
banho de São João do Alto da Carneira vinha um sussurro longínquo de
"bumba-meu-boi". Cantavam os primeiros galos; cães uivavam distante,
prolongadamente; no céu azul e tranqüilo uma talhada de lua, triste sonolenta
mostrava-se como por honra da firma, e, todavia, um homem, de escada ao ombro,
ia apagando os lampiões da rua.
Raimundo parara um instante olhando o mar, defronte
da casa das Sarmentos. À porta de entrada havia um grande reposteiro de veludo
negro, com uma cruz de galões amarelos. Ele considerou o prédio: era um casarão
velho, um desses antigos sobrados do Maranhão, que já se vão fazendo raros.
Cinqüenta palmos de alto e outros tantos de largo, barra pintada de piche,
mostrando a caliça em vários pontos, cinco janelas de peitoril, enfileiradas
sobre quatro portas lisas, com um portão entre elas, pesado, batente de
cantaria; cheirando tudo a construção dos tempos coloniais, quando a pedra e a
madeira de lei estavam ali a dois passos e se levantavam, em terrenos aforados,
paredes de uma braça de grossura e degrau de pau santo.
Entrou. O corredor transpirava um caráter
sepulcral. Subia-se uma escada feia, acompanhada de um corrimão negro e
lustrado pelo uso; nas paredes, via-se, à insuficiente claridade de uma
lanterna suja, o sinal gorduroso das mãos dos escravos, e no teto havia lugares
encarvoados de fumaça.
A escada era dividida em dois lances, dispostos em
sentido contrário um do outro; Raimundo chegou ao fim do primeiro lance
sufocado e galgou o segundo de carreira, dando aos diabos o maldito costume de
fechar toda a casa, quando ela mais precisa de ar porque tem dentro um cadáver.
Numa das salas da frente, forrada então pelo tapete do armador, tapete velho e,
tão crivado de pingos de cera, que o pé escorregava nele, estava um grande
tabuleiro de paparaúba, cheio de tochas e enormes castiçais de madeira e
folha-de-flandres, pintados de amarelo. Em uma das quatro paredes, cobertas de
alto a baixo de veludo preto e orladas de galões de ouro destacava-se um altar,
ainda não aceso, todo estrelado de lantejoulas; carregado de adornos, com uma
toalha de rendas no centro, sobre a qual pousavam dois castiçais de latão,
pintalgados pelas moscas, tendo entre eles um crucifixo do mesmo metal,
extremamente azinhavrado. Defronte estava a essa, enfeitada de acordo com o
resto, à espera do caixão, que aquelas horas se reparava em casa do Manuel
Serigueiro.
Empoleirado numa escada e de martelo em punho um
homem, em mangas de camisa, pregava sobre as portas bambinelas bordadas.
— A que horas e o enterro? perguntou-lhe Raimundo.
— Às quatro e meia, disse o armador, sem voltar o
rosto.
Da varanda vinha um murmúrio de vozes. Raimundo
seguiu para lá.
Varanda larga e alta caiada, toda aberta para o
quintal; telha vã, mostrando os caibros irregulares, donde pendiam melancólicas
teias de aranha. Num dos cantos um banco de pau roxo, muito escuro,
sustentando, em buracos redondos, dois grandes potes bojudos de barro vermelho;
sobre o parapeito da varanda, uma fila de quartinhas também de barro, esfriavam
água. Aberto na parede um imenso armário tosco, e logo ao pé um alçapão
nosoalho, resguardado por uma grade, com a cancela despejada sobre uma escada
tenebrosa.
Encostado à grade — um sujeito gordo, sem bigode,
de óculos e barba debaixo do queixo, dizia a outro do mesmo feitio, batendo com
o pé nas largas tábuas do chão.
Hoje ninguém mais pilha deste madeiramento! Repare!
E tudo pau-d'arco, pau-santo, pau-cetim, bacuri, jacarandá e pequi! Madeiras
que valem o ferro e que nem o machado pode com elas!
Em volta de uma mesa, dez homens, a título de fazer
quarto à defunta, jogavam cartas, conversando em voz discreta repetindo xícaras
de café e cálices de conhaque, entre pilhérias segredadas, risos abafados e o
fumo espesso dos cigarros.
Quando Raimundo entrou, confidenciava um deles ao
vizinho:
— Já não sou homem para estas coisas!... Não posso
perder uma noite!... Por mais que beba café, sinto sono!... Porém não podia
deixar de vir, era uma ocasião de encontrar-me com a pequena... Não tenho
entrada na casa dela...
E bocejava.
— Conhecias esta velha que morreu? interrogou-lhe o
outro.
— Não. Creio que a encontrei uma vez em casa do
Manuel Pescada... Já estive a olhá-la — é horrível!
— Pois aqui onde me vês, estou furioso! O patrão
mandou-me para cá, mas com poucas arribo! Tenho um pagode no Cutim e não o
perco!
— Também porque a velha não escolheu melhor dia pra
morrer!...
— Logo na véspera de São João! Que espiga!
E bocejavam ambos.
— Quem é este tipo? perguntou um dos jogadores,
vendo entrar Raimundo. Corte com o três de espadas!
— É um tal Raimundo... um sujeito que o Pescada tem
em casa por compaixão.
— O que faz ele? — Dama!
— Diz que é doutor. — É meu!
— Não parece mau rapaz...
— Fia-te!
— Já te pregou alguma hein? conta-nos isso!
&emdash;Não te digo mais nada... Fia-te na
Virgem e não corras!... Fizeram uma pausa, em que se ouvia atirar cartas à
mesa, com uma pancada de dedos no tapete.
— Mas do que vive ele? perguntou o curioso que se
informava de Raimundo. — Venha o ás!
— Ora do que vive!... Você não tem copas?...
Pergunte a toda essa gente sem emprego, de quem oficialmente se de "vive
de agências" e ficarás sabendo.
— Ganhei!
— Mas o que é ele do Manuel?
— Diz que primo... respondeu o outro, baralhando as
cartas.
&emdash;Ah!...
— Dê cartas.
Raimundo cumprimentou-os e perguntou pela família
da defunta.
Estava fazendo quarto. Que entrasse por ali,
responderam-lhe, indicando uma porta.
Logo que o rapaz deu as costas, o maledicente
levantou o braço e fez-lhe uma ação feia.
— Gosto muito destes tipos, acrescentou, então em
voz alta, para o grupo inteiro, depois de um silêncio, todos eles são uma coisa
lá por fora "Porque eu fiz! e porque eu aconteci! Porque isto é uma
aldeia! É um chiqueiro!" E no entanto metem-se no chiqueiro e daqui não
saem!...
— Meu amigo, neo há Maranhão como este!...
— Mas dizem que este cabra tem alguma coisa...
arriscou um terceiro.
— Qual nada!... Você ainda come araras! Todos eles
dizem ter mundos e fundos!... Gosto deste Maranhãozinho, porque não perdoa os
tipos que vêm pra cá com pomadas!... O sujeito aqui, que se quiser fazer mais
sabichão do que os outros, há de levar na cuia dos quiabos, para não ser
pedante! Diabo dos burros! Se sabe muita coisa guarde pra si a sabedoria, que
ninguém por cá precisa dela, nem lha pediu! E não se meta a escrevinhar
livrinhos e artigos para os jornais, que isso é ridículo!... Lá o meu patrão é
quem sabe haver-se com esses espoletas! Ainda há pouco tempo ele precisou ai
não sei de que pape! — para o sobrinho que tinha chegado do Porto — e vai —
pede a um doutorzinho, muito nosso conhecido, que lhe arranjasse a história...
Pois o que pensam vocês que respondeu o tal bisca ao patrão?...
Não sabiam.
— Pois mandou-o plantar batatas! Chamou-o de
toleirão! "Que o que ele queria, era um absurdo!"
— Sim, hein?...
— Com estas palavras!... Estou lhe dizendo!... Ah,
meu amigo mas também o patrão pregou-lhe uma de respeito!... Você sabe que o
Lopes, em questões de capricho, não se importa de gastar dois vinténs... — Sim,
como naquela história da comenda...
— Bom. Pois ele foi ai a um outro tipo e
encomendou-lhe uma dessas descomposturas de criar bicho!
— E então?
— Ora! Se bem o patrão o disse, melhor o tipo o
faz... Ora, espera! Como era mesmo o nome da coisa?... Era... Estou com o diabo
na ponta da língua... Ah! Era um anônimo!
— Ah! Um anônimo!
— Uma descomponenga, que pôs o tal doutorzinho de
borra mais raso que o chão!
— Ah! Isso foi com o Melinho!... : — Foi. Você leu,
hein?
— Ora, mas aquilo do Lopes foi demais. Desacreditou
o pobre moço!...
— Não sei! Bem feito!
— E, segundo me consta, nem tudo era verdade no tal
anônimo!
— Não sei!... o caso é que esfregou o tipo!
— Sim, mas o que não se pode negar é que o Melinho
é um rapaz inteligente e honesto a toda a prova!...
— Que lhe faça muito bom proveito! Coma agora da
sua inteligência e beba da sua honestidade! Meu menino, deixemo-nos de
patacoadas! O tempo hoje é de cobre! Honesto e inteligente é isto!...
E com os dedos fazia sinal de dinheiro.
— Tenha eu o jimbo seguro acrescentou, e bem que me
importa a boca do mundo! E senão&emdash;olhe ai para a nossa sociedade!...
E citava nomes muito conhecidos, contava histórias
medonhas de contrabandos de grande ladroeiras de notas falsas, do diabo!
— Sim! sim isso é velho mas que fim levou o
Melinho?
— Sei cá! muscou-se para o Sul! Que o leve o diabo!
— Pois olhe, gosto daquele moço!...
— Não lhe gabo o gosto! Raimundo, depois de
atravessar um quarto espaçoso, penetrou na sala de visitas e achou-se defronte
de uma roda de senhoras de todas as idades, na maior parte vestidas de luto, e
que, assentadas, fitavam, de cabeça à banda com o olhar cansado e sonolento, o corpo
inanimado de Maria do Carmo. Numa rede a um canto, soluçava Etelvina,
escondendo a cabeça entre travesseiros; ao lado, uma mulata gorda e enfeitada
de ouro — sala de chamalote preto e toalha de rendas sobre os omros — dizia
maquinalmente as frases da consolação. Assentada no sobrado sobre uma esteira.
Amância talhava o hábito de Nossa Senhora da Conceição, com que a defunta devia
ir vestida à fantasia para a sepultura, como se fosse para um baile de
máscaras. Nas paredes, os retratos de família estavam cobertos por um vasto
crepe; o do tenente Espigão horrorosamente pintado a óleo, com um colorido cru,
tinha através do véu, um sorriso duro de beiços vermelhos. No meio da sala, em
um sofá de gosto antigo com encosto de palhinha envernizada, decompunha-se o
cadáver da velha Sarmento; tinha o rosto coberto por um lenço de labirinto
encharcado de água-flórida; as mãos cruzadas sobre o peito e amarradas à força
por uma fita de seda azul; as pernas esticadas o cabelo muito puxado para trás,
bem penteado, o corpo todo se mirrando hirto um pouco empenado na tensão dos
músculos. Em cima do ventre opado um prato cheio de sal.
À cabeceira do canapé numa mesinha coberta de
rendas, um Cristo colorido, de braços abertos pendia da cruz, e duas velas de
cera derretiam-se no lugar do bom e do mau ladrão. Logo junto, uma vasilha de
água benta com um galinho de alecrim; mais para a frente, uma Nossa Senhora
pequenina, de barro pintado.
Ouviam-se soluços discretos e o crepitar seco das
velas.
Raimundo aproximou-se do cadáver e, por mera
curiosidade descobriu-lhe o rosto&emdash;estava lívido, com os raros dentes
à mostra, os olhos mal fechados mostrando um branco baço, cor de sebo; dos
queixos subia-lhe ao alto da cabeça um lenço, amarrado para segurar o queixo.
Principiava a cheirar mal.
Então, apareceu na sala uma negrinha com uma
bandeja de xícaras de café.
Serviram-se.
Raimundo foi levar uma chávena a Ana Rosa, que se
achava entre as senhoras.
— Obrigada, disse ela, chorosa, eu já tomei ainda
agorinha mesmo.
De vez em quando ouvia-se um suspiro estalado e o
froon nasal das moças que assoavam as lágrimas. Um grupo de mulheres, de saia e
camisa, conversava soturnamente sobre as boas qualidades e as virtudes da
defunta. Tinham a voz medrosa de quem receia acordar alguém ou ser ouvido pelo
objeto de conversação.
— Era pra um tudo!... afirmava uma delas,
compungida. Devo-lhas muitas!... que lhas hei de pagar com padre-nossos! Inda
s'tr'oudia, quando me atacou a pneumonia na pequena, com quem foi que me
achei?!... Pois olhe que os doutores de carta não lhe souberam dar voltas! E
hoje, minha rica?... Ela está aí fina e lampeira, que faz gosto, ao passo que a
pobre da senhora D. Maria do Carmo... Deus me perdoe, até parece feitiçaria! —
E apontou para o cadáver com um gesto desconsolado. — Ao menos descansou,
coitada!
— Não semos nada neste mundo!... suspirou, com a
mão no queixo, uma mulherinha magra e pisca-pisca, que ate então se conservara
numa imobilidade enternecida.
E contou a história de uma sua camarada, que, havia
trinta anos, morreu na flor da idade.
Este caso puxou outros. Foi um cordão de anedotas
fúnebres. A mulata obesa fechou a rosca, narrando, muito sentida, a história de
um papagaio de grande estimação, que ela possuía, e que, um belo dia, cantando,
coitado! a "Maria Cachucha", caíra para três — morto! — Credo!
exclamou Amância. E, voltando-se para a mulata, com os óculos na ponta do
nariz.
— Nhá Maria! esta espiguilha é toda para o véu, ou
tem de se tirar daqui também os laçarotes?...
Depois do enterro, quando Maria Barbara, de volta a
casa entrou no seu quarto, dera logo com a vela de cera gasta até o fim e com a
singular mascara do seu milagroso São Raimundo; ficou aterrada, sem saber o que
pensar, e, na sua cegueira supersticiosa, atirou-se de joelhos defronte do
oratório e pôs-se a rezar fervurosamente.
Nessa noite, apesar da canseira em que vinha, neo
pode dormir senão pesa volta da madrugada; e, à força de meditar o caso, acabou
por enxergar nele um milagre. Sim, um milagre, justamente como o explicam os
catecismos que se dão na escola e como a sua própria mestra lhe
ensinara&emdash;um mistério incompreensível. "Não havia que duvidar —
Deus Nosso Senhor servira-se daquele engenhoso ardil] para preveni-la de
presentes e futuras calamidades!..."
Entretanto, só ao cônego se animou de confiar o
fato, e até lhe pediu segredo, que, se o genro viesse a conhecê-lo, havia de
sair-se com alguma das suas. Já lhe estava a ouvir resmungar com o seu
insuportável risinho de homem sem fé "Pomadas de minha sogra!..."
Além disso, se São Raimundo quisesse tomar público o seu sagrado aviso, não
usaria dos meios que empregou!...
— Agora, o que está entrando pelos olhos, senhor
cônego, é que aquele maldito cabra do Mundico tem parte nisto! Deus queira que
eu me engane, porém a coisa toca-lhe a ele por casa!
— Pode ser, pode ser... Davus sum non Edipus!...
— E o que devo fazer?...
— Ofereça uma missa a São Raimundo. Cantada, não
seria mau... Uma missinha cantada!
Ficaram nisto; mas a velha não podia
tranqüilizar-se assim só: afigurava-se-lhe que, em tomo dela, grandes
transformações se operavam. Verdade é que a morte de Maria do Carmo como que
viera perturbar o ramerrão daquela panelinha de Manuel Pescada. Uma semana
depois do passamento, chegara de Alcântara um irmão da defunta, e em seguida à
missa do sétimo dia, carregou consigo as duas ]inconsoláveis sobrinhas.
Etelvina, embrulhada no seu vestido preto, de lã, encarecera o costume de dar
suspiros; Bibina, com grande abnegação, ocultara o cabelo numa coifa de retrós.
D. Amância Sousellas, para carpir mais à vontade a perda da amiga, fora passar
algumas semanas no recolhimento de Nossa Senhora da Anunciação e Remédios, ao
calor confortável das rezas e do caldo forro do refeitório. Eufrasinha,
percebendo frieza em Ana Rosa, dera-se por magoada e não lhe aparecia.
"Que, de algum tempo àquela parte, notava-lhe certo aninho de
constrangimento e fastio, bem aborrecido! A Anica já não era a mesma! Não sabia
quem lhe pisara o cachorrinho; tinha plena convicção de estar sendo intrigada
por alguma insoneira, mas também tinha alma grande e deixava correr o barco pra
Caxias!" A repolhuda Lindoca igualmente se retraira, mas esta, coitada!
por desgosto das suas banhas; já não queria aparecer a pessoa alguma, de
vergonha. Entrara, por conselho do pai, a dar longos passeios de madrugada,
enquanto houvesse pouca gente na rua, para ver se lhe descaiam as enxúndias,
mas qual! a enchente de gordura continuava bolear-lhe cada vez mais os membros.
A pobre moça já não tinha feitio; quando sala era obrigada a descansar de vez
em quando, provocando olhares de admiração, que a irrintavam; já não podia usar
botinas, ficara condenada ao sapato de pano, raso, quase redondo; as suas mãos
perderam o direito de tocar nos seus quadris; trazia os braços sempre abertos;
o pescoço apresentava roscas assustadoras; os olhos, o nariz e a boca ameaçavam
desaparecer afogados nas bochechas Entretanto, afeiçoava-se pela linha reta,
tinha predileções por tudo que era seco e escorrido, olhava com inveja para as
magricelas. Freitas gastava os lazeres a conltar tratados de medicina, a ver se
descobria remédio contra aquele mal, o bom homem maçava-se; as cadeiras de sua
casa estavam todas desconjuntadas: "Daquele modo, não lhe chegaria o
ordenado só para mobilia" e, como homem fino mandou fazer uma cadeira
especial para Lindoca, com parafusos fortes, de madeira de lei. Viviam ambos
tristes.
E tudo isto, todo esse desgosto surdo que minava na
panelinha, era atirado por Maria Bárbara à conta de Raimundo. Queixava-se dele
a todos, amargamente; dizia que, depois da chegada de semelhante criatura, a
casa parecia amaldiçoada "Tudo agora lhe saia torto!" Chegou a pedir
ao cônego que lhe benzesse o quarto e juntou à promessa da missa mais a de dez
libras de cera virgem, que mandaria entregar ao cura da Sé no dia em que o
cabra se pusesse ao fresco.
Mas, pouco depois, a sogra de Manuel chamou o padre
em particular, e disse-lhe radiante de vitória:
— Sabe? Já descobri tudo!
— Tudo, o quê?
— O motivo de todas as desgraças, que nos têm
acontecido ultimamente.
— E qual é?
— O cabra é "bode!..."
— Bode?! Como?
Maria Bárbara chegou a boca ao ouvido de Diogo e
segredou-lhe horripilada:
— E maçom!
— Ora o que me conta a senhora!... exclamou Diogo,
fingindo uma grande indignação.
— E o que lhe digo, senhor cônego! O cabra é bode!
— Mas isso é sério?... Como veio a senhora a
saber?...
— Se é sério... Veja isto!
E, cheia de repugnância e trejeitos misteriosos
sacou da algibeira da saia o folhetinho de capa verde, que Dias subtraira da
gaveta de Raimundo.
— Veja esta bruxaria, reverendo! Veja, e diga ao
depois se o danado tem ou não parte com o cão tinhosos! Pois se eu cá senta um
palpite!...
E apontava horrorizada para a brochura, em cujo
frontipício havia desenhado um xadrez, duas colunas amparando dois globos
terrestres e outros emblemas. O cônego apoderou-se do folheto e leu na primeira
página "Lenda maçônica ou condutor das lojas regulares, segundo o rito
francês reformado.
— Sim senhora! tem toda a razão! Cá estão os três
pontinhos da patifaria!... patifaria!... E leu na introdução da obra,
possuindo-se de uma raiva de partido: "Maçons, penetremo-nos da nossa
dignidade! A retidão de nossos votos, a união de nossos trabalhos, e a harmonia
de nossos corações, alimentem sem cessar o fogo sagrado, cuja claridade
resplandecente ilumina o interior de nossos templos!"
— Sim senhora! Tem mais essa prenda... resmungou,
entregando o folheto à velha; além de cabra, é bode!
E sem transição, duro:
— É preciso pôr esse homem fora de cá!
— E quanto antes!...
— O compadre está aí?
— Creio que sim, no armazém.
— Pois vou convencê-lo. Até logo.
— Veja se consegue, reverendo! Olhe lembra-me até
que seria melhor desistir de tal compra da fazenda... Esta gente, quando
nãotisna suja! Não imagina a arrelia que me faz vê-lo todo o santo dia 1a mesa
de janta ao lado de minha neta!... Também nunca esperei esta de meu genro! É
preciso pôr o homem pra fora! Isto não tem jeito! As Limas já falaram muito;
disse a Brígida que na quitanda do Zé Xorro lhe perguntaram se era certo que
ele estava para casar com Anica... Ora isto não se atura! Cada um que ponha o caso
em si!... Pois então aquele não-sei-que-diga precisa que lhe gritem aos ouvidos
qual é o seu lugar?... No fim de contas quantos somos nós?!... Nada! Nada! é
precioso pôr cobro a semelhante coisa. Fale a meu genro, senhor cônego fale-lhe
com franqueza! Olhe pode dizer-lhe até que se ele não quiser tratar disto, eu
m'encarrego de pôr a peste no olho da rua! A porta da nua é a serventia da
casa! Não vê que entre paredes, onde cheira a Mendonça de Melo, se tem aquelas
com um pedaço de negro! Iche cacá!
— Está bom está bom!... Não se arrenegue, Dona
Babu! Pode arranjar-se tudo, com a divina ajuda de Deus!...
E o cônego foi entender-se com o negociante.
— Homem... respondeu Manuel tendo ouvido as razões
do compadre, lá de recambiá-lo para o diabo, convenho! porque enfim sempre é um
perigo que um pai de família tem dentro de casa!... mas essa agora de não
negociar a fazenda, é pelo que não estou! Seria asnice de minha parte! E boa!
Pois se o Cancela me escreveu quer entrar em negócio, e eu posso meter para a
algibeira uma comissãozinha menos má, sem empregar capital algum e quase sem
trabalho — hei de agora meter os pés e deixar o pobre rapaz às tontas, em risco
até de cair nas mãos de algum finório!... Porque, venha cá seu compadre, mesmo
deitando de parte o interesse, com quem a não ser comigo podia o Mundico,
coitado! haver-se neste negócio? Também a gente deve olhar p'r'estas coisas!...
Ficou resolvida a viagem para o sábado seguinte.
Raimundo acolheu a noticia com uma satisfação que
espantou a todos. "Até que afinal ia visitar o lugar em que lhe diziam
do!..."
— Olhe! disse ele a Manuel, tenho um importante
pedido a fazer-lhe... — Se estiver em minhas mãos...
— Esta...
— Oque é?
— Coisa muito seria... Em viagem para o Rasário
conversaremos.
Manuel coçou a nuca.
10
No dia combinado, às seis horas da manhã,
acharam-se Manuel e Raimundo a bordo do vaporzinho Pindaré, pertencente à então
Companhia Maranhense de Navegação Costeira.
Fazia um tempo abrasado, muito seco, cheio de luz.
A viagem era incômoda, pela aglomeração dos passageiros, os quais, no dizer
sediço de um de bordo, iam "como sardinhas em tigela".
Tudo aquilo, no entanto, estava muito melhor...
considerava Manuel. Agora já se podia viajar facilmente pelo interior da província!...
Dantes é que a navegação do Itapicuru tinha os seus quês!...
E passou a narrar circunstanciadamente as
dificuldades primitivas da ida ao Rosário. "Aquela companhia, assim mesmo,
viera prestar grandes serviços à província!... Deixasse lã falar quem falava, o
único inconveniente que ele via era a — baldeação no Codó! — Isso sim! Tinha o
que se lhe dizer, e devia acabar quanto antes!"
— Felizmente, concluiu, o Rosário é a primeira
estação e não temos de sofrer a maldita maçada!
Ao anoitecer saltaram na Vila do Rosário, em
companhia de um antigo conhecido de Manuel, ali residente havia um bom par de
anos. Em Um portuguesinho de meia-idade, falador, vivo, brasileiro nos costumes
e trigueiro como um caboclo.
— Venha cá pra casa e pela manhãzinha seguirá o seu
caminho, oferecia ele ao negociante. Sempre lhe quero mostrar o meu palácio!
Foi aceito o convite, e os três puseram-se a andar,
de mala pendurada na mão.
— Sabe você, ia dizendo o homenzinho, toda aquela
baixa que pertencia ao Bento Moscoso? pois isso fica-me hoje no quintal!
Arrecadei a fazenda da viúva por uma tuta e mea e hoje está produzindo, que é
aquilo que você pode ver! O meu projeto é levantar uma engenhoca aí perto, onde
fica o igarapé do Ribas; quero ver se aproveito as baixas para a cana, percebe?
E dissertava largamente sobre a sua roga, sobre as
suas esperanças de prosperidade, censurando medidas mal tomadas pelos vizinhos;
afinal atirou a conversa sobre o Barroso. Barroso era a fazenda no para onde se
dirigiam os outros dois.
— São boas tenras, são! Muito limpas, muito
abençoadas! O que foi que levantou o Luís Cancela? E é verdade! se me neo
engano, creio que ele uma ocasião me disse que foi você quem lhas aforou. Não é
isso?
— E exato, respondeu Manuel. — Ah! são suas?...
— Não! São deste amigo.
E Manuel indicou Raimundo, que nesse momento
contratava, com um homem que se mandou chamar, os cavalos para a viagem no dia
seguinte.
— São muito boas terras!... o outro. O Cancela já
por várias vezes tem-nas querido comprar.
— Compra-as agora.
E chegaram a casa.
&emdash;A minha gente está toda fora declarou o
roceiro. Mas não faz mal, temos ai de sobra com que passar. Ó Gregório!
— Meu senhô!
Veio logo um preto velho, a quem ele se dirigiu
para dar as ordens em voz baixa.
A noite, ao contrário do dia, fizera-se fresca.
Depois da cela, cada um se estendeu na sua rede, preguiçosamente. Raimundo
queixava-se de pragas e maruins; Manuel meditava os seus negócios,
toscanejando, e o portuguesinho não dava tréguas à língua: falava daquelas
tenras com um entusiasmo progressivo; contava maravilhas agrícolas; mostrava-se
fanático pelo Rosário. E, no empenho da conversa, arrastado, chegava a mentir,
exagerando tudo o que descrevia.
Raimundo interrompeu-o, para saber se ele conhecia
a antiga fazenda São Brás.
— São Brás!...
E o homenzinho levantou-se da rede com um espanto.
— São Brás! Se conheço! E por aqui V.Sª não
encontra quem não saiba a história dela!...
O outro ardia de curiosidade.
— Tenha então a bondade de contar-ma, pediu,
assentando-se. Como vou andar por essas bandas...
Manuel adormeceu.
— Pois V.Sª não sabe a história de São Brás?...
Valha-o Deus, meu caro senhor, que podia cair em algum malfarrico; mas eu vou ensinar-lhe
a reza que aprendemos com o nosso santo vigário. Olhe! quando V.Sª topar uma
cruz na estrada, apeie e reze, e ao depois siga o seu caminho por diante,
repetindo sempre:
"Por São Brás! Por São Jesus! Passo aqui, Sem
levar cruz"
Até avistar as magueiras do Barroso: daí à riba
pode seguir descansado, que lá não chega chamusco!
— Mas por que toma a gente tais precauções?
— Ora ai está onde a porca torce o rabo! E por
causa do diabo de uma alma danada, que empesta essas garagens... Eu conto a
V.Sª!
E o homenzinho, engolindo em seco, contou
prolixamente que São Brás, ou Ponta do Fogo, como dantes lhe chamavam, fora
noutro tempo lugar de terras boas e férteis, onde se podia plantar e colher
muito, que abençoadas eram elas pelas mãos de Deus. Mas, que uma vez aparecera
por lá o célebre assassino Bernardo, terror do Rosário e sobressalto dos
fazendeiros, e, depois de uma vida errante pelo sertão, roubando e matando,
meteu-se na Ponta do Fogo e ai estourou. E desde então nesse desgraçado lugar nunca
mais vingara fruto que não tivesse ressaibo de veneno, nem medrara planta sem
mitinza; as águas deixavam cinza na boca, a terra, se a gente a colhia na mão,
virava-se em salitre, e as flores fediam a enxofre; mas, quem comesse desses
frutos, se deitasse nesse chão, se banhasse nessas águas e cheirasse aquelas
flores, ficava por tal modo enfeitiçado, que não havia meio de arrancá-lo dali,
porque o diabo tinha untado o fruto de mel, e perfumado as flores e amaciado a
relva, para engodar o caminheiro incauto.
— Foi isso, continuou o que sucedeu ao pobre José
do Eito, quando se meteu por cá — enfeitiçou-se! Eu era muito novo nesse tempo,
mas bem me lembro de o ter visto tantas vezes, coitado! todo amarelo,
morrinhento e resmungão, que logo se adivinhava que o diabo lhe pregara alguma!
E sempre andou assim!... um dia morreu-lhe a mulher de repente, e ele pouco
depois foi varado por um tiro, que nunca mais ninguém soube donde veio. Daí em
diante São Brás ficou tapera. No lugar em que morreu o José levantou-se Uma
cruz, e todos os que passam por lá rezam por alma do desventurado, até encher
certa conta de orações, com que ela possa descansar!... Enquanto isso não
chega, vaga pela tapera a pobre alma penada, de dia que nem um pássaro negro,
enorme, que canta a finados, e de noite vira-se numa feiticeira, que dança e
canta, rindo como as raposas. Quando algum imprudente atravessa perto, a
feiticeira o persegue de tal feitio, que o infeliz, se não estiver montado, ela
o pilha com certeza!
— E se o pilha?
— Se o pilha?... Ah, nem falar nisso é bom! Se o
pilha, vira-se logo toda em ossos e cai-lhe em riba, com tal fúria de pancadas,
que o deixa morto!
— E depois?
— Depois, volta a alma para penitência, tendo
perdido, por cada pancada que deu, vinte coroas de padre-nossos. Quando V.Sª
for amanhã é bom levar na sela do seu cavalo um galhinho de arruda, e ao depois
de rezar à cruz, vá sacudindo sempre até as mangueiras do Cancela, sem nunca
parar com a reza que lhe ensinei!
— Sim, sim, mas diga-me uma coisa: esse José do
Eito não se chamava José Pedro da Silva?
— Justo! V.Sª o conheceu?
— De nome.
— Pois eu conheci, perfeitamente. E, a pedido de
Raimundo, o portuguesinho descreveu o tipo José, e contou o que sabia da vida
dele. O rapaz escutava tudo com um interesse religioso; não queria perder uma
só daquelas palavras; mas tinha, muitas vezes, que interromper o narrador, para
lhe fazer perquntas, a que o outro respondia em parêntesis rápidos.
— Pois a D. Quitéria Santiago morreu pouco antes do
marido; eu fui vê-la! e olhe V.Sª que, de bonitona que era, ficou horrível.
Estava mais roxa que Uma berinjela!
— Não tinha filhos?
— Nunca os teve.
— Nem o marido?... Sim... este podia ter algum
filho natural...
&emdash;Não, que eu saiba, não tinha.
— Nem consta de alguma parenta, que vivesse na
fazenda em companhia do José?...
— Sei cá, mas...
— Alguma irmã de D. Quitéria, ou talvez alguma
amiga, hein? Veja se se lembra...
— Qual o quê!... Viviam ao contrário muito sós! D. Quitéria
a única parenta que tinha era a mãe; esta andava sempre de ponta com o genro e
neo saia da sua fazenda, que vem a ser aquela em que está hoje o Cancela — a
fazenda do Barroso! É verdade! sabe quem pode informar bem estas coisas? é o
Sr. Vigário! ele ainda vive na cidade; hoje é cônego. Pois era muito unha com
carne do José do Eito.
— O cônego Diogo?...
— Justamente! Ele é que era o vigário desta
freguesia. Ora quanto tempo já lá vai!...
— Ah! O cônego Diogo era o vigário desta freguesia,
e muito da casa das Santiagos?...
— Sim senhor! E ele está ai, que a quem quiser
ouvir as voltas que deu para desencantar São Brás! Coitado! nada conseguiu e
quase que ia sendo vitima da sua boa vontade!
— Ele também acreditava na feitiçaria?
— Se acreditava! Pois se ele a viu, que o disse! E
olhe V.Sª que o cônego não é homem de mentiras! Afimava que havia em São Brás
uma alma danada, e não gostava até que lhe falassem muito nisso!... Proibia-o
expressamente, sob pena de excomunhão! Se acreditava? E boa! Por que foi então
que ele abandonou a paróquia, tendo aqui nascido, gozando da mais alta
consideração e recebendo, como recebia, presentes e mais presentes de toda a
freguesia?... Eram bois, carneiros, capados, muita criação. Ele está ai na
cidade, que o diga!
Raimundo caia de conjetura em conjetura.
— Ele era então bastante amigo do José da Silva? o
cônego?
— Se era, coitado! Amigo e muito bom amigo!...
Quando assassinaram o pobre homem, o senhor vigário nem quis espargir-lhe a
água benta; mandou o sacristão! Não podia encarar com o corpo do José! E, veja
V Sª , meteu-se em casa, e pouco nada apareceu, até que se retirou para sempre
cá da vila! Todos nós sentimos deveras semelhante retirada; estávamos tão
acostumados com ele!... Eu, nesse tempo, trabalhava nas terras do coronel Rosa;
tinha os meus vinte anos e ainda estava solteiro; assisti a tudo, meu rico
senhor! Lembra-me como se fosse ontem! A fazenda, essa foi logo abandonada;
ninguém quis saber mais dela, pois, todas as noites, quem passasse por ai,
ouvia gritos medonhos, de arrepiar o couro!
— Mas, além do José e da mulher, quem mais morou
nesse lugar?
— Or'essa! a escravatura e o feitor.
— Não. Digo senhores.
— Ninguém mais.
— Ah, é verdade! O José era feliz com a mulher?
Viviam bem?...
— Qual! Pois se lhe estou a dizer que aquelas
tenras são tenras do diabo! Viviam que nem o cão com o gato! O cônego, ainda
assim, era quem os acomodava, dando-lhes conselhos e pedindo a Deus por eles!
E Raimundo perdia-se novamente em conjeturas. as.
"Sempre sombras!... Sempre as mesmas duvidas sobre o seu passado!..."
A conversa afrouxou. O portuguesinho deitou-se, e
depois de uns restos de palestra, vaga e bocejado, adormeceu Raimundo sonhou
toda a noite.
As quatro da madrugada estavam de pé, selados os
cavalos, cheio o farnel para a viagem, e o guia montado.
Partiram às cinco horas.
Logo que os dois, e mais o guia, se acharam em
caminho, Raimundo procurou entabular a mesma conversação que tivera na véspera
com o roceiro; queria ver se conseguia arrancar de Manuel algum esclarecimento
positivo sobre os seus antepassados. Nada obteve; as respostas do negociante
eram, como sempre que o sobrinho lhe tocava nisso, obscuras, difusas,
entrecortadas de pausas e reticências. Manuel falou-lhe no cônego, na cunhada,
no mano José, e em mais ninguém. A respeito da mãe de Raimundo — nem a mais
ligeira referência. "Ora adeus!... Estou sempre na mesma!..."
concluiu o moço de si para si e fez por pensar noutra coisa. O fato, porém, é
que ele, apesar do seu temperamento de artista não tinha uma frase para as
belas paisagens que se desenrolavam diante de seus olhos. Ia cabisbaixo e
preocupado.
Jornadearam em silêncio horas e horas. De vez em
quando o guia, com o seu de sertanejo, levava-os a uma fazenda ou a um rancho,
onde os três descansavam e comiam, para tomar logo a cavalgar por entre as
melancólicas carnaubeiras e pindovais da estrada. Raimundo sentia-se aborrecido
e impacientava-se pelo fim da viagem. Seu maior empenho era visitar São Brás;
propôs até que se fosse lá primeiro, mas o negociante declarou que era
impossível. "Não tinham tempo a perder!..."
— Na volta, doutor, na volta, acrescentou, sairemos
bem cedo e daremos um pulo até lá. Lembre-se de que nos esperam, e não seria
razoável bater fora de hora em casa de uma família. O outro consentiu,
praguejando entre dentes contrariado e cheio de tédio: "Que grandíssima
estopada! O diabo da tal fazenda do inferno parecia fugir diante
deles!..."
— Não se rale, patrãozinho! E ali quase! disse
compassadamente o guia, espichando o beiço inferior Meta a espora no animal,
que talvez chegaremos com dia!
— Ah! suspirou Raimundo, desanimado por ver o sol
ainda alto e compreender que tinha de caminhar até à noite.
E deixou-se cair numa prostração mofina, a fitar as
orelhas do burro, que arfavam com a regularidade monótona das asas de um
pássaro voando.
— Cá está! exclamou Manuel, duas horas depois,
chegando a um lugar mais sombrio do caminho.
— Que é? ia perguntar o moço quando deu por sua vez
com uma cruz de madeira, muito tosca e arruinada. Ah!
— Foi neste lugar assassinado o José!...
Todos pararam, e o guia apeou-se e foi rezar de
joelhos ao cruzeiro.
— Reze pela alma de seu pai, meu amigo. Neste lugar
foi ele varado por uma bala.
— E o assassino? perguntou Raimundo depois de um
silêncio.
— Algum preto fugido!... até hoje nada se sabe ao
certo... mas dizem que nisto andou unha política. . outros atribuem o fato ao
diabo. Bobagens! ...
Raimundo apeou-se e indagou se o pai estava
enterrado ali.
Manuel, já de pé, respondeu que não. Enterrara-se
no cemitério da fazenda, ao lado da mulher. Aquela cruz, explicou ele, era um
antigo uso do sertão; servia para mostrar ao viajante o lugar onde fora alguém
assassinado e fazê-lo rezar pela alma da vítima, como ali estava praticando
aquele homem.
E apontou para o guia, que, terminada a sua oração,
levantou-se e foi colher um ramo de murta, que depôs aos pés da cruz.
Raimundo sentia-se comovido. Manuel, de joelhos,
cabeça baixa e chapéu pendurado das mãos postas, rezava convictamente. Ao
terminar surpreendeu-se por saber que Raimundo não tencionava fazer o mesmo.
— O quê? Pois então o senhor não reza?...
— Não. Vamos?
— Ora! essa cá me fica!... Então qual é a sua
religião? Como adora o senhor a Deus?
— Ora, senhor Manuel, deixemo-nos disso;
conversemos sobre outra coisa...
— Não! queria só que o senhor me dissesse como
adora a Deus! — Deixe-se disso homem, deixe Deus em paz! Ora para que lhe havia
de dar!...
— Mas, nesse caso, o senhor não tem religião!
— Tenho, tenho...
— Pois não parece!... Pelo menos neo devia fazer
tão pouco caso das rezas, que nos foram ensinadas pelos apóstolos de Nosso
Senhor Jesus Cristo!...
Raimundo não pôde conter uma risada, e, como o
outro se formalizara, acrescentou em tom sério "que não desdenhava da
religião, que a julgava até indispensável como elemento regulador da sociedade.
Afiançou que admirava a natureza e rendia-lhe o seu culto, procurando estudá-la
e conhecê-la nas suas leis e nos seus fenômenos, acompanhando os homens de
ciência nas suas investigações, fazendo, enfim, o possível para ser útil aos
seus semelhantes, tendo sempre por base a honestidade dos próprios atos".
Montaram de novo e puseram-se a caminho. Uma
cerrada conversa travou-se entre eles a respeito de crenças religiosas;
Raimundo mostrava-se indulgente com o companheiro, mas aborrecia-se,
intimamente revoltado por ter de aturá-lo. Da religião passaram a tratar de outras
coisas, a que o moço ia respondendo por comprazer; afinal veio à baía a
escravatura e Manuel tentou defendê-la; o outro perdeu a paciência, exaltou-se
e apostrofou contra ela e contra os que a exerciam, com palavras tão duras e
tão sinceras, que o negociante se calou, meio enfiado. Entretanto, o guia
cavalgava na frente, distraído, cantando para matar o tempo:
"Você diz que amor não dói No fundo do
coração!... Queira bem e uiva ausente... Me dirá se dói ou não!..."
Caminharam meia hora em silêncio. O dia declinava,
os primeiros sintomas da noite levantavam-se da tenra, como um perfume negro,
as aves refugiavam-se no seio embalsamado da floresta; a viração fresca da
tarde eriçava os leques das palmeiras, enchendo os ares de um doce murmúrio
voluptuoso.
— Tenho pairado tanto, disse por fim Raimundo com
certa perplexidade, e todavia não tratei do que mais me interessa ..
— Como assim?...
— Lembra-se o senhor que, outro dia, pedi-lhe uma
conferência em seu escritório, e, ou porque o meu amigo se esquecesse, ou
porque mesmo não houvesse ocasião, o certo é que não chegamos a falar, e no
entanto, o assunto é de suma importância para ambos nós...
— E o que vem a ser?
— E um grande favor, que tenho a pedir-lhe...
Manoel abaixou a cabeça, contrafazendo o embaraço
em que se via.
— Trata-se de alguma questão comercial?...
perguntou.
— Não senhor; trata-se de minha felicidade... — E a
mão de minha filha que deseja pedir?
— É...
— Então... tenha a bondade de desistir do pedido...
— Por quê?
— Para poupar-me o desgosto de uma recusa...
— Como?!...
— É natural que o senhor se espante, concordo;
dou-lhe toda a razão; está no seu direito! O senhor é um homem de bem, é
inteligente, tem o seu saber, que ninguém lho tira, e virá sem dúvida a conquistar
uma bonita posição, mas...
— Mas... Mas, o que?
— Desculpe-me, se o ofende tal recusa de minha
parte, mas creia, ainda mesmo que eu quisesse, não podia fazer-lhe a vontade...
— Está já comprometida talvez... Bem! Nesse caso,
esperarei... Resta-me ainda a esperança!...
— Não é isso... E peço-lhe que não insista.
— Não quer separar-se da menina?
— Oh! O senhor maritiza-me!...
— Também não é?... Então que diabo! Terei, sem
saber, alguma divida de meu pai, que haja de rebentar por ai, como uma
bomba?...
— Que lembrança! Se assim fosse eu seria um
criminoso em não o ter nunca prevenido. O que o senhor possui está limpo e
seguro! Presto contas quando quiser!...
— Ah! já sei... tomou Raimundo com um vislumbre,
rindo. Não quer dar sua filha a um homem de idéias tão revolucionárias?...
— Não! não é isso! E fiquemos aqui! Sei que o
senhor tem direito a uma explicação, mas acredite que, apesar da minha boa
vontade, não a possa dar...
— Ora esta! Mas então por que é?...
— Não posso dizer nada, repito! E peço-lhe de novo
que não insista... Esta posição é para mim um sacrifício penoso, creia!
— De sorte que o senhor me recusa a mão de sua
filha? Definitivamente?!
— Sinto muito, porém... definitivamente...
Calaam-se ambos, e não trocaram mais palavra até à
fazenda do Cancela.
11
Quando chegaram ao portão da fazenda, já a lua
resplandecia, desenhando ao longo da eira a sombra espichada de enormes
macajubeiras sussurrantes. Fazia um tempo magnífico, seco, fresco, transparente;
podia ler-se ao luar.
O guia sacudiu com vigor a campainha e gritou:
— O de casa!
Seguiu-se uma algazarra de cães. Veio abrir um
preto, munido de um tição, que trazia sempre em movimento, para conservá-lo
aceso.
— Boa noite, tio velho! disse Manuel.
— D'es-b'a-noite, branco! respondeu o negro.
E, segurando a brida do cavalo, conduziu com este o
cavaleiro até a casa.
Raimundo e o guia seguiram atrás. De longe,
avistaram logo uma parede rebocada, disforme, que ao luar se afigurava um lago
entre árvores. Mais perto, o lago se transformou num sobrado e os viajantes
descobriram uma porta, em cujo esvazamento se desenhara o vulto varonil do
Cancela, que detinha dois formidáveis rafeiros.
— Ora viva! gritou o dono da casa. E, voltando-se
para os cães, que insistiam em ladrar: Safa, Rompe-Nuvens! Arreda,
Quebra-Ferros!
Os cães rosnaram amigavelmente, e o fazendeiro, com
sua voz forte, de pulmões enxutos, gritou para Manuel:
— Então sempre veio!.. Pois olhe, cuidei que desta
vez fizesse como das outras!... Enfim, como vai essa católica?
— Assim, assim, um pouco moído da viagem... disse
Manuel, entregando o cavalo ao preto e apertando a mão do Cancela. Como lhe vão
cá os seus?
— Bons, louvado Deus. Ainda estão na Ave-Maria, mas
não devem tardar.
Efetivamente, do interior da casa um coro abafado
de vozes, que rezava cantando.
Raimundo aproximou-se, depois de apear.
— Este é o Mundico de que lhe falei! declarou
Manuel, empurrando o sobrinho para a frente.
O rapaz espantou-se com a rústica apresentação, e
muito mais, quando o roceiro, em vez de cumprimentá-lo, pôs as mãos nas
cadeiras e começou a passar-lhe uma revista de cima a baixo, como quem examina
uma criança.
— Com os diabos! exclamou, soltando uma risada.
Você e seu compadre falaram-me em um menino!... — Há doze anos!
— Olha o demo! Pois, seu Mundiquinho, aperte esta
mão, que é de um antigo amigo de seu pai, e não repare se não encontrar por
aqui o bom trato da cidade! Isto cá sempre é roga! mas vá como o outro, que
diz: "Mais vai pouca de bom coração, que muito de sovina!..."
E conduziu os hóspedes à varanda, menos o guia, que
se tinha aboletado já pelos ranchos dos pretos.
— Homem! vocês vão se assentando nessas redes! O
Pedro! vê cachimbos! Trazer a cana e o café. Ou querem antes vinho?
— Qualquer coisa serve.
— Temos aqui conhaque! ofereceu Raimundo,
apresentando um frasco que trazia a tiracolo.
— Pode fartar-se com ele! desdenhou Cancela. É
coisinha que não me entra cá no bico!
Encheram-se três copinhos de cana-capim.
— Vá lá à nossa! E venham despir-se para cear!
E conduziu-os a um quarto, destinado exclusivamente
a hóspedes.
A casa compreendia a antiga fazenda Barroso, onde
noutro tempo morou e morreu a sogra de José da Silva, e uma parte nova, feita
de pedra e cal, cujo cuidado de construção revelava a prosperidade do rendeiro.
A "casa nova", como chamavam a última
parte, compunha-se de um grande avarandado, no qual, fazendo as vezes de
cadeiras, viam-se redes armadas em todos os cantos. No centro, que é o lugar de
honra nas fazendas do Maranhão, havia um quarto espaçoso e arejado, e o mais
eram paredes sem pintura e tetos sem forro, potes de barro vermelho, vassouras
de carnaúba encostadas por aqui e por ali, selins estendidos no parapeito da
varanda; a respeito de mobília, nada mais do que uma mesa tosca e bancos
compridos de pau. O paiol da farinha era por baixo do sobrado, onde se
encontravam enormes baús, forrados de couro, com umas setenta redes destinadas
aos hóspedes. A adega ao lado do paiol. De fora ouvia-se o grunhir preguiçoso
dos porcos no chiqueiro, e do fundo do quintal, soprado pelos ventos da noite,
vinha um cheiro bom de jasmins de Caiana, lírios do Peru, resedás e manjeronas.
Quando os três voltaram do quarto, já a filha e a
mulher do fazendeiro tinham vindo da reza. Manuel apareceu enfronhado
comodamente num paletó de brim pardo e um par de tamancos. Raimundo não mudara
de roupa, apenas banhara o rosto e as mãos e penteara os cabelos. A mulher do
Cancela punha a mesa para a ceia; a filha correra a esconder-se no quarto,
espiando as visitas por detrás da porta, com vergonha de aparecer.
— Anda pra cá, Angelina! gritou o roceiro. Pareces um
bicho do mato! Nunca viste gente, rapariga?!
Foi ter com ela e obrigou-a a sair do esconderijo.
— Ora vamos! direito! Não estejas a esconder o
rosto, que neo tens de que o esconder!... Vamos!
Angelina apareceu, com muito acanhamento, e foi
cumprimentada.
— Então! ralhou o pai. É com a cabeça que se
responde?... Ah, que estas cada vez mais matuta!... Que mal te fez este pobre
cabeção para o maltratares desse modo?... Olha que o rompes, estonteada!
Angelina, muito contrafeita, abaixara o seu rosto
moreno, agora mais corado sob o frouxo do riso da encalistração que a dominava.
— Então, de que tanto ris, sua feiosa?...
Esta última palavra era uma injustiça que o Cancela
fazia à filha; Raimundo, ao apertar-lhe a mão, desenvolta e maltratada,
compreendeu logo que estava defronte de uma bonita e toleirona sertaneja,
inocente e forte como um animal do campo. Era mulher de dezoito anos; mulher,
porque tinha já o corpo em plena formatura — ombros fartos, colo cheio e braços
desenvolvidos no trabalho ao ar livre: "Boa mulher para procriar!..."
pensou ele.
— Isto que você está vendo aqui, meu amigo, é uma
sonsa!... disse o Cancela, satisfeito com o ar lisonjeiro de Raimundo. Capaz é
ela de virar esta casa de pernas pro ar! e parece que neo quebra um prato! Olhe
se a tonta já me tomou a bênção depois da reza!... Parece que empanemou com as
visitas!... Anda daí bicho brabo!
A rapariga foi beijar lhe a mão, e ele ferrou-lhe
depois uma palmada na rija almofada do quadril. &emdash;Esta disfarçada! Vá
lá! Deus te faça branca!
Por esse tempo, Manuel conversava com a esposa do
Cancela; brasileira pequenina, socada, cheia de vida, dentes magníficos, morena
e de cabelos crespos. Respirava de toda ela um ar modesto de quem gosta de
fazer bem; estava sempre à procura de alguma coisa para arrumar, muito ativa.
muito asseada e muito trabalhadeira. Na cozinha dava sota e ás a mais pintada;
sabia lavar como ninguém e assistia à roça dos pretos sem cair doente. "Era
p'r'um tudo!" diziam dela os escravos. Chamava-se Josefa, e só fora duas
vezes à cidade.
— Então! reclamou o fazendeiro, vem ou não vem essa
merenda?... olhem que os homens devem trazer o estômago na espinha, e eu não
lhes quero dar trela sem havermos manducado!
A mulher ouviu o fim da reclamação já na cozinha.
— Por que neo despiu você essas tafularias?
perguntou o dono da casa a Raimundo. Por cá ninguém olha para elas! Se quer,
ponha-se a gosto!
— Obrigado, bem sei, estou à vontade.
E conversavam, enquanto Angelina punha a mesa.
Cancela sentia-se satisfeito, loquaz; gostava de dar à língua e, quando pilhava
hóspedes que o aturassem ninguém podia com a vida dele.
Entretanto, Josefa trazia já as iguanas e os homens
dispunham-se a comer com apetite. À luz de um antigo candeeiro de querosene,
reverberava uma toalha de linho claro, onde a louça reluzia escaldada de
fresco; as garrafas brancas, cheias de vinho de caju, espalhavam em tomo de si
reflexos de ouro; uma torta de camarões estalava sua crosta de ovos; um frangão
assado tinha a imobilidade resignada de um paciente; uma cuia de farinha seca
simetrizava com outra de farinha d'agua; no centro, o travessão do arroz,
solto, alvo, erguia-se em pirâmide, enchendo o ar com o seu vapor cheiroso.
Sentia-se a gente bem ali, com aquele asseio e com
aquela franqueza rude do Cancela.
— Olé! gritou este, destapando uma fumegante
terrina de mundubés e fidalgos, temos peixe de escabeche?! Bravo! — E passando
a examinar o que mais havia: — Bravo, bravo! moquecas de sururus! Peixe
moqueado! Olhem que este não é do rio e por isso não se pilha por cá todos os
dias! Tem escamas, seu Manuel!
E enchiam-se os pratos.
— Famoso! está famoso! repetia, levando à boca
grandes colheradas.
— Então as senhoras não nos fazem companhia?...
disse Raimundo, voltando-se para as duas.
— Qual! apressou-se o fazendeiro a responder. Não
estão acostumadas com pessoas de fora... Deixei-as lá! deixe-as lá, que ao
depois se arranjarão mais à vontade! Olhe, ali a minha Eva diz que não aprecia
o seu peixinho, senão comido com a mão. Coisas de mulher! Deixe-as lá!
Contudo, Josefa veio presidir à mesa, ao lado do
marido, e informava-se do êxito dos seus quitutes.
— Não os deixe sem provarem daquela torta de
sururus, que está de encher o papo!
— Lá chegaremos! lá chegaremos! Vai apanhar mais
pimentas!
— Ó amigo entorne, sem receio! Não tenha medo que o
vinhito é fraco! — Seu Manuel! seu Mundico! topemos à memória do velho amigo
José da Silva!
Os três beberam, e Cancela, depois de pousar o copo
vazio, acrescentou com respeito, limpando a boca nas costas da mão:
— Foi um meu segundo pai!... Quando arribei por
estas tenras, no tempo da minha defunta patroa, D Úrsula Santiago não tinha de
meu mais do que saúde força e boa vontade! Pois o José que então namoriscava a
filha da patroa a D. Quiterinha, meteu-me aqui, como feitor, e disse-me:
"Olha lá rapaz! encosta-te por aí, que, se souberes levar o gênio da velha
e mais o do vigário, podes até fazer fortuna! Ela tem lá uma afilhada de muita
estimação, bem prendada e de boa cabeça!..." Vou eu — fico a servir na
casa e, graças a Deus, sempre mereci a confiança de D. Úrsula. De noite vinha
para a varanda conversar com ela junto com a minha Josefa, que nesse tempo era
uma tetéia que se podia ver! O certo é que, ao fim de dois anos, casava-nos o
senhor padre Diogo e, em boa hora o diga! tenho sido feliz, louvado o
Santíssimo! — Comeu e prosseguiu: — Já fiz esta casa em que estamos ceando,
levantei o engenho, meti braços na roga, plantei algodão, que aqui não havia, e
tenciono, se Deus quiser, fazer no seguinte ano muitas outras benfeitorias!
— Eles já quererão o café?... perguntou Josefa,
comovida com a narração do marido.
Depois do café, serviram-se de restilo de ananás e
acenderam-se os cachimbos de cabeça de barro preto e taquari de três palmos.
Gasta meia hora de palestra, Manuel queixou-se de que já não era homem para
grandes façanhas e prensava descansar o corpo.
— Pois fica o resto para amanhã! Pedro!
— Meu senhor!
— Leva essa gente para a casa dos hóspedes e
mostra-lhe o quarto que tua senhora preparou.
— Já ouvi, sim senhor.
— Então, muito boa noite!
— Até amanhã!
Manuel e Raimundo instalaram-se num quarto da casa
velha, outrora morada da sogra de José da Silva; esta parte, ao contrário da
outra era um sobrado silencioso e triste, que só respirava abandono e
decrepitude.
Em breve o negociante ressonava; ao passo que o
rapaz, estendido numa rede olhava pela janela o céu afogado em luar, passando
mentalmente revista ao que fizera o dia. Os acontecimentos desfilaram no seu
espírito em uma procissão vertiginosa e extravagante: vinha na frente o pedido
da mão de Ana Rosa de braço dado à recusa; logo atrás o portuguesinho da vila
passava cantando, com um galho de arruda na mão:
Por São Brás! Por São Jesus! Passo aqui Sem levar
cruz!
E seguia-se uma infinidade de imagens fantásticas:
o pássaro negro cantando a finados, a feiticeira que se transformava em ossos;
e seguia-se o cônego Diogo, remoçado, cercando de desvelos a sogra de José da
Silva formada imaginariamente pelo tipo de Mana Bárbara.
E Raimundo sem poder conciliar o sono, demorava-se
até a pensar em coisas de todo indiferentes: o guia, preguiçoso e tristonho, a
cantar no seu falsete de mulher; uma fazenda que encontraram, em que havia um
homem muito gordo e idiota; as ruínas de uma casa, que de longe lhe pareceu à
primeira vista uma fortaleza bombardeada, e assim, mi! outros assuntos vagos e
sem interesse, vinham-lhe à memória com insistência aborrecida. Afinal, chegou
a vontade de dormir; mas a recusa de Manuel! apresentou-se de novo e a vontade
fugiu espantada. "Por que seria que aquele homem e negou tão formalmente a
mão da filha?... Ora! com certeza por qualquer tolice, e nem valia a pena
preocupar-se com semelhante futilidade! Amanha! amanhã! calculava ele, saberia
tudo!. . E tinha até vontade de rir pelo ar grave com que o fio lhe respondera.
Ora! no fim de contas não passava de alguma criancice do Manuel!... Ou, quem
sabia lá? alguma intriga!... Sim! Bem podia ser!... No Maranhão o espírito de
bisbilhotice ia muito longe! E não havia de ser outra coisa! Uma intriga! Mas
que intriga? Ah! ele descobriria tudo! olá! Ficaria tudo em pratos limpos. Nada
de desanimar!..." E, sem saber por quê reconhecia-se muito mais empenhado
naquele casamento desejava-o muito mais depois da resistência aposta ao seu
pedido; a recusa de Manuel vinha dar-lhe a medida do verdadeiro apreço em que
tinha Ana Rosa. Ate ali julgava que aquele casamento dependia dele somente e
preparava-se frio sem entusiasmo, quase fazendo sacrifício: e agora, depois do
insucesso do seu pedido, eis que o desejava com ardor. Aquela recusa inesperada
era para Ana Rosa o que um fundo negro é para uma estátua de mármore fazia
destacar melhor a harmonia das linhas a alvura da pedra e a perfeição do
contorno. E Raimundo procurando medir a extensão do seu amor por ela, topava de
surpresa em surpresa, de sobressalto em sobressalto, pasmado do que descobria
em si mesmo, espantando-se com os próprios raciocínios, como se foram
apresentados por um estranho, chegando às vezes a não compreendê-los bem e
fugindo de esmerilhá-los, com medo de concluir que estava deveras apaixonado.
Nesta duplicidade de sentimentos, seu espírito passeava-lhe no cérebro às
apalpadelas, como quem anda às escuras num quarto alheio e desconhecido.
— E que tal?... monologava. Não é que estou há duas
horas a pensar nisto?...
E não podia convencer-se de que ligava tão séria
importância àquele casamento, procurando até capacitar-se de que tentara
realizá-lo por uma espécie de compassiva indulgência para com Ana Rosa;
entretanto, revolucionava-se todo só com a idéia de não levá-lo a efeito.
"Ora adeus! também não morreria de desgosto por isso!... Não faltava bons
partidos para fazer família!... dispor-se a procurar noiva!... Sim, nem lhe
ficava bem insistir no projeto de casar com a prima!... No fim de contas aquela
recusa grosseira, seca, o ofendia!... decerto que o ofendia!... Não! não devia
pensar, nem por sombras, em semelhante asneira!... definitivamente não casaria
com Ana Rosa!... Com qualquer, menos com ela! Nada! Como não, se aquilo já era
uma questão de brios?..." Mas com este propósito, voltava-lhe, de um modo
mais claro e positivo, uma grande admiração pelos encantos da rapariga, e um
surdo pesar dissimulado, um desgosto hipócrita, de não poder possuí-la.
Manuel, a poucos passos, roncava com insistência
incômoda; Raimundo, depois de virar-se muitas vezes na rede, ergueu-se
fatigado, acendeu um charuto e saiu para a varanda. Um morcego, na curva do
vôo, rogou-lhe com a ponta da asa, pelo rosto.
O luar entrava sem obstáculo ate à porta do quarto
e estendia no chão uma luz branca. Raimundo encostou-se ao parapeito da varanda
e ficou a percorrer com o olhar cansado a funda paisagem que se esbatia nas
meias-tintas do horizonte como um desenho a pastei. O silêncio era completo; de
repente, porém, a uma nota harmoniosa de contralto sucederam-se outras,
prolongadas e tristes, terminando em gemidos.
O rapaz impressionou-se o canto parecia vir de uma
árvore fronteira a casa. Dir-se-ia uma voz de mulher e tinha uma melodia
esquisita e monótona.
Era o canto da mãe-da-lua. O pássaro levantou vôo,
e Raimundo o viu então perfeitamente, de asas brancas abertas, a distanciar
seus gorjeios pelo espaço. Considerou de si para si que os sertanejos tinham
toda a razão nos seus medos legendários e nas suas crenças fabulosas. Ele, se
ouvisse aquilo em São Brás lembrar-se-ia logo, com certeza, do tal pássaro que
canta a finados. "Segundo a indicação do guia, continuava a pensar, a
tapera amaldiçoada ficava justamente para o lado que tomara a mãe-da-lua. Devia
ser naquelas baixas, que dali se viam. Não podia ser muito longe, e ele seria
capaz de lá ir sozinho..." Veio distraí-lo destas considerações um frouxo
vozear misterioso, que lhe chegava aos ouvidos de um modo mal balbuciado e
quase indistingüível. Prestou toda a atenção e convenceu-se de que alguém contou
toda a atenção e convenceu-se de que alguém conversava ou monologava em voz
baixa por ali perto. Quedou-se imóvel a escutar. "Não havia dúvida! Desta
vez ouvira distintamente! Chegara a apanhar uma ou outra palavra! Mas, onde
diabo seria aquilo?..."
Foi ao quarto de Manuel, o bom homem dormia como
uma criança; agora associava em vez de ressonar. Atravessou pé ante pé a
varanda inteira— nada descobriu; voltou pelo lado oposto ao luar— ainda nada!
"Seria lã embaixo?..." Desceu, mas deixou de ouvir o sussurro.
"Ora esta!... A coisa era lá mesmo em cima!... Mas em cima não havia
outros hóspedes, além dele e Manuel, dissera-lhe 0 Cancela!..." Tornou a
subir, mas desta vez pela escada do fundo. "Oh! agora a coisa estava mais
clara." Raimundo ouviu frases inteiras, e queixas, lamentações, palavras
soltas, ora de revolta, ora de ternura. "Era de enlouquecer!... Quem diabo
estaria ali falando?..."
— Quem está ai?! gritou ele, no último lance da
varanda, com a voz um pouco alterada.
Ninguém respondeu, e o murmúrio misterioso caiou-se
logo. Raimundo esperava todavia, possuído já de certa impaciência nervosa e com
o ouvido ainda impressionado do estranho efeito da sua própria voz a perguntar
no silêncio: "Quem está ai?" Decorreu um espaço que lhe pareceu infinito,
e afinal reapareceu o vozear, agora porém muito
mais afastado, vindo do lado contrário ao lado em
que ele estava. Encaminhou-se, tão em silêncio lhe foi possível, na direção da
voz misteriosa, e notou satisfeito que esta ia gradualmente se alteando.
— Oh! fez Raimundo consigo, maravilhado. Tinha
ouvido bem claro o seu nome, e o de seu pai "José do Eito". Redobrou
de atenção. "Estaria sonhando? Aquela vez infernal falava dubiamente de
São Brás, do padre Diogo, de D. Quitéria e outras pessoas que ele não sabia
quem eram. Com certeza ia ouvir alguma coisa a respeito de — sua mãe! — Seria a
primeira vez! Oh! já não era sem tempo!..." Reprimiu a respiração; faz-se
todo ouvidos; estava trêmulo, frio, nunca sentira comoção tamanha.
Mas a voz falou, falou, referindo-se aos
acontecimentos maiores de São Brás, fazendo revelações, citando, um por um,
todos os personagens, menos a mãe de Raimundo. Este, na treva, com o coração
oprimido, estendia a cabeça, arregalava os olhos, arfando-lhe o peito. Nada.
"Que desespero!" Mas a voz prosseguia, e ele escutava. De súbito,
porém, caiou-se tudo e nada mais se ouviu que o piar longínquo das aves
noturnas.
Raimundo esperou, estático e sôfrego, dois minutos,
quatro, cinco. Foi inútil&emdash;a voz não reapareceu. "De sua mãe — nem
uma palavra!... Maldita conspiração!..." No fim de meia hora percorreu de
novo a varanda; não sabia que julgar daquilo, nem o que devia fazer, mas jurava
descobrir tudo. "Oh! quem quer que falara estava perfeitamente a par da
história de São Brás e havia de saber alguma coisa de sua vida!..." Foi à
alcova, tomou o candeeiro, deu-lhe luz, percorreu os vários lados da varanda,
entrou nos aposentos abertos, desceu, andou lã por baixo, às tontas, porque
estava tudo atravancado de coisas, tomou a subir, sem conseguir nada, e,
aborrecido, frenético, tomou ao seu quarto, diminuiu a luz e deitou-se, sem
descalçar as botas.
Não fechara a porta, de propósito; estava alerta,
ao primeiro n mor saltaria. Contudo cerrou as pálpebras; a fadiga da viagem
pedia repouso; já era quase madrugada. Ia adormecer.
Mas, um leve e surdo ruído despertara-o. Raimundo
encolheu-se na rede e insensivelmente se lembrou do revólver que tinha a seu
lado; na porta desenhava-se, contra a claridade exterior, a mais esquálida,
andrajosa e esquelética figura de mulher, que é possível imaginar. Era uma
preta alta, cadavérica, tragicamente feia, com os movimentos demorados e
sinistros, os olhos cavos, os dentes encarnados.
O rapaz, apesar da sua presença de espírito, teve
um forte sobressalto de nervos; todavia, não se mexeu, na esperança de ouvir
ainda alguma revelação; o espectro porém, olhou em torno de si, viu-o, sorriu,
e tomou a sair silenciosamente.
Raimundo levantou-se de um pulo e precipitou-se
atrás dele que fugiu na sua frente, como uma sombra. Atravessaram o primeiro
lance da varanda, o segundo e o terceiro.
O fantasma desapareceu pela porta do fundo,
Raimundo acompanhou-o com dificuldade e, ao chegar lá embaixo, avistou-o já no
pátio, a fugir-lhe sempre. O rapaz tinha contra si não conhecer o terreno; foi
às apalpadelas e aos encontrões que conseguira atravessar a parte inferior da
casa. Lá fora havia já perdido de vista a sombra fugitiva; olhou em tomo de si,
caminhou à toa de um para outro lado, nervoso, irrequieto, voltando-se rápido
ao menor mexer de galhos. Afinal, auxiliado pela lua, divisou em distancia o
vulto sinistro, que se afastava, prestes a sumir-se nas meias-tintas da noite.
Então abriu contra ele numa vertiginosa carreira de boas pernas; mas o vulto
embrenhando-se no mato, desapareceu totalmente.
Entretanto, os primeiros sintomas do dia
avermelhavam o horizonte e nos ranchos erguia-se já a escravatura para o
trabalho das roças. As poucas horas em que Raimundo encostou a cabeça. para
descansar um bocado, foram cheias de sonho.
Ao levantar-se pelas sete da manhã, aborrecido e
quase em dúvida se sonhara toda a noite ou se, com efeito, vira e ouvira o
singular espectro. Todavia, ao almoço. conversou-se alegremente sobre o fato, e
o Cancela explicou que o fantasma devia ser alguma dessas muitas pretas velhas,
agregadas aos ranchos das fazendas e que naturalmente estava bêbada. E contou
que, nas noites de&emdash;tambor — elas costumavam dormir; por ali, no
primeiro rancho encontrado em caminho. Ali mesmo havia sempre uma súcia dessas
pestes; apareciam e desapareciam, sem ninguém lhes perguntar donde vinham, nem
para onde iam.
— São escravas fugidas? indagou Raimundo.
O Cancela respondeu que não. Os mocambeiros
formavam grupo a parte; nunca apareciam publicamente, viviam escondidos nos
seus quilombos e só se mostravam na estrada real para atacar os viajantes. Os
agregados eram pretos forros, forros em geral com a morte de seus senhores, e
que habituados desde pequenos ao cativeiro não tendo já quem os obrigasse a
trabalhar e não querendo sair do sertão, ficavam por ai ao Deus dará,
pedinchando pelas fazendas um bocado de arroz para matar a tome, e um pedaço de
chão coberto para dormir; Simples vagabundos, que não faziam mal a ninguém.
— Olhe, continuou ele, de São Brás tínhamos aqui a
principio três que andavam p'r'aí sem fazer nada. Dois morreram e eu
enterrei-os, o terceiro não sei se ainda existe, é uma preta idiota. Talvez a
que o senhor doutor viu esta noite.
E, como Raimundo pedisse mais informações,
acrescentou que ela as vezes passava meses inteiros na fazenda; os pretos
gostavam de ouvi-la cantar e vê-la dançar. Doida varrida! estava sempre
resmungando ia consigo; mas que, de tempos áquela parte, não aparecia, era bem
possível que o pobre-diabo tivesse Já esticado a canela ai pelo mato.
Falou-se também da mãe-da-lua. Cancela contou
velhas anedotas de estrangeiros que se perderam nas matas, seguindo o canto
original daquele pássaro. Depois trataram de interesses; e fechou-se o negocio
da fazenda — Raimundo estava por tudo, contanto que lhe não demorassem a
partida — ardia de impaciência por visitar São Brás.
Não obstante, o Cancela instava com os dois
hóspedes para que se demorassem uma semana, ou, pelo menos, alguns dias Manual
disparatou: Que loucura! Pois ele podia lá passar dias longe do seu armazém?:..
Então que partissem pela manhã seguinte.
Nada! Havia de ser naquela mesma noite! Para que
diabo agüentar sol pelo caminho, quando tinham um luar que nem dia?...
O jantar demorava-se e Raimundo mal podia conter a
sua contrariedade. S6 às três horas da tarde conseguiram levantar acampamento.
— Leve-nos a São Brás, disse ele ao guia, logo que
se acharam fora do portão da fazenda.
— A São Brás? Deus me livre.
E o caboclo, depois de benzer-se, perguntou para
que diabo iam a São Brás.
— Ora essa! Não é de sua conta! Leve-nos!
&emdash;A São Brás não vou!
— Essa é melhor' Não vai! Então que veio você fazer
conosco senão guiar-nos?
— Sim senhor, mas é que a São Brás não vou, nem
amarrado!
— Vá para o inferno! Iremos nós! Ó se'or Manuel, o
senhor não sabe o caminho?
— Verdade, verdade, o homem não deixa de ter sua
razão! . No fim de contas que diacho vai fazer o amigo àquela tapera?...
— É boa! Ver o lugar em que nasci..
— Tem razão, mas...
— Se não quiser ir, vou só!
— Mas o senhor sabe que...
— Contam bruxarias do lugar, e há quem acredite
nelas... Faço-lhe, porém, a justiça de não supô-lo desses...
Os cavalos ganhavam a Estrada Real.
— Homem, disse Manuel, lá saber o caminho, eu sei,
e o guia, se não quisesse vir, poderia esperar-nos ao pé da cruz, mas...
confesso-lhe: tenho meu receio dos mocambeiros... além disso... quem, como eu,
ouviu as últimas palavras de meu irmão...
— De meu pai?! exclamou Raimundo vivamente. Oh!
Conte-me isso!
— O senhor há de rir-se.. São coisas que parecem
asneira... Hoje, os moços não acreditam em nada! Mas é que certas palavras, ouvidas
da boca de quem vai morrer... mexem com a gente... não acha? fazem um homem
ficar assim meio aquele! Olhe, meu amigo, eu digo-lhe aqui entre nós, e o
senhor não se mace, seu pai não teve a vidinha lá muito sossegada, não! Depois
que casou, neo se dava com pessoa alguma, e nem a própria sogra queria saber
dele... vivia como que abandonado! Eu era nesse tempo principiante no comércio
e quase que não podia arredar pé do trabalho, contudo, aqui vim três vezes;
porém creia que não gostava de cá vir!... Era uma tal tristeza!... Doía-me de
ver o José tão desprezado, tão triste, que parecia estar a cumprir uma
sentença! Viajante nenhum aceitava o pouso em São Brás; preferiam dormir; ao
relento e as cobras! Contavam que alta noite ouviam-se constantemente gritos
horríveis na fazenda, pancadas por espaço de muitas horas, correntes
arrastadas; os escravos morriam sem saber de quê! Enfim, o cônego Diogo, que
era o vigário desta freguesia, confessa que nunca lhe soube dar volta! E olhe,
coitado! meteu-se-lhe em cabeça abençoar e proteger São Brás, e quase ia sendo
vitima da sua dedicação! até ficou assim a modo de aluado! E, foi tão
perseguido por cá, que o pobre homem viu-se obrigado a abandonar a paróquia!
Ainda hoje, quando lhe toco nisso, benze-se todo! Pois pode crer o senhor que
ele era o mais íntimo amigo de meu irmão e o único talvez que ultimamente lhe
freqüentava a casa; entretanto, compreenda-se lá, seu pai, já por último não o
queria ver nem pintado! e, nos delírios das suas febres, estava sempre a ver fantasmas
e a gritar como um doido que queria dar cabo do padre! "Quero matar o
padre! — Tragam-me o padre! — O padre é que é o culpado de tudo!" Este
fulano padre era o cônego! Eu não quis nunca falar nestas coisas ao compadre,
porque, cismático como é, podia agastar-se comigo!...
E, depois de uma pausa
— Ora, já vê o meu amigo que, apesar de não
acreditar em almas do outro mundo, tenho as minhas razões para...
Raimundo procurava disfarçar a preocupação em que o
punham as palavras de Manuel, e declarou que, se este não estava disposto a ir
a São Brás, que se ficasse com o guia, ele iria só.
— Mas saiba, disse, que ao caboclo perdôo o medo,
porque enfim não está na altura de certas verdades, mas ao senhor...
— Eu neo tenho medo de coisa alguma, já disse!...
— Receia sempre que o diabo lhe saia ao encontro,
compreendo!
E o rapaz fingiu uma gargalhada, para intimidar o
companheiro.
— Não, mas é que...
— Ora deixe-se de histórias! O senhor não me parece
um homem!...
Manuel cedeu afinal, e os dois tomaram a direção da
.tapera.
Fizeram em silêncio todo o caminho; Raimundo por
muito comovido e Manuel por amedrontado.
Instintivamente, pararam em respeitável distância.
— Creio que chegamos! arriscou o moço.
E, avançando alguns passos, disse ao outro:
— Lá está ela! — Ó de casa! gritou Manuel.
Só o eco respondeu.
Adiantaram-se mais e Raimundo gritou por sua vez,
com o mesmo resultado.
— Ande, senhor Manuel! Estamos a quixotear... Aqui
não há viva alma!...
Mais alguns passos e estavam defronte da tapera.
Eram os restos de uma casa térrea, sem reboque e
cujo madeiramento de lei resistira ao seu completo abandono.
Ia anoitecer. O sol naufragava, soçobrando num
oceano de fogo e sangue; o céu reverberava como a cúpula de uma fornalha; o
campo parecia incendiado.
Como era preciso aproveitar o dia, os dois
viajantes apearam-se logo, cada qual prendeu o seu cavalo, e introduziram-se na
varanda da casa por uma brecha que cortava de alto a baixo o primeiro pano de
parede. Essa parte estava completamente arruinada e cheia de mato; os
camaleões, as osgas e as mucuras fugiam espantados pelos pés de Raimundo, que
ia galgando moitas de urtiga e capim-bravo.
Lá dentro a tapera tinha um duro aspecto
nauseabundo. Longas telas de aranha pendiam tristemente em todas as direções,
como cortina de crepe esfacelado; a água da chuva, tingida de terra vermelha,
deixara, pelas paredes, compridas lágrimas sangrentas que serpeavam entre
ninhos de cobras e lagartos; a um canto descobria-se no chão ladrilhado um
abominável instrumento de suplício, era um tronco de madeira preta, e os seus
buracos redondos, que serviam para prender as pernas, os braços ou o pescoço
dos escravos, mostravam ainda sinistras manchas arroxeadas.
Os dois seguiram adiante, penetrando o interior da
casa. Ao transporem cada porta fugia na frente deles uma nuvem negra de
morcegos e andorinhas. O solo, empastado de excremento de pássaros e répteis
era pegajoso e úmido; o telhado abria em vários pontos, chorando uma luz morna
e triste; respirava-se uma atmosfera de calabouço. De um charco vizinho a casa
palpitava, monótono como um relógio, o rouquenho coaxar das rãs. Os anus
passavam de uma para outra árvore, cortando o silêncio da tarde, com os seus
gemidos prolongados e agudíssimos; do fundo tenebroso da floresta vinham de
espaço a espaço o gargalhar das raposas, e os gritos sensuais dos macacos e
sagüins. Era já o concerto da noite.
Manuel, um tanto comovido, contemplava
demoradamente as ruínas que o cercavam, procurando descobrir naqueles restos
mudos e emporcalhados, a antiga residência de seu irmão. Nada lhe trazia à
lembrança uma nota ainda viva do passado.
— Vejamos agora por aqui... disse ele, passando,
seguido pelo sobrinho, a um quarto, cujas janelas tinham as folhas despregadas
e prestes a desabar. Era este o quarto de José...
E pôs-se a meditar.
Raimundo olhava para tudo com uma grande tristeza,
infinita, sem bordas, mas fechada que nem um horizonte de névoas. "Como
seria seu pai?..." pensava ele, sem uma palavra, como seria esse bom
homem, que nunca se descuidara da educação do pobre Raimundo?... Quantas vezes,
naquele quarto, talvez junto a uma daquelas janelas, olhando para a quinta, não
pensaria o infeliz no querido filho, que tinha tão longe dos seus afagos?... E
sua mãe?... Sua pobre mãe desconhecida, estaria ali, ao lado dele, ou, quem o
sabia? escondida, envergonhada, a chorar as faltas em algum desterro
humilhante?...
— Aqui, disse Manuel, batendo no ombro do
companheiro, nasceu o senhor, meu amigo, e viveu os seus primeiros anos...
Raimundo sentia um desejo doido de perguntar pela
mãe, mas não se achava com animo; temia agora uma inesperada decepção, uma
agonia inédita, que o esmagasse de todo; receava alguma verdade implacável e
fria, rija, de aço, que o atravessasse de lado a lado, como uma espada. Até
ali, ninguém lhe falara nela. "É que, sem duvida, havia em tudo aquilo um
segredo de família, alguma paixão vergonhosa, uma falta horrível, talvez um
crime abominável, que ninguém ousava revelar! E, no entanto, Raimundo tinha
plena certeza de que aquele homem, que ali estava em sua presença, ao alcance
de suas palavras, sabia de tudo e poderia. se quisesse, arrancá-lo para sempre
daquela maldita incerteza!.. Quem seria ela?... essa estranha mãe misteriosa,
por quem ele sentia um amor desnorteado?... Alguma senhora, bonita sem dúvida,
porque causava crimes; criminosa ela própria, por amor, a inspirar loucuras a
seu pai, a acender-lhe uma paixão fatal e romanesca, cheia de sobressaltos e de
remorsos! E desse amor secreto e criminoso, desse adultério, que sem dúvida
causou a morte de seu pai, nascera ele!... Mas, por que não lhe contavam tudo
com franqueza?... Por que não lhe diziam toda a verdade?... Oh! devia ser um
segredo infernal, para o esconderem com tamanho empenho!..." E,
acabrunhado por estes raciocínios, humilhado pela dúvida de si próprio,
miserável e triste, Raimundo percorria a casa, em silêncio.
Despertou-o de novo a voz de Manuel:
— Vamos à capela, antes que anoiteça de todo.
Entraram primeiro no cemitério. Estava arrasado.
Manuel apontou para uma velha sepultura, e disse ao outro com respeito:
— Ali está seu pai!
Raimundo chegou-se para o túmulo, descobriu-se, e
procurou ler na carneira alguma inscrição que lhe falasse do morto.
Absolutamente nada! o tempo apagara da pedra o nome de seu pai. Ali só havia um
pedaço de mármore carunchoso e negro. Deixara de ser uma tabuleta, era uma
tampa. O rapaz sentiu então, mais do que nunca, pesar-lhe dentro dalma, como uma
barra de chumbo, todo o mistério da sua vida; compreendeu que sobre esta havia
também uma pedra silenciosa e negra; compreendeu que o seu passado nada mais
era do que outra sepultura sem epitáfio.
Enovelou-se-lhe na garganta um godilhão de soluços
e Raimundo sentiu a necessidade de ajoelhar-se defronte do silêncio daquele
túmulo.
Manuel afastara-se discretamente, tossindo, para
disfarçar a sua comoção. O moço enxugava as lágrimas, agora abundantes e
fartas; depois encaminhou-se para uma outra cova mais adiante, abrigada por uma
frondosa mangueira. Estava já vazia e com a lousa fora do lugar. Naturalmente,
os parentes do cadáver haviam retirado dali os ossos para alguma igreja da
capital. A posição da lápida da árvore serviram de resguardo ao epitáfio;
Raimundo passou o lenço por ama dele e conseguiu ler o seguinte: "Aqui
jazem os restos mortais de Quitéria Inocência de Freitas Santiago, filha
extremosa, esposa exemplar; Casou em 15 de dezembro de 1845 e faleceu em 1849.
Orai por ela."
— Não há dúvida que, além de bastardo, descendi de
uma tremenda vergonha! Meu nascimento combina aproximadamente com estes
algarismos...
E, tendo monologado estas palavras, chegou ao fundo
do cemitério e achou-se defronte de uma capela. Entrou, galgando três degraus
escalavrados. Uma coruja fugiu espavorida. A luz triste da lua filtrava-se já
pelas aberturas do telhado, mas pelas janelas entrava de rojo o quente
lusco-fusco do crepúsculo. Raimundo, ao chegar à sacristia, estacou e
estremeceu todo: o vulto esquelético e andrajoso, que lhe aparecera à noite,
como um fantasma, ali estava naquela meia escuridão, a dançar uns requebros
estranhos, com os braços magros levantados sobre a cabeça. O rapaz sentiu
gelar-lhe a testa um suor frio e conservou-se estático, quase duvidoso de que
aquilo que tinha defronte de si fosse uma figura humana.
Todavia, a múmia se aproximava dele, a dar saltos,
estalando os dedos ossudos e compridos. Viam-se-lhe os dentes brancos e
descamados, os olhos a estorcerem-se-lhe convulsivamente nas órbitas profundas,
e a caveira a desenhar-se em ângulos através das carnes. Ora erguia as mãos,
descaindo a cabeça; ora fazia voltas, sapateando e dando pungas no ar.
De repente deu com Raimundo e precipitou-se para
ele de braços abertos. Na primeira impressão o rapaz recuava com repugnância,
mas, caindo logo em si, aproximou-se da louca e perguntou-lhe se conhecia quem
morara naquela fazenda.
A idiota olhou para ele, e riu-se sem responder.
— Não conheceste o José da Silva ou José do Eito?
A preta continuou a rir. Raimundo insistiu no seu
interrogatório mas sem obter resultado algum. A doida o considerava fixamente,
como que procurando reconhecer-lhe as feições; de súbito, deu um salto sobre
ele, tentando abraçá-lo; o rapaz não tivera tempo de fugir e sentiu-se em
contacto com aquele corpo repugnante. Então num assomo nervoso repeliu-a
bruscamente. Ela caiu para trás, estalando os ossos contra os tijolos do chão.
Raimundo saiu de carreira para reunir-se a Manuel,
porém a idiota alcançou-o, já no cemitério, e arremessou-se de novo contra ele.
— Não me toques! gritava o moço, com raiva,
levantando o chico
Manuel acudiu correndo:
— Não lhe bata, doutor! Não lhe bata, que é doida!
Conheço-a!
— Mas, se ela não me quer deixar!... Sai! Sai,
diabo! Olha que te
Manuel mostrava-se agoniado e surpreso.
— Já! disse ele, intimidando a louca. Já pra
dentro!
A preta retomou-se humildemente.
— Quem é ela? perguntou Raimundo, lá fora, tratando
de montar. O senhor disse que a conhecia.
— Essa pobre negra... respondeu Manuel hesitante,
foi escrava de seu pai. Vamos! E puseram-se a caminho.
11
Quando chegaram ao portão da fazenda, já a lua
resplandecia, desenhando ao longo da eira a sombra espichada de enormes macajubeiras
sussurrantes. Fazia um tempo magnífico, seco, fresco, transparente; podia
ler-se ao luar.
O guia sacudiu com vigor a campainha e gritou:
— O de casa!
Seguiu-se uma algazarra de cães. Veio abrir um
preto, munido de um tição, que trazia sempre em movimento, para conservá-lo
aceso.
— Boa noite, tio velho! disse Manuel.
— D'es-b'a-noite, branco! respondeu o negro.
E, segurando a brida do cavalo, conduziu com este o
cavaleiro até a casa.
Raimundo e o guia seguiram atrás. De longe, avistaram
logo uma parede rebocada, disforme, que ao luar se afigurava um lago entre
árvores. Mais perto, o lago se transformou num sobrado e os viajantes
descobriram uma porta, em cujo esvazamento se desenhara o vulto varonil do
Cancela, que detinha dois formidáveis rafeiros.
— Ora viva! gritou o dono da casa. E, voltando-se
para os cães, que insistiam em ladrar: Safa, Rompe-Nuvens! Arreda,
Quebra-Ferros!
Os cães rosnaram amigavelmente, e o fazendeiro, com
sua voz forte, de pulmões enxutos, gritou para Manuel:
— Então sempre veio!.. Pois olhe, cuidei que desta
vez fizesse como das outras!... Enfim, como vai essa católica?
— Assim, assim, um pouco moído da viagem... disse
Manuel, entregando o cavalo ao preto e apertando a mão do Cancela. Como lhe vão
cá os seus?
— Bons, louvado Deus. Ainda estão na Ave-Maria, mas
não devem tardar.
Efetivamente, do interior da casa um coro abafado
de vozes, que rezava cantando.
Raimundo aproximou-se, depois de apear.
— Este é o Mundico de que lhe falei! declarou
Manuel, empurrando o sobrinho para a frente.
O rapaz espantou-se com a rústica apresentação, e
muito mais, quando o roceiro, em vez de cumprimentá-lo, pôs as mãos nas
cadeiras e começou a passar-lhe uma revista de cima a baixo, como quem examina
uma criança.
— Com os diabos! exclamou, soltando uma risada.
Você e seu compadre falaram-me em um menino!... — Há doze anos!
— Olha o demo! Pois, seu Mundiquinho, aperte esta
mão, que é de um antigo amigo de seu pai, e não repare se não encontrar por
aqui o bom trato da cidade! Isto cá sempre é roga! mas vá como o outro, que
diz: "Mais vai pouca de bom coração, que muito de sovina!..."
E conduziu os hóspedes à varanda, menos o guia, que
se tinha aboletado já pelos ranchos dos pretos.
— Homem! vocês vão se assentando nessas redes! O
Pedro! vê cachimbos! Trazer a cana e o café. Ou querem antes vinho?
— Qualquer coisa serve.
— Temos aqui conhaque! ofereceu Raimundo,
apresentando um frasco que trazia a tiracolo.
— Pode fartar-se com ele! desdenhou Cancela. É
coisinha que não me entra cá no bico!
Encheram-se três copinhos de cana-capim.
— Vá lá à nossa! E venham despir-se para cear!
E conduziu-os a um quarto, destinado exclusivamente
a hóspedes.
A casa compreendia a antiga fazenda Barroso, onde
noutro tempo morou e morreu a sogra de José da Silva, e uma parte nova, feita
de pedra e cal, cujo cuidado de construção revelava a prosperidade do rendeiro.
A "casa nova", como chamavam a última
parte, compunha-se de um grande avarandado, no qual, fazendo as vezes de
cadeiras, viam-se redes armadas em todos os cantos. No centro, que é o lugar de
honra nas fazendas do Maranhão, havia um quarto espaçoso e arejado, e o mais
eram paredes sem pintura e tetos sem forro, potes de barro vermelho, vassouras
de carnaúba encostadas por aqui e por ali, selins estendidos no parapeito da
varanda; a respeito de mobília, nada mais do que uma mesa tosca e bancos
compridos de pau. O paiol da farinha era por baixo do sobrado, onde se
encontravam enormes baús, forrados de couro, com umas setenta redes destinadas
aos hóspedes. A adega ao lado do paiol. De fora ouvia-se o grunhir preguiçoso
dos porcos no chiqueiro, e do fundo do quintal, soprado pelos ventos da noite,
vinha um cheiro bom de jasmins de Caiana, lírios do Peru, resedás e manjeronas.
Quando os três voltaram do quarto, já a filha e a
mulher do fazendeiro tinham vindo da reza. Manuel apareceu enfronhado
comodamente num paletó de brim pardo e um par de tamancos. Raimundo não mudara
de roupa, apenas banhara o rosto e as mãos e penteara os cabelos. A mulher do
Cancela punha a mesa para a ceia; a filha correra a esconder-se no quarto,
espiando as visitas por detrás da porta, com vergonha de aparecer.
— Anda pra cá, Angelina! gritou o roceiro. Pareces
um bicho do mato! Nunca viste gente, rapariga?!
Foi ter com ela e obrigou-a a sair do esconderijo.
— Ora vamos! direito! Não estejas a esconder o
rosto, que neo tens de que o esconder!... Vamos!
Angelina apareceu, com muito acanhamento, e foi
cumprimentada.
— Então! ralhou o pai. É com a cabeça que se
responde?... Ah, que estas cada vez mais matuta!... Que mal te fez este pobre
cabeção para o maltratares desse modo?... Olha que o rompes, estonteada!
Angelina, muito contrafeita, abaixara o seu rosto
moreno, agora mais corado sob o frouxo do riso da encalistração que a dominava.
— Então, de que tanto ris, sua feiosa?...
Esta última palavra era uma injustiça que o Cancela
fazia à filha; Raimundo, ao apertar-lhe a mão, desenvolta e maltratada,
compreendeu logo que estava defronte de uma bonita e toleirona sertaneja,
inocente e forte como um animal do campo. Era mulher de dezoito anos; mulher,
porque tinha já o corpo em plena formatura — ombros fartos, colo cheio e braços
desenvolvidos no trabalho ao ar livre: "Boa mulher para procriar!..."
pensou ele.
— Isto que você está vendo aqui, meu amigo, é uma
sonsa!... disse o Cancela, satisfeito com o ar lisonjeiro de Raimundo. Capaz é
ela de virar esta casa de pernas pro ar! e parece que neo quebra um prato! Olhe
se a tonta já me tomou a bênção depois da reza!... Parece que empanemou com as
visitas!... Anda daí bicho brabo!
A rapariga foi beijar lhe a mão, e ele ferrou-lhe
depois uma palmada na rija almofada do quadril. &emdash;Esta disfarçada! Vá
lá! Deus te faça branca!
Por esse tempo, Manuel conversava com a esposa do
Cancela; brasileira pequenina, socada, cheia de vida, dentes magníficos, morena
e de cabelos crespos. Respirava de toda ela um ar modesto de quem gosta de
fazer bem; estava sempre à procura de alguma coisa para arrumar, muito ativa.
muito asseada e muito trabalhadeira. Na cozinha dava sota e ás a mais pintada;
sabia lavar como ninguém e assistia à roça dos pretos sem cair doente.
"Era p'r'um tudo!" diziam dela os escravos. Chamava-se Josefa, e só
fora duas vezes à cidade.
— Então! reclamou o fazendeiro, vem ou não vem essa
merenda?... olhem que os homens devem trazer o estômago na espinha, e eu não
lhes quero dar trela sem havermos manducado!
A mulher ouviu o fim da reclamação já na cozinha.
— Por que neo despiu você essas tafularias?
perguntou o dono da casa a Raimundo. Por cá ninguém olha para elas! Se quer,
ponha-se a gosto!
— Obrigado, bem sei, estou à vontade.
E conversavam, enquanto Angelina punha a mesa.
Cancela sentia-se satisfeito, loquaz; gostava de dar à língua e, quando pilhava
hóspedes que o aturassem ninguém podia com a vida dele.
Entretanto, Josefa trazia já as iguanas e os homens
dispunham-se a comer com apetite. À luz de um antigo candeeiro de querosene,
reverberava uma toalha de linho claro, onde a louça reluzia escaldada de
fresco; as garrafas brancas, cheias de vinho de caju, espalhavam em tomo de si
reflexos de ouro; uma torta de camarões estalava sua crosta de ovos; um frangão
assado tinha a imobilidade resignada de um paciente; uma cuia de farinha seca
simetrizava com outra de farinha d'agua; no centro, o travessão do arroz,
solto, alvo, erguia-se em pirâmide, enchendo o ar com o seu vapor cheiroso.
Sentia-se a gente bem ali, com aquele asseio e com
aquela franqueza rude do Cancela.
— Olé! gritou este, destapando uma fumegante
terrina de mundubés e fidalgos, temos peixe de escabeche?! Bravo! — E passando
a examinar o que mais havia: — Bravo, bravo! moquecas de sururus! Peixe
moqueado! Olhem que este não é do rio e por isso não se pilha por cá todos os
dias! Tem escamas, seu Manuel!
E enchiam-se os pratos.
— Famoso! está famoso! repetia, levando à boca
grandes colheradas.
— Então as senhoras não nos fazem companhia?...
disse Raimundo, voltando-se para as duas.
— Qual! apressou-se o fazendeiro a responder. Não
estão acostumadas com pessoas de fora... Deixei-as lá! deixe-as lá, que ao
depois se arranjarão mais à vontade! Olhe, ali a minha Eva diz que não aprecia
o seu peixinho, senão comido com a mão. Coisas de mulher! Deixe-as lá!
Contudo, Josefa veio presidir à mesa, ao lado do
marido, e informava-se do êxito dos seus quitutes.
— Não os deixe sem provarem daquela torta de
sururus, que está de encher o papo!
— Lá chegaremos! lá chegaremos! Vai apanhar mais
pimentas!
— Ó amigo entorne, sem receio! Não tenha medo que o
vinhito é fraco! — Seu Manuel! seu Mundico! topemos à memória do velho amigo
José da Silva!
Os três beberam, e Cancela, depois de pousar o copo
vazio, acrescentou com respeito, limpando a boca nas costas da mão:
— Foi um meu segundo pai!... Quando arribei por
estas tenras, no tempo da minha defunta patroa, D Úrsula Santiago não tinha de
meu mais do que saúde força e boa vontade! Pois o José que então namoriscava a
filha da patroa a D. Quiterinha, meteu-me aqui, como feitor, e disse-me:
"Olha lá rapaz! encosta-te por aí, que, se souberes levar o gênio da velha
e mais o do vigário, podes até fazer fortuna! Ela tem lá uma afilhada de muita
estimação, bem prendada e de boa cabeça!..." Vou eu — fico a servir na
casa e, graças a Deus, sempre mereci a confiança de D. Úrsula. De noite vinha
para a varanda conversar com ela junto com a minha Josefa, que nesse tempo era
uma tetéia que se podia ver! O certo é que, ao fim de dois anos, casava-nos o
senhor padre Diogo e, em boa hora o diga! tenho sido feliz, louvado o
Santíssimo! — Comeu e prosseguiu: — Já fiz esta casa em que estamos ceando,
levantei o engenho, meti braços na roga, plantei algodão, que aqui não havia, e
tenciono, se Deus quiser, fazer no seguinte ano muitas outras benfeitorias!
— Eles já quererão o café?... perguntou Josefa,
comovida com a narração do marido.
Depois do café, serviram-se de restilo de ananás e
acenderam-se os cachimbos de cabeça de barro preto e taquari de três palmos.
Gasta meia hora de palestra, Manuel queixou-se de que já não era homem para
grandes façanhas e prensava descansar o corpo.
— Pois fica o resto para amanhã! Pedro!
— Meu senhor!
— Leva essa gente para a casa dos hóspedes e
mostra-lhe o quarto que tua senhora preparou.
— Já ouvi, sim senhor.
— Então, muito boa noite!
— Até amanhã!
Manuel e Raimundo instalaram-se num quarto da casa
velha, outrora morada da sogra de José da Silva; esta parte, ao contrário da
outra era um sobrado silencioso e triste, que só respirava abandono e
decrepitude.
Em breve o negociante ressonava; ao passo que o
rapaz, estendido numa rede olhava pela janela o céu afogado em luar, passando
mentalmente revista ao que fizera o dia. Os acontecimentos desfilaram no seu
espírito em uma procissão vertiginosa e extravagante: vinha na frente o pedido
da mão de Ana Rosa de braço dado à recusa; logo atrás o portuguesinho da vila
passava cantando, com um galho de arruda na mão:
Por São Brás! Por São Jesus! Passo aqui Sem levar
cruz!
E seguia-se uma infinidade de imagens fantásticas:
o pássaro negro cantando a finados, a feiticeira que se transformava em ossos;
e seguia-se o cônego Diogo, remoçado, cercando de desvelos a sogra de José da
Silva formada imaginariamente pelo tipo de Mana Bárbara.
E Raimundo sem poder conciliar o sono, demorava-se
até a pensar em coisas de todo indiferentes: o guia, preguiçoso e tristonho, a
cantar no seu falsete de mulher; uma fazenda que encontraram, em que havia um
homem muito gordo e idiota; as ruínas de uma casa, que de longe lhe pareceu à
primeira vista uma fortaleza bombardeada, e assim, mi! outros assuntos vagos e
sem interesse, vinham-lhe à memória com insistência aborrecida. Afinal, chegou
a vontade de dormir; mas a recusa de Manuel! apresentou-se de novo e a vontade
fugiu espantada. "Por que seria que aquele homem e negou tão formalmente a
mão da filha?... Ora! com certeza por qualquer tolice, e nem valia a pena
preocupar-se com semelhante futilidade! Amanha! amanhã! calculava ele, saberia
tudo!. . E tinha até vontade de rir pelo ar grave com que o fio lhe respondera.
Ora! no fim de contas não passava de alguma criancice do Manuel!... Ou, quem
sabia lá? alguma intriga!... Sim! Bem podia ser!... No Maranhão o espírito de
bisbilhotice ia muito longe! E não havia de ser outra coisa! Uma intriga! Mas
que intriga? Ah! ele descobriria tudo! olá! Ficaria tudo em pratos limpos. Nada
de desanimar!..." E, sem saber por quê reconhecia-se muito mais empenhado
naquele casamento desejava-o muito mais depois da resistência aposta ao seu
pedido; a recusa de Manuel vinha dar-lhe a medida do verdadeiro apreço em que
tinha Ana Rosa. Ate ali julgava que aquele casamento dependia dele somente e
preparava-se frio sem entusiasmo, quase fazendo sacrifício: e agora, depois do
insucesso do seu pedido, eis que o desejava com ardor. Aquela recusa inesperada
era para Ana Rosa o que um fundo negro é para uma estátua de mármore fazia
destacar melhor a harmonia das linhas a alvura da pedra e a perfeição do
contorno. E Raimundo procurando medir a extensão do seu amor por ela, topava de
surpresa em surpresa, de sobressalto em sobressalto, pasmado do que descobria
em si mesmo, espantando-se com os próprios raciocínios, como se foram
apresentados por um estranho, chegando às vezes a não compreendê-los bem e
fugindo de esmerilhá-los, com medo de concluir que estava deveras apaixonado.
Nesta duplicidade de sentimentos, seu espírito passeava-lhe no cérebro às
apalpadelas, como quem anda às escuras num quarto alheio e desconhecido.
— E que tal?... monologava. Não é que estou há duas
horas a pensar nisto?...
E não podia convencer-se de que ligava tão séria
importância àquele casamento, procurando até capacitar-se de que tentara
realizá-lo por uma espécie de compassiva indulgência para com Ana Rosa;
entretanto, revolucionava-se todo só com a idéia de não levá-lo a efeito.
"Ora adeus! também não morreria de desgosto por isso!... Não faltava bons
partidos para fazer família!... dispor-se a procurar noiva!... Sim, nem lhe
ficava bem insistir no projeto de casar com a prima!... No fim de contas aquela
recusa grosseira, seca, o ofendia!... decerto que o ofendia!... Não! não devia
pensar, nem por sombras, em semelhante asneira!... definitivamente não casaria
com Ana Rosa!... Com qualquer, menos com ela! Nada! Como não, se aquilo já era
uma questão de brios?..." Mas com este propósito, voltava-lhe, de um modo
mais claro e positivo, uma grande admiração pelos encantos da rapariga, e um
surdo pesar dissimulado, um desgosto hipócrita, de não poder possuí-la.
Manuel, a poucos passos, roncava com insistência
incômoda; Raimundo, depois de virar-se muitas vezes na rede, ergueu-se fatigado,
acendeu um charuto e saiu para a varanda. Um morcego, na curva do vôo,
rogou-lhe com a ponta da asa, pelo rosto.
O luar entrava sem obstáculo ate à porta do quarto
e estendia no chão uma luz branca. Raimundo encostou-se ao parapeito da varanda
e ficou a percorrer com o olhar cansado a funda paisagem que se esbatia nas
meias-tintas do horizonte como um desenho a pastei. O silêncio era completo; de
repente, porém, a uma nota harmoniosa de contralto sucederam-se outras,
prolongadas e tristes, terminando em gemidos.
O rapaz impressionou-se o canto parecia vir de uma
árvore fronteira a casa. Dir-se-ia uma voz de mulher e tinha uma melodia
esquisita e monótona.
Era o canto da mãe-da-lua. O pássaro levantou vôo,
e Raimundo o viu então perfeitamente, de asas brancas abertas, a distanciar
seus gorjeios pelo espaço. Considerou de si para si que os sertanejos tinham
toda a razão nos seus medos legendários e nas suas crenças fabulosas. Ele, se
ouvisse aquilo em São Brás lembrar-se-ia logo, com certeza, do tal pássaro que
canta a finados. "Segundo a indicação do guia, continuava a pensar, a
tapera amaldiçoada ficava justamente para o lado que tomara a mãe-da-lua. Devia
ser naquelas baixas, que dali se viam. Não podia ser muito longe, e ele seria
capaz de lá ir sozinho..." Veio distraí-lo destas considerações um frouxo
vozear misterioso, que lhe chegava aos ouvidos de um modo mal balbuciado e
quase indistingüível. Prestou toda a atenção e convenceu-se de que alguém
contou toda a atenção e convenceu-se de que alguém conversava ou monologava em
voz baixa por ali perto. Quedou-se imóvel a escutar. "Não havia dúvida!
Desta vez ouvira distintamente! Chegara a apanhar uma ou outra palavra! Mas,
onde diabo seria aquilo?..."
Foi ao quarto de Manuel, o bom homem dormia como
uma criança; agora associava em vez de ressonar. Atravessou pé ante pé a
varanda inteira— nada descobriu; voltou pelo lado oposto ao luar— ainda nada!
"Seria lã embaixo?..." Desceu, mas deixou de ouvir o sussurro.
"Ora esta!... A coisa era lá mesmo em cima!... Mas em cima não havia
outros hóspedes, além dele e Manuel, dissera-lhe 0 Cancela!..." Tornou a
subir, mas desta vez pela escada do fundo. "Oh! agora a coisa estava mais
clara." Raimundo ouviu frases inteiras, e queixas, lamentações, palavras
soltas, ora de revolta, ora de ternura. "Era de enlouquecer!... Quem diabo
estaria ali falando?..."
— Quem está ai?! gritou ele, no último lance da
varanda, com a voz um pouco alterada.
Ninguém respondeu, e o murmúrio misterioso caiou-se
logo. Raimundo esperava todavia, possuído já de certa impaciência nervosa e com
o ouvido ainda impressionado do estranho efeito da sua própria voz a perguntar
no silêncio: "Quem está ai?" Decorreu um espaço que lhe pareceu
infinito, e afinal reapareceu o vozear, agora porém muito
mais afastado, vindo do lado contrário ao lado em
que ele estava. Encaminhou-se, tão em silêncio lhe foi possível, na direção da
voz misteriosa, e notou satisfeito que esta ia gradualmente se alteando.
— Oh! fez Raimundo consigo, maravilhado. Tinha
ouvido bem claro o seu nome, e o de seu pai "José do Eito". Redobrou
de atenção. "Estaria sonhando? Aquela vez infernal falava dubiamente de
São Brás, do padre Diogo, de D. Quitéria e outras pessoas que ele não sabia
quem eram. Com certeza ia ouvir alguma coisa a respeito de — sua mãe! — Seria a
primeira vez! Oh! já não era sem tempo!..." Reprimiu a respiração; faz-se
todo ouvidos; estava trêmulo, frio, nunca sentira comoção tamanha.
Mas a voz falou, falou, referindo-se aos
acontecimentos maiores de São Brás, fazendo revelações, citando, um por um,
todos os personagens, menos a mãe de Raimundo. Este, na treva, com o coração
oprimido, estendia a cabeça, arregalava os olhos, arfando-lhe o peito. Nada.
"Que desespero!" Mas a voz prosseguia, e ele escutava. De súbito,
porém, caiou-se tudo e nada mais se ouviu que o piar longínquo das aves
noturnas.
Raimundo esperou, estático e sôfrego, dois minutos,
quatro, cinco. Foi inútil&emdash;a voz não reapareceu. "De sua mãe — nem
uma palavra!... Maldita conspiração!..." No fim de meia hora percorreu de
novo a varanda; não sabia que julgar daquilo, nem o que devia fazer, mas jurava
descobrir tudo. "Oh! quem quer que falara estava perfeitamente a par da
história de São Brás e havia de saber alguma coisa de sua vida!..." Foi à
alcova, tomou o candeeiro, deu-lhe luz, percorreu os vários lados da varanda,
entrou nos aposentos abertos, desceu, andou lã por baixo, às tontas, porque
estava tudo atravancado de coisas, tomou a subir, sem conseguir nada, e,
aborrecido, frenético, tomou ao seu quarto, diminuiu a luz e deitou-se, sem
descalçar as botas.
Não fechara a porta, de propósito; estava alerta,
ao primeiro n mor saltaria. Contudo cerrou as pálpebras; a fadiga da viagem
pedia repouso; já era quase madrugada. Ia adormecer.
Mas, um leve e surdo ruído despertara-o. Raimundo
encolheu-se na rede e insensivelmente se lembrou do revólver que tinha a seu
lado; na porta desenhava-se, contra a claridade exterior, a mais esquálida,
andrajosa e esquelética figura de mulher, que é possível imaginar. Era uma
preta alta, cadavérica, tragicamente feia, com os movimentos demorados e
sinistros, os olhos cavos, os dentes encarnados.
O rapaz, apesar da sua presença de espírito, teve
um forte sobressalto de nervos; todavia, não se mexeu, na esperança de ouvir
ainda alguma revelação; o espectro porém, olhou em torno de si, viu-o, sorriu,
e tomou a sair silenciosamente.
Raimundo levantou-se de um pulo e precipitou-se
atrás dele que fugiu na sua frente, como uma sombra. Atravessaram o primeiro
lance da varanda, o segundo e o terceiro.
O fantasma desapareceu pela porta do fundo,
Raimundo acompanhou-o com dificuldade e, ao chegar lá embaixo, avistou-o já no
pátio, a fugir-lhe sempre. O rapaz tinha contra si não conhecer o terreno; foi
às apalpadelas e aos encontrões que conseguira atravessar a parte inferior da
casa. Lá fora havia já perdido de vista a sombra fugitiva; olhou em tomo de si,
caminhou à toa de um para outro lado, nervoso, irrequieto, voltando-se rápido
ao menor mexer de galhos. Afinal, auxiliado pela lua, divisou em distancia o
vulto sinistro, que se afastava, prestes a sumir-se nas meias-tintas da noite.
Então abriu contra ele numa vertiginosa carreira de boas pernas; mas o vulto
embrenhando-se no mato, desapareceu totalmente.
Entretanto, os primeiros sintomas do dia
avermelhavam o horizonte e nos ranchos erguia-se já a escravatura para o
trabalho das roças. As poucas horas em que Raimundo encostou a cabeça. para
descansar um bocado, foram cheias de sonho.
Ao levantar-se pelas sete da manhã, aborrecido e
quase em dúvida se sonhara toda a noite ou se, com efeito, vira e ouvira o
singular espectro. Todavia, ao almoço. conversou-se alegremente sobre o fato, e
o Cancela explicou que o fantasma devia ser alguma dessas muitas pretas velhas,
agregadas aos ranchos das fazendas e que naturalmente estava bêbada. E contou
que, nas noites de&emdash;tambor — elas costumavam dormir; por ali, no
primeiro rancho encontrado em caminho. Ali mesmo havia sempre uma súcia dessas
pestes; apareciam e desapareciam, sem ninguém lhes perguntar donde vinham, nem
para onde iam.
— São escravas fugidas? indagou Raimundo.
O Cancela respondeu que não. Os mocambeiros
formavam grupo a parte; nunca apareciam publicamente, viviam escondidos nos
seus quilombos e só se mostravam na estrada real para atacar os viajantes. Os
agregados eram pretos forros, forros em geral com a morte de seus senhores, e
que habituados desde pequenos ao cativeiro não tendo já quem os obrigasse a trabalhar
e não querendo sair do sertão, ficavam por ai ao Deus dará, pedinchando pelas
fazendas um bocado de arroz para matar a tome, e um pedaço de chão coberto para
dormir; Simples vagabundos, que não faziam mal a ninguém.
— Olhe, continuou ele, de São Brás tínhamos aqui a
principio três que andavam p'r'aí sem fazer nada. Dois morreram e eu
enterrei-os, o terceiro não sei se ainda existe, é uma preta idiota. Talvez a
que o senhor doutor viu esta noite.
E, como Raimundo pedisse mais informações, acrescentou
que ela as vezes passava meses inteiros na fazenda; os pretos gostavam de
ouvi-la cantar e vê-la dançar. Doida varrida! estava sempre resmungando ia
consigo; mas que, de tempos áquela parte, não aparecia, era bem possível que o
pobre-diabo tivesse Já esticado a canela ai pelo mato.
Falou-se também da mãe-da-lua. Cancela contou
velhas anedotas de estrangeiros que se perderam nas matas, seguindo o canto
original daquele pássaro. Depois trataram de interesses; e fechou-se o negocio
da fazenda — Raimundo estava por tudo, contanto que lhe não demorassem a
partida — ardia de impaciência por visitar São Brás.
Não obstante, o Cancela instava com os dois
hóspedes para que se demorassem uma semana, ou, pelo menos, alguns dias Manual
disparatou: Que loucura! Pois ele podia lá passar dias longe do seu armazém?:..
Então que partissem pela manhã seguinte.
Nada! Havia de ser naquela mesma noite! Para que
diabo agüentar sol pelo caminho, quando tinham um luar que nem dia?...
O jantar demorava-se e Raimundo mal podia conter a
sua contrariedade. S6 às três horas da tarde conseguiram levantar acampamento.
— Leve-nos a São Brás, disse ele ao guia, logo que
se acharam fora do portão da fazenda.
— A São Brás? Deus me livre.
E o caboclo, depois de benzer-se, perguntou para
que diabo iam a São Brás.
— Ora essa! Não é de sua conta! Leve-nos!
&emdash;A São Brás não vou!
— Essa é melhor' Não vai! Então que veio você fazer
conosco senão guiar-nos?
— Sim senhor, mas é que a São Brás não vou, nem
amarrado!
— Vá para o inferno! Iremos nós! Ó se'or Manuel, o
senhor não sabe o caminho?
— Verdade, verdade, o homem não deixa de ter sua
razão! . No fim de contas que diacho vai fazer o amigo àquela tapera?...
— É boa! Ver o lugar em que nasci..
— Tem razão, mas...
— Se não quiser ir, vou só!
— Mas o senhor sabe que...
— Contam bruxarias do lugar, e há quem acredite
nelas... Faço-lhe, porém, a justiça de não supô-lo desses...
Os cavalos ganhavam a Estrada Real.
— Homem, disse Manuel, lá saber o caminho, eu sei,
e o guia, se não quisesse vir, poderia esperar-nos ao pé da cruz, mas...
confesso-lhe: tenho meu receio dos mocambeiros... além disso... quem, como eu,
ouviu as últimas palavras de meu irmão...
— De meu pai?! exclamou Raimundo vivamente. Oh!
Conte-me isso!
— O senhor há de rir-se.. São coisas que parecem
asneira... Hoje, os moços não acreditam em nada! Mas é que certas palavras,
ouvidas da boca de quem vai morrer... mexem com a gente... não acha? fazem um
homem ficar assim meio aquele! Olhe, meu amigo, eu digo-lhe aqui entre nós, e o
senhor não se mace, seu pai não teve a vidinha lá muito sossegada, não! Depois
que casou, neo se dava com pessoa alguma, e nem a própria sogra queria saber
dele... vivia como que abandonado! Eu era nesse tempo principiante no comércio
e quase que não podia arredar pé do trabalho, contudo, aqui vim três vezes;
porém creia que não gostava de cá vir!... Era uma tal tristeza!... Doía-me de
ver o José tão desprezado, tão triste, que parecia estar a cumprir uma
sentença! Viajante nenhum aceitava o pouso em São Brás; preferiam dormir; ao
relento e as cobras! Contavam que alta noite ouviam-se constantemente gritos
horríveis na fazenda, pancadas por espaço de muitas horas, correntes arrastadas;
os escravos morriam sem saber de quê! Enfim, o cônego Diogo, que era o vigário
desta freguesia, confessa que nunca lhe soube dar volta! E olhe, coitado!
meteu-se-lhe em cabeça abençoar e proteger São Brás, e quase ia sendo vitima da
sua dedicação! até ficou assim a modo de aluado! E, foi tão perseguido por cá,
que o pobre homem viu-se obrigado a abandonar a paróquia! Ainda hoje, quando
lhe toco nisso, benze-se todo! Pois pode crer o senhor que ele era o mais
íntimo amigo de meu irmão e o único talvez que ultimamente lhe freqüentava a
casa; entretanto, compreenda-se lá, seu pai, já por último não o queria ver nem
pintado! e, nos delírios das suas febres, estava sempre a ver fantasmas e a
gritar como um doido que queria dar cabo do padre! "Quero matar o padre! —
Tragam-me o padre! — O padre é que é o culpado de tudo!" Este fulano padre
era o cônego! Eu não quis nunca falar nestas coisas ao compadre, porque,
cismático como é, podia agastar-se comigo!...
E, depois de uma pausa
— Ora, já vê o meu amigo que, apesar de não
acreditar em almas do outro mundo, tenho as minhas razões para...
Raimundo procurava disfarçar a preocupação em que o
punham as palavras de Manuel, e declarou que, se este não estava disposto a ir
a São Brás, que se ficasse com o guia, ele iria só.
— Mas saiba, disse, que ao caboclo perdôo o medo,
porque enfim não está na altura de certas verdades, mas ao senhor...
— Eu neo tenho medo de coisa alguma, já disse!...
— Receia sempre que o diabo lhe saia ao encontro,
compreendo!
E o rapaz fingiu uma gargalhada, para intimidar o
companheiro.
— Não, mas é que...
— Ora deixe-se de histórias! O senhor não me parece
um homem!...
Manuel cedeu afinal, e os dois tomaram a direção da
.tapera.
Fizeram em silêncio todo o caminho; Raimundo por
muito comovido e Manuel por amedrontado.
Instintivamente, pararam em respeitável distância.
— Creio que chegamos! arriscou o moço.
E, avançando alguns passos, disse ao outro:
— Lá está ela! — Ó de casa! gritou Manuel.
Só o eco respondeu.
Adiantaram-se mais e Raimundo gritou por sua vez,
com o mesmo resultado.
— Ande, senhor Manuel! Estamos a quixotear... Aqui
não há viva alma!...
Mais alguns passos e estavam defronte da tapera.
Eram os restos de uma casa térrea, sem reboque e
cujo madeiramento de lei resistira ao seu completo abandono.
Ia anoitecer. O sol naufragava, soçobrando num
oceano de fogo e sangue; o céu reverberava como a cúpula de uma fornalha; o
campo parecia incendiado.
Como era preciso aproveitar o dia, os dois
viajantes apearam-se logo, cada qual prendeu o seu cavalo, e introduziram-se na
varanda da casa por uma brecha que cortava de alto a baixo o primeiro pano de
parede. Essa parte estava completamente arruinada e cheia de mato; os
camaleões, as osgas e as mucuras fugiam espantados pelos pés de Raimundo, que
ia galgando moitas de urtiga e capim-bravo.
Lá dentro a tapera tinha um duro aspecto
nauseabundo. Longas telas de aranha pendiam tristemente em todas as direções,
como cortina de crepe esfacelado; a água da chuva, tingida de terra vermelha,
deixara, pelas paredes, compridas lágrimas sangrentas que serpeavam entre
ninhos de cobras e lagartos; a um canto descobria-se no chão ladrilhado um
abominável instrumento de suplício, era um tronco de madeira preta, e os seus
buracos redondos, que serviam para prender as pernas, os braços ou o pescoço
dos escravos, mostravam ainda sinistras manchas arroxeadas.
Os dois seguiram adiante, penetrando o interior da
casa. Ao transporem cada porta fugia na frente deles uma nuvem negra de
morcegos e andorinhas. O solo, empastado de excremento de pássaros e répteis
era pegajoso e úmido; o telhado abria em vários pontos, chorando uma luz morna
e triste; respirava-se uma atmosfera de calabouço. De um charco vizinho a casa
palpitava, monótono como um relógio, o rouquenho coaxar das rãs. Os anus
passavam de uma para outra árvore, cortando o silêncio da tarde, com os seus
gemidos prolongados e agudíssimos; do fundo tenebroso da floresta vinham de
espaço a espaço o gargalhar das raposas, e os gritos sensuais dos macacos e
sagüins. Era já o concerto da noite.
Manuel, um tanto comovido, contemplava
demoradamente as ruínas que o cercavam, procurando descobrir naqueles restos
mudos e emporcalhados, a antiga residência de seu irmão. Nada lhe trazia à
lembrança uma nota ainda viva do passado.
— Vejamos agora por aqui... disse ele, passando,
seguido pelo sobrinho, a um quarto, cujas janelas tinham as folhas despregadas
e prestes a desabar. Era este o quarto de José...
E pôs-se a meditar.
Raimundo olhava para tudo com uma grande tristeza,
infinita, sem bordas, mas fechada que nem um horizonte de névoas. "Como
seria seu pai?..." pensava ele, sem uma palavra, como seria esse bom
homem, que nunca se descuidara da educação do pobre Raimundo?... Quantas vezes,
naquele quarto, talvez junto a uma daquelas janelas, olhando para a quinta, não
pensaria o infeliz no querido filho, que tinha tão longe dos seus afagos?... E
sua mãe?... Sua pobre mãe desconhecida, estaria ali, ao lado dele, ou, quem o
sabia? escondida, envergonhada, a chorar as faltas em algum desterro
humilhante?...
— Aqui, disse Manuel, batendo no ombro do
companheiro, nasceu o senhor, meu amigo, e viveu os seus primeiros anos...
Raimundo sentia um desejo doido de perguntar pela
mãe, mas não se achava com animo; temia agora uma inesperada decepção, uma
agonia inédita, que o esmagasse de todo; receava alguma verdade implacável e
fria, rija, de aço, que o atravessasse de lado a lado, como uma espada. Até
ali, ninguém lhe falara nela. "É que, sem duvida, havia em tudo aquilo um
segredo de família, alguma paixão vergonhosa, uma falta horrível, talvez um
crime abominável, que ninguém ousava revelar! E, no entanto, Raimundo tinha
plena certeza de que aquele homem, que ali estava em sua presença, ao alcance
de suas palavras, sabia de tudo e poderia. se quisesse, arrancá-lo para sempre
daquela maldita incerteza!.. Quem seria ela?... essa estranha mãe misteriosa,
por quem ele sentia um amor desnorteado?... Alguma senhora, bonita sem dúvida,
porque causava crimes; criminosa ela própria, por amor, a inspirar loucuras a
seu pai, a acender-lhe uma paixão fatal e romanesca, cheia de sobressaltos e de
remorsos! E desse amor secreto e criminoso, desse adultério, que sem dúvida
causou a morte de seu pai, nascera ele!... Mas, por que não lhe contavam tudo
com franqueza?... Por que não lhe diziam toda a verdade?... Oh! devia ser um
segredo infernal, para o esconderem com tamanho empenho!..." E, acabrunhado
por estes raciocínios, humilhado pela dúvida de si próprio, miserável e triste,
Raimundo percorria a casa, em silêncio.
Despertou-o de novo a voz de Manuel:
— Vamos à capela, antes que anoiteça de todo.
Entraram primeiro no cemitério. Estava arrasado.
Manuel apontou para uma velha sepultura, e disse ao outro com respeito:
— Ali está seu pai!
Raimundo chegou-se para o túmulo, descobriu-se, e
procurou ler na carneira alguma inscrição que lhe falasse do morto.
Absolutamente nada! o tempo apagara da pedra o nome de seu pai. Ali só havia um
pedaço de mármore carunchoso e negro. Deixara de ser uma tabuleta, era uma
tampa. O rapaz sentiu então, mais do que nunca, pesar-lhe dentro dalma, como
uma barra de chumbo, todo o mistério da sua vida; compreendeu que sobre esta
havia também uma pedra silenciosa e negra; compreendeu que o seu passado nada
mais era do que outra sepultura sem epitáfio.
Enovelou-se-lhe na garganta um godilhão de soluços
e Raimundo sentiu a necessidade de ajoelhar-se defronte do silêncio daquele
túmulo.
Manuel afastara-se discretamente, tossindo, para
disfarçar a sua comoção. O moço enxugava as lágrimas, agora abundantes e
fartas; depois encaminhou-se para uma outra cova mais adiante, abrigada por uma
frondosa mangueira. Estava já vazia e com a lousa fora do lugar. Naturalmente,
os parentes do cadáver haviam retirado dali os ossos para alguma igreja da
capital. A posição da lápida da árvore serviram de resguardo ao epitáfio;
Raimundo passou o lenço por ama dele e conseguiu ler o seguinte: "Aqui
jazem os restos mortais de Quitéria Inocência de Freitas Santiago, filha
extremosa, esposa exemplar; Casou em 15 de dezembro de 1845 e faleceu em 1849.
Orai por ela."
— Não há dúvida que, além de bastardo, descendi de
uma tremenda vergonha! Meu nascimento combina aproximadamente com estes
algarismos...
E, tendo monologado estas palavras, chegou ao fundo
do cemitério e achou-se defronte de uma capela. Entrou, galgando três degraus escalavrados.
Uma coruja fugiu espavorida. A luz triste da lua filtrava-se já pelas aberturas
do telhado, mas pelas janelas entrava de rojo o quente lusco-fusco do
crepúsculo. Raimundo, ao chegar à sacristia, estacou e estremeceu todo: o vulto
esquelético e andrajoso, que lhe aparecera à noite, como um fantasma, ali
estava naquela meia escuridão, a dançar uns requebros estranhos, com os braços
magros levantados sobre a cabeça. O rapaz sentiu gelar-lhe a testa um suor frio
e conservou-se estático, quase duvidoso de que aquilo que tinha defronte de si
fosse uma figura humana.
Todavia, a múmia se aproximava dele, a dar saltos,
estalando os dedos ossudos e compridos. Viam-se-lhe os dentes brancos e
descamados, os olhos a estorcerem-se-lhe convulsivamente nas órbitas profundas,
e a caveira a desenhar-se em ângulos através das carnes. Ora erguia as mãos,
descaindo a cabeça; ora fazia voltas, sapateando e dando pungas no ar.
De repente deu com Raimundo e precipitou-se para
ele de braços abertos. Na primeira impressão o rapaz recuava com repugnância,
mas, caindo logo em si, aproximou-se da louca e perguntou-lhe se conhecia quem
morara naquela fazenda.
A idiota olhou para ele, e riu-se sem responder.
— Não conheceste o José da Silva ou José do Eito?
A preta continuou a rir. Raimundo insistiu no seu
interrogatório mas sem obter resultado algum. A doida o considerava fixamente,
como que procurando reconhecer-lhe as feições; de súbito, deu um salto sobre
ele, tentando abraçá-lo; o rapaz não tivera tempo de fugir e sentiu-se em
contacto com aquele corpo repugnante. Então num assomo nervoso repeliu-a
bruscamente. Ela caiu para trás, estalando os ossos contra os tijolos do chão.
Raimundo saiu de carreira para reunir-se a Manuel,
porém a idiota alcançou-o, já no cemitério, e arremessou-se de novo contra ele.
— Não me toques! gritava o moço, com raiva,
levantando o chico
Manuel acudiu correndo:
— Não lhe bata, doutor! Não lhe bata, que é doida!
Conheço-a!
— Mas, se ela não me quer deixar!... Sai! Sai,
diabo! Olha que te
Manuel mostrava-se agoniado e surpreso.
— Já! disse ele, intimidando a louca. Já pra
dentro!
A preta retomou-se humildemente.
— Quem é ela? perguntou Raimundo, lá fora, tratando
de montar. O senhor disse que a conhecia.
— Essa pobre negra... respondeu Manuel hesitante,
foi escrava de seu pai. Vamos! E puseram-se a caminho.
12
Voltaram ambos impressionados da tapara. Manuel
tentara por duas vezes uma conversa que não vingara no ânimo acabrunhado do
companheiro; Raimundo respondia maquinalmente às suas palavras, ia muito
preocupado e aborrecido. Na dúvida da sua procedência e com a certeza do seu
bastardismo, vinha-lhe agora uma estranha suscetibilidade; não sabia por que
motivo, mas sentia que precisava, que tinha urgência, de uma explicação cabal
do que levou Manuel a recusar-lhe a filha. "Com certeza estava ai a ponta
do mistério!"
Ele o que queria era penetrar no seu passado,
percorrê-lo, estudá-lo, conhecê-lo a fundo; encontrara até então todas as
portas fechadas e mudas, como a sepultura de seu pai; embalde bateu em todas
elas; ninguém lhe respondera. Agora um alçapão se denunciava na recusa de
Manuel; havia de abri-lo e entrar, custasse o que custasse, ainda que o alçapão
despejasse sobre um abismo.
E, tão dominado ia pela sua resolução que, ao
passar pelo cruzeiro da Estrada Real, nem só deu por ele, como pelo guia que
logo se pusera a caminho.
— Ó meu amigo! gritou-lhe o tio Isto também não vai
assim!... Despeça-se deste lugar!
E apeou-se, para depor aos pés da cruz um galho de
murta.
Raimundo voltou atrás e, depois de um grande
silencio, fitou Manuel e perguntou-lhe. externando um retalho do pensamento que
o dominava:
— Ela será, porventura, minha irmã?...
— Ela, quem?
— Sua filha
O negociante compreendeu a preocupação do sobrinho.
— Não.
Raimundo tomou a mergulhar no pau} da sua dúvida e
das conjeturas, procurando de novo o motivo daquela recusa, como quem procura
um objeto no fundo dágua; e a sua inteligência, de outras vezes tão lúcida e
perspicaz, sentia-se agora impotente e cega, às apalpadelas, às tontas,
desesperada, quase extinta, nas lamacentas e misteriosas trevas do pântano.
E, de tudo isso, vinha-lhe um grande mal-estar.
Depois da negativa de Manuel, Ana Rosa afigurava-se-lhe uma felicidade
indispensável; já não podia compreender a existência, sem a doce companhia
daquela mulher simples e bonita, que, no seu desejo estimulado, lhe aparecia
agora sob mil novas formas de sedução. E, na sua fantasia enamorada, acariciava
ainda a idéia de possuí-la, idéia, que, só então o notava, dormira todas as
noites com ele, e que agora, ingrata, queria escapar-lhe com as desculpas
banais e comuns de uma amante enfastiada. Oh! sim! desejava Ana Rosa!
habituara-se imperceptivelmente a julgá-la sua; ligara-a a pouco e pouco, sem
dar por isso, a todas as aspirações da sua vida; sonhara-se junto dela, na
intimidade feliz do lar, vendo-a governar uma casa que era de ambos, e que Ana
Rosa povoava com a alegria de um amor honesto e fecundo. E agora,
desgraçado&emdash;olhava para toda essa felicidade, como o criminoso olha,
através às grades do cárcere para os venturosos casais, que se vão lá pela nua,
de braço dado, rindo e conversando ao lado dos filhos. E Raimundo antejulgava
perfeitamente que aquele empenho de Manuel em negar-lhe a filha, longe de
arredá-la do seu amor, mais e mais o empurrava para ela, ligando-a para sempre
ao seu destino.
— Terá sua filha alguma secreta enfermidade, que
levasse o mé
dico a proibir-lhe o casamento? Terá algum defeito
orgânico?...
— Oh! com efeito! O senhor tortura-me com as suas
perguntas'. . creia que, se eu pudesse dizer-lhe a causa de minha recusa,
tê-lo-ia feito desde logo! Oh!
Raimundo não pôde conter-se e disparatou, fazendo
estacar o seu cavalo.
— Mas o senhor deve compreender a minha
insistência! Não se diz assim, sem mais nem menos, a um homem que vem, legitima
e constenciosamente, pedir a mão de uma senhora, que a isso o autorizou.
"Não lha dou, porque não quero!" Por que não quer? "Porque não!
Não posso dizer o motivo!..." P boa! Tal recusa significa uma ofensa
direta a quem faz o pedido! Foi uma afronta à minha dignidade. O senhor há de
concordar que me deve uma resposta, seja qual for! uma desculpa! uma mentira,
muito embora! mas, com todos os diabos! e necessária uma razão qualquer!
— É justo, mas...
— Se me dissesse: "Oponho-me ao casamento,
porque antipatizo solenemente com o seu caráter". Sim senhor! Não seda uma
razão plausível, mas estaria no seu direito de pai, mas o senhor...
— Perdão! eu não podia dizer semelhante coisa
depois de o haver elogiado por várias vezes, e ter-me declarado, como repito,
seu amigo e seu apreciador...
— Mas então?! Se é meu amigo, que diabo! diga-me a
razão com franqueza! tire-me, por uma vez, deste maldito inferno da duvida!
declare-me o segredo da sua recusa, seja qual for, ainda que uma revelação
esmagadora! Estou disposto a aceitar tudo, tudo! menos o mistério, que esse tem
sido o tormento da minha vida! Vamos, fale! suplico-lhe por... aquele que caiu
assassinado!&emdash;E apontou na direção da cruz. Era seu irmão e dizem que
meu pai... Pois bem, peço-lhe por ele que me fale com franqueza! Se sabe alguma
coisa dos meus antepassados e do meu nascimento, conte-me tudo! Juro-lhe que
lhe ficarei reconhecido por isso! Ou, quem sabe? serei tão desprezível a seus
olhos, que nem sequer li e mereça tão miserável prova de confiança?...
— Não! não! ao contrário, meu amigo! Eu até levaria
muito em gosto o seu casamento com a minha filha, no caso de que isso tivesse
lugar!... E só peço a Deus que lhe depare a ela um marido possuidor das suas
boas qualidades e do seu saber; creia, porém, que eu, como bom pai, não devo,
de forma alguma, consentir em semelhante união. Cometeria um crime se assim
procedesse!...
— Com certeza há parentesco de irmão entre ela e
eu!
— Repare que me está ofendendo...
— Pois defenda-se, declarando tudo por uma vez!
— E o senhor promete não se revoltar com o que eu
disser?...
— Juro. Fale!
Manuel sacudiu os ombros e resmungou depois, em ar
de confidencia:
— Recusei-lhe a mão de minha filha, porque o senhor
é... é filho de uma escrava...
— Eu?!
— O senhor é um homem de cor!... Infelizmente esta
é a verdade...
Raimundo tomou-se lívido. Manuel prosseguiu, no fim
de um silêncio:
— Já vê o amigo que não é por mim que lhe recusei
Ana Rosa mas e por tudo! A família de minha mulher sempre foi muito escrupulosa
a esse respeito, e como ela é toda a sociedade do Maranhão! Concordo que seja
uma asneira; concordo que seja um prejuízo tolo! o senhor porém não imagina o
que é por cá a prevenção contra os mulatos!... Nunca me perdoariam um tal
casamento; além do que, para realizá-lo, teria que quebrar a promessa que fiz a
minha sogra, de não dar a neta senão a um branco de lei, português ou
descendente direto de portugueses!... O senhor é um moço muito digno, muito
merecedor de consideração, mas... foi forro à pia, e aqui ninguém o ignora
— Eu nasci escravo?!...
— Sim, pesa-me dizê-lo e não o faria se a isso não
fosse constrangido, mas o senhor é filho de uma escrava e nasceu também cativo.
Raimundo abaixou a cabeça. Continuaram a viagem. E
ali no campo, à sombra daquelas árvores colossais, por onde a espaços a lua se
filtrava tristemente, ia Manuel narrando a vida do irmão com a preta Domingas.
Quando, em algum ponto hesitava por delicadeza em dizer toda a verdade, o outro
pedia-lhe que prosseguisse francamente, guardando na aparência uma
tranqüilidade fingida. O negociante contou tudo o que sabia.
— Mas que fim levou minha mãe?... a minha
verdadeira mãe? perguntou o rapaz, quando aquele terminou, Mataram-na?
Venderam-na??? O que fizeram dela?
— Nada disso; soube ainda há pouco que está viva...
E aquela pobre idiota de São Brás.
— Meu Deus! exclamou Raimundo, querendo voltar à
tapera.
— Que é isso? Vamos! Nada de loucuras! Voltarás
noutra ocasião!
Calaram-se ambos. Raimundo, pela primeira vez,
sentiu-se infeliz; uma nascente má vontade contra os outros homens formava-se
na sua alma ate ai limpa e clara; na pureza do seu caráter o desgosto punha a
primeira nódoa. E, querendo reagir, uma revolução operava-se dentro dele;
idéias turvas, enlodadas de ódio e de vagos desejos de vingança, iam e vinham,
atirando-se raivosos contra os sólidos princípios da sua moral e da sua
honestidade, como num oceano a tempestade açula contra um rochedo os negros
vagalhões encapelados. Uma só palavra bolava à superfície dos seus pensamentos:
"Mulato". E crescia, crescia, transformando-se em tenebrosa nuvem,
que escondia todo o seu passado. Idéia parasita, que estrangulava todas as
outras idéias.
— Mulato!
Esta só palavra explicava-lhe agora todos os
mesquinhos escrúpulos, que a sociedade do Maranhão usara para com ele.
Explicava tudo: a frieza de certas famílias a quem visitara; a conversa cortada
no momento em que Raimundo se aproximava; as reticências dos que lhe falavam
sobre os seus antepassados; a reserva e a cautela dos que, em sua presença,
discutiam questões de raça e de sangue; a razão pela qual D. Amância lhe
oferecera um espelho e lhe dissera: "Ora mire-se!" a razão pela qual
diante dele chamavam de meninos os moleques da rua. Aquela simples palavra
dava-lhe tudo o que ele até aí desejara e negava-lhe tudo ao mesmo tempo,
aquela palavra maldita dissolvia as suas dúvidas, justificava o seu passado;
mas retirava-lhe a esperança de ser feliz, arrancava-lhe a pátria e a futura
família; aquela palavra dizia-lhe brutalmente: "Aqui, desgraçado, nesta
miserável terra em que nasceste, só poderás amar uma negra da tua laia! Tua
mãe, lembra-te bem, foi escrava! E tu também o foste!"
— Mas, replicava-lhe uma voz interior, que ele mal
ouvia na tempestade do seu desespero; a natureza não criou cativos! Tu não tens
a menor culpa do que fizeram os outros, e no entanto és castigado e amaldiçoado
pelos irmãos daqueles justamente que inventaram a escravidão no Brasil!
E na brancura daquele caráter imaculado brotou,
esfervilhando logo, uma ninhada de vermes destruidores, onde vinham o ódio, a
vingança, a vergonha, o ressentimento, a inveja, a tristeza e a maldade. E no
circulo do seu nojo, implacável e extenso, entrava o seu país, e quem este
primeiro povoou, e quem então e agora o governava, e seu pai, que o fizera
nascer escravo, e sua mãe, que colaborara nesse crime. "Pois então de
nada-lhe lhe valia ter sido bem educado e instruído; de nada lhe valia ser bom
e honesto?... Pois naquela odiosa província, seus conterrâneos veriam nele,
eternamente, uma criatura desprezível, a quem repelem todos do seu seio?.."
E vinham-lhe então, nítidas 3 luz crua do seu desalento, as mais rasteiras
perversidades do Maranhão; as conversas de porta de botica, as pequeninas
intrigas que lhe chegavam aos ouvidos por intermédio de entes ociosos e
objetos, a que ele nunca olhara senão com desprezo. E toda essa miséria, toda
essa imundícia, que ate então se lhe revelava aos bocadinhos, fazia agora uma
grande nuvem negra no seu espírito, porque, gota a gota, a tempestade se
formara. E, no meio desse vendaval, um desejo crescia, um único, o desejo de
ser amado, de formar uma família Um abrigo legítimo, onde ele se escondesse
para sempre de todos os homens.
Mas o seu desejo só pedia, só queria, só aceitava
Ana Rosa, como se o mundo inteiro houvera desaparecido de novo ao redor daquela
Eva pálida e comovida, que lhe dera a provar, pela primeira vez, o delicioso
veneno do fruto proibido.
12
Voltaram ambos impressionados da tapara. Manuel
tentara por duas vezes uma conversa que não vingara no ânimo acabrunhado do companheiro;
Raimundo respondia maquinalmente às suas palavras, ia muito preocupado e
aborrecido. Na dúvida da sua procedência e com a certeza do seu bastardismo,
vinha-lhe agora uma estranha suscetibilidade; não sabia por que motivo, mas
sentia que precisava, que tinha urgência, de uma explicação cabal do que levou
Manuel a recusar-lhe a filha. "Com certeza estava ai a ponta do
mistério!"
Ele o que queria era penetrar no seu passado,
percorrê-lo, estudá-lo, conhecê-lo a fundo; encontrara até então todas as
portas fechadas e mudas, como a sepultura de seu pai; embalde bateu em todas
elas; ninguém lhe respondera. Agora um alçapão se denunciava na recusa de
Manuel; havia de abri-lo e entrar, custasse o que custasse, ainda que o alçapão
despejasse sobre um abismo.
E, tão dominado ia pela sua resolução que, ao
passar pelo cruzeiro da Estrada Real, nem só deu por ele, como pelo guia que
logo se pusera a caminho.
— Ó meu amigo! gritou-lhe o tio Isto também não vai
assim!... Despeça-se deste lugar!
E apeou-se, para depor aos pés da cruz um galho de
murta.
Raimundo voltou atrás e, depois de um grande
silencio, fitou Manuel e perguntou-lhe. externando um retalho do pensamento que
o dominava:
— Ela será, porventura, minha irmã?...
— Ela, quem?
— Sua filha
O negociante compreendeu a preocupação do sobrinho.
— Não.
Raimundo tomou a mergulhar no pau} da sua dúvida e
das conjeturas, procurando de novo o motivo daquela recusa, como quem procura
um objeto no fundo dágua; e a sua inteligência, de outras vezes tão lúcida e
perspicaz, sentia-se agora impotente e cega, às apalpadelas, às tontas,
desesperada, quase extinta, nas lamacentas e misteriosas trevas do pântano.
E, de tudo isso, vinha-lhe um grande mal-estar.
Depois da negativa de Manuel, Ana Rosa afigurava-se-lhe uma felicidade
indispensável; já não podia compreender a existência, sem a doce companhia
daquela mulher simples e bonita, que, no seu desejo estimulado, lhe aparecia
agora sob mil novas formas de sedução. E, na sua fantasia enamorada, acariciava
ainda a idéia de possuí-la, idéia, que, só então o notava, dormira todas as
noites com ele, e que agora, ingrata, queria escapar-lhe com as desculpas
banais e comuns de uma amante enfastiada. Oh! sim! desejava Ana Rosa!
habituara-se imperceptivelmente a julgá-la sua; ligara-a a pouco e pouco, sem
dar por isso, a todas as aspirações da sua vida; sonhara-se junto dela, na
intimidade feliz do lar, vendo-a governar uma casa que era de ambos, e que Ana
Rosa povoava com a alegria de um amor honesto e fecundo. E agora,
desgraçado&emdash;olhava para toda essa felicidade, como o criminoso olha,
através às grades do cárcere para os venturosos casais, que se vão lá pela nua,
de braço dado, rindo e conversando ao lado dos filhos. E Raimundo antejulgava
perfeitamente que aquele empenho de Manuel em negar-lhe a filha, longe de
arredá-la do seu amor, mais e mais o empurrava para ela, ligando-a para sempre
ao seu destino.
— Terá sua filha alguma secreta enfermidade, que
levasse o mé
dico a proibir-lhe o casamento? Terá algum defeito
orgânico?...
— Oh! com efeito! O senhor tortura-me com as suas
perguntas'. . creia que, se eu pudesse dizer-lhe a causa de minha recusa,
tê-lo-ia feito desde logo! Oh!
Raimundo não pôde conter-se e disparatou, fazendo
estacar o seu cavalo.
— Mas o senhor deve compreender a minha
insistência! Não se diz assim, sem mais nem menos, a um homem que vem, legitima
e constenciosamente, pedir a mão de uma senhora, que a isso o autorizou.
"Não lha dou, porque não quero!" Por que não quer? "Porque não!
Não posso dizer o motivo!..." P boa! Tal recusa significa uma ofensa
direta a quem faz o pedido! Foi uma afronta à minha dignidade. O senhor há de
concordar que me deve uma resposta, seja qual for! uma desculpa! uma mentira,
muito embora! mas, com todos os diabos! e necessária uma razão qualquer!
— É justo, mas...
— Se me dissesse: "Oponho-me ao casamento,
porque antipatizo solenemente com o seu caráter". Sim senhor! Não seda uma
razão plausível, mas estaria no seu direito de pai, mas o senhor...
— Perdão! eu não podia dizer semelhante coisa
depois de o haver elogiado por várias vezes, e ter-me declarado, como repito,
seu amigo e seu apreciador...
— Mas então?! Se é meu amigo, que diabo! diga-me a
razão com franqueza! tire-me, por uma vez, deste maldito inferno da duvida!
declare-me o segredo da sua recusa, seja qual for, ainda que uma revelação
esmagadora! Estou disposto a aceitar tudo, tudo! menos o mistério, que esse tem
sido o tormento da minha vida! Vamos, fale! suplico-lhe por... aquele que caiu
assassinado!&emdash;E apontou na direção da cruz. Era seu irmão e dizem que
meu pai... Pois bem, peço-lhe por ele que me fale com franqueza! Se sabe alguma
coisa dos meus antepassados e do meu nascimento, conte-me tudo! Juro-lhe que
lhe ficarei reconhecido por isso! Ou, quem sabe? serei tão desprezível a seus
olhos, que nem sequer li e mereça tão miserável prova de confiança?...
— Não! não! ao contrário, meu amigo! Eu até levaria
muito em gosto o seu casamento com a minha filha, no caso de que isso tivesse
lugar!... E só peço a Deus que lhe depare a ela um marido possuidor das suas
boas qualidades e do seu saber; creia, porém, que eu, como bom pai, não devo,
de forma alguma, consentir em semelhante união. Cometeria um crime se assim
procedesse!...
— Com certeza há parentesco de irmão entre ela e
eu!
— Repare que me está ofendendo...
— Pois defenda-se, declarando tudo por uma vez!
— E o senhor promete não se revoltar com o que eu
disser?...
— Juro. Fale!
Manuel sacudiu os ombros e resmungou depois, em ar
de confidencia:
— Recusei-lhe a mão de minha filha, porque o senhor
é... é filho de uma escrava...
— Eu?!
— O senhor é um homem de cor!... Infelizmente esta
é a verdade...
Raimundo tomou-se lívido. Manuel prosseguiu, no fim
de um silêncio:
— Já vê o amigo que não é por mim que lhe recusei
Ana Rosa mas e por tudo! A família de minha mulher sempre foi muito escrupulosa
a esse respeito, e como ela é toda a sociedade do Maranhão! Concordo que seja
uma asneira; concordo que seja um prejuízo tolo! o senhor porém não imagina o
que é por cá a prevenção contra os mulatos!... Nunca me perdoariam um tal
casamento; além do que, para realizá-lo, teria que quebrar a promessa que fiz a
minha sogra, de não dar a neta senão a um branco de lei, português ou
descendente direto de portugueses!... O senhor é um moço muito digno, muito
merecedor de consideração, mas... foi forro à pia, e aqui ninguém o ignora
— Eu nasci escravo?!...
— Sim, pesa-me dizê-lo e não o faria se a isso não
fosse constrangido, mas o senhor é filho de uma escrava e nasceu também cativo.
Raimundo abaixou a cabeça. Continuaram a viagem. E
ali no campo, à sombra daquelas árvores colossais, por onde a espaços a lua se
filtrava tristemente, ia Manuel narrando a vida do irmão com a preta Domingas.
Quando, em algum ponto hesitava por delicadeza em dizer toda a verdade, o outro
pedia-lhe que prosseguisse francamente, guardando na aparência uma
tranqüilidade fingida. O negociante contou tudo o que sabia.
— Mas que fim levou minha mãe?... a minha
verdadeira mãe? perguntou o rapaz, quando aquele terminou, Mataram-na?
Venderam-na??? O que fizeram dela?
— Nada disso; soube ainda há pouco que está viva...
E aquela pobre idiota de São Brás.
— Meu Deus! exclamou Raimundo, querendo voltar à
tapera.
— Que é isso? Vamos! Nada de loucuras! Voltarás
noutra ocasião!
Calaram-se ambos. Raimundo, pela primeira vez,
sentiu-se infeliz; uma nascente má vontade contra os outros homens formava-se
na sua alma ate ai limpa e clara; na pureza do seu caráter o desgosto punha a
primeira nódoa. E, querendo reagir, uma revolução operava-se dentro dele;
idéias turvas, enlodadas de ódio e de vagos desejos de vingança, iam e vinham,
atirando-se raivosos contra os sólidos princípios da sua moral e da sua
honestidade, como num oceano a tempestade açula contra um rochedo os negros
vagalhões encapelados. Uma só palavra bolava à superfície dos seus pensamentos:
"Mulato". E crescia, crescia, transformando-se em tenebrosa nuvem,
que escondia todo o seu passado. Idéia parasita, que estrangulava todas as
outras idéias.
— Mulato!
Esta só palavra explicava-lhe agora todos os
mesquinhos escrúpulos, que a sociedade do Maranhão usara para com ele.
Explicava tudo: a frieza de certas famílias a quem visitara; a conversa cortada
no momento em que Raimundo se aproximava; as reticências dos que lhe falavam
sobre os seus antepassados; a reserva e a cautela dos que, em sua presença,
discutiam questões de raça e de sangue; a razão pela qual D. Amância lhe
oferecera um espelho e lhe dissera: "Ora mire-se!" a razão pela qual
diante dele chamavam de meninos os moleques da rua. Aquela simples palavra
dava-lhe tudo o que ele até aí desejara e negava-lhe tudo ao mesmo tempo,
aquela palavra maldita dissolvia as suas dúvidas, justificava o seu passado;
mas retirava-lhe a esperança de ser feliz, arrancava-lhe a pátria e a futura
família; aquela palavra dizia-lhe brutalmente: "Aqui, desgraçado, nesta
miserável terra em que nasceste, só poderás amar uma negra da tua laia! Tua
mãe, lembra-te bem, foi escrava! E tu também o foste!"
— Mas, replicava-lhe uma voz interior, que ele mal
ouvia na tempestade do seu desespero; a natureza não criou cativos! Tu não tens
a menor culpa do que fizeram os outros, e no entanto és castigado e amaldiçoado
pelos irmãos daqueles justamente que inventaram a escravidão no Brasil!
E na brancura daquele caráter imaculado brotou,
esfervilhando logo, uma ninhada de vermes destruidores, onde vinham o ódio, a
vingança, a vergonha, o ressentimento, a inveja, a tristeza e a maldade. E no
circulo do seu nojo, implacável e extenso, entrava o seu país, e quem este
primeiro povoou, e quem então e agora o governava, e seu pai, que o fizera
nascer escravo, e sua mãe, que colaborara nesse crime. "Pois então de
nada-lhe lhe valia ter sido bem educado e instruído; de nada lhe valia ser bom
e honesto?... Pois naquela odiosa província, seus conterrâneos veriam nele,
eternamente, uma criatura desprezível, a quem repelem todos do seu seio?.."
E vinham-lhe então, nítidas 3 luz crua do seu desalento, as mais rasteiras
perversidades do Maranhão; as conversas de porta de botica, as pequeninas
intrigas que lhe chegavam aos ouvidos por intermédio de entes ociosos e
objetos, a que ele nunca olhara senão com desprezo. E toda essa miséria, toda
essa imundícia, que ate então se lhe revelava aos bocadinhos, fazia agora uma
grande nuvem negra no seu espírito, porque, gota a gota, a tempestade se
formara. E, no meio desse vendaval, um desejo crescia, um único, o desejo de
ser amado, de formar uma família Um abrigo legítimo, onde ele se escondesse
para sempre de todos os homens.
Mas o seu desejo só pedia, só queria, só aceitava
Ana Rosa, como se o mundo inteiro houvera desaparecido de novo ao redor daquela
Eva pálida e comovida, que lhe dera a provar, pela primeira vez, o delicioso
veneno do fruto proibido.
13
A volta pareceu-lhe muito mais longa do que a ida
ao Rosário; quase que não falou por toda a viagem, estalava de impaciência por
estar só, inteiramente só, para pensar à vontade, conversar consigo mesmo e
convencer-se de que era um espírito superior àquelas pequenas misérias sociais.
Logo que chegou a casa, foi direto ao seu quarto,
fechou-se por dentro, com um ruído áspero áspero de fechadura que funciona
poucas vezes. Fazia-se noite. Ele parou junto à mesa, no escuro, acendeu um
fósforo, apagou-se; segundo, terceiro, o quarto ardeu bem, porém Raimundo ficou
a olhar abstrato para a flama azul, torcendo entre os dedos, automaticamente, o
pedacinho de madeira, que se queimou até chamuscar-lhe as unhas; e ficou as
escuras, por longo tempo, cismando, perdido na sua preocupação E que, de
raciocínio em raciocínio, chegara ao âmago do fato "Devia ceder ou
lutar?..." Mas o seu espírito nada resolvia; acuava como um cavalo
defronte de um abismo. Ele metia as esporas; era tudo inútil!
— Diabo! exclamou, voltando a si.
E acendeu a vela. Assentou-se à escrivaninha, sem
tirar sequer o chapéu, e pôs-se a pensar, sacudindo nervosamente a perna Tomou
distraído a pena, embebeu-a repetidas vezes no tinteiro, e rabiscou as margens
dos jornais que lhe estavam mais próximos. Desenhou, com uma pachorra
inconsciente. um sino Salomão, e, como se estivesse prestando sumo cuidado ao
seu desenho, emendou-o, corrigiu-o, fez um novo igual ao primeiro, outro, mais
outro, encheu com eles toda uma margem de jornal.
— Diabo! exclamou novamente, no desespero de quem
não encontra a solução de um problema.
E pôs-se a fitar, com a máxima atenção a chama da
vela. Depois, tomou um invólucro de cigarros, abandonado sobre a mesa, e
começou a quebrar com ele as estalactites da estearina, ate que o papei, por
muito embebido no combustível, inflamou-se e foi lançado ao chão.
— Diabo!
E repetia insensivelmente as palavras de Manuel:
"Recusei-lhe a mão de minha filha, porque o senhor é filho de uma escrava!
— O senhor é um homem de cor! — O senhor foi forro à pia, e aqui ninguém o
ignora! — O senhor não imagina o que é por cá a prevenção contra os mulatos!..."
— Mulato! E eu que nunca pensara em semelhante
coisa!... Podia lembrar-me de tudo, menos disto!...
E acusava-se de frouxo; de não ter dado boas
respostas na ocasião; não ter reagido com espírito forte, e provado que Manuel
estava em erro e que ele, Raimundo, não ligava a mínima importância a
semelhante — futilidade! Assistiam-lhe agora respostas magníficas, verdadeiros
raios de lógica, com que fulminaria o adversário. E, argumentando com as
réplicas que lhe faltaram então, reformava mentalmente todo o caso, dando a si
próprio um novo papel, tão brilhante e enérgico quão fraco e passivo fora o
primeiro.
Afastou a cadeira da secretária, debruçou-se sobre
esta e escondeu o rosto nos braços dobrados. Assim levou quase uma hora; quando
levantou de novo a cabeça, reparou, pela primeira vez, numa litografia de São
José, que sempre estivera ali na parede do seu quarto. Raimundo examinou
minuciosamente o santo com o seu colorido vivo, o menino Jesus no braço
esquerdo e uma palma na mão direita. Surpreendeu-se de vê-la naquele lugar: em
dias de despreocupação nunca dera por ela. E daí, recordou-se de ter visto na
Alemanha trabalhar um prelo litográfico dos mais aperfeiçoados; depois pensou
nos processos do desenho, nos diversos estilos de artistas seus conhecidos e,
afinal, em São José e na religião cristã. E mais: acudiam-lhe agora coisas
inteiramente indiferentes: lembrava-se de um homem, vermelho e suado, que ele
vira uma semana antes, a conversar sobre Napoleão Bonaparte com um lojista da
Rua de Nazaré. Diziam muita asnice; e a imagem do lojista saltava-lhe perfeita
à memória&emdash;magricela, com uns bigodes compridos, afetando delicadezas
de alfaiate de Lisboa. Ouvira-lhe o nome, mas estava na dúvida. "Moreira?
Não, não era Moreira!" E procurava mentalmente o nome, com insistência.
"Pereira? Não! Nogueira... Era Nogueira ' Este nome trouxe-lhe logo à
lembrança uma ocasião em que conversava com Nogueira Penteeiro, e passar na nua
uma mulher doida, que levantava as saias para mostrar o corpo. De repente,
Raimundo estremeceu, era a idéia que voltava, a idéia primitiva, a idéia
capital. Reaparecia; tinha feito uma retirada falsa; ficara à porta do cérebro,
espiando para dentro. E ele soltou um suspiro com a presença importuna e
vexatória dessa idéia que esperava, pelo seu pensamento, como um policia espera
um criminoso, para o levar preso. E o pensamento de Raimundo remancheava; não
queria ir mas a idéia implacável reclamava-o. E o prisioneiro entregou afinal
os pulsos.
Ergueu-se da cadeira; bateu vigorosamente uma
punhada na mesa, protestando como se alguém lhe falasse:
— Ora sebo! Que diabo tenho eu com isto? O que vim
fazer a esta província estúpida, foi tratar dos meus negócios pecuniários!]
Liquidados &emdash;nada mais tenho que fazer aqui! Musco-me! Ponho-me ao
fresco! Passem muito bem!
E começou a passear pelo quarto, agitado, a
fingir-se muito egoísta com as mãos nas algibeiras das calças monologando:
— Sim! sim! longe daqui não sou forro à pia! o
filho da escrava sou o Doutor Raimundo Jose da Silva, estimado, querido e
respeitados! Vou! Por que não?! O que mo impediria?
E parou, tomou a andar, afinal assentou-se na cama,
disposto a recolher-se. Despiu o paletó, arremessou o chapéu e o colete.
— Sim! O que mo impediria?...
Ia descalçar a primeira botina, quando espantou-se
com a lembrança de Ana Rosa. Uma voz exigente bradava-lhe do coração: "E
eu? e eu? e eu?... Esqueceste de mim, ingrato? Pois bem, não quero que vós,
ouviste? Não irás! sou eu quem to impedirá!"
E Raimundo, pasmo por não ter, durante tanto tempo,
pensado em Ana Rosa, despiu-se com pressa e, como querendo fugir a esta nova
idéia, atirou-se de bruços à cama, soluçando.
As seis horas da manhã ainda havia luz no quarto
dele.
No dia seguinte, às duas da tarde, desceu, muito
abatido, ao escritório de Manuel e pediu-lhe secamente que apressasse os seus
negócios e 0 despachasse quanto antes, porque não podia demorar-se mais tempo
no Maranhão. Precisava partir o mais cedo possível.
— Mas venha cá, doutor, o senhor não me deve
guardar ódio por ter eu...
— Ah, certamente, certamente! Nem pensemos nisso!
interrompeu Raimundo, procurando desviar a conversa. O senhor tem toda a
razão... Vamos ao que importa! Diga-me quando poderei estar desembaraçado?
— Mas não ficou maçado comigo!... Não é verdade?
Creia que...
— Ó senhor! Como quer que lhe diga que não? Maçado!
Ora essa! por quê? Já nem pensava em tal! Vinha até pedir-lhe um serviço...
— Se estiver em minhas mãos...
— É simples.
E, depois de uma pausa, Raimundo continuou, com a voz
um pouco alterada, a despeito do esforço que fazia por afetar tranqüilidade:
&emdash;Como lhe disse ontem... estava autorizado pela senhora sua filha a
pedi-la em casamento; em vista, porem, do que me expôs o senhor a meu respeito,
cumpre-me dar à Srª Ana Rosa qualquer explicação. Compreende que não posso
retirar-me desta província, assim, sem mais nem menos, estando já empenhado em
um compromisso tão melindroso...
— Ah, sim... mas não lhe dê isso cuidado...
Arranjarei qualquer desculpa..
— Uma desculpa, justamente! É preciso dar-lhe uma
desculpa; e o melhor seria declarar-lhe a verdade. Explique-lhe tudo. Conte-lhe
o que se passou entre nós .Ninguém, para isso, está mais no caso que o
senhor!...
Manuel caçava a nuca com uma das mãos, enquanto com
a outra batia o cabo da caneta entre os dentes, na atitude contrariada de quem
toma, à pura força de circunstâncias, interesse numa causa estranha; porem,
como Raimundo falasse em mudar de casa, ele atalhou logo.
— Como o senhor quiser... mas a nossa choupana está
sempre às suas ordens...
— Bem, concluiu o rapaz, agradecendo o oferecimento
com um gesto; posso então contar que o meu amigo se encarrega de explicar tudo
à senhora sua filha?
— Pode ficar descansado.
— E quando terei os meus negócios concluídos?
— Antes da chegada do vapor já o senhor estará
inteiramente desembaraçado.
— Muito agradecido.
E Raimundo subiu para o seu quarto.
Fazia um grande calor. O céu, todo limpo, com as
suas nuvens arredondadas, parecia um vasto tapete azul, onde dormiam enormes
cães felpudos. Raimundo lembrou-se de sair; feitou-lhe o ânimo:
afigurava-se-lhe que na rua todos os apontariam, dizendo: "Lá vai o filho
da escrava!" ia abrir a janela e hesitou; sentia um grande tédio, um
mal-estar crescente, desde a revelação de Manuel; uma surda indisposição contra
tudo e contra todos; naquele momento, irritava-o, por exemplo, a voz aflautada
de um quitandeiro, que argumentava, lá embaixo na nua, com um súcio. Abriu o
álbum com a intenção de desenhar, mas repeliu-o logo; tomou um livro e leu
distraidamente algumas linhas; levantou-se, acendeu um cigano e passeou a
largos passo pelos pelo quarto, com as mãos nas algibeiras.
Em um destes passeios, parou defronte do espelho e
mirou-se com muita atenção. procurando descobrir no seu rosto descorado alguma
coisa, algum sinal, que denunciasse a raça negra. Observou-se bem, afastando o
cabelo das fontes; esticando a pele das faces, examinando as ventas e
revistando os dentes; acabou por atirar com o espelho sobre a cômoda, possuído
de um tédio imenso e sem fundo.
Sentia uma grande impaciência, porém vaga,
sorrateira, sem objeto, um frouxo desejar que o tempo corresse bem depressa e
que chegasse um dia, que de não sabia que dia era; sentia uma vontade
indefinida de ir de novo a Vila do Rosário, procurar a pobre mãe, a pobre
negra, e dedicada escrava de seu pai, e trazê-la em sua companhia, para dizer a
todos: "Esta preta idiota, que aqui vêem ao meu braço e minha mãe, e ai
daquele que lhe faltar ao respeito!" Depois fugir com ela da pátria, como
quem foge de um covil de homens maus e meter-se em qualquer terra, onde ninguém
conhecesse a sua história. Mas, de improviso, chegava-lhe Ana Rosa à lembrança,
e o infeliz desabava num grande desanimo, vencido e humilhado.
E deixava cair a cabeça na palma das mãos, a
soluçar.
Por este tempo, Manuel acabava de expor à filha a
necessidade absoluta de não pensar em Raimundo.
— Enfim, dizia de, tu já não es uma criança, e bem
podes julgar o que te fica bem e o que te fica mal!... Há por aí muito rapaz
decente, de boa família... e nos casos de fazer-te feliz .Vamos! Não quero ver
esse rostinho triste!... Deixa estar que mais tarde me agradecerás o bem que
agora te faço!...
Ana Rosa, de cabeça baixa ouvia, aparentemente
resignada, as palavras do pai. Confiava em extremo no seu amor e nos juramentos
de Raimundo, para recear qualquer obstáculo. Só agora soubera ao certo da
precedência de seu primo bastardo e no entanto, ou fosse porque lhe germinavam
ainda no coração os supremos conselhos matemos, ou fosse que o seu amor era dos
que a tudo resistem, o caso é que essa história que a tantos arrancara
exclamações de desprezo; isso que forneceu assunto a gordas palestras nas
portas dos boticários; isso que foi comentado em toda a província, entre risos
de escárnio e cuspalhadas de nojo, desde a sala mais pretensiosa, até à
quitanda mais pífia; isso que fechou muitas portas a Raimundo e cercou-o de
inimigos; isso, essa grande história escandalosa e repugnante para os
maranhenses, não alterou absolutamente nada, o sentimento que Ana Rosa lhe
votava. As palavras de Manuel não lhe produziam o menor abalo; da continuava a
estremecer e desejar o mulato com a mesma fé e com o mesmo ardor; tinha lá para
si que de possuía bastante merecimento próprio, bastante atrativo, para ocupar
de todo a atenção de quem o observasse, sem ser preciso remontar aos seus
antepassados. Estabelecia comparações entre as regalias do amor de Raimundo e
as vergonhas que dele pudesse resultar, e concluía que aquelas bem mereciam o
sacrifício destas, Amava-o — eis tudo.
Manuel, depois dos seus conselhos, passou a fazer
considerações desfavoráveis a respeito das qualidades morais do mulato, e. com
isso apenas conseguiu estimular o desejo da filha, juntando aos atrativos do
belo rapaz mais um, não poderoso o da proibição. Enquanto ele, entestando com a
inadmissível hipótese de um casamento tão desastrado, desenrolava um quadro
assustador, profetizando, com as negras cores da sua experiência e com febre do
seu amor de pai um futuro de humilhações e arrependimentos chegando até a
ameáça-la ia de retirar-lhe a bênção; Ana Rosa, distraída, olhando para um só
ponto respondia maquinalmente: "Sim... Não... Decerto!... Está visto!..
" sem prestar a mínima atenção ao que ele discretamenteava porque o
próprio objeto discutido lhe arredava dali o pensamento trazendo-lhe por
associação de idéias, os seus devaneios favoritos nos quais se sonhava ao lado
de Raimundo, em plena felicidade conjugal.
— Enfim, disse Manuel, procurando encenar o
discurso e satisfeito pelo ar atento e resignado da filha; nada temos que
recear... Ele muda-se por estes dias e parte definitivamente no primeiro vapor
para o Sul!
Esta notícia, dada assim à queima-roupa e em tom
firme, despertou-a com violência.
— Hein? como? parte? muda-se? por quê?...
E fitou o pai, sobressaltada.
— É, ele muda-se... Não quer esperar aqui o dia da
viagem..
— Mas por quê, senhores?
O negociante viu-se num grande embaraço; não lhe
convinha dizer abertamente a verdade; dizer que Raimundo se retirava, para
fugir ao tormento de ver todos os dias Ana Rosa, sem esperança de possuí-la. E
não atinando com uma resposta, com uma saída, o pobre homem balbuciava:
— É! o rapaz maçou-se com o que eu lhe disse, e
como e senhor do seu nariz, muda-se! Ora essa! Pensas talvez que ele se sinta
muito com isso?... Estás enganadinha, filha! Foi-me muito lampeiro ao
escritório e pediu-me que o desculpasse contigo. "Que desses o dito por
não não dito! Que ele precisava mudar de ares!... Que se aborrecia muito cá
pela província! pela aldeola&emdash;como ele a chama!"
— Mas por que não veio ele mesmo entender-se
comigo?...
— Ora, filha! bem se vê que não conheces 0
Raimundo.. Pois ele é lá homem para essas coisas?... Um tipo que não liga a
menor importância às coisas mais respeitáveis! Um ateu que não acredita em
nada! Até ficou mais satisfeito depois da minha recusa! Só parece que estava
morrendo por um pretexto para desfazer o seu compromisso contigo!
— Percebo! exclamou Ana Rosa transformando-se e
cobrindo o rosto com as mãos. E que não me ama! Nunca me amou, o miserável!
E abriu a chorar.
— Hein?! Olá! Então que quer isto dizer... Ora ora
os meus pecados! Ai, que isto de mulheres não há quem as entenda!
Ana Rosa fugiu para o seu quarto, nervosa,
soluçando, e atirou-se de bruços na rede.
O pai seguiu-a assustado:
— Então, minha filha, que é isto?...
— Diabo da peste!
E a infeliz soluçava.
— Então, que tolice a tua, Anica! Olha, minha
filha! escuta!
— Não quero escutar nada! Diga-lhe que pode ir
quando entender! Pode ir, que ate é favor!
— Grande coisa perdes, na verdade! Ora vamos! Nada
de asneiras!
Ana Rosa continuava a soluçar. cada vez mais
aflita, com o rosto escondido nos braços; as mangas do seu vestido e os
travesseiros da rede estavam já ensopados das lágrimas. Assim levou algum
tempo, sem responder ao que lhe dizia o pai, de repente suspendeu de chorar,
ergueu a cabeça e soltou um gemido rápido e agudo. Era o histérico.
— Diabo! resmungou Manuel, coçando a nuca
atrapalhado. E chamou logo pelos de casa: D. Maria Bárbara! Brígida! Mônica!
O aposento encheu-se imediatamente.
O cônego Diogo, que ficara na saleta, à espera
daquela conferência de Manuel com a filha, entrou também atraído pelos gritos
da afilhada.
— Hoc
opus hic labor est!
Nessa ocasião, Raimundo, no seu quarto, passava
pelo sono, estendido sobre um divã. Sonhava que fugia com Ana Rosa e que, em
caminho, eram, os dois, perseguidos por três quilombolas furiosos armados de
facão. Um pesadelo. Raimundo queria correr e não podia: os pés enterravam-se
-lhe no solo, como no tujuco, e Ana Rosa pesava como se fosse de chumbo. Os
pretos aproximavam-se, dardejando os fenos, iam alcançá-los. O rapaz suava de
medo; estava imóvel, sem ação, com a língua presa.
Os gritos reais da histérica coincidiam com os
gritos que Ana Rosa, no sonho, soltava, ferida pelos mocambeiros. Com o
esforço, Raimundo pulou do divã e olhou estremunhado em torno de si; depois,
deitou a correr para a varanda.
O cônego, ouvindo-lhe os passos, veio sair-lhe ao
encontro.
— Attendite!
— Ora, até que enfim nos encontramos! disse-lhe
Raimundo.
— Pschio! fez o cônego. Ela está sossegando agora!
Não vá lá, que lhe pode voltar o ataque!... O senhor é o causador de tudo
isto!...
— Preciso dar-lhe duas palavras incontinente,
senhor cônego!
— Homem, deixe isso para outra ocasião... Não vê o
alvoroço em que está a casa?...
— Se lhe digo que preciso falar-lhe
incontinenti!... Ande! Vamos ao meu quarto!
— Que diabo tem o senhor que me dizer?!
— Quero tomar alguns esclarecimentos sobre São
Brás, percebe?
&emdash;Horresco referens!...
E Raimundo, com um empurrão, meteu-se, mais o
cônego, no quarto, e fechou-se por dentro.
— Vá dizer-me quem matou meu pai! exclamou,
ferrando-lhe o olhar.
— Sei cá!
E o cônego empalideceu. Mas estava a prumo,
defronte do outro.
Cruzou os braços.
— Que quer isto dizer?...
— Quer dizer que descobri afinal o assassino de meu
pai e posso vingar-me no mesmo instante!
— Mas isto é uma violência! tartamudeou o padre,
com a voz sufocada pela comoção.
E, fazendo um esforço sobre si, acrescentou mais
seguro:
&emdash;Muito bem senhor doutor Raimundo! muito
bem! Está procedendo admiravelmente! É então por esta forma que me pede
noticias de seu pai? é este o modo pelo qual me agradece a amizade fiel, que
dediquei noutro tempo ao pobre homem? Fui o seu único amigo, o seu amparo, a sua
darradeira consolação! e é um filho dele que vem agora, depois de vinte anos,
ameaçar um pobre velho, que foi sempre respeitado por todos! Parece que só
esperavam que me embranquecessem de todo os cabelos, para insultarem esta
batina, que foi sempre recebida de chapéu na mão! Ah, muito bem! muito bem! Era
preciso viver setenta anos para ver isto! muito bem! Quer vingar-se? Pois
vingue-se! Que lho impede?! Sou eu o criminoso? Pois venha o carrasco! Não me
defenderei, mesmo porque já me faltam as forças para isso!... Então! que faz
que não se mexe?!
Raimundo, com efeito, estava imóvel.
"Ter-se-ia enganado?..." À vista do aspecto sereno do cônego chegara
a duvidar das conclusões dos seus raciocínios. "Seria crive! que aquele
velho, tão brando, que só respirava religião e coisas santas, fosse o autor de
um crime abominável?,.." E, sem saber o que decidir, atirou-se a uma
cadeira, fechando a cabeça nas mãos.
O padre compreendeu que ganhara terreno e
prosseguiu, na sua voz untuosa e resignada:
— É, o senhor deve ter razão!... Fui eu
naturalmente o assassino de seu pai!... É um rasgo generoso e justo de sua
parte desmascarar-me e cobrir-me de ultrajes, aqui nesta casa, onde sempre me
beijaram a mão. O senhor esta no seu direito! Olhe! agarre aquela bengala e
bata-me com ela! Está moço, pode fazê-lo! está no vigor dos seus vinte e cinco
anos! Vamos! Fustigue este pobre velho indefeso! castigue este corpo decrépito,
que já não presta para nada! Então! bata sem receio que ninguém o saberá! Pode
ficar descansado que não gritarei — tenho defronte dos olhos a imagem resignada
de Cristo, que sofreu muito mais!
E o cônego Diogo, com os braços e olhos erguidos
para cima, caiu de joelhos e disse entre dentes, soluçando:
— Ó Deus misericordioso! Tu, que tanto padeceste
por nós, lança um olhar de bondade sobre esta pobre criatura desvairada!
compadece-te da pobre alma pecadora, levada só pela paixão mundana e cega! Não
deixes que Satanás se apodere da mísera. Salva-a, Senhor! perdoa-lhe tudo, como
perdoaste aos teus algozes! Graça para ela! eu te suplico, graça, meu divino
Senhor e Pai!
E o cônego ficou em êxtase.
— Levante-se, observou-lhe Raimundo, aborrecido.
Deixe-se disso! Se lhe fiz uma injustiça, desculpe. Pode ir descansado, que não
o perseguirei. Vá!
Diogo ergueu-se, e pousou a mão no ombro do moço.
— Perdôo-te tudo, disse; compreendo perfeitamente o
teu estado de excitação. Sei o que se passou! Mas consola-te, meu filho, que
Deus é grande, e só no seu amor consiste a verdadeira paz e felicidade!
E saiu de cabeça baixa, o ar humilde e contrito;
mas, ao descer a escada para a rua, resmungava:
— Deixa estar, que mas pagarás, meu cabrinha
apistolado!...
14
Sete dias depois, morava Raimundo em uma das suas
casinhas da Rua de São Pantaleão.
Vivia aborrecido; vivia exclusivamente a esperar o
dia da viagem para a Corte. Nunca a província lhe parecera tão enfadonha, nem o
seu isolamento tão pesado e tão triste. Não sala quase nunca à nua; não
procurava pessoa alguma, nem tampouco ninguém o visitava. Dizia-se por aí que
ele estava de cama por uma bonita sova, que lhe mandara dar o pai da namorada.
"Era bem feito! Para se não fazer apresentado com uma menina branca!"
Os maldizentes, empenhados na vida dele, como se
Raimundo fosse um político de quem dependesse a salvação da província,
afiançavam que alguma peça estava o tratante urdindo em silêncio.
— Acreditem, exclamava um dos tais, a um grupo, que
todos estes sujeitos que se fazem muito santarrões e de quem a boca do mundo
nada tem que dizer, são os mais perigosos! Eu, cá por mim, não me fio de
ninguém! quando vejo um tipo, julgo logo mal dele; se o traste prega-me alguma,
não me espanta, porque já a esperava!
— E se não prega?
— Fico na certeza de que muita coisa se faz às
caladas neste Maranhão! Mas 1á acreditar em virtudes de aventureiros, isso é
que nem à sétima facada!
Entretanto, Raimundo levava uma vida de degradado,
sem amigos e sem carinhos de espécie alguma. No seu desterro tinha por
companhia única uma preta velha, que se encarregara de servi-lo; magra, feia,
supersticiosa arrastando-se, a coxear, pela varanda e pelos quartos desertos
fumando um cachimbo insuportável, e sempre a falar sozinha, a mastigar
monólogos intermináveis.
E esta solidão enchia-o de tédio e de saudades pelas
boas horas alegres, que passava dantes ao lado de Ana Rosa, aquecido ao calor
benéfico da família. Ultimamente muito pouco se dava ao estudo; estava
desleixado, preguiçoso, vivia para as suas preocupações recentes. Ficava horas
esquecidas à mesa, depois do almoço ou do jantar, olhando vagamente para o seu
quintal sem plantas, com os pés cruzados a cabeça molemente calda sobre o
peito, a fumar ciganos um atrás do outro, num aborrecimento invencível.
Tomara embirrância por tudo e emagrecia.
À noite, acendia-se o candeeiro de querosene, e
Raimundo assentava-se junto à secretaria, lendo distraído algum romance ou
revendo as gravuras de algum jornal ilustrado. A um canto da varanda resmungava
a criada, cosicando trapos. O rapaz sentia um fasto de morte, tinha
espreguiçamentos de febre, moleza geral no corpo; não podia entrar com a
cozinha da preta&emdash;era uma coisa muito mal amanhada&emdash;tinha
nojo de beber pelos copos mal lavados; banhava com repugnância o rosto na bacia
barrada de gordura. "O senhores! Que vida!" E ficava cada vez mais
nervoso e frenético; esperava o dia da viagem contando os minutos; porém, a
despeito de tudo, sentia uma surda e funda vontade de não ir, uma íntima
esperança de ser ainda legitimamente amado por Ana Rosa.
— Impossível!... concluía sempre, fazendo-se forte.
Deixemo-nos de asneiras!
E pensava no que não estaria ela julgando dele; no
juízo que formarda do seu caráter Nunca mais tiveram ocasião de trocar uma
palavra ou um olhar; apenas recebia noticias de Ana Rosa por aquela idiota, que
não as sabia dar. "Ora! também de que servia afligir-se daquele modo? o
melhor era deixar que as coisas levassem o seu destino natural! Não podia, nem
devia, por forma alguma, casar com semelhante mulher, para que, pois, pensar
ainda nisso?..."
Em casa de Manuel as coisas igualmente não corriam
lá muito bem. Ana Rosa curtia densas tristezas, mal dissimuladas aos olhos do
pai, da avó e do cônego. A pobre moça esforçava-se por esquecer o desleal
amante que a abandonara covardemente. E, na sua decepção imaginava vinganças
irrefletidas; tinha desejos absurdos: queria casar-se por aqueles dias,
arranjar um marido qualquer, antes que Raimundo se retirasse da província;
desejava provar-lhe que ela não ligava a menor importância ao caso e que se
entregaria com prazer a outro homem.
Pensou no Dias e esteve quase a falar-lhe.
Manuel, soprado pelo compadre, indispunha mais e
mais o ânimo da filha contra o mulato; contando-lhe, a respeito deste, fatos
revoltantes, inventados pelo cônego; fazia-se agora muito meigo ao lado dela,
submetia-se aos seus caprichos, às suas vontadezinhas de menina doente. com a
compungida solicitude de um bom enfermeiro.
Ana Rosa abanava a cabeça, resignada. O fato
provado de que Raimundo contsentia sem resistência e talvez por gosto, em
abandoná-la, ao mesmo tempo que aumentava nela o desejo de reconquistá-lo e
possuí-lo, dava a seu orgulho bastante energia para esconder de todos o seu
amor Supunha-se vítima de uma decepção; julgava o seu amante mais apaixonado e
mais violento, e, à vista da passividade com que ele <e submeteu logo às
circunstâncias; 3 vista daquela condescendência burguesa e medrosa, pois
Raimundo não se animara a dar-lhe, nem a es rever-lhe, urna palavra depois da
recusa de Manuel, ela se julgava desenganada e desiludida. "Nunca nunca me
amou! dizia de si para si desesperada Se me amasse, como eu imaginava, teria
reagido! E um impostor! um tolo! Um vaidoso, que desejou apenas ter mais uma
conquista amorosa!
E vinha-lhe um grande desejo de chorar e preferir
muito mal contra Raimundo. Agora. achava que ele era o pior dos homens, a mais
desprezível das criaturas. Às vezes, porém, arranhava-lhe a consciência uma
pontinha de remorso: lembrava-se de que a iniciativa daquele namoro partira
toda de sua parte, e então. com uma dorzinha de vergonha assistiam-lhe
considerações mais favoráveis ao primo; chegava ate a doer-se de haver feito um
juízo tão mau do pobre rapaz. "Sim... pensava. Verdade, verdade, se não
fosse eu... coitado! ele talvez nunca me falasse em amor!... fui eu que o
provoquei, que lhe lancei a primeira faisca no coração!..." E por este
caminho Ana Rosa fazia mil raciocínios, que abrandavam um tanto a sua me
vontade contra o perjuro.
Mas a avó saltava-lhe logo em ama:
— Parece que ficaste meio sentida com o que se
passou!... Pois Olha. se tivesse Te assistir ao teu casamento com um cabra,
juro-te, por esta luz que está nos alumiando, que te preferia uma boa morte,
minha neta! porque sedas a primeira que na família sujava o sangue! Deus me
perdoe pelas santíssimas chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo! gritava ela,
pondo as mãos para o céu e revirando os olhos, mas tinha animo de torcer o
pescoço a uma filha, que se lembrasse de tal, credo! que nem falar nisto é bom!
E só peço a Deus que me leve, quanto antes, se tenho algum dia de ver, com
estes que a terra há de comer, descendente meu caçando a orelha com o pé!
E, voltando-se para o genro, num assanhamento
crescente:
— Mas creia seu Manuel. que se tamanha desgraça
viesse a suceder, só a você a deveríamos, porque, no fim das contas, a quem
lembra meter em casa um cabra tão cheio de fumaças como o tal doutor das
dúzias?... Eles hoje em dia são todos assim!... Dá-se-lhes o pé e tomem a
mão!... Já não conhecem o seu lugar, tratantes! Ah, meu tempo! meu tempo! que
não era preciso estar cá com discussões e políticas! Fez-se besta? — Rua! A
porta da nua é a serventia da casa! E é o que você deve fazer, seu Manuel! Não
seja pamonha! despeça-o por uma vez para o Sul, com todos os diabos do inferno!
e trate de casar sua filha com um branco como ela. Arre.
— Amém! disse beaticamente o cônego.
E sorveu uma pitada.
Falou-se em toda a capita! do rompimento de
Raimundo com a família do Manuel Pescada. Cada qual comentou o fato como melhor
o entendeu, alterando-o, já se sabe, cada um por sua parte. O Freitas
aproveitou logo a ocasião dizer dogmaticamente aos seus companheiros de
secretaria
— Acontece, meus senhores, com um boato, que corre
a província, o mesmo que com uma pedra levada pela enxurrada da chuva; à
proporção que rola, de rua em rua, de beco em beco, de fosso em fosso,
vão-se-lhe apegando toda sorte de trapos e imundícia que encontra na sua
vertiginosa carreira; de sorte que, ao chegar à boca-de-lobo, já se lhe não
reconhece a primitiva forma. Do mesmo feitio, quando uma notícia chega a cair
no esquecimento, já tão desfigurada vai de si, que da própria não conserva mais
do que a origem!
E o Freitas, satisfeito com esta tirada, assoou-se
estrondosamente, sem despregar do auditório o seu penetrante sorriso de grande
homem, que prodigaliza, sem olhar a quem dá, as preciosas jóias da sua pródiga
eloqüência.
Durante aqueles dias não se falava senão em
Raimundo.
— Desacreditou, para sempre, a pobre moça!... dizia
um barbeiro no meio da conversa da sua loja.
— Desacreditar quis ele! responderam-lhe, mas é que
ela nunca lhe deu a menor confiança! Isto sei eu de fonte limpa!
Na casa da praça, afirmava um comendador, que a
saída de Raimundo da casa do tio era devida simplesmente a uma ladroeira de
dinheiro, perpetrada na burra de Manuel, e que este, constava, já tinha ido
queixar-se à polícia e que o doutor chefe procedia ao inquérito.
— É bem feito! E bem feito!... vociferava um mulato
pálido, de carapinha rente, bem vestido e com um grande brilhante no dedo E
muito bem feito, para não consentirem que estes negros se metam conosco!
Seguiu-se um comércio rápido de olhadelas
expressivas, trocadas entre os circunstantes, e a conversa torceu de rumo, indo
a cair sobre as celebridades de raça escura, vieram os fatos conhecidos a
respeito do preconceito da cor; citaram-se pessoas gradas da melhor sociedade
maranhense, que tinham um moreno bem suspeito; foram chamados à conversa todos
os mulatos distintos do Brasil narrou-se enfaticamente a célebre passagem do
Imperador com o engenheiro Rebouças. Um sujeito, levantou pasmo da roda,
nomeando Alexandre Dumas, e dando a sua palavra de honra em como Byron tinha
casta.
— Ora! isso que admira?... disse um estúpido. Aqui
Já tivemos um presidente tão negro como qualquer daqueles cangueiros, que ali
vão com a pipa de aguardente!
— Não... rosnou convencido um velhote, que entre os
comerciantes passava por homem de boa opinião Que eles têm habilidade,
principalmente para a musica, isso é inegável!...
— Habilidade?... segredou outro, com o mistério de
quem revela uma coisa proibida. Talento! digo-lhe eu! Esta raça cruzada é a
mais esperta de todo o Brasil! Coitadinhos dos brancos se ela pilha uma pouca
de instrução e resolve fazer uma chinfrinada. Então é que vai tudo pelos ares!
Felizmente não lhe dão muita ganja!
— Aquilo, comentava Amância, boquejando esse dia,
sobre o mesmo assunto, em casa de Eufrásia; aquilo não podia ter outro
resultado! Cá está quem não poria lá mais os pezinhos, se o basbaque do Pescada
metesse o cabra na família!
— Ora não é também tanto assim!... objetava a
quente viúva. Conheço certa gente, que se faz muito de manto de seda e que, no entanto,
vai filar constantemente o jantar dos cabras que passam bem. A questão é de boa
mesa!
— O quê? berrou a velha, pondo as mãos nas
cadeiras. Isso é uma indireta?! comigo?!...
E subiu-lhe uma roxidão às faces.
— Diga! exclamou. Pois diga! Quero que diga qual
foi o negro a quem Amância Diamantina dos Prazeres Sousella, neta legítima do
Brigadeiro Cipião Sousella, conhecido pelo "Corisco" na Guerra dos
Guararapes, desse algum dia a confiança de ocupar! Eu?!... Até brada ao céu!
Qual foi o cabra com quem a senhora já me viu de mesa?!...
— Eu não falo com a senhora! E esta?
— Ah!... Pois então conheça!
— Falo no gera!
E Eufrasinha dava as provas, citava nomes, contava
fatos, e terminou declarando que, apesar de tudo que se dizia nesse Maranhão
velho, Raimundo era um cavalheiro distinto, com um futuro bonito, alguns
cobres, e... enfim. . Ora, adeus, deixasse lá falar quem falava! — era um
marido de encher as medidas!
E a viúva arregalou os olhos e mordeu os beiços,
chupando o ar com um suspiro.
— Que lhe faça muito bom proveito! arrematou a neta
do "Corisco" traçando o xale já na porta, para sair. Há gente para
tudo nesta vida! Credo!
E foi logo, direitinha como um fuso, para a casa do
Freitas.
Pois não sabem de uma muito boa?... disse ao chegar
lá, sem tomar fôlego. A sirigaita de Eufrásia diz que não se lhe dava de casar
com o Mundico do Pescada!
— Ele é que eu duvido que a aceitasse!... bocejou o
Freitas, estendendo com preguiça as suas magras e longas pernas na cadeira, e
cruzando os pés, com um ar feliz e descansado. Que ela morre por um
marido&emdash;isso é velho! E tem razão, coitada!
Riu-se.
— Credo! cruz! trejeitou Amância. Assim também
não!... No meu tempo...
— Era a mesmíssima coisa, D. Amância; as raparigas
pobres pediam aos céus um marido, como... como... insistia ele, a procura de
uma comparação, como não sei o quê!... A senhora, já sei que fica para
jantar...
— Se tiver peixe, fico! disse, autorizada pelo
cheiro ativo de azeite frito, que vinha da cozinha.
— Então, titia Amância, saiba que temos e muito
bom! observou Lindoca, bamboleando-se pela varanda.
— Ó menina! gritou-lhe a velha, onde queres ir tu
com toda essa gordura? Já basta! Apre!
— Não irá muito longe, disse o Freitas, sempre
risonho, cansaria depressa...
— Olhe, veja, reclamou a moça, fazendo parar a
escrava, que passava com a terrina do peixe. Está convidando! Quentinho que é
um fogo!
— Ai, filha! é a minha paixão! Um peixinho bem
preparado, quentinho, com farinha-d'água! Mas, olha, bradou para a criada, e
levantou-se logo, não o deites aí, rapariga, que o gato e muito capaz de
pregarmos alguma peça... Bota antes neste armário!
E, como se estivesse na própria casa, tomou a
terrinha e acondicionou-a em uma das prateleiras. "Não havia que fiar em
gatos!... Eles eram necessários por mor dos ratos, mas que canseira seu Bom
Jesus! Ind'estrodia o seu Peralta fora-lhe ao guarda-petiscos e... nem dizia
nada! unhara-lhe a carne-de-sol, que havia para o almoço, porque ela estava de
purga Forte ladrão! também, dera-lhe uma mela, que o pusera assim!..."
E Amância, procurando mostrar como ficara o gato
arreganhou uns restos de dentadura acavalada e espichou as peles do pescoço
Passava já das três da tarde. Os empregados
públicos saíam.` da repartição, procurando a sombra, cora o seu passo metódico
c inaterável, o chapéu-de-sol dependurado do braço esquerdo, corno de um
cabide, o ar descansado e indiferente dos homens pagos por mês, que nunca se
apressam, que nunca precisam de se apressar.
Começava a soprar a viração da tarde, e c tempo
refrescava
Lindoca, com grande entremecimento do assoalho,
arrastou-se até à janela, para ver passar o Dudu Costa Dudu era um da
Alfândega, que lhe arrastava a asa, rapaz sério, sequinho de carnes, bem
arranjado e com muito jeito para o casamento. O Freitas olhava com bons olhos
este namoro, e só esperava que o moço tivesse nesse mesmo ano um acesso na
repartição havia lá um empregado superior muito doente, que, sem dúvida,
bateria o cachimbo por todos aqueles três meses, e, como Dudu tinha um amigo,
cujo pai dispunha de bons empenhos para o presidente, dava corno certa a sua
nomeação, tão certa que pensava já no enxoval do casamento, punha de parte
alguma coisa do ordenado e convidava os amigos mais íntimos para o grande dia
da amarração. De tudo isto o Freitas andava a par. 'Diabo era só aquela maldita
gordura da menina, que aumentava todos os dias e estava fazendo dela um
odre!"
— Ora queira Deus não seja alguma praga!...
observava Amância :. Há muita gente invejosa neste mundo, minha rica!
— Minha senhora, "o casamento e a mortalha no
céu se talham! citou o grande homem, sacrificando a rima à boa concordância
gramaticalmente.
Por essas mesmas horas, topavam-se numa esquina .
Sebastião Campos e o Casusa.
— 01á! por cá, seu Susa?
— Como vai isso?
— Ora! você não faz idéia! desquerido de dor de
dentes. Este diabo não me deixa pôr pé em ramo verde!
E Sebastião escancarou a boca, para mostrar um
queixal ao amigo.
— Andaço! resmungou este. Dê cá um cigarro
Sebastião passou-lhe prontamente a enorme bolsa de
borracha amarela e o caderninho de mortalhas de papei.
— Então que há de novo por aí? perguntou.
— Tudo velho... Você vai se chegando pra casa..
— Hum-hum, afirmou o Campos com a garganta. Chegou
o vapor do Pará?
— Chegou; sai amanhã para o Sul às nove. E verdade!
o Mundico vai nele, sabe?
— É! Ouvi dizer que tinha brigado com o Pescada.
— Brigou, hein?...
— Diz que por causa de dinheiro, que Raimundo
pedira-lhe certa quantia emprestada, e, como o outro negara, disparatou!
— Homem! não sei se pediu dinheiro, mas a filha
sei, por fonte limpa, que pediu!
— E o galego?
— Negou-a! diz que porque o outro e mulato!
— Sim, em parte... aprovou Sebastião
— Ora, deixe disso, seu Campos! Não sei se é porque
não tenho irmãs, mas o que lhe asseguro é que preferia o doutor Raimundo da
Silva a qualquer desses chouriços da Praia Grande.
— Não! lá isso é que não Preto é preto! branco é
branco! Nada de confusões!
— Djgo-lhe então mais! asneira seria a dele se se
amarrasse, porque o cabra é atilado às direitas!
— Sim, isso faria... confirmou o Campos entretido a
quebrar a caliça da parede com a biqueira do chapéu-de-sol. Aquilo esta se
perdendo por cá... é homem para uma cidade grande!.. Olhe, ele talvez faça
futuro no Rio... Você lembra-se do...?
— E segredou um nome ao ouvido do Casusa.
— Ora! como não? Muita vez dei-lhe aos cinco e aos
dez tostões para comer, coitado! E hoje, hein?
— É! Foi feliz... mas, quer que lhe diga? não
acredito lá essas coisas no futuro deste por causa daquelas idéias de
repúblicas... porque, convençam-se por uma vez de uma coisa! a república é
muito bonita, é muito boa sim senhor! porém não é ainda para os nossos beiços!
A república aqui vinha dar em anarquia!...
— Você exagera, seu Sebastião
— Não é ainda para os nossos beiços, repito! nós
não estamos preparados para a república! O povo não tem instrução! É ignorante!
e burro! não conhece os seus direitos!
— Mas venha cá! replicou o Casusa, fechando no ar a
sua mão pálida e encardida de cigano. Diz você que o povo não tem instrução;
muito bem! Mas, como quer você que o povo seja instituído num país, cuja
riqueza se baseia na escravidão e com um sistema de governo que tira a sua vida
justamente da ignorância das massas?... Por tal forma, nunca sairemos deste
circulo vicioso! Não haverá república enquanto o povo for ignorante, ora,
enquanto o governo for monáquico conservará, por conveniência própria, a ignorância
do povo; logo — nunca haverá república!
— E será o melhor!...
— Eu então já não penso assim! Acho que ela devia
vir, e quanto antes! tomara eu que rebentasse por ai uma revolução: só para ver
o que sala! Creio que somente quando tudo isto ferver, a porcaria irá na
espuma! E será espuma de sangue, seu Sebastião!... Acredite, meu rico, que não
há Maranhão como este! Isto nunca deixará de ser uma colônia portuguesa!... O
alto governo não faz caso das províncias do Norte! A tal centralização é um
logro para nós! ao passo que, se isto fosse dividido em departamento, cada
província cuidaria de si e havia de ir pra diante, porque não tinha de
trabalhar para a Corte! a insaciável cortesã! — E o Casusa gesticulava
indignado. — Mas o que quer você?! O governo tem parentes tem afilhados tem
comitivas, tem salvas tem maçapães tem o diabo! e para isso e preciso cobre!
cobre! O povo esta aí, que pague! Tome imposto pra baixo e deixa correr o pau
para Caxias!
E, chegando a boca a uma orelha do outro: — Olhe
meu Sebastião, aqui no Brasil vale mais a pena ser estrangeiro que filho da
terra!... Você não esta vendo todos os dias os nacionais perseguidos e
desrespeitados, ao passo que os portugueses vão se enchendo, vão se enchendo, e
as duas por três são comendadores são barões, são tudo! Uma revolução! exclamou
repelindo o Campos com ambas as mãos Uma revolução é do que precisamos!
— Qual revolução o quê! Você é um criançola seu
Casusa e ainda não pensa seriamente na vida! Deixe estar que em tempo julgará
as coisas a meu modo, porque em nossa lena . Que idade tem você?
— Entrei nos vinte e seis.
— Eu tenho quarenta e quatro... em nossa terra
estão se vendo constantemente entradas de leão e saídas de sendeiro!... Você
acha que a república convinha ao Brasil! pois bem... Ai!
— O que é?
— O dente! diabo!
E, depois de uma pausa
— Adeus. Até logo, disse cobrindo o rosto com o
lenço e afastando-se.
— Olhe! Espere, seu Sebastião gritava o Casusa,
querendo detê-lo, empenhado na palestra.
— Nada! Vou ali ao Maneca Barbeiro curar este
maldito!
E separaram-se.
Entretanto, na noite desse mesmo dia, quando o
relógio de Raimundo marcava onze horas, acabava este de aprontar as suas malas.
— Bom! &emdash;E sacudiu as mangas da camisa,
que o suor prendia aos braços.&emdash;Amanha a estas horas já estou longe
daqui!...
Em seguida, assentou-se à secretária e tirou da
pasta uma folha de pape!, escrita de princípio a fim com uma letra miúda e às
vezes tremida. Releu tudo atentamente, dobrou a folha, meteu-a num envelope e
subscritou-o a "Exª Sr.ª D. Ana Rosa de Sousa e Silva". Depois
quedou-se a fitar este nome, como se contemplasse uma fotografia.
— Deixemo-nos de fraquezas!...
E levantou-se.
Fazia um grande silêncio nas ruas ao longe ladrava
tristemente um cão, e, de vez em quando ouviam-se ecos de uma música distante.
E Raimundo, ali, no desconforto do seu quarto, sentia-se mais só do que nunca;
sentia-se estrangeiro na sua própria tenra, desprezado e perseguido ao mesmo
tempo. "E tudo, por quê?... pensava ele, porque sucedera sua mãe não ser
branca!... Mas do que servira então ter-se instruído e educado com tanto
esmero? do que servira a sua conduta reta e a inteireza do seu caráter?... Para
que se conservou imaculado?... para que diabo tivera ele a pretensão de fazer
de si um homem útil e sincero?..." E Raimundo revoltava-se. "Pois,
melhores que fossem as suas intenções todos ali o evitavam, porque a sua pobre
mãe era preta e fora escrava? Mas que culpa tinha ele em não ser branco e não ter
nascido livre?.. Não lhe permitam casar com uma branca? De acordo! Vá que
tivessem razão! mas por que insultá-lo e persegui-lo? Ah! amaldiçoada fosse
aquela maldita raça de contrabandistas que introduziu o africano no Brasil!
Maldita! mi! vezes maldita! Com ele quantos desgraçados não sofriam o mesmo
desespero e a mesma humilhação sem remédio? E quantos outros não gemiam no
tronco, debaixo do relho? E lembrar-se que ainda havia surras e assassínios
irresponsáveis tanto nas fazendas como nas capitais!... Lembrar-se de que ainda
nasciam cativos porque muitos fazendeiros, apalavrados com o vigário da
freguesia batizavam ingênuos como nascidos antes da lei do ventre livre!...
Lembrar-se que a conseqüência de tanta perversidade seda uma geração de
infelizes, que teriam de passar por aquele inferno em que ele agora se debatia
vencido! E ainda o governo tinha escrúpulo de acabar por uma vez com a
escravatura; ainda dizia descaradamente que o negro era uma propriedade, como
se o roubo, por ser comprado e revendido em primeira mão ou em segunda, ou em
milésima, deixasse por isso de ser um roubo para ser uma propriedade!
E continuando a pensar neste terreno muito
excitado, Raimundo dispunha-se a dormir, impaciente pelo dia seguinte,
impaciente por verse bem longe do Maranhão. dessa miserável província que 'i e
custara tantas decepções e desgostos; dessa terrinha da intriga miúda e das
invejas pequeninas! Desejava arrancar-se para sempre daquela ilha venenosa e
traiçoeira, mas pungia-lhe uma grande mágoa de perder Ana Rosa eternamente.
Amava-a cada vez mais!
— Ora sebo! interrompeu-se. E eu a pensar nisto!...
Tenho tudo liquidado e pronto!... Amanhã está aí o vapor e... adeus! adeus
queridos atenienses!
E, afetando tranqüilidade, acendeu um cigarro.
Nisto, caiu na sala uma carta que meteram pelas
rótulas da janela. Raimundo apoderou-se dela e leu no subscrito: "Ao Dr.
Raimundo." Teve um estremecimento de prazer, imaginando fosse de Ana Rosa,
mas era simplesmente uma carta anônima.
"Ilustre canalha:
Então V.S.ª muda-se amanhã?... Se é verdade!
agradeço-lhe o obséquio em nome da província. Creia, meu caro senhor, que será
talvez o primeiro ato judicioso que V.S.ª pratica em sua r ida tão aventurosa
porque nos já temos por cá muita pomada e não precisamos mais dessa fazenda.
Honre-nos com a sua ausência e faça-nos o especial obséquio de ficar-se por /á
o maior tempo que poder! Quem disse a V.S.ª que isto aqui é uma tenra de
beócios, onde os pedantes arranjam bons casamentos, debicou-o, respeitável
senhor, debicou-o redondamente. Já se não amarram cães com lingüiça. No
entanto, se vir a prima dê-lhe lembranças. "
Assinava: "O Mulato disfarçado .
Raimundo sorriu, amarrotou a folha de papel e
lançou-a ao chão
— Coitados! disse, e foi pôr-se à janela.
Aí ficou longo tempo, debruçado no peitoril, a
olhar a escuridão da noite, onde os bicos de gás se acusavam tristemente, muito
distantes uns dos outros. A Rua de 530 Pantaleão tinha um silêncio de
cemitério.
Bateu uma badalada, ao longe.
— Devem ser duas e meia.
Raimundo fechou a janela e recolheu-se à cama.
Levantou-se de novo, tornou a apanhar a carta e releu-a. Só a assinatura o
irritou.
— Cães! disse.
E soprou a vela.
Começavam então as chuvas, que no Maranhão chamam
"de caju"; o vento soprou com mais força, esfuziando nas ripas do
telhado. Em breve, o céu peneirava um chuvisco fino e passageiro. Na rua, não
obstante, um trovador de esquina, cantava ao violão
"Quis debalde varrer-te da memória, E teu nome
arrancar do coração. Amo-te sempre, que martírio infindo! Tem a força da morte
esta paixão!"
Na manhã seguinte Manuel levantou-se antes dos
caixeiros vestiu-se ainda com a meia claridade da aurora e endireitou para a
casa de Diogo.
— Olé! você madrugou, compadre! disse-lhe o cônego
da janela, onde fazia a barba em mangas de camisa.
— E verdade. Vim buscá-lo para o embarque do
Mundico
— Tem tempo. Vá subindo, compadre, que lhe vou dar
um cafezinho fazenda!
E, voltando-se para o interior da casa:
— Anda com isso, ó Inácia! que temos de sair mais
cedo! gritava ele, enquanto estendia com pachorra, em um paninho de barba, a
espuma do sabão que tirava do queixo.
— Compadre, vá estando à vontade e diga o que há de
novo.
A caseira entrou com uma bandeja, onde vinha o
café, um pires de papa, uma garrafa de licor cálices.
— Vai uma papinha, compadre?
— Não, obrigado. Quero o café.
— Pois eu cá não passo sem ela, mais o meu café e o
meu chartreuse... Vá um calicezinho, seu Manuel! Que tal? Deste é que não vem
para negócio hein?...
— Decerto! não vale a pena! Mas com efeito, é
papa-fina.
— Então outro, vá outro, compadre, isto nunca sobe
logo à primeira dose...
— Também não vai a matar..
— Assim! agora um gole de café. . Hein? E o que me
diz do café?,,
— Soberbo! Do Rio, não e verdade?
— Qual Rio! muito bom Ceará! Acredite, seu
compadre, que o melhor café do Brasil é o do Ceará!... E esta crioula, que o
trouxe, é mestra em passá-lo!... Nunca vi! para um café e para uma papa de
araruta com ovos, não há outra!
E o cônego passou a vestir-se esticando muito as
suas meias de seda escarlate; calçando, com a calçadeira de tartaruga, os seus
sapatos de polimento azeitado, cujos fivelas levantavam cintilações. Enfiou
depois a batina de merinó lustroso, ameigando a barriga redonda e carnuda,
saracoteando-se todo, a sacudir a perninha gorda, indo ao espelho do toucador
alcochetar no pescoço a sua volta de rendas alvas. Estava limpo, cheiroso e
penteado; tinha, no rosto escanhoado e nos anéis dos seus cabelos brancos, uns
tons frescos de fidalgo velho e namorador; o crista! dos óculos redobrava-lhe o
brilho dos olhos, e o seu chapéu novo, de três bicos, elegantemente derreado um
pouco para a esquerda, dava à sua cabeça distinta e ao seu rosto todo barbeado
o ar pitoresco e nobre dos cortesãos do século XVII.
— Quando quiser, compadre, estou as suas ordens...
lembrou ele a Manuel, que fumava um cigarro à janela, pensativo.
— Então vamos indo. O homem talvez já esteja à
nossa espera.
E saíram.
A manhã levantava-se bonita. As calçadas de
cantaria secavam a umidade da noite aos primeiros raios do sol. Ouviam-se tinir
nas pedras os saltos dos sapatos do padre. Passavam os trabalhadores para as
suas obrigações; o padeiro com o saco às costas; a lavadeira, em caminho da
fonte, com a trouxa de roupa suja equilibrada na cabeça; pretas-minas
apregoavam "Mingau de milho!; os escravos desciam para o açougue com a
cesta das compras enfiada no braço; das quintas chegavam os vendedores de
hortaliças, com os seus tabuleiros acumulados de folhas e legumes. E todos
cumprimentavam respeitosamente o cônego, e ele a todos respondia:
"Viva!" Algumas crianças, em caminho da escola, iam, de boné na mão,
beijar-lhe o anel.
— Você de que ele já está à nossa espera?...
— É natural! respondeu Manuel.
— Não tenha medo! É muito cedo ainda — e consultou
o relógio. — Podemos ir mais devagar. Ele só chegará daqui a uma hora. Ainda
não são sete.
— Estou impaciente por vê-lo pelas costas...
— Não tardará muito. E a pequena, como ficou?
— Assim; menos maçada do que eu esperava... E que
aquilo passou-lhe.
— E o outro?
— O Dias?
— Sim.
— Por ora... nada.
— Há de chegar! há de chegar!... afirmou o cônego
ar de experiência. Labor improbus omnia vincit!...
— Como?
— Aquilo e um marido que convém à Anica!...
Assim conversando, ao lado um do outro, acharam-se
na rampa de Palácio
Ainda pouca gente lá havia.
— Um bote, patrãozinho! exclamou um rampeiro,
aprumando-se defronte de Manuel e descobrindo a cabeça com arremesso.
— Espere, deixe ver se está o Zé Isca, que é
freguês.
O catraieiro afastou-se lentamente, jogando o
corpo, no seu andar de pernas abertas. Os dois desceram ao cais. Apareceu o
Isca, e contratou-se a viagem.
— Patrão, podemos ir?
— Deixe vir o doutor. É preciso esperá-lo.
O padre observou que tinha ido cedo demais,
enquanto Manuel fazia SS no chão com a biqueira do guarda-sol.
— Homem! este vapor assim mesmo fez desta vez uma
viagenzinha bem boa!... disse o primeiro, provocando palestra.
— Quinze dias.
— E então?... quando saiu de do Rio?...
— No dia dois.
— Daqui a outros quinze está por lá!... calculou o
cônego.
— Não, leva menos! para lã e muito mais favorável a
viagem... onze, doze, treze dias e o máximo.
No fim de algum tempo aborreciam-se de esperar
Manuel havia fumado já quatro cigarros. Raimundo demorava-se
— Isto já são oito horas! quantas tem você,
compadre?
— Oito e um quarto. O rapaz com certeza
descuidou-se!... Ó seu Manuel de sabe que o vapor sai as dez?
— Como não? se ainda ontem à tarde lho mandei
dizer!... — Então há de ser alguma despedida mais demorada... explicou o cônego
com um risinho velhaco. Fugit irreparabile tempus!...
— Isto vai, mas e esquentando demais, seu compadre.
E Manuel limpava e tomava a limpar o carão
vermellho, estendendo pela rampa um olhar suplicante, que parecia chamar o
sobrinho.
— Vamos cá para a guardamoria, aconselhou o outro,
resguardando-se do sol.
Um empregado obsequioso ofereceu-lhe logo duas
cadeiras.
— V.S.ª por que não se sentam?... Tenham a bondade
de estar a gosto...
— Obrigado, obrigado, meu amigo!
E assentaram-se impacientes.
— V.S.ª vem ao bota-fora do doutor Raimundo?...
— E! Ele já desceu?
— Não o vi ainda, não senhor; porem não poderá
tardar. Vão se fazendo horas!...
Um assovio muito agudo deu o primeira sinal de
bordo, chamando os últimos passageiro Manuel levantou-se logo, foi ate à porta,
lambeu com um olhar o trapiche, consultou sequioso a ladeira de Palácio:
"Nada!" Olhou para o relógio, o ponteiro orçava pelas nove. "Ora
sebo! Entendam-se lá com semelhante gente!..."
A rampa já se tinha enchido e já se ia esvaziando.
Grupos demorados acenavam de terra com o lenço para os escaleres que fugiam;
choravam com o rosto escondido nas mãos; outros abraçavam-se por cortesia. Ao
lado de protestos e oferecimentos oficiais, ouviam-se frases quentes de
sinceridade, arrancadas pela dor; diziam-se ternuras; davam-se conselhos;
faziam-se carícias; expunham-se, ai, ao ar livre, em meio do publico o amor e o
desespero, como se estivessem entre família, no segredo da casa. Os botes
largavam com grande algazarra dos catraieiros. Ninguém mais se entendia. Os
ganhadores passavam correndo, com as costas carregadas de malas, de baús e
gaiolas de papagaio. Havia grandes encontrões. Uma mulatinha escrava, gritava
que nem doida, lá no fim da rampa, com os pés na água, agitando os braços
soluçando, porque lhe levavam a irmã mais velha, vendida para o Rio. Os tripulantes
praguejavam; os barcos enchiam-se numa confusão, e a lanchinha do Portal
guinchava de instante a instante silvos que ensurdeciam.
E Raimundo — nada de chegar!
Pouco a pouco foram rareando os grupos.
Enxugavam-se os olhos; guardavam-se os lenços, e os amigos e parentes dos que
partiam retiravam se em magotes, com o passo frouxo, a cara congestionada na
ressaca das comoções. O empregado da policia externa do porto voltou da sua
visita ao navio. Só os exportadores de escravos permaneciam encostados ao
portão do cais, para ver a última baforada do monstro a que confiavam um bom
carregamento de negros.
A rampa recaiu afinal no seu habitual sossego, e
Raimundo nada de aparecer.
Manuel suava.
— E esta?! perguntou furioso ao cônego. O que me
diz desta, seu compadre?!
O cônego não respondeu. Cismava.
Nisto, chegou uma carruagem, a rodar
vertiginosamente. Os que esperavam Raimundo acudiram, de pescoço estirado.
— Deve ser ele!... aventou o cônego.
— Diabo! rosnou Manuel, ao ver saltar um homem e
entrar lépido na guardamoria.
Não era Raimundo.
O vapor chamava, insistia com os seus guinchos
impacientes e sibilantes. O recém-chegado arrastou uma pequena mala para a rua
e entregou-a ao primeiro catraieiro, que pulou de uma nuvem deles.
— Avia, rapaz! Pega daí — E mostrava os outros
volumes. — Ligeiro! Ligeiro!
O homem do bote atirou com a bagagem num escaler,
gritando para um moleque que o ajudava:
— Anda! mexe-te! senão arriscamos a não alcançar o
vapor!
Estas ultimas palavras acabaram de pôr Manuel fora
de si. A pobre criatura suava como o fundo de um prato de sopa.
— E esta, seu compadre?! E esta?! O que me diz
desta?!
O cônego não dava palavra, fazia considerações
íntimos sorrindo amargamente à superfície dos lábios.
— Ora! ora! ora! — E o negociante passeava a
grandes pernadas na guardamoria.&emdash;Ora! ora, senhores! Esta só a mim!
O cônego bateu com o chapéu-de sol no chão.
— Astutos astu non capitur!
Os empregados da guardamoria, vestidos de farda, e
os curiosos desocupados, que ali estavam por distração, faziam perguntas a
Manuel a respeito de Raimundo, satisfeitos com aquele episódio prometedor de
escândalo.
Arriscavam-se já os comentários e as opiniões.
— Homem, dizia um. Ele, cá pra nos, nunca me
pareceu grande coisa!...
— Eu também, acrescentava outro, a falar verdade,
nunca pude tragar aquele cara de máscara!...
— Pois eu cá sabia que ele não havia de ir!
— Nem irá mais! Pilhou-se aqui, adeus!
— Mas que grande patife! Sim senhor!
— Ora! ora, que filho da mãe! resmungava Manuel, a
dar voltas no ar com o seu imenso chapéu-de-sol.
Mas todos correram para a porta, porque uma nova
carruagem puxada com sofreguidão encheu de tropel a Rua do Trapiche.
É o tipo com certeza! bradou um sujeito. A bons
horas!
Fez-se no grupo um silêncio ansioso. A sege estacou
em frente à guardamoria. Mas ainda desta vez não era Raimundo.
15
O paquete havia entrado, na véspera, às duas horas
da tarde, fundeando com um tiro, a que todo o litoral da cidade respondeu com
um grito alegre de "chegou vapor!" e, desde esse momento, Ana Rosa
possuíra-se de um sobressalto constante que a punha enferma; sabia que nele se
iria Raimundo, para sempre. "Raimundo, que ela tanto amara e tanto desejara!...
Todavia, era preciso deixá-lo partir, sem uma queixa, sem Uma recriminação,
porque todos, até o próprio ingrato, assim o entendiam!... E que loucura de sua
parte estar ainda a pensar nessas coisas!... Pois já não estava porventura tudo
acabado?... para que então mortificar-se ainda com semelhante doidice?..."
Não obstante, preferia perdoar-lhe tudo, antes que
ele se partisse para nunca mais voltar. Passou uma noite horrível à procura de
um motivo, um pretexto qualquer para absolver o amante, sentia Uma irresistível
vontade de fazer de si uma vitima resignada capaz de comover o coração menos
humano. Já não o queria; não contava com ele para mais nada, por Deus que não
contava! mas desejava vê-lo arrependido de tamanha ingratidão humilhado. triste
padecendo por fazê-la sofrer daquele modo e confessando as suas culpas e a sua
crueldade.
— Oh! se ele me tivesse dado coragem!... monologava
a mísera, o que eu não faria?... porque o amava muito! muito! Sim! é preciso
confessar que o amava loucamente!... Mas aquele silêncio... Silêncio? Que digo
eu?... Desprezo! aquele desprezo insultuoso por mim, que era toda sua,
colocou-o abaixo dos outros homens! Pois então ele tão nobre tão leal com
todos, devia proceder assim comigo?... Abandonar-me em semelhante ocasião,
quando sabia perfeitamente que eu precisava, mais do que nunca, da sua energia
e da sua firmeza?... Desconfiaria de que não o amava? Não! falei-lhe com tanta
franqueza... Ah! e ele sabe perfeitamente que não se pode fingir o que lhe
disse, o que chorei! Sim sim, tinha plena certeza, o miserável! o que lhe
faltava era amor! Nunca me estimou sequer. Ou pensaria ele que eu seria capaz
como as outras de sacrificar meu coração aos preconceitos sociais?... Mas,
então, por que não me falou com franqueza?... não me escreveu ao menos?.. não
me disse que também sofria e não me deu animo?... Porque, juro, tivesse-o eu,
possuísse-o só meu, como marido, como escravo, como senhor, a tudo mais
desprezaria! Juro que desprezada! Que me importava lá o resto?! e o que eu não
seria capaz de fazer por aquele ingrato, aquele homem mau e orgulhoso?!
E Ana Rosa soluçava, sem conseguir conciliar o
sono.
Às seis da manhã estava de pé e vestida no seu
quarto. Manuel tinha saldo a ir buscar o cônego para o embarque de Raimundo.
Maria Barbara, ainda de rede, preparava os seus cachos de seda, mirando-se num
espelho, que a Brígida segurava com ambas as mãos, ajoelhada defronte dela.
Havia em toda a casa o triste constrangimento dos
dias de enterro. Ana Rosa, ao aparecer na varanda, trazia os olhos muito
pisados e a cor desbotada, um ar geral de fadiga espalhado por todo o corpo e
duas rosetas de febre nas faces.
Serviram-lhe uma canequinha de café.
— Onde esta vovó? perguntou ela com a voz fraca.
— Esta lá pra dentro respondeu o moleque cruzando
os braços.
— Olha, Benedito! dize-lhe que... Está bom não lhe
digas coisa alguma...
E, arrastando vagarosamente a cauda do seu vestido
de cambraia e, dando as suas tranças castanhas, pesadas e fartas ondulações de
cobra preguiçosa, ia voltar, toda irresoluta, para o quarto, quando se deteve
com medo de ficar lã dentro sozinha com a impetuosidade do seu amor e a
feminilidade da sua razão. Agora causava-lhe terror o isolamento; receava que
lhe faltasse coragem para acabar decentemente com aquilo; desfalecera-lhe de
todo a energia, que ela afetara ate aí; ao contrário da véspera, precisava
naquele momento ouvir dizer muito mal de Raimundo, para poder consentir em
perdê-lo, sem ficar com o coração inteiramente despedaçado. Compreendia que precisava
de alguém que a convencesse das mas qualidades de semelhante impostor, alguém
que a persuadisse, por uma vez, de que o miserável nunca a merecera, de que de
fora sempre um indigno; alguém que a obrigasse a detestá-lo com desprezo, como
a um ente nojento e venenoso; precisava afinal de uma alma caridosa, que lhe
arrancasse de dentro, à pura força, aquele amor, como o medico arranca uma
criança a feno.
E no entanto, por mais alto que reclamassem as
circunstâncias e por mais forte que gritasse o raciocínio, seu coração só
queria perdoar, e atrair o seu amado e dizer-lhe francamente que, apesar de
tudo, o estremecia ainda como sempre, mais que nunca! A realidade estava ali a
exigir em honra do seu orgulho, que tudo aquilo se acabasse sem um protesto por
parte dela; a exigir que Raimundo partisse, que se fosse por uma vez e que Ana
Rosa ficasse tranqüila, ao abrigo de seu pai, mas uma voz chorava-lhe dentro,
uma voz fraca de orfão desamparado, de criancinha sem mãe, a suplicar-lhe em
segredo, com medo, que não estrangulassem aquele primeiro amor, que era a
melhor coisa de toda a sua vida. E esses vagidos, tão fracos na aparência,
suplantavam a voz grossa e terrível da razão. "Oh! era preciso ouvir
muitas e muitas verdades contra aquele ingrato, para suportar tamanha provação
sem sucumbir! Era preciso que uma lógica de ferro em brasa a convencesse de que
aquele homem mau nunca a amara e nunca a merecera!"
Mandou o escravo chamar a avó. Benedito foi ter com
Maria Bárbara; e a moça ficou só na varanda, encostada à ombreira de uma porta
a conter e reprimir nos soluços os ímpetos dos seus desejos violentados, como
se sofreasse um bando de leões feridos.
Um tropel de passos rápidos, que vinham da escada,
sobressaltou-a, ia fugir, mas Raimundo, aparecendo de improviso, suplicou-lhe
com a voz tomada pela comoção, que o escutasse.
Ana Rosa ficou estática.
— Não nos veremos mais, nunca mais, balbuciou o
moço, empalidecendo. O vapor sai daqui a poucas horas. Lê essa carta, depois
que eu tiver partido. Adeus.
Entregou-lhe uma carta e, sentindo que lhe fugia de
todo o animo, ia a descer, muito confuso, quando se lembrou de Maria Bárbara.
Perguntou por ela, que acudiu logo, e ele despediu-se, sem saber o que dizia,
gaguejando. Ana Rosa, defronte de ambos, conservava-se imóvel parecia
estonteada, neo dava uma palavra, não respondia, não apresentava uma objeção.
— Adeus, repetiu Raimundo.
E tomou, trêmulo, a mão que Ana Rosa tinha
desamparada e mole apertou-a nas suas com sofreguidão e, sem se importar com a
presença de Maria Bárbara, levou-a repetidas vezes à boca, cobrindo-a de beijos
rápidos e sequiosos. Depois desgalgou de uma só carreira a escada dando
encontrões pela parede e tropeçando nos degraus.
— Raimundo! gritou a moça com um gemido.
E abraçou-se à avó vibrando toda numa convulsão de
soluços.
O rapaz saiu e achou-se no meio da rua, distraído
apatetado, sem saber bem para que lado tinha de tomar. "Ah! precisava
ainda fazer algumas compras..." Pôs-se a aviá-las; nem havia tempo a
perder correu às lojas. Mas, independente da sua vontade e do seu discernimento
dentro dele alimentava-se por conta própria, uma dúbia esperança de que aquela
viagem não se realizaria; contava topar com qualquer obstáculo que a
transtornasse; confiava num desses abençoados contratempos que nos acodem muito
a propósito, quando a despeito do coração, cumprimos o que nos manda o dever.
Desejava um pretexto que lhe satisfazesse a consciência.
Entrou em várias casas, comprou charutos, um par de
chinelas, um boné, mas fazia tudo isto como por mera formalidade, como que para
justificar-se aos seus próprios olhos, cada vez mais abstrato sem prestar
atenção a coisa alguma. Foi ao armazém, em que mandara, logo ao romper do dia,
depositar as suas malas; contava, ao entrar aí, receber a noticia de que elas
já lá não estavam, que alguém as havia reclamado que alguém as roubara, e esta
circunstância lhe impediria de sair por aquele vapor; mas qual! todos os seus
objetos se achavam intactos e respeitosamente vigiados. Mandou carregar tudo
para a rampa e seguiu atrás, esperando ainda que na Agencia lhe dariam a
noticia de que a viagem fora transferida para o dia seguinte.
Pois sim!...
Não havia remédio senão ir. Estava tudo pronto tudo
concluído, só `lhe faltava embarcar. Despedira-se de todos a quem devia essa
fineza nada mais tinha que fazer em tenra; as suas malas estavam já a caminho
do cais — era partir!
Senha um terrível desgosto em aproximar-se do mar,
e contudo era para lá que ele se dirigia, vacilante, oprimido. Consultou o
relógio, o ponteiro marcava pouco mais de oito horas e parecia-lhe como nunca
disposto a adiantar-se. O desgraçado, depois disso perdeu de todo a coragem de
puxá-lo da algibeira; aquela inflexível diminuição do tempo o torturava
profundamente. "Tinha de seguir! Diabo! Só lhe faltava meter-se no
escaler!... Tinha de seguir! E, daí a pouco estaria a bordo, e o paquete em
breve navegando, a afastar-se, a afastar-se, sem tomar atrás!... Tinha de seguir!
isto é: tinha de renunciar, para sempre a sua única felicidade completa — a
posse de Ana Rosa! lá desaparecer deixá-la, para nunca mais a ver! para nunca
mais a ouvir, abraçá-la possuí-la! Inferno!"
E, à proporção que Raimundo se aproximava da rampa
sentia escorregar-lhe das mãos um tesouro precioso. Tinha medo de prosseguir,
parava, respirando alto, demorando-se, como se quisesse conservar por mais
alguns instantes a posse de um objeto querido, que depois nunca mais seria seu,
mas a razão o escoltava com um bando de raciocínios. "Caminha! caminha pra
diante!" gritava-lhe a maldita. E ele obedecia, de cabeça baixa, como um
criminoso. Entretanto, Ana Rosa nunca se lhe afigurou tão bela, tão adorável,
tão completa e tão lhe como naquele momento! chegou a ter ciúme e a censurá-la
do intimo da sua dor, porque a orgulhosa não correra ao encontro dele, para
impedir aquela separação. E ia deixá-la desamparada, exposta ao amor do
primeiro ambicioso que se apresentasse, e a quem ela se daria inteira, fiel, palpitante
e casta, porque todo o seu ideal era ser mãe! "Inferno! Inferno!"
Inferno!"
Raimundo surpreendeu-se parado na rua, a fazer
estas considerações, como um tonto, observado pelos transeuntes; olhou em tomo
de si, e pôs-se a caminhar apressado, quase a correr, para a rampa de embarque.
À medida que se aproximava do mar, ia avultando ao seu lado o número de
carregadores de bagagens; pretos e pretas passavam com baús, malas de couro e
de folha-de-flandres, cestas de vime de todos os feitios, cofos de pindoba,
caixas de chapéu de pêlo e gaiolas de pássaros. Ele continuava a correr. Todo
aquele aparato de viagem que lhe fazia mal aos nervos. De repente, estacou
defronte de um raciocínio, que lhe puxou aos olhos um clarão de esperanças:
"E se o Manuel não tivesse ido ao cais?... Sim era bem possível que ele,
sempre tão cheio de serviço, coitado! tão ocupado, não pudesse lá ir!... E
seria uma dos diabos — partir assim, sem lhe dizer adeus!..." E, como em
resposta à oposição de um estranho, seu pensamento acrescentou: "Oh! como
não? Seria uma dos diabos! O homem podia tomar por acinte!... supor-me
ridículo!... Seria, além disso, uma imperdoável grosseria, uma ingratidão até!
Ele foi receber-me a bordo, hospedou-me no seio da sua família, cercou-me
sempre de mi! obséquios!... Não, no fim de contas devo-lhe muitas
obrigações!... Não é justo que agora parta sem despedir-me dele!..."
Passava um cano vazio. Raimundo consultou
rapidamente o relógio.
— Rua da Estrela, número 80, gritou ao cocheiro,
atirando-se para cima da almofada. Toda força! Toda força! Não podemos perder
um minuto!
E dentro do carro, impaciente, sentiu uma alegria
nervosa, que lhe punha em vibração todo o corpo; enquanto a unha do remorso
continuava a esgaravunchar-lhe a consciência. "Oh! mas seria uma grande
falta de minha parte!... respondia ele à importuna. Pois eu devia sair daqui,
para sempre sem me despedir do irmão de meu pai do único amigo que encontrei na
província?... juro que chego lá, despeço-me e volto incontinenti...
E a carruagem voava, soprada pela esperança de uma
boa gorjeta.
Ana Rosa, quando tornou a si do espasmo em que a
prostara a visita de Raimundo, chorou copiosamente e depois encerrou-se na
alcova com a carta, que ele lhe dera. Abriu-a logo, mas sem nenhuma esperança
de consolo.
Entretanto, a carta dizia:
"Minha amiga,
Por mais estranho que te pareça, juro que te amo
ainda, loucamente mais do que nunca, mais do que eu próprio imaginava se
pudesse amar; falo-te assim agora, com tamanha franqueza, porque esta
declaração já em nada poderá prejudicar-te, visto que estarei bem longe de ti
quando a leres Para que não te arrependas de me haver escolhido por esposo e
não me crimines a mim por me ter portado silencioso e covarde, defronte da
recusa de teu pai, sabe minha querida amiga, que o pior momento da minha pobre
vida foi aquele em que vi fugir-te para sempre. Mas que fazer? — eu nasci
escravo e sou filho de uma negra. Empenhei a teu pai minha palavra em como
nunca procuraria casar contigo; bem pouco porém me importava o compromissos que
não teria eu sacrificado pelo teu amor? Ah! mas é que essa mesma dedicação
seria a tua desgraça e transformaria o meu ídolo em minha última a sociedade
apontar-te-ia como a mulher de um mulato e nossos descendentes teriam casta e
seriam tão desgraçados quanto eu! Entendi pois que, fugindo, te daria a maior
prova do meu amor. E vou, e parto, sem te te levar comigo, minha esposa
adorada, entremecida companheira dos meus sonhos de ventura! Se pudesse avaliar
quanto sofro neste momento e quanto me custa a ser forte e respeitar o meu
dever; se soubesses quando me pesa a idéia de deixar-te, sem esperança de
tornar a teu lado&emdash;tu me abençoarias, meu amor!
E adeus. Que o destino me arraste para onde se
quiser, serás sempre o imaculado arcanjo a quem votarei meus dias; ser a minha
inspiração, a luz da minha estrada; eu serei bom, porque existes.
Adeus, Ana Rosa.
Teu escravo RAIMUNDO. "
Ao terminar a leitura, Ana Rosa levantou-se
transformada. Uma enorme revolução se havia operado nela; como que vingava e
crescia-lhe por dentro uma nova alma, transbordante. "Ah! Ele amava-me
tanto e fugia com o segredo, ingrato! Mas por que não lhe dissera logo tudo
aquilo com franqueza?..." E saltava pelo quarto como uma criança, a rir,
com os olhos arrasados de água. Foi ao espelho, sorriu para a sua figura
abatida, endireitou estouvadamente o penteado, bateu palmas e soltou uma
risada. Mas, de improviso, lembrou-se de que o vapor podia ter já partido,
estremeceu com um sobressalto, o coração palpitou-lhe forte, com um aneurisma
prestes a rebentar.
Correu à varanda.
— Benedito! Benedito!
Ó senhores! Onde estaria aquele moleque?...
— Que vossemecê queria? perguntou Brígida, com a voz
muito tranqüila e compassada.
— A que horas sai o vapor? perguntou a moça sem
tomar fôlego.
— Senhora?
— Quando sai o vapor?!
— Que vapor, sinhá?...
— Diabo! O vapor do Sul!
— Hê! Já saiu, sinhá!
— Hein?! o quê? Não é possível, meu Deus!
E, tremendo por uma certeza horrível, correu ao
quarto da avó.
— Sabe se já saiu o vapor, vovó?
— Pergunta a teu pai.
Ana Rosa sentiu uma impaciência medonha, infernal;
desceu os primeiros degraus da escada do corredor disposta a ir ao armazém, mas
voltou logo, foi à cozinha e encarregou a Brígida de saber de Manuel se o vapor
havia largado Já.
A criada tornou, dizendo, muito descansada, que
"sinhô tinha saldo de manhãzinha cedo, para o bota-fora de nhô
Mundico".
— Vai para o diabo! gritou Ana Rosa colérica.
E correu à janela do seu quarto, escancarou-a
precipitadamente. O sossego da Rua da Estrela entorpeceu-a, como o efeito de um
jato de água fria sobre um doente de febre.
Depois, veio-lhe a reação; teve um apetite nervoso
de gritar, morder, agatanhar. Pensou que ia ter um histérico; saiu da janela,
para ficar mais à vontade; deu fortes pancadas frenéticas na cabeça. E sentia
uma raiva mortal por tudo e por todos, pelos parentes, pela casa paterna, pela
sociedade, pelas amigas, pelo padrinho; e assistiu-lhe, abrupto, uma força
varonil, um animo estranho, um querer déspota; pensou com prazer numa
responsabilidade; desejou a vida com todos os seus trabalhos, com todos os seus
espinhos e com todos os seus encantos carnais; sentiu uma necessidade imperiosa,
absoluta, de entender-se com Raimundo, de perdoar-lhe tudo com beijos ardentes,
com carícias doidas, selvagens, agarrar-se a ele, rangindo os dentes, e
dizer-lhe cara a cara: "Casa-te comigo! Seja lá como for! Não te importes
com o resto! Aqui me tens! Anda! Faze de mim o que quiserem Sou toda tua!
Dispõe do que é teu!"
Nisto, rodou uma carruagem na Rua da Estrela.
Ana Rosa correu à janela, assustada, palpitante. O
carro parou à porta de Manuel; a moça estremeceu de medo e de esperança, e,
toda excitada, convulsa, doida, viu saltar Raimundo.
— Suba! suba pra cá! disse-lhe ela, já no corredor.
Suba por amor de Deus!
Raimundo sentiu as mãos frias da moça prenderem as
suas. Gaguejou.
— Seu pai? Não quis partir, sem...
— Entre, entre para cá. Venha! Preciso falar-lhe.
E Ana Rosa puxou-o violentamente. O rapaz deixou-se
arrastar; supunha encontrar-se com Manuel.
— Mas... balbuciava ele confuso, reparando, todo
trêmulo, que entrava no gabinete de sua prima. Perdão, minha senhora, porém seu
pai onde está?... Vinha pedir-lhe as suas ordene...
Ana Rosa correu à porta, fechou-a bruscamente, e
atirou-se ao pescoço de Raimundo.
— Não partirás, ouviste? Não hás de partir!
— Mas...
— Não quero! Disseste que me amas e eu serei tua
esposa, haja o que houver!
&emdash;Ah! se fosse possível!...
— E por que não? Que tenho eu com o preconceito dos
outros? que culpa tenho eu de te amar? Só posso ser tua mulher, de ninguém mais!
Quem mandou a papai não atender ao teu pedido? Tenho culpa de que não te
compreendam? Tenho culpa de que minha felicidade dependa só de ti? Ou, quem
sabe, Raimundo, se és um impostor e nunca sentiste nada por mim?...
— Antes assim fosse, juro-te que o desejava! Mas
supões que eu seria capaz porventura de sacrificar-te ao meu amor? que eu seria
capaz de condenar-te ao ódio de teu pai, ao desprezo dos teus amigos e aos
comentários ridículos desta província estúpida?... Não! deixa-me ir, ridículos
desta província estúpida?... Não! deixa-me ir, Ana Rosa! É muito melhor que eu
vá!... E tu, minha estrela querida, fica, fica tranqüila ao lado de tua
família; segue o teu caminho honesto; és virtuosa serás a casta mulher de um
branco que te mereça... Não penses mais em mim. Adeus.
E Raimundo procurava arrancar-se das mãos de Ana
Rosa. Ela prendeu-se-lhe ao pescoço, e, com a cabeça derreada para trás, os
cabelos soltos e dependurados, perguntou-lhe, cravando-lhe de perto o olhar:
— O que há de sincero na tua carta?
— Tudo, meu amor, mas por que a leste antes de eu
ter partido?
Então, sou tua! Olha, saiamos daqui! já! fujamos!
Leva-me para onde quiseres! Fazer de mim o que entenderes!
E deixou cair o rosto sobre o peito dele, e abraçou
-o estreitamente
Raimundo estava imóvel, medroso de sucumbir,
entalado numa profunda comoção.
— Decide! exigiiu ela, soltando-o.
Ele não respondeu. Ofegava. — Pois olha, se não
quiseres fugir, farei acreditar a meu pai que és um infame! Tens medo, não é
verdade?um . pois bem, eu lhe direi tudo que me vier à cabeça chamarei sobre ti
todo o ódio e toda a responsabilidade, meu amor! porque tu és um homem mau,
Raimundo, e meu pai acreditara facilmente que abusaste da hospitalidade que ele
te deu. És um miserável. Sai daqui.
Raimundo preciptou-se contra a porta. Ana Rosa
atirou-se-lhe de novo ao pescoço soluçando.
— Perdoa meu amor! eu não, sei o que estou dizendo!
Desculpa-me tudo isto, meu querido, meu senhor! Reconheço que és o melhor dos homens
mas não partas, eu te suplico pelo que mais amas! Sei ,que é o teu orgulho que
me faz mau; tens toda razão, mas não me abandoes! Eu morreria, Raimundo, porque
te amo muito, muito! e nós mulheres, não temos como tu tens, outras ambições
além do amor da pessoa que idolatramos! Bem vês! Eu sacrifico tudo por ti; mas
não partas, tem piedade! Sacrifica também alguma coisa por mim! não sejas
egoísta! não fujas! É o orgulho! mas que nos importa os outros, procuro
agradar! Anda! Leva-me contigo! Eu desprezarei tudo; mas preciso ser tua,
Raimundo, preciso pertencer-te exclusivamente.
E Ana Rosa caiu de joelhos, sem se desgarrar do
corpo dele.
— É uma escrava que chora a teus pés! é uma
desgraçada que precisa de tua compaixão! Sou tua! aqui me tens, meu senhor,
ama-me! Não me abandones!
E soluçou, empalmado o rosto com as mãos. Raimundo,
procurando erguê-la, vergava-se todo sobre ela. E o contato sensual daquela
carne branca dos braços e do colo da rapariga, e o sarrafaçar daqueles lábios
em brasa, e a proibição de tocar em todo aquele tesouro proibido,
fustigavam-lhe o sangue e punham-lhe a cabeça a rodar, numa vertigem.
— Meu Deus! Ó Ana Rosa, não chores! Levanta-te pelo
amor de Deus!
Ana Rosa continuava a chorar, e um tremor nervoso percorria
o corpo inteiro de Raimundo. Foi nessa ocasião que a lanchinha do Portal soltou
o seu primeiro sibilo, chamando os passageiros retardados; e aquele grito,
penetrante impertinente chegou aos ouvidos do rapaz, ali, na doce reclusão
daquele quarto, como uma nota destacado do coro de imprecações com o público
maranhense, formigando lá fora nas ruas, aplaudia a sua retirada da província.
Ele um relance mediu a situação, calculou a conseqüências ridículas da sua
franqueza, lembrou-se das palavras de Manuel, e afinal o seu orgulho rebentou
com impetuosidade de um temporal.
— Não, gritou, repelindo bruscamente a moça.
Preciptou-se para a saída.
Ana Rosa caiu a meio, amparando-se numa das mãos,
mas erguêu-se logo, tornando-lhe a passagem. Em com um gesto altivo,
atravessou-se contra a porta, de braços abertos, sombraceira, nobre, os punhos
cerrados. Estava lívida e desgrenhada; a boca contraía-se-lhe numa dolorosa
expressão de sacrifício e desespero. Arfavam-lhe as narinas e o seu olhar
fulgurava terrível e cheio de ameaça.
Raimundo conservou-se um instante imóvel e perplexo
defronte daquela inesperada energia.
— Não sairás porque eu não quero! disse ela com a
voz estalada e surda. Não sairás daqui, do meu quarto, enquanto não estivermos
de todo comprometidos!
— Oh!
Houve então um silêncio angustioso para ambos.
Raimundo abaixou os olhos e pôs-se a meditar, muito aflito. Parecia arrependido
e humilhado pela sua fraqueza. "Por que voltara?..." Ana Rosa foi ter
com ele e passou-lhe meigamente o braço pelas costas. Era outra vez a mesquinha
rola medrosa e comovida.
— Tudo que de bom eu podia fazer para casar
contigo, bem sabes que já o fiz... murmurou ela, agora sem animo de encará-lo.
Papai não consentiu, na esperança de dar-me a outro... E eu não me sujeito a
isso!... Hei de esgotar até o último recurso para continuar a ser só tua, meu
amigo! E com essa resolução que te prendo a meu lado!... Pode ser que isso
pareça mau e desonesto, mas juro-te que nunca defendi tanto o meu pudor e a
minha virtude como neste momento! Para salvar-me tenho por força de fazer-me
tua esposa, e só há um meio de conseguir que o permitam, é tomando-me
desvirtuada aos olhos de todos e só aos teus me conservando casta e pura...
E abaixou as pálpebras, toda ela afogada em pejo.
Raimundo não fez o menor movimento, nem deu uma palavra.
Ana Rosa abriu a soluçar.
— Agora... podes ir quando quiseres... acrescentou,
desligando-se dele. Agora podes abandonar-me para sempre... fico com a minha
consciência tranqüila, porque lancei mãos de todos os recursos para casar
contigo... Vai-te! Nunca pensei é que, nesta última provação, ainda o covarde
fosses tu! Vai-te embora por uma vez! Deixa-me! — E soluçou forte. — Se mais
tarde hei de arrepender-me, é melhor mesmo que se acabe desde já com isto! Eu
sou uma infeliz! uma desgraçada!
E chorava.
Raimundo puxou-a carinhosamente para junto dele;
afagou-a, chamando-lhe a cabeça para seu peito.
— Não chores, disse-lhe. Não te mortifiques desse
modo...
— Mas não é assim?... queixava-se a mísera, com o
rosto escondido no colo do moço. Por uma outra que não te merecesse mais,
farias tudo!... Tola fui eu em confessar que te amo tanto, ingrato!... Tu não
merecias a metade do que fiz por ti! És um fingido!
E soluçava, mais e mais, como uma criança magoada.
O rapaz abraçou-se com ela e beijou-a repetidas vezes, em silêncio.
— Não chores, minha flor... segredou-lhe afinal.
Tens toda a razão... perdoa-me se fui grosseiro contigo! Mas que queres? todos
nós temos orgulho, e a minha posição ao teu lado era tão falsa!... Acredita que
ninguém te amará mais do que te amo e te desejo! Se soubesses, porem, quanto
custa ouvir cara a cara: "Não lhe dou minha filha, porque o senhor é
indigno dela, o senhor é filho de uma escrava!" Se me dissessem: "É
porque é pobre!" que diabo! — eu trabalharia! se me dissessem: "t
porque não tem uma posição social!" juro-te que a conquistaria, fosse como
fosse! "P porque é um ifame! um ladrão! um miserável!" eu me
comprometeria a fazer de mim o melhor modelo dos homens de bem! Mas um
ex-escravo, um filho de negra, um — mulato! — E, como hei de transformar todo
meu sangue, gota por gota? como hei de apagar a minha história da lembrança de
toda esta gente que me detesta?... Bem vês, meu amor, tenho posição definida,
não me faltam recursos para viver em qualquer parte, jamais pratiquei a mínima
desairosa, que me envergonhe; e no entanto nunca serei feliz porque só tu es a
minha felicidade e eu nada devo esperar de ti! Ah, se soubesses, Ana Rosa,
quanto doem estas verdades... perdoarias todo o meu orgulho, porque o orgulho
de cada homem de bem esta sempre na razão do desprezo que lhe votam!
Ana Rosa bebeu-lhe, boca a boca estas últimas
palavras.
— Entretanto... prosseguiu ele, vencido de todo, já
não tenho coragem para deixar-te!...&emdash;E abraçavam-se. — Como poderei,
de hoje em diante, viver sem ti, minha amiga minha esposa, minha vida?... Dize!
fala! aconselha-me por piedade, porque eu já não sei pensar!...
Um novo assobio de bordo veio interrompê-lo.
— Não ouves, Ana Rosa?... O vapor está chamando...
— Deixa-o ir meu bem! tu ficas...
E os dois estreitaram-se, fechados nos braços um do
outro, unidos os lábios em mudo e nupcial delírio de um primeiro amor.
Não obstante Manuel e o cônego ainda se deixavam
ficar na guardamoria, depois da decepção da última carruagem.
— Cachorro! exclamava o negociante fora de si, a
passear de um para outro lado, ameaçando o teto com o seu enorme guarda-chuva.
Grandíssimo tratante!&emdash;E parando defronte de Diogo:&emdash;Caçoou
conosco, seu compadre! caçoou conosco, o desavergonhado! Também, que faça cruz,
em casa não me põe mais os pés! sou eu quem o diz! Nunca mais!
Ouviram-se três silvos repetidos.
— É o último sinal. . disse o empregado da
guardamoria. O vapor vai largar. Suspendeu a escada.
Manuel, com as mãos cruzadas atrás, o chapéu
descaído para a nuca, o corpo a bambolear sobre as suas perninhas curtas,
interrogou, muito vermelho, o cônego:
— E o que me diz desta, compadre?.. Então que me
diz! desta?!... Ora já se viu?...
— Deixe-se disso!... repreendeu o outro. E
encaminhou-se para a porta, abriu o seu guarda-sol de dezoito varetas, e
acrescentou, disposto a retirar-se:
— Vamos indo. Meus senhores, vivam! obrigado.
Puseram-se os dois a subir vagarosamente a rampa. —
Ora, meta-se um homem com semelhante gente!... resmungava o negociante, batendo
com a biqueira do chapéu-de-chuva nas pedras da calçada. Traste! Peralta! Mas
também, pode chegar-se para quem quiser!... comigo não conte mais nada!
Canalha!
E continuou a praguejar, numa verbosidade de
cólera. O cônego interrompeu-o no fim de algum tempo:
—
Suaviter in modo,fortiter in re!...
O outro calou-se logo, e prestou-lhe toda a atenção;
conversaram uma boa hora, em voz baixa, parados a uma esquina do Largo do
Palácio, combinando sobre o que melhor convinha fazer.
— Adeus, disse afinal o cônego. Não se esqueça,
hein? E observe bem tudo o que ela responda
— Você aparece por lá?
— Logo depois do almoço.
E, ambos cabisbaixos, cada qual tomou o seu rumo.
Comentava-se já o fato na Praça do Comércio e na
Rua de Nazaré.
Manuel chegou a casa e foi atravessando o armazém.
— O doutor Raimundo esteve ai em cima? perguntou
ele ao Cordeiro.
— Esteve, sim senhor. porém já saiu. Metia-se no
carro, justamente quando eu chegava da cobrança.
— Há muito tempo?
— Há coisa de meia hora pouco mais ou menos.
— Vocês já almoçaram?
— Já, sim senhor.
— Bem! Diga ao seu Dias, quando vier, que não se
esqueça de tirar aquelas contas correntes do interior; e você vá à alfândega e
veja se no manifesto do Braganza estão aqueles fardos de estopa, número 105 a
110. Olhe, tome o conhecimento.
E passou-lhe um quarto de papel azulado, impresso.
Depois ia subir, mas voltou ainda.
— Ah! é verdade! seu Vila Rica!
— Senhor!
— O pequeno está aí?
— Não senhor, foi ao tesouro.
— Aviaram-se já aquelas encomendas de Caxias?
— Já estão duas caixas de chitas arrumadas. O vapor
só sai depois de amanhã.
— Bom..,
E Manuel pensou um pouco.
— Ah! Sabe se seu Cordeiro desepachou os fósforos?
— Ainda não senhor, porque o conferente , que está
nos dsespachos sobre água, não os pôde fazer ontem.
— Bem, diga ao Cordeiro que veja se acaba com isso
hoje.
E o negociante subiu afinal.
A varanda estava deserta. Maria Bárbara rezava no
seu quarto, agradecendo aa Deus e aos santos a suposta partida de Raimundo.
Manuel tomou seu cálice de conhaque ao aparador, e dirigiu-se depois para a
cozinha.
— Que é de Anica?
— Está no quarto, deitada.
— Doente?
— Sim senhor, com febre.
— Que tem ela?
— Não sei, não senhor...
Manuel bateu à porta da alcova de Ana Rosa. Veio
ela mesma abrir, muito pálida, e voltou logo, para se meter de novo na rede.
— Que tens tu, Anica?
— Não estava boa!... Nervoso!... Mas não encarava
com o pai, e suspiros estalavam-lhe na garganta
Manuel assentou-se pesadamente nu na cadeira, junto
dela limpando com o lenço o rosto, o pescoço e a cabeça.
— Recomendações do Mundico! disse no fim de um
silêncio, disfarçadamente.
— Como?! exclamou Ana Rosa, soerguendo-se em
sobressalto e ferrando no pai o mais estranho e doloroso olhar
— Foi-se! explicou Manuel 0 vapor deve estar saindo
neste momento. Lá ficou ele a bordo! Coitado! talvez seja feliz na Corte!...
— Miserável bradou a moça, com um grito desesperado
E deixou-se cair para trás, na rede, a estrebuchar.
— Bonito! Ana Rosa! Então que é isto, minha
filha?.. gritava Manuel, procurando conter lhe os movimentos crônicos. D. Maria
Bárbara! Brígida! Mônica!
O quarto encheu-se. Escancararam-se a porta e as
janelas; vieram os sais e o algodão queimado. Mas, só depois de grandes lutas,
a histérica quebrou de forças e pôs-se a soluçar, extenuada e arquejante.
Manuel, todo aflito, não sossegava, de um para outro lado, na ponta dos pés,
falando em voz discreta, indo de vez em quando ao corredor corredor se o cônego
já tinha chegado, e voltando sempre a coçar a nuca, o que nele indicava extrema
perplexidade,
— Vossemecê já quer almoçar? perguntou-lhe a
Brígida,
— Vai para o diabo!
O cônego chegou afina, ao meio-dia, com um ar muito
tranqüilo de boa digestão; o palito ao canto da boca
— Então?... informou-se ele de Manuel, levando-o
misteriosamente para um canto da varanda.
— Foi o diabo... seu compadre! A pequena, logo que
ouviu a peta, caiu-me com um ataque; e agora o verás! gritou e estrebuchou por
um ror de tempo, até que lhe vieram os soluços! Um inferno!
— E agora? Como está ela?
— Mais sossegadinha, porém suponho que vai ter
febre... Eu não quis chamar o medico, sem falar primeiro com você...
— Fez bem.
E o cônego recolheu-se a meditar.
— Com os demos!... resmungou por fim. A coisa
estava muito mais adiantada do que eu fazia...
— E agora?
&emdash;Agora, é dizer-lhe a verdade!... O que
eu queria era saber em que pé estava a questão... Ela se supõe traída e, para
supor tal, é preciso que tenha concertado algum plano com o melro... E eis
justamente o que convém destruir quanto antes!...
E, depois de uma pausa:
— Aquela indiferença pela retirada de Raimundo era
devida à certeza do contrário...
Calou-se e perguntou daí a um instante:
— Ela acreditou logo no que você disse?
— Logo, logo! gritou: "Miserável!" e zás!
caiu com o ataque!
— E singular...
— O quê?
— Ter acreditado tão facilmente... mas, enfim...
conte-se-lhe a verdade!. ..
— Então, espere um instantinho, que...
— Não senhor, venha cá, compadre, vou eu; a mim
talvez que a pequena diga tudo com mais franqueza.
E, inspirado por uma idéia, voltou-se para Manuel:
— Olhe! você, o melhor é fingir que não sabe de
coisa alguma... compreende?
— Como assim?
— Não se dê por achado... finja que estás deveras
persuadido da partida de Raimundo.
— Para quê?
— É cá uma coisa...
E o cônego, revestindo um ar consolador e
respeitoso, entrou, com passos macios, no aposento de Ana Rosa.
A crise tinha cessado de todo; a doente soluçava
baixinho, com o rosto escondido entre dois travesseiros. A boa Mónica,
ajoelhada aos pés dela, vigiava-a com a docilidade de um cão. D. Maria Bárbara
assentada perto da rede, exprobrava a neta, a meia voz, aquele mal cabido pesar
por um fato que nada tinha de lamentável.
— Então, minha afilhada que e isso?... perguntou o
padre, passando carinhosamente a mão pela cabeça da rapariga.
Ela não se voltou; continuava a chorar,
inconsolável, assoando de espaço a espaço o narizinho, agora vermelho do
esforço do pranto. Não podia falar, os soluços secos e muito suspirados,
repetiam-se quase sem intervalo. Com um sinal o cônego afastou Mana Bárbara e
Mônica, e, chegando os seus lábios finos ao ouvido da afilhada, derramou nele
estas palavras, doces e untuosas, como se fossem ungidas de santo óleo:
— Tranqüilize-se... Ele não partiu... está aí...
Sossegue...
— Como?
E Ana Rosa voltou-se logo.
— Não faça espalhafato... Convém que seu pai não
saiba de coisa alguma... Descanse! sossegue! Raimundo não partiu, ficou!
— Vossemecê está me enganando dindinho!...
— Com que interesse, minha desconfiada?
— Não sei mas...
E soluçou ainda.
— Está bom! não chore e onça o que lhe vou dizer:
Saindo daqui, procuro o rapaz e faço-o ausentar-se por algum tempo, até que as
coisas voltem de novo aos seus eixos; mais tarde ele se mostrará, e então nós
trataremos de tudo pelo melhor... Nec semper lilia florent!...
— E papai?
— Deixe-o por minha conta! fie-se inteiramente em
mim! Mas precisamos ter uma conferência completa, sozinhos, num lugar seguro,
onde possamos falar à vontade. Para ajudá-los preciso pôr-me bem a par do que
há! entregue-se pois às minhas mãos e verá que tudo se arranja com a divina
proteção de Deus!... Nada de desesperos! nada de precipitações!... Calma, minha
filha! sem calma nada se faz que preste!...
E, depois de uma meiguice: — Olhe, venha um dia à
Sé, confessar-se comigo... Sua avó encomendou-me uma missa cantada. Não pode
haver melhor ocasião... Confesso-a depois da missa. Está dito?
— Mas, para quê, dindinho?...
— Para quê?... é boa! para poder ajudá-la, minha
afilhada!...
— Ora...
— Não? pois então lá se avenham vocês dois, mas
duvido muito que consigam alguma coisa!... Se tem confiança em seu padrinho, vá
à missa, confesse-se, e prometo que ficará tudo arranjado!
Ana Rosa tinha já a fisionomia expansiva, sentia
vontade até de abraçar o cônego; aquele bom anjo que lhe trouxera tão agradável
notícia.
— Mas não me engane, dindinho!... Diga sério! ele
não foi mesmo?
— Já lhe disse que não, oh! Tranqüilize-se por esse
lado e venha comigo à igreja! Tudo se acomodará a seu gosto! — Jure!
— Ora, que exigência!... que criancice!...
— Então não vou.
— Está bom, juro.
E o cônego beijou os indicadores, traçados em forma
de cruz sobre seus lábios.
— E agora? está satisfeita?
— Agora sim.
— E vai à confissão?
— Vou.
&emdash;Ainda bem!
16
A casa particular de Manuel Pescada tinha, pelo
menos em aparência, recaido no seu primitivo estado de paz e esquecimento.
Tanto ai como pela cidade, já bem pouco se falava de Raimundo.
Ele, ao sair do quarto da amante havia reformado
seu programa de vida. No mesmo dia partiu para Rosário; foi visitar a mãe, na
esperança de trazê-la em sua companhia para a capita e viver ao lado dela, mas
Domingas não se deixou apanhar e o infeliz teve de voltar só.
Instalou-se no Caminho Grande, numa casinha velha,
escondido como um criminoso de morte. Daí com muita dificuldade, escreveu uma
carta a Ana Rosa, confiando-lhe os seus projetos; a carta terminava assim:
"O melhor é deixarmos que tudo serene completamente e que de todo se
esqueçam de nós, e então eu te aparecerei na noite que combinarmos e poremos em
prática o plano exposto no começo desta. Quanto a teu pai, só me entenderei com
ele, no dia em que esse teimoso estiver resolvido a perdoar o genro e a filha.
Adeus. Não desanimes e tem plena confiança no teu noivo extremoso. —
Raimundo."
Com essa missiva Ana Rosa tranqüilizou-se tanto,
que procurou dissuadir o cônego da idéia da tal confissão. "No fim de
contas, se era pecadora, fora-o premeditadamente e não se arrependia. A
consciência dizia-lhe que o casamento resgatava a sua falta. Dindinho, por
conseguinte, que tivesse paciência, ela não sentia necessidade de
perdão!..." Raciocinando deste modo, falou com franqueza ao padre e
retirou a promessa que lhe fizera; mas o reverendo repontou, ameaçando-a com uma
denúncia a Manuel. A rapariga chegou a suspeitar que o padrinho sabia de tudo,
e amedrontou-se.
— Mas, dindinho, vossemecê embirrou com este
negócio da confissão!. ..
O cônego assentou os olhos no teto, à mingua de
céu, e, recorrendo aos efeitos artísticos da sua profissão, desenrolou uma
prática, que terminava no seguinte:
— Malos tueri haud tutum Não sabes porventura,
pecadora, vítima inocente de tentações diabólicas! que eu devo à minha
consciência e a Deus duplas contas do que faço cá na terra?... Não sabes, minha
afilhada, que todo sacerdote caminha neste vale de lágrimas entre dois olhos
perspicazes e penetrantes, dos juizes austeros e inflexíveis, um
chamado&emdash;Deus, e outro&emdash;Consciência?... Um que olha de fora
para dentro, e outro de dentro para fora?... E que o segundo é o reflexo do
primeiro, e que, satisfeito o primeiro, o segundo está também satisfeito?...
Não sabes que terei um dia de prestar contas dos meus atos mundanos, e que,
percebendo agora que uma ovelha se desgarra do rebanho e arrisca perder-se do
caminho da luz e da pureza, é de minha obrigação, como pastor, correr em
socorro da desgraçada e guiá-la de novo ao aprisco, ainda que se faça preciso a
violência?... Por conseguinte, filha de Eva, vem à igreja! vem! confessa-te ao sacerdote
de Nosso Senhor Jesus Cristo! abre tua alma de par em par defronte dele que teu
coração se fechará logo aos imundos apetites da carne! Abraça-te, como
Madalena, aos pés do representante de Deus, até que este último se compadeça de
ti, pecadora! Deum colenti stat sua merces!
E o cônego ficou ainda um instante a olhar para o
teto com os braços erguidos e os olhos em branco.
— Pois bem Dindinho, pois bem! disse Ana Rosa,
impressionada. E desarmou sem cerimônia a posição extática do padre. — Irei a
tal confissão, mas deixe-se dessas coisas e não esteja a falar desse modo, que
isso me faz mal aos nervos! Bem sabe que sou nervosa.
Ficou resolvido que a missa encomendada por Maria
Bárbara seria no primeiro domingo do seguinte mês, e que Ana Rosa iria à
confissão.
Mônica, sempre desvelada e extremosa por sua filha
de leite, iniciara-se nos segredos desta e, como era lavadeira, todas as vezes
que ia à fonte, dava um pulo à casa de Raimundo para trazer noticias dele a
laiá.
Uma noite o cônego Diogo, envolvido na sua batina
de andar em casa debruçado sobre uma velha mesa de pau-santo, com os pés
cruzados sobre um surrado couro de onça, ainda do tempo do Rosário, a cabeça
engolida num trabalhado gorro de seda, primorosamente bordado pela afilhada,
lia, defronte do seu candeeiro, um grosso volume de encadernação antiga, em
cujo frontipício estava escrito: "História Eclesiástica. Tomo undécimo.
Continuação dos séculos cristãos ou História do Cristianismo nos seus
estabelecimentos e progresso: Que compreende desde o ano de 1700 até o atual
Pontificado de N.S.P. Pio VI. Traduzida do espanhol. Lisboa. Na Tipografia
Rolandina, 1807. Com a licença da mesa do desembargo do Paço." O bom velho
perdia-se numas descrições enfadonhas sobre a seita dos Pietistas, fundada nos
fins do século XVIII por Spener, cura de Francfort, quando bateram à porta do
seu gabinete três pancadinhas discretas e compassadas. Marcou logo o livro, com
o palito com que escarafunchava os dentes, e foi abrir.
Era o Dias. Estava cada vez mais magro e mais
bilioso, porém com a figura mascarada sempre por aquele inveterado sorriso de
astuciosa passividade.
— Venho incomodá-lo, senhor cônego...
— Essa é boa!... Vá entrando.
E, como a visita não se animasse a falar, acrescentou
depois de uma pausa:
— Mandou a carta que lhe dei?...
— Já ele a tem no papo. Atirei-a eu mesmo pelas
rótulas da sua janela, na véspera do tal embarque!
— Já descobriu onde ele mora presentemente?
— Ainda não consegui, não senhor, mas quer me
parecer que o patife se aninha lá pras bandas do Caminho Grande.
— Olho vivo. O traste pode surgir de repente e
pregar-nos alguma partida! Olho vivo! Você tem feito o que lhe recomendei?
— A que respeito?
— A respeito da espionagem.
— Tenho, sim senhor.
— Então! o que já descobriu?
— Por hora nada que valha... E creia o senhor
cônego que não me descuido. Além daquela busca que dei no dia de São João, não
há instantinho, que possa roubar ao serviço, que não seja para dar fé do que se
passa lá por casa. Mas, do que tenho apanhado, só o que me disse respeito ao
negócio foi uma conversa entre a D. Anica e a velha...
— A Bárbara?
— Sim senhor.
— E então?
— É que a pequena, depois de pedir muito à avó que
se compadecesse dela e obtivesse do pai liberdade para se casar com o cabra,
abriu a chorar e a lamentar-se como uma varrida! E "que era muito
desgraçada; que ninguém em casa a estimava; que todos só queriam
contrariá-la... E porque faria isto, e porque faria aquilo!..."
— Mas o que dizia ela que faria?... Ora que diabo
de maneira tem você de contar as coisas!...
— Tolices, senhor cônego, tolices de moça... Que se
matava! Ou que fugia! que se meda a freira!... E porque o casamento pra cá! e
porque o casamento pra lã! Enfim, queria dizer na sua, que uma mulher nunca
devia casar obrigada! Afina!, atirou-se aos pés da avó, soluçando e dizendo
que, se não a deixassem casar com o Raimundo, que ela não responderia por
si!...
— Então, a velha já sabe que o Raimundo ficou?...
— Parece. A rapariga, pelo menos, disse que a avó,
junto com o pai, haviam de amargar muito desgosto por mor de não consentirem no
casamento!...
— E o que fez ela?
— Quem, a pequena?
— Não, a velha.
— A velha enfezou-se e pô-la do quarto pra fora,
jurando que antes queria vê-la estrada debaixo da terra do que casada com um
cabra, e que, se o patrão...
— Que patrão senhor?
— Seu Manuel, o pai!
— Ah! o compadre.
— Sim senhor Mas sim, se o patrão, por qualquer
aquela, cedesse, ela é que não consentiria no casamento da neta, e romperia com
o genro!
— Bom, bom! Vamos bem! E a rapariga?
— Ora, a rapariga lá se foi choramingando para o
quarto e, se me não engano, meteu-se a rezar.
— Reza, hein?! perguntou o cônego com interesse.
— E! ela reza mais agora...
— Muito bem! muito bem! Vamos maravilhosamente!
— E está toda cheia de abusões... Ainda outro dia,
dei fé que ela pendurava alguma coisa no poço; logo que pude, corri para ver se
descobria o que vinha a ser. Ora o que pensa vossemecê que era?...
— Um Santo Antônio.
— Justo. Em um Santantoninho assinzinho!...
confirmou o Dias, marcando uma polegada no Index.
— Bem! disse o cônego. Continue a espreitar. Mas...
todo cuidado e pouco! Que ninguém perceba!... principalmente minha afilhada,
compreende?... Se descobrem que você anda farejando, está tudo perdido!...
Finja-se tolo!... Tenha fé em Deus! E animo! Quando apanhar qualquer novidade,
apareça-me fogo! Não deixe de espiar! lembre-se de que a arma com que havemos
de esmagar o bode, ainda está nas mãos dele!...
— Ora, senhor cônego, mas eu já vou perdendo a
fé!... Confesso-lhe que...
— Não seja idiota, que você não tem razão nenhuma
para desanimar! trate, mas é de ver se descobre alguma coisa, porem coisa
grossa, que dê para agarrar, porque depois o mais fácil é o seu casamento!
Olhe! Preste atenção para quem entra e para quem sai! Se eles ainda não se
correspondem, o que duvido, virão a correspondem-se mais tarde! em todo o caso,
é prudente não recorrer por ora as cartas — deixe-os escrever, deixe-os
escrever, que lhe direi quando é que você terá de apoderar-se de alguma delas.
A fruta, para ser aproveitável, deve ser colhida de vez!...
— Bem, senhor cônego posso retirar-me?...
— Viva!
— Então, vou-me chegando.
— Sis felix!
— Como? perguntou o Dias, voltando-se.
— Não se descuide. Vá!
O caixeiro fez uma mesura e saiu Diogo fechou a
porta e tomou à sua História Eclesiástica, até que a caseira Inácia foi
chamá-Io para a ceia. Então, depois de abaixar a luz do candeeiro, passou-se à
varanda e assentou-se, pachorrentamente, defronte de uma tigela de canja. Veio
logo um gato maltês, gordo, grande, encarapitar-se-lhe nas cosas, miando
ternamente e voltando para ele a sua fosforescente pupila, que lhe suplicava
carícias.
Dir-se-ia que naquele canto, modesto e asseado,
reinava a paz abençoada dos justos.
No domingo seguinte a Sé chamava para a missa, com
um alegre repinicar de sinos. Era a promessa de D. Maria Bárbara.
Havia grande afluência do povo. As beatas subiam
piedosamente os arruinados degraus do átrio e iam, de cabeça vergada,
ajoelhar-se no corpo principal da igreja. Sentia-se o frufru de vetustas e
farfalhudas saias de chamalote, restauradas com chá-preto, o estalar de fortes
chinelas novas na sonora cantaria do templo, e o tilintar das contas de coco
babaçu, cujos rosários deslizavam entre os trêmulos dedos das velhas, no
fervoroso sussurro das orações. Viam-se-lhes as camisas de cabeção bordado e
cheias de rendas e labirintos; destacavam-se também grandes toalhas de linho
branco, penduradas dos ombros carnudos das cafuzas e mulatas; reluziam os seus
enormes pentes de tartaruga, enfeitados de ouro, e as contas preciosas, que
lhes circulavam, com muitas voltas, as tocinhudas espáduas e as roscas taurinas
do cachaço. Em cima, perto do altar-mor, em lugares privilegiados, sobressaiam
chapéus enfeitados de fitas e plumas, leques irrequietos, que se agitavam
desordenadamente, com um ruído casquilho de varetas batendo de encontro aos
broches e alfinetes de peito, numa confusão de cores espantadas; eram devotas
de fino trato, velhas e moças ostentavam jóias vistosas e perfumes ativos
segurando, com luva Horas Marianas encadernadas de marfim, veludo, prata e
madrepérola.
Recendia por toda a catedral um aroma agreste de
pitangueira e trevo cheiroso. Pela porta da sacristia lobrigavam-se de relance
padrecos apressados, que iam na carreira, vestindo as suas sobrepelizes dos
dias de cerimônia. Havia na multidão um n mor impaciente de platéia de teatro.
O sacristão, cuidando dos pertences da missa, andava de um para outro lado,
ativo como um contra-regra, quando o pano de boca vai subir.
Afinal, à deixa fanhosa de um padre muito magro
que, aos pés do altar desafinava uns salmos da ocasião, a orquestra tocou a
sinfonia e começou o espetáculo. Correu logo o surdo rumor dos corpos que se
ajoelhavam; todas as vistas convergiam para a porta da sacristia; fez-se um
sussurro de curiosidade, em que se destacavam ligeiras tosses e espirros; e o
cônego Diogo apareceu, como se entrasse em cena, radiante, altivo senhor do seu
papel e acompanhado de um acólito que dava voltas frenéticas a um turibulo de
metal branco.
E o velho artista, entre uma nuvem de incenso, que
nem um deus de mágica, e coberto de galões e lantejoulas, como um rei de feira,
lançou, do ato da sua solenidade, um olhar curioso e rápido sobre o público,
inadiando-lhe na cara esse vitorioso sorriso dos grandes atores nunca traídos pelo
sucesso.
Com efeito, os espectadores adoravam-no, posto que
ele agora raras vezes trabalhasse; mas nessas poucas, em que se dignava
mostrar-se por condescendência a uma velha amiga, como naquela ocasião, o seu
triunfo era esplêndido e certo. Vinha gente de longe para vê-lo; para admirar a
imponência, a gentileza daquele porte de homem. Incomodaram-se muitas pessoas
para não perder aquela missa; sexagenárias do seu tempo mandaram espanar o
palanquim, havia longos anos esquecido debaixo da escada, e espantaram a
vizinhança com uma saída à nua; e ali, esses duros corpos encarquilhados, que
envelheceram com Diogo, pareciam reviver por instantes, como cadáveres sujeitos
a uma ação galvânica, e, trêmulos, mordiam o beiço roxo e franzido, palpitante
de recordações.
Em caminho para o altar, o exímio artista olhou
para os lados, falou em voz baixa aos seus ajudantes, e encarou a platéia com
um sorriso de discreta soberania; mas de súbito o seu sorriso dilatou-se numa
feição mais acentuada de orgulho: é que distinguira Ana Rosa, entre as devotas,
ajoelhada num degrau da nave, de cabeça baixa, o ar contrito, a rezar
freneticamente ao lado da avó.
Os turíbulos fumegaram com mais força; espirais de
incenso espreguiçaram-se, dissolvendo-se no espaço; o ambiente saturou-se de
perfumes sacros, e enervantes, e as mulheres, todas, se contraíram preparadas
para místicos enlevos. O celebrante chegara enfim ao altar, depois de
ajoelhar-se de leve, como fazendo uma mesura apressada, defronte dos santos
grandes, aprumados nos seus tronos de brocados falsos. Os janotas, separados do
altar-mor por uma grade de madeira preta, tiraram da algibeira, com a ponta dos
dedos, o lenço almiscarado e ajoelhavam-se sobre ele, numa atitude elegante. As
moças escondiam a boca no livrinho das rezas e passeavam furtivamente o olhar
para o lado dos fraques pretos. Os que até ai estiveram ajoelhados, rezando à
espera da missa, mudavam de posição; os opulentos quadris das pretas-minas
rangiam; os ossos dos velhos estalavam; criancinhas soltavam aclamações de
aplauso pela festa, algumas choravam. Mas, finalmente, tudo tomou um sossego
artificial; fez-se silêncio, e a missa principiou solene, ao som do órgão.
Ao repicarem de novo os sinos, toda a gente se
levantou com algazarra; os rapazes endireitavam as joelheiras das calças; as
moças arranjavam os pufes e os laçarotes; as beatas sacudiam as suas eternas
saias, agora entufadas pela pressão dos joelhos. A orquestra tocou uma música
profana, alegre como uma farsa depois de um drama; e o cônego Diogo, na
sacristia, tirava o seu pitoresco vestuário de seda bordada, que o sacristão
recolhia religiosamente nas suas mãos de tísico, para guardar nos extensos
gavetões de pau-negro.
O povo, confortado de religião, mas estalando pelo
almoço espremia-se sôfrego pelas largas portas da matriz. Mendigos, alinhados à
saída, pediam, com chorosa insistência, uma esmola pelo amor de Deus ou pelas
divinas chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo; as devotas desapareciam pelo
largo, ligeiras como baratas perseguidas; algumas senhoras, no vestíbulo,
arejavam-se ao sol, esperando quem lhes dizia respeito e conversando
garrulamente sobre o bom desempenho da missa sobre a excelência das vozes, a
riqueza da roupa do padre e da toalha do altar e sobre a boa observância das
cerimônias. Tudo agradara.
A igreja estava quase vazia. D. Maria Barbara e a
neta esperavam pelo herói da função.
— Cá está sua afilhada, senhor cônego! Comungue-a;
veja se lhe arranca o diabo de dentro do corpo! disse a velha ao vê-lo.
E, falando-lhe mais baixo, pediu-lhe com interesse
que a aconselhasse bem; que lhe sacasse da cabecinha a idéia do tal cabra. E
afinal afastou-se, traçando no espaço uma cruz na direção da neta.
— Vai! Deus te ponha virtude, que mau coração não
tens tu, minha estonteada!
E saiu, para esperá-la na sala do cortador
Benedito, que nessa ocasião aparecia trazendo um carro da cocheira do Porto.
O cônego Diogo calculara bem A encenação da missa,
os amolecedores perfumes da igreja, o estômago em jejum, o venerando mistério
dos latins, o cerimonial religioso, o esplendor dos altares, as luzes
sinistramente amarelas dos círios, os sons plangentes do órgão, impressionariam
a delicada sensibilidade nervosa da afilhada e quebrantariam o seu animo altaneiro,
predispondo-a para a confissão. A pobre moça considerou-se culpada; pela
primeira vez, entendeu que era um crime o que havia praticado com Raimundo.
sentiu minguar-lhe aquela energia de aço, que lhe inspirara o seu amor, e, ao
terminar a missa, quando a avó a depusera nas mãos do velho lobo da religião, a
sua vontade era chorar.
Ajoelhou-se, muito comovida, na cadeira, junto ao
confessionário e gaguejou, quase sem fôlego, o confiteor. Mas, à proporção que
rezava, os seus sentidos embaciavam-se por um acanhamento espesso
— Vamos... disse-lhe o padrinho quando ela terminou
a oração. Não tenha receios, minha filha!. Confie em mim, que sou seu amigo...
Plus videas tuis oculis quan alinis! Por que chora?. . Diga. .
Ana Rosa tremia.
— Vamos! Não chore e abra-me o coração... Vai
responder-me, como se estivesse falando com o próprio Deus, que tudo escuta e
perdoa. Faça o sinal da cruz
Ela obedeceu.
— Diga-me, minha afilhada, não se tem ultimamente
descuidado da religião?...
— Não senhor, balbuciou Ana Rosa por detrás do
lenço.
&emdash;Tem rezado todas as vezes que se deita
e todas as vezes que se levanta?...
&emdash;Tenho, sim senhor...
— E nessas rezas não promete obedecer a seus
pais?...
— Prometo, sim senhor...
— E tem cumprido?
— Tenho, sim senhor.
— E sente a sua consciência tranqüila? acha que tem
cumprido, à risca, tudo o que prometeu a Deus. e tudo o que lhe manda a Santa
Madre Igreja?...
Ana Rosa não respondeu.
— Então!. . Vamos... disse o padre com brandura.
Não tenha medo!... Isto é apenas uma conversa que a senhora tem com a sua
própria consciência, ou com Deus, que vem a dar na mesma... Conte-me tudo!...
Abra-me seu coração!... Fale. minha afilhada!.. Aqui, eu represento mais do que
seu pai; se fosse casada — mais do que seu marido! sou o juiz, compreende,
represento Cristo! — represento o tribunal do céu! Vamos, pois, conte-me tudo
com franqueza; conte-me tudo, e eu lhe conseguirei a absolvição!... eu pedirei
ao Senhor Misericordioso o perdão dos seus pecados!...
— Mas o que lhe hei de eu contar?...
E soluçava.
— Diga-me: o que é que ultimamente a tem posto
triste?... Sente-se possuída de alguma paixão, que a atormenta?... Diga.
— Sim, meu padrinho, respondeu ela, sem levantar os
olhos.
— Por quem?
— Vossemecê já sabe por quem é...
— Pelo Raimundo...
A moça respondeu com um gesto afirmativo de cabeça
— E quais são as suas intenções a esse respeito?
— Casar com ele..
— E não se lembra com isso, ofende a Deus por
vários vários Ofende, porque desobedece a seus pais; ofende porque agasalha no
seio uma paixão reprovada por toda a sociedade e principalmente por sua
família; e ofende, porque com semelhante união, condenará seus futuros filhos a
um destino ignóbil e acabrunhado de misérias! Ana Rosa, esse Raimundo tem a
alma tão negra como o sangue! além de mulato, é um homem mau sem religião, sem
temor de Deus! É um — pedreiro livre! — é um ateu! Desgraçada daquela que se
unir a semelhante monstro!... O inferno ai está, que o prova! o inferno ai está
carregado dessas infelizes, que não tiveram, coitadas! um bom amigo que as
aconselhasse, como te estou eu aconselhando neste momento!... Vê bem! repara,
minha afilhada, tens o abismo a teus pés! mede, ao menos, o precipício que te
ameaça!... A mim, como pastor e como padrinho, compete defender-te! Não cairás,
porque eu não deixo!
E, como a rapariga mostrasse um cerro ar de dúvida,
cônego abaixou a cabeça, e disse misteriosamente:
— Sei de coisas horrorosas, praticadas por aquele
esconjurado!... Não é somente o fato de cor o que levanta a oposição do teu
pai... (Ana Rosa fez um gesto de surpresa). Saberás, porventura, o que precedeu
ao nascimento daquele homem; saberás como veio ele ao mundo?!.. (E, alterando a
voz, para um tom sinistro): Horrible dictu!.. É filho de um enxame de crimes e
vergonhas!... Aquilo é o próprio crime feito gente!... E um diabo! E o inferno
em carne e osso! Não te diria isto, minha filha, se assim não fosse preciso;
sabe, porém, que ele, se quer casar contigo, é porque tem a teu pai ódio de
morte e pretende vingar-se do pobre homem na pessoa da filha!...
— Mas do que quer ele vingar-se de papai?...
— Do quê?... De muitas e muitas coisas, que lhe não
perdoa!... São segredos de família, que ainda és muito criança para conhecer e
Julgar!... Mas um dos motivos é, digo-te aqui no sagrado sigilo do
confessionário, o fato de haver teu pai herdado consideravelmente do irmão!...
— Não é possível! exclamou Ana Rosa, tentando
erguer-se.
— Menina! repreendeu o cônego, obrigando-a a ficar
ajoelhada. Reze já! incontinenti, para que Deus se compadeça de tamanho
desatino! De joelhos, pecadora! que és muito mais culpada do que eu supunha!
A moça caiu de joelhos, tonta sob o bombardear
daquelas imprecações, e gaguejou: o confiteor, batendo muito no peito na
ocasião de dizer o "Por mea culpa! mea máxima culpa! E depois calaram-se
ambos, por um instante.
— Então?... disse afina o padre, tornando à
primitiva brandura. Ainda está na mesma ou já entrou a razão nessa
cabecinha?... Fale minha afilhada!
— Não posso mudar de resolução, meu padrinho...
— Ainda pensa em casar com. ?
— Não posso deixar de pensar... creia!
O padre velho levantou-se tragicamente, fechou as
sobrancelhas e ergueu o braço como um profeta.
— Pois então, declamou, sabe, infeliz, que sobre ti
pesara a maldição eterna! sabe que tenho plenos poderes de teu pai para
retirar-te a sua bênção! sabe que...
Foi interrompido por um "Ai" de Ana Rosa
que perdia os sentidos, caindo a seus pés.
Ora bolas! resmungou ele, entre dentes.
E saiu do confessionário, para assentar a afilhada
num dos longos bancos de madeira preta, que havia ali junto.
Felizmente não era nada. A rapariga deu um profundo
suspiro e encostou a cabeça ao colo do parinho, chorando em silêncio de olhos
fechados.
Ele ficou algum tempo a contemplá-la naquela
posição, que a fazia mais bonita, e, perdido em saudosas reminiscências da sua
mocidade, admirava a curva macia dos seios, palpitantes, sob a compressão . da
seda, a brancura mimosa das faces, a engraçada harmonia das feições. "Ó
têmpora! Ó mores!..." disse consigo e depô-la, carinhosamente, contara o
alto espaldar do banco.
— Vamos. continuou, quase em segredo, como um
amante sequioso pelas pazes, depois de um arrufo. Vamos.. não seja teimosa...
Não se faça má... Ponha-se bem com Deus e comigo...
— Se para isso, balbuciou Ana Rosa, sem abrir os
olhos, é preciso desistir do casamento, não posso...
— Mas por que não podes, minha tolinha?... insistiu
o confessor, tomando-lhe as mãos com meiguice. — Hum?... por que não podes?...
— Porque estou grávida! respondeu ela, fazendo-se
escarlate e cobrindo o rosto com as mãos.
— Horresco referens!
E o cônego deu um salto para trás, ficando de boca
aberta por muito tempo, ã sacudir a cabeça.
— Sim senhora!... fê-la bonita!...
Ana Rosa chorava, escondendo a cara.
— Sim senhora!...
E o velho apalpava com o olhar o corpo inteiro da
afilhada, como procurando descobrir nele a confirmação material do que ela
dizia.
— Sim senhora!...
E tomou uma pitada.
— Bem vê... arriscou afinal a rapariga, entre
lágrimas, que não tenho outro remédio senão...
— Está muito enganada! interrompeu o cônego
energicamente. Está muito enganada! O que tem a fazer é casar com o Dias! E
logo! antes que a sua culpa se manifeste!
Ela não deu palavra.
— Quanto a isso... acrescentou o lobo velho,
apontando, desdenhoso, com o beiço, o ventre da afilhada, eu me encarregarei de
lhe dar remédio para...
Ana Rosa ergueu-se com um só movimento e ferrou o
olhar no cônego
— Matar meu filho?!... exclamou lívida.
E, como se temesse que o padre lho arrancasse ali
mesmo das entranhas, precipitou-se correndo para fora da igreja
Saiu pelo lado que fronteia com o jardim público.
Maria Bárbara só a pôde alcançar já dentro do cano.
— Com efeito! disse lhe agastada. Parece antes que
vens do inferno do que da casa de Deus!
— É mesmo! — Que diabos de modos são esses, Anica?
repreendeu a velha. Ora vejam se no meu tempo se dava disto! Por que estás com
essa cara tão fechada, criatura?!
Ana Rosa, em vez de responder, virou o rosto. E não
trocaram mais palavra até a casa, apesar do muito que serrazinou a avó por todo
o caminho
E, no entanto, a pobre moça sentia se horrivelmente
oprimida e precisava desabafar com alguém. Um desejo doido a devorava: era
correr em busca de Raimundo, contar-lhe tudo e pedir-lhe conselhos e amparo,
porque nele, e só nele, confiaria inteiramente. Queimava-lhe o corpo uma
necessidade carnal de vê-lo, abraçá-lo, prendê-lo ela com todo o ardor dos seus
beijos, e depois arrastá-lo para longe para um lugar oculto, bem oculto, um
canto ignorado de todos, onde os dois se entregariam exclusivamente ao egoísmo
feliz daquele amor.
Desde que se apercebera grávida, não podia suportar
o seu acanhado quarto de menina; a sua rede de solteira causava-lhe íntimas
revoltas. E agora, depois de disparatar com o padrinho sentia-se com forças
para tudo; vibrava-lhe no sangue uma energia estranha e absoluta; pensava no
filho com transporte e orgulho, como se ele fora uma concepção gloriosa da sua
inteligência. E, na obsessão dessa idéia, alheava-se de tudo mais, sem pensar
sequer na falsidade da situação em que se avinha.
Aguardava ansiosa os prazeres da maternidade, como
se os conquistasse por meios lícitos, e tremia toda em sobressalto só com a
lembrança de que poderia vir a faltar à criancinha o menor cuidado ou o mais
dispensável conforto; vivia exclusivamente para ela; vivia para esse entezinho
desconhecido que lhe habitava o corpo; o filho era o seu querido pensamento de
todo o instante; passava os dias a conjeturar como seria ele, menino ou menina,
grande ou pequeno, forte ou franzino; se puxaria ao pai. Tinha pressentimentos
e tornava-se mais supersticiosa. Apesar, porém de todos os perigos e
dificuldades sentia-se muito feliz com ser mãe e não trocada a sua posição pela
mais digna e segura, se para isso fosse preciso sacrificar o filho. O filho! só
este valia por tudo; só este lhe merecia verdadeira importância, o mais era
mesquinho, incompleto, falso ou ridículo, ao lado daquela verdade que se
realizava misteriosamente dentro dela, como por milagre aquela felicidade, que
Ana Rosa sentia crescer de hora a hora de instante a instante no seu ventre,
como um tesouro vivo que avulta; aquela outra existência, que esgalhava da sua
existência e que era uma parcela palpitante do seu amado, do seu Raimundo, que
ela trazia nas entranhas!
Ao chegar a casa, correu logo para o quarto, fechou-se
por dentro, tomou pena e papel e escreveu, sem tomar fôlego uma enorme carta ao
rapaz. "Vem, dizia-lhe vem quanto antes meu amigo, que preciso de ti, para
não acreditar que somos dois monstros! Se soubesses como me fazes falta! como
me dois ausente, terias pena de mim! Vem, vem buscar-me! se não vieres até o
fim do mês, irei ter contigo, irei ao teu encontro, farei uma loucura!"
Mas Raimundo respondeu que ainda era cedo e
pediu-lhe que esperasse com resignação o momento de por em prática o que eles
já tinham antes combinado.
O rapaz vivia agora muito aborrecido e muito
nervoso estava macambúzio; não queria ver ninguém. Às vezes assustava-se todo
quando a criada lhe entrava inesperadamente no quarta. Deixou crescer a barba;
já mal cuidava de si; lia pouco e ainda menos escrevia As suas relações,
granjeadas por intermédio do tio, fecharam-se logo como golpes em manteiga. Não
se despregava nunca de casa porque, sendo Ana Rosa o único motivo de sua demora
no Maranhão, só ela o interessava e o atraia à nua.
Ana Rosa, porém, era guardada a vista, desde a
malograda partida do primo. E, não obstante, as visitas de Manuel abstinham-se
de falar em Raimundo; estabeleceu-se uma hipócrita indiferença em torno do
fato; ninguém dava palavra a esse respeito, mas todos sentiam perfeitamente que
o escândalo ainda, abafado mas palpitante, espreitando a primeira ocasião para
rebentar de novo E a panelinha da casa do negociante, esperava, esperava,
reunida à noite até as horas regimentais do chá com o pão torrado, conversando
em mil assuntos, menos naquele que mais interessava a todos eles, posto que
nenhum tivesse coragem de iniciá-lo.
Mas a primeira semana correu sem novidade, e a
segunda, a terceira, a quarta; foram-se dois meses, e a panelinha afrouxou
desanimada. Eufrásia, a pouco e pouco, ausentara-se de todo; Lindoca, chumbada
à sua obesidade, prendera o Freitas ao seu lado; o Campos moscara-se afinal
para a roga; o José Roberto afastara-se também, e vivia por ai, na pândega; só
quem não desertou, e aparecia com a mesma regularidade, era D Amância Sousellas
pronta sempre para tudo, sempre a dizer mal da vida alheia nunca deixando de
clamar que os tempos estavam outros e que hoje em dia os cabras queriam meter o
nariz em tudo.
— Também se lhe dão confiança!... disse ela, uma
noite, envesgando uma olhadela indireta sobre Ana Rosa.
A filha de Manuel cruzou instintivamente os braços
sobre o ventre.
17
E passaram se três meses. Ana Rosa, ao contrário do
que era de esperar, parecia mais tranqüila; a vigilância contra ela diminuíra
consideravelmente: o cônego fosse por cálculo ou fosse por cumprimento de
dever, guardara o segredo da confissão. A casa de Manuel havia, enfim, recaído
na sua moma e profunda tranqüilidade burguesa.
De tudo isto Raimundo recebera parte fielmente; e
deliberou jogar a última cartada. Escreveu à amante, marcando o dia da fuga.
Ana Rosa adoeceu de contente. A coisa seria no próximo domingo; ele faria um
carro esperá la ao canto da rua e uma vez que estivessem juntos, fugiriam para
lugar seguro. O raptor não seria facilmente reconhecido, porque as barbas lhe
transformavam de todo a fisionomia. "No entanto, dizia ele na carta
domingo, às oito da noite hora em que teu pai costuma conversar na botica do
Vidal quando os vizinhos e caixeiros ainda estão no passeio e tua avó aos
cuidados da Mônica que é nossa, nessa ocasião um sujeito barbado vestido de
preto, associará junto à tua porta uma música tua conhecida. Esse sujeito sou eu.
Ao meu sinal descerás cautelosamente e sem risco algum. O resto fica por minha
conta, a casa que nos há de receber e o padre que nos casará, estarão nesse
momento à nossa disposição. Ânimo! e até domingo as oito horas da noite."
"P.S. — Toda a cautela é pouca!..."
Ana Rosa durante os poucos dias que faltavam para a
fuga, não fazia mais do que sonhar se na futura felicidade; estava
sobressaltada e ao mesmo tempo radiante de satisfação; mal se alimentava, mal
dormia, cheia de uma impaciência frenética que lhe dava vertigens de febre. No
egoísmo da sua alegria materna suportava de mau humor as poucas amigas que a
procuravam ou os velhos companheiros de Manuel, que às vezes apareciam para
jantar. Mas ninguém parecia, nem por sombras desconfiar dos seus planos; ao
contrário em casa falava se, à boca cheia na obediência daquela boa filha tão
resignada à vontade do pai, e cochichava se devotamente sobre o salutar efeito
da confissão. Maria Bárbara resplandecia de triunfo e como os outros da
família, redobrava de solicitudes para com a neta; Ana Rosa era tratada como
uma criança convalescente de moléstia mortal, cercavam na de pequenas
delicadezas e mimos amorosos, evitavam lhe contrariedades. perdoavam lhe os
caprichos e as rabugices. O cônego, malgrado o que sabia, nunca se lhe mostrara
tão paternal e tão meigo. E os Dias, o inalterável Dias, ia surdamente ganhando
certo predomínio sobre seus colegas, que principiavam já respeitá lo como
pratrão, porque viam iminente o seu casamento com Ana Rosa.
— Está de dentro! Está ali, está entrando pra
sociedade!... rosnavam os caixeiros do Pescada, depois de comentar os novos
ares com que a menina tratava Luís.
Ela com efeito, agora o acolhia com menos
repugnância; uma vez chegou mesmo a sorrir para ele. Este sorriso, porém, tão
mal entendido por todos, nada mais era do contentamento de quem observa o
precipício por onde passou e do qual se considera livre.
O fato, porem , é que Manuel andava satisfeito de
sua vida . Ouviam no cantarolar ao serviço; viam no à porta dos vizinhos, sem
chapéu, às vezes em mangas de camisa, a chacotear ruidosamente, afogado em
risos; e à noite, em casa, quando chegava o cônego, agora ferrava lhe sempre um
abraço.
— Você é um homem dos diabos, seu compadre. Você é
quem as sabe todas!...
— Davus
sum non CEpidus!...
A panelinha discutia em particular o grande
acontecimento."Quem seriam os padrinhos?... Quais seriam os convidados?...
Como seria o enxoval?... Como seria o banquete?..." E, em breve, por toda
província, falou se no próximo casamento da filha do Pescada. Comentaram no,
profetizando boas e más conseqüências; riram se muito de Raimundo; elogiaram,
em geral , o procedimento de Ana Rosa: "Sim senhor! pensou como moça de
juízo!..." Todos os amigos da casa começaram a preparar se para a festa,
antes mesmo do convite. O Rosinha do Santos andava pouco depois preocupado com
o improviso de uma poesia, com que contava reabilitar se do seu fiasco no dia
de São João; o Freitas desfazia se em discursos, aprovando o fato , mas
lastimando Raimundo, cujos artigos e cujos versos ele apreciava convictamente;
o Casusa verberava contra os portugueses, furioso porque uma brasileira tão
bonita e tão mimos fosse cair nas mãos de um puça fedorento; Amância e Etelvina
perdiam horas a boquejar sobre o caso, insistindo a viúva em que, só vendo,
acreditaria em semelhante casamento. Afiaçavam por toda a parte que a festa
seria de arromba; diziam, com assombro respeitoso, que haveria sorvetes, e
constava até que o Pescada, só para aquele dia, ia fazer funcionar do novo a
máquina de gelo de Santo Antônio.
Mas o domingo fatal, que Raimundo destinara a fuga,
chegou finalmente. Por sinal que foi um dia bem aborrecido para a gente do
Manuel, porque o cônego não apareceu, como de costume, para a palestra, e
ninguém sabia por onde andava Dias. O jantar correu frio, sem pessoas de fora,
mas em boa disposição de humor; à mesa, o negociante fez várias considerações
sobre o futuro da filha; mostrou se bom e alegre com o seu corpo de Lisboa;
acudiram lhe anedotas já conhecidas da família; vieram lhe pilhérias a respeito
de casamento; disse, a brincar com a filha, que havia de arranjar lhe para
noivo o Tinoco ou o major Cotia. Ela ria se exageradamente; estava corada, muito
inquieta e nervosa; tinha vontade de acariciar o pai, abraçá lo, beijá lo,
despedir se dele. À sobremesa, sentiu um desejo absurdo de contar lhe com
franquesa todo os seus planos, e pedir lhe, pela última vez, a sua aprovação a
favor de Raimundo.
Às seis horas entrou D. Amância; ainda os encontrou
no café. Ana Rosa teve uma pontada no coração. "Que contratempo!..."
A velha declarou que estava cansada, vinha ofegante; pediu que a deixassem
repousar um pouco.
— Que estafa a sua, credo! Subir oito ladeiras no
mesmo dia!... — Oito, hein?...
E Ana Rosa mordia os beiços, sorrindo contrariada.
— Contadinhas! É de estrompar uma criatura!
E conversaram largamente sobre as ladeiras do
Maranhão.
— Então aquela do Vira Mundo!.. Benza te Deus!
— Não é pior do que a do Largo do Palácio...
— Deixe estar que a desta sua rua, seu Manuel,
também tem o que se lhe diga!...
— E a da Rua do Giz?...
— Um inferno! resumiu a velha, ainda arquejante.
Ter a gente de estar sempre a subir e a descer como uma coisa danada! Cruzes!
A conversa continuou, tomando para Ana Rosa um
caráter assustador. Amância parecia disposta a dar à língua; não se despregaria
dali tão cedo. Os caixeiros recolhiam se já, e a rapariga tremia de
impaciência. "Diabo daquela velha não se poria ao fresco?... " Qual!
O tempo corria.
Manuel declarou daí a pouco, que não saia de casa.
Foi buscar os seus jornais portugueses e pôs se a ler, à mesa de jantar, na
varanda.
A pequena quase disparava. Correu para o seu
quarto, fula de raiva, chorando. "Também, diabo! tudo parecia conspirar
contra ela!.. "
O relógio bateu uma badalada Eram sete e meia Ana
Rosa soltou um murro na cabeça "Diabo!"
Manuel bocejava Amância parecia resolvida a não
sair.
Ana Rosa voltou à varanda; tinha as mãos frias; o
coração queria saltar lhe de dentro. Sentia uma impaciência saturada de medo;
seu desejo era gritar, descompor aquele estafermo da velha, pô la na rua, aos
empurrões, "que fosse amolar a avó!" Semelhantes obstáculos à sua
fuga pareciam lhe uma injustiça, uma falta de consideração; vinha lhe vontade
até de queixar se ao pai; de protestar contra aquelas contrariedades que a
faziam sofrer.
Decorreu um quarto de hora. Manuel levantou se,
espreguigando se com os jamais na mão.
— Bom! D. Amância dá licença!...
E recolheu se ao quarto, para dormir.
— Ah!
Ana Rosa criou alma nova; teve vontade de abraçar o
pai, agradecendo lhe tamanha fineza
— Eu também já me vou chegando... disse Amânca. E
ergueu se.
— Já?... balbuciou a moça, por delicadeza.
A visita tornou a assentar se; a outra sentiu
ímpetos de estrangulá la.
Maria Barbara veio do quarto, e entabulou conversa
com a amiga
Ana Rosa arfava
— Diabo!
Faltavam cinco para as oito. Amância levantou se
afinal, e despediu se.
— Ora graças a Deus!...
Maria Bárbara foi até o corredor.
— Olhe, gritou a Sousellas. Não se esqueça,
hein?... Três pingos de limão e uma colherzinha de água de flor de laranja....
Santo remédio! Ainda é receita da nossa defunta Maria do Carmo!.
E desceu.
Mas, já debaixo, voltou, chamando por Mana Bárbara.
— Olhe, Babu!
Ana Rosa quase perde os sentidos.
Deixou se cair em uma cadeira.
— É verdade você não sabe de uma?...— Pois não lhe
ia esquecendo?...— A Eufrasinha estava de namoro com um estudante do Liceu?...
— Que estouvada! ..
— Um menino de quinze anos, criatura!
E contou toda a história, puxando pelos
comentários, e esticando-os.
Ana Rosa, assentada na varanda, em uma cadeira de
balanço, rufava com as unhas nos dentes.
— Bem, bem adeus minha vida!
E Amância beijocou a cara de Maria Bárbara
— Até que enfim!
Ana Rosa correu logo ao quarto Raimundo recomendara
lhe que não levasse nada, absolutamente nada, de casa, que ele estava preparado
e prevenido para recebê la. relógio pingou, inalteravelmente oito badaladas
roucas. Maria Bárbara afastara se para o interior da casa; Manuel continuava a
dormir no seu quarto. E daí a instantes, no silêncio da varanda, ouviu se o
assovio forte de Raimundo, entoando um trecho italiano.
Ana Rosa cujo coração fazia do seu peito um círculo
de ginástica apanhou trêmula as salas e, com uma ligeireza de pássaro que foge
da gaiola, desceu a escada na ponta dos pés, atirando se lá embaixo nos braços
de Raimundo, que a esperava nos primeiros degraus.
Mas, ao transporem a porta da nua, ela soltou um
grito, e o rapaz estacou, empalidecendo. Do lado de fora, o cônego Diogo e o
Dias, acompanhados por quatro soldados de policia, saíram ao seu encontro,
cortando lhes a passagem.
Dias, só por si, era um pobre pedaço de asno,
incapaz da mínima sutileza de inteligência e pouco destro na pontaria dos seus
raciocínios; posto, porém, ao serviço do cônego Diogo, tornara se uma arma
perigosa, de grande alcance e maior certeza. Guiado pelo mestre, o imbecil
nunca tinha deixado de espreitar, sempre desconfiado e atento, sondando tudo
aquilo que lhe parecia suspeito, acordando, muita vez, por alta noite, para ir,
tenteando as trevas, espiar e escutar, na esperança de descobrir alguma coisa.
As furtivas conversas de Ana Rosa com a preta Mônica quando esta voltava da
fonte não lhe passaram despercebidas e por aí chegou ao conhecimento da
correspondência de Raimundo, desde logo as primeiras cartas.
— Devo apoderar me delas... não é verdade?
perguntou ao padre.
— Nada! Por ora não! É cedo ainda!... respondeu
Diogo
E este continuava a freqüentar assiduamente a casa
do compadre sempre muito solicito pela saúde da sua afilhada, informando se,
com paternal interesse, das mais pequeninas coisas que lhe faziam respeito,
querendo saber quais os dias em que ela comia melhor, quais em que se sentia
alegre ou triste, quando chorava, quando se enfeitava, quando acordava tarde e
quando rezava. Como bom velho amigo da família exigia que lhe dessem contas de
tudo, e Manuel as dava de bom grado satisfeito por ver que as coisas iam
voltando aos seus eixos e que a sua casa recaia na primitiva tranqüilidade. O
cônego nem por sombra, lhe revelara o segredo da confusão de Ana Rosa, temendo
como solidário do Dias, que o negociante, em conjuntura tão feia esquecesse
tudo e preferisse casar a filha com o homem que a desvirtuara. Quanto ao seu protegido,
também não lhe quadrou dizer lhe a verdade, porque receava que o caixeiro, por
escrúpulo ou por medo do rival, desistisse do casamento... Ora, desitindo o
Dias, Diogo estaria em maus lençóis, porque Ana Rosa casava se logo com
Raimundo e ele ficaria sujeito a vingança deste, a quem temia, e com razão,
depois daquela pequena conferência à volta de São Brás. "Sei
perfeitamente, raciocinava o finório, que o traste não tem nenhuma prova contra
mim, mas convém me, a todo custo , fazê lo sair do Maranhão!... Seguro morreu
de velho!... O que o prende aqui é a esperança de obter ainda Ana Rosa; esta,
uma vez casada com o basbaque do Dias, irá, mas o marido , dar um passeio à
Europa, e o outro musca se naturalmente. Mas se por acaso, quiser antes de ir, desmoraliza
me perante o público, todos lançarão à palavra conta do despeito e, além de
ridículo, ficará tido como um caluniador!..." E, esfregando as mãos,
satisfeito com os seus desígnios, concluía: "Quem o mandou meter se de
gorra cá com o degas!..."
Assim, nas ocasiões em que Dias ia preveni lo da
chegada de uma nova carta de Raimundo, o cônego tratava de estudar, olho de
mestre, a impressão que ela deixava no ânimo de afilhada e, vendo o alvoroço em
que a rapariga ficara com a última, apressou se em dizer ao caixeiro:
— Chegou a vez, eu amigo, é agora! Atire se!
Precisamos desta carta!
— E por que nunca precisamos das outras?...
perguntou Luís estupidamente.
— Por quê?... Ora eu lhe digo... (Você pilhou me em
boa maré!). As outras cartas eram simples palavrórios de namoro; n valia a pena
arriscar se a gente por elas; demais, minha afilhada podia a vir desconfiar de
uma coisa, redobraria de cuidado, e agora a aquisição desta, que nos é
imprescindível, não seria tão fácil como há de ser, compreende?
Mas a verdadeira causa não revelou o disfarçado. O
cônego não queria que o caixeiro lesse as primeiras cartas de Raimundo, por
dois motivos: um porque temia que este fizesse em alguma delas qualquer
revelação a respeito do crime de São Brás; e segundo, porque receava que
incidentalmente se referisse a elas ao interessante estado de Ana Rosa. O
certo, porem, é que semelhante medida, facilitou, sem dúvida, a posse da carta,
em que Raimundo marcava o dia de fuga. O caixeiro, engodando o Benedito com uma
cédula de dez mil réis, mesmo instantes; copiou a logo, restituiu a, e correu à
casa de Diogo.
Então, os dois aliados, senhores já nos planos do
inimigo trataram de cortar lhe o vôo, recorrendo à polícia, que lhes forneceu
quatro praças.
O escândalo, como era de prever, reuniu povo na Rua
da Estrela, e Manuel acordou sobressaltado aos gritos da sogra, da Brígida e da
Mônica, que sem darem por falta de Ana Rosa, assustavam se com a presença dos
soldados e com o alvoroço da gentalha acumulada a porta do sobrado. Maria
Bárbara, toda safrapantada, correu aos gritos para seu quarto e, abraçando se a
um santo, encafuou se na rede, porque não estava em suas mãos ver fardas e
baionetas "sentia logo um formigueiro pelas pernas e o estômago nu
embrulho! Credo!"
Raimundo, entretanto não descoroçoou com a situação
e subia a escada, sem hesitar, levando consigo Ana Rosa, meio desfalecida. Em
cima, deu cara a cara com Manuel, e estacou, fitando se os dois com a mesma
firmeza, porque cada um tinha plena consciência dos seus atos. O padre e o
caixeiro subiram em seguida acompanhados pelos soldados.
Juntos todos, a situação tornou se dif cil; o
silêncio coalhava em torno deles, imobilizando os. Afinal o cônego puxou pelo
seu farto lenço de seda da Índia, assoou se com enstrondo e declarou, depois
uma máxima que, na qualidade de amigo e compadre do pai de Ana Rosa, entendeu
de sua obrigação evitar o criminoso rapto que o Sr. Dr. Raimundo, ali presente,
tentara perpetrar contra um dos membros daquela família.
A rapariga voltara a si com as palavras do padrinho
e escutava o de cabeça baixa, ainda amparada ao ombro de Raimundo.
— Eu ia por minha vontade... murmurou ela, sem
levantar os olhos. Fugia com meu primo, porque esse era o único meio de casar
com ele.
— E o senhor, como se explica?... perguntou o
cônego a Raimundo, com autoridade.
— Não me defendo, nem aceito o juiz: apenas declaro
que esta senhora nenhuma responsabilidade tem no que se acaba de passar. O
culpado sou eu: bem ou mal, entendi, e entendo, que hei de casar com ela e para
isso empregarei todos os meios
Ana Rosa ia dizer alguma coisa, o cônego atalhou:
Vamos todos cá pra dentro!
E, depois de despedir os soldados, seguiram para a
saia, de cuja entrada Maria Bárbara os espiava, ainda corrida e espantadiça do
susto.
— Agora que estamos em família, acrescentou ele,
fechando as portas, resolvamos, como homens de boa e só justiça, o que nos
cumpre fazer em tão melindrosa situação!... Hodie mihi, cras tibi!... Seu
Manuel, primeiro você! Tem a palavra!
Manuel passeava ao comprido da casa. Parou, fazendo
face ao sofá, onde estavam todos, e dirigiu se ao grupo. O pobre homem tinha
uma grande tristeza na fisionomia; transparecia lhe no olhar a sua perplexidade,
impondo o respeito e a compaixão, que nos inspiram as dores resignadas.
Percebia se que lhe faltavam as palavras, e que o infeliz lutava para expor as
suas idéias de um modo fiel e claro. Afinal, voltou se para o cônego e declarou
que estimava bastante vê lo, naquele momento, ao seu lado. "O compadre
fora sempre o seu guia, o seu companheiro, o seu melhor amigo, como, ainda uma
vez, acabava de prová lo. Ficasse pois e ouvisse, que era da família!"
Depois, pediu à sogra que se aproximasse. "A presença dela e a sua opinião
eram igualmente imprescindíveis."
E passou ao caixeiro: "Ali o seu Dias também
devia ficar porque não representava um simples empregado, que Manuel tinha no
armazém; representava um colega zeloso, um futuro sócio, que em breve devia fazer
parte dos seus por direito, que de fato já o era, havia muito tempo. Achavam se
por conseguinte na maior intimidade, e ele, para descargo da sua consciência,
podia falar com franqueza ao Dr. Raimundo e dizer lhe tudo, pão pão, queijo
queijo, o que pensava a respeito do ocorrido!"
E, depois de uma pausa, declarou que, desde o
momento em que pensara no casamento de sua filha, fora sempre com sentido no
futuro e na felicidade dela. "Não fossem supor que ele queria casá la com
algum príncipe encantado ou com algum sábio da Grécia!... Não senhor! o que
queda era dá la a um homem de bem e trabalhador como ele; mas, com os diabos!
que fosse branco e que pudesse assegurar um futuro tranqüilo e decente para os
seus netos! Vai ele então&emdash;pensou no Dias; lá lhe dizia não sei o que
por dentro que ali estava um bom marido para Anica.
Um belo dia, descobriu da parte do rapaz certa
inclinação por ela e ficara satisfeito, prometendo logo, com os seus botões,
dar lhe sociedade na casa, se porventura se realizasse o casamento... Ora, bem
viam os circunstantes, que, em tudo aquilo, Manuel só tinha em vista o bem da
rapariga! . nem acreditassem que houvesse por aí pais tão desnaturados que
chegassem a desejar mal para os seus próprios filhos! Qual o quê, coitados! o que
às vezes queriam era prevenir o mal, que só depois havia de aparecer! Como
agora poderia ele, que só tinha aquela, que só possuía a sua Anica, que a
educara o melhor que pudera, que embranquecera a cabeça a pensar na felicidade
daquela filha; ele, que lhe fazia todas as vontades, todos os caprichos! ele,
que seria capaz dos maiores sacrifícios por amor daquela menina!.. como poderia
pois contrariá la causar lhe mal, só por gosto?. . Então os senhores achavam
que isso tinha cabimento?... Ele desejava vê la casada, por Deus que desejava!
não a criara pra feira!... mas, com um milhão de raios, desejava vê-la casada
em sua companhia! Queria vê la feliz, satisfeita, cercada de parentes e amigos;
mas, boas! na sua terra, ao lado de seu pai! Ora essa! pois então um homem por
estar velho, já não tinha direito ao carinho de seus filhos?... Ou quem sabe,
se a filha por estar mulher já não devia saber do pai? — Morre p'r'aí,
calhamaço, que me importa a mim!&emdash;Não! que isso também Deus não
mandava!... Queria ir se embora? queria deixar o pobre velho ali sozinho sem
ter quem lhe quisesse bem sem ter quem tratasse dos seus achaques?... podia ir!
Que fosse! mas esperasse um instante' que ele fechasse os olhos primeiro, sua
ingrata!"
E Manuel, enxugando os olhos na manga do paletó
concluiu com a voz trêmula: — Ai têm os senhores o que eu pensava fazer; porem
vai o diabo chega do Rio um meu sobrinho bastardo um filho do defunto mano José
com a preta Domingas, que foi sua escrava! Como era de esperar visto que sempre
me encarreguei dos negócios de meu irmão e ultimamente dos de meu sobrinho,
hospedei o cá em casa Raimundo afeiçoou se à minha filha ela a modos que lhe
correspondeu, ele vem pede ma em casamento; vou eu — nego lha! Ele quer saber o
porquê e eu dou-lhe a razão com franqueza! Pois bem! Vejam! este homem deixa de
fazer uma viagem, que, para me iludir, fingiu que ia fazer, e, depois de andar
por aí a esconder se de todos, falta à sua palavra de honra, e...
— Senhor, gritou Raimundo.
— Senhor, não! que vossemecê deu me a sua palavra
em como nunca procuraria casar com Anica! Por conseguinte digo e sustento:
depois de ter faltado à sua palavra de honra vem astuciosamente raptar minha
filha! Será isto legal?! Não haverá nos códigos desta terra uma pena para semelhante
abuso?!..
— Há, disse o rapaz, reconquistando o sangue frio,
há, quando o delinqüente se nega a reparar o delito com o casamento.. Eu,
porém, não desejo outra coisa!...
— Iche! disparatou Mana Bárbara, saltando em
frente. Casar minha neta com filho de uma negra?! Você mesmo não se enxerga!
Manuel sentiu se embaraçado.
— Apelo, suplicou, para a consciência de cada um!
Coloquem se no meu lugar e digam o que fariam! .. Mas parece me que nós o que
devemos é acabar com isto e evitar um escândalo maior! Compreendo perfeitamente
que o Dr. Raimundo não tem culpa da sua procedência e' como é um homem de juízo
e de bastante saber, espero que a pedido de nós todos, deixará o Maranhão
quanto antes!...
— Amém! . aprovou o cônego
— E eu, desde já, propôs Luís. obedecendo a um
sinal do guia peço a mão da senhora D. Anica
— Não quero! exclamou Ana Rosa, ainda mesmo que
Raimundo me abandone!
— É uma injustiça que me faz, observou este último
à moça. Sei perfeitamente cumprir com os meus deveres!
— Como com os seus deveres?!... interrogou Maria
Bárbara, refilando os dentes
— Sim, minha senhora com os meus deveres!
— Então o senhor não parte, definitivamente?!
interveio Manuel.
— Juro que não me retirarei do Maranhão, sem ter
casado com sua filha! respondeu o rapaz, calmo e resoluto
— E eu declaro, berrou a velha, que você não há de
casar com minha neta enquanto eu viva for! — E eu retiro a minha bnção de minha
afilhada, se ela não obedecer a sua família... reforçou o cônego.
Raimundo cravou lhe um olhar, que perturbou o
padre.
E Ar a Rosa ergueu se, levantando a cabeça.
Brilhava lhe no rosto, embaciado pelas lágrimas, o reflexo de uma grande e
dolorosa resolução. Todas as vistas se voltaram para ela; estava pálida e
comovida, seus lábios tremiam; mas afinal, vencendo a onda vermelha do pudor
que a sufocava, balbuciou:
— Tenho por força de casar com ele... Estou
grávida!
Foi um choque geral. Até o próprio cônego, para
quem o estado da moça não era segredo pasmou de ouvi la. Manuel caiu sobre uma
cadeira, fulminado com os olhos abertos, arquejante. O Dias fez se da cor de um
cadáver. E Raimundo cruzou os braços; enquanto Maria Bárbara espumando de raiva
saltava para junto da neta, escondendo a com o corpo, como se quisesse defendê
la do amante.
— Nunca! Nunca! bramiu a fera. Grávida?... Embora!
Antes monta ou prostituída!...
— Pchit... fez o cônego. E disse em tom misterioso
e suplicante:
— Mais baixo! .. mais baixo!... Olhe que a podem
ouvir da rua, D. Babita! ...
&emdash;Tu estás de barrida?... exclamou por
fim Manuel, erguendo se, vermelho de cólera.
E arrancou para a filha com os punhos cerrados.
Raimundo repeliu o, sem lhe dar palavra
— O senhor é um malvado, invectivou o pobre pai, afastando
se para um canto a soluçar.
O rapaz foi ter com ele e pediu lhe humildemente
que o perdoasse e lhe desse Ana Rosa por esposa.
O negociante não respondeu e pôs se a praguejar
entre lágrimas
— Calma! calma! aconselhou o cônego, passando lhe o
braço no ombro. Vamos ver o que se pode arranjar!... só para a monte não há
remédio .. Mente'm hominis spectate,
non frontem!. .
— Arranjem lá seja o que for, menos o casamento de
minha neta com um negro!
— Sim senhora, D. Maria Bárbara... Mínima de malis!...
E o cônego, depois de tomar uma pitada, voltou se
cortesmente para o Dias:
— O senhor, ainda há pouco, pediu a meti compadre a
mão de minha afilhada, não é e verdade?
— Sim senhor.
— Pois o seu pedido está de pé' e eu lhe darei a
resposta amanhã à tarde. Pode retirar se.
— Por m. Diogo não lhe deu tempo para mais.
Conduziu o até à ponta e segredou lhe rapidamente:
— Espere por mim no canto da Prensa Vá!
O Dias fez um cumprimento e saiu.
O cônego tornou a meio da sala, para dirigir se a
Raimundo.
— Quanto aqui ao Sr. Doutor, diz que está disposto
a reparar o seu cor&emdash;e.
— É exato.
— Sim senhor, é muito natural . é muito bonito
até!... Mas,... continuou, estalando os lábios, diz por outro lado o meu
compadre, diz a senhora D. Maria Bárbara e diz este seu humilde servo, que V.
Sª não está no caso de reabilitar ninguém!... Suspecta malorum beneficia!... O
que V Sª chama reparação, longe de salvar, prejudicaria r aviltada ainda mais a
vitima!...
— Canalha! gritou Raimundo, perdendo de todo a
paciência e agarrando o padre pelo pescoço Esmago te aqui mesmo bandido!
E repulsou o das mãos, com medo de matá lo.
Manuel e a sogra acudiram, cheios de indignação
contra Raimundo; enquanto o cônego puxava para o lugar a sua volta de rendas e
endireitava a batina, resmungando:
— Espere lá, meu amigo! isto não vai à força!... Hoo avetart Deus/.. Sabemos perfeitamente que
V. Sª é muito boa pessoa... Apre! Mas... há de concordar que não tem o direito
de pretender a mão de minha afilhada! Nem a murros me obrigará a negar que o
senhor é...
— Um cabra! concluiu a velha com um berro. E um
filho da negra Domingas! alforriado à pia! É um bode! É um mulato!
— Mas afinal, com todos os diabos! a que pretendem
chegar? gritou Raimundo, batendo com o pé. Desembuchem!
— É que, respondeu o cônego, inalteravelmente; nós,
para evitarmos que o escândalo prossiga, vamos oferecer lhe de n ovo o único
alvitre a seguir, e olhe que poderíamos, sem mais delongas, processá lo em regra,
se assim o entendêssemos!... Mas... para que negar?... não acreditamos que o
senhor abusasse da inocência desta menina!... aquela declaração de há pouco
nada mais foi do que um simples estratagema, urdido por V. Sª, com o fim de
realizar os seus intentos. Enganou se! Sabemos que ela está tão pura como
dantes! O que se tem a fazer, por conseguinte, é isto: O doutor vai retirar se
quanto artes desta terra, retirara se imediatamente, sob pena de ser justiçado
corno o entendermos melhor!
Raimundo foi buscar o chapéu. O cônego atalhou lhe
à sa da.
— Então! Que decide?
— Fomente se! respondeu lhe aquele, e encaminhou se
para Ana Rosa, que chorava, encostada à parede. — Ainda nos resta um meio.. A
senhora é maior. Amanhã terás notícias minhas. Juro que serei seu esposo!
— E eu juro que sou tua! exclamou ela, lançando se
para acompanhá lo até à ponta.
— Cale se! ordenou Manuel, obrigando a a retroceder
com um empurrão.
— Bem!... resmungou o padre, logo que rendo saiu.
Seja!...
Ana Rosa correu a fechar se no quarto.
Manuel deixou se cair numa cadeira, abafando nas
mãos os seus soluços; Maria Bárbara continuou a praguejar, voltando agora
contra o genro todo o seu desespero; e o cônego, indo ter, ora com um, ora com
outro, procurava acalmá los, prometendo arranjar tudo "Que se deixassem
daquela arrelia. a situação não era também lá essas coisas!... Não valia a pena
afligirem se de semelhante modo!... Fiassem se nele, que tudo se arranjaria
decentemente!... O negócio da gravidez era uma patranha, engendrada à última
hora!... Pois então, se houvesse nisso alguma verdade, a pequena não lha teria
confessado? .
E daí a pouco descia a escada, rangendo nos degraus
os seus sapatos de polimento.
— Aqui estou, senhor cônego, Podemos ir? perguntou
lhe o Dias, no canto da Prensa logo que se reuniram.
— Espere! espere lá meu amigo! Para que lado seguiu
o homem?
— Desceu o Beco da Prensa.
— Então temos ainda o que fazer por cá...
E dirigiu se ao cocheiro de um carro que
estacionava na esquina, falouem voz baixa, e o carro afastou se
— Bem, disse, tomando ao caixeiro, agora
encomodarmo nos aqui, por detrás deste lote de pipas.
— Para quê?
— Para não sermos vistos pelo cabra, quando passar.
E ficaram conspirando em voz baixa, até que
Raimundo apareceu de volta na entrada do beco. Fora despedir um escaler, que
estava lá embaixo às suas ordens, na praia. A luz do lampião da esquina bateu
lhe em cheio no rosto porque ele trazia o chapéu de feltro derreado para a
nuca. Parou um instante, hesitando, procurou o seu cano, e afina! resolveu, com
Um gesto de impaciência, descer para o lado da Praça do Comércio.
— Bom! murmurou misteriosamente o padre ao
companheiro. Siga r., mas em distância que não seja percebido... E, se ele
demorar se muito na rua, faça o que lhe disse! fome!
E passou lhe, sem levantar o braço, um objeto, que
o Dias teve escrúpulos em receber. — Então?! insistiu Diogo.
— Mas...
— Mas o que?... Ora não seja besta! Tome lá!
O outro quis ainda recalcitrar, o cônego acrescentou:
— Não seja tolo! Aproveite a única ocasião boa, que
Deus lhe oferece! Faça o que lhe disse&emdash;será rico e feliz! Audaces
fortuna juvat!... Agradeça à Providência o meio fácil que lhe depara, e que
estou vendo agora que você não merecia!... A maior parte dos homens poderosos
tiveram. coitados! muito maiores provações para chegar aos seus fins! Ande daí
não seja ingrato com a fortuna que o protege!... Também era só o que faltava,
que, por um instante de medo infantil, você perdesse o trabalho de tantos
anos!.. afianço lhe, porém, que ele não teria para com você a mesma hesitação,
como há de acontecer naturalmente te ..
— Vossa Reverendíssima acha então que?..
— Acho não, tenho plena certeza! "Quem o seu
inimigo poupa, nas mãos lha morre!" Mas, quando mesmo ele não o mate, será
isto razão para que você não o extermine?. . Ora, diga me cá, mas fale com
franqueza! você está ou não resolvido a casar com minha afilhada?...
— Estou sim senhor.
— Bem! Pois lembro lhe somente que um homem de cor,
u n mulato nascido escravo desvirtuou a mulher que vai ser sua esposa, e isto,
fique sabendo representa para você, muito maior afronta que um adultério!
Assiste lhe, por conseguinte, todo o direito de vingar a sua honra ultrajada;
direito este que se converte em obrigação perante a consciência e perante a
sociedade!
— Mas...
— Imagine se casado com Ana Rosa e o outro no gozo
perfeito da vida; a criança, já se sabe, parecida com o pai... Pois bem! lá chega
um belo dia em que o meu amigo, acompanhando sua família, topa na rua, ou
dentro de qualquer casa, com o cabra! . Que papel fará você, seu Dias?. com que
cara fica?. O que não dirão todos?... e vamos lá, com razão, com toda a razão!
E a criança? a criança, se continuar a viver, o que não julgará do basbaque que
a educou? .. Sim, porque, convença se de uma coisa! com a existência de
Raimundo, o filho deste virá fatalmente a saber de quem descendeu! Não faltará
quem lhe declare!
— Isso e!
— Mas, apesar de tudo, se os partidos fossem
iguais, ainda vá! Assim porém, não acontece; você conquistou a sua posição
naquela casa com uma longa dedicação, com um esforço de todos os dias e de
todos os instantes; você enterrou ali a sua mocidade e empenhou o seu futuro;
você deu tudo, tudo do que dispunha, para receber agora o capital e os juros
acumulados! E o outro? o outro é simplesmente um intruso que lhe surge pela
frente, e um especulador de ocasião, é um aventureiro que quer apoderar se
daquilo que você ganhou! O que pois lhe compete fazer?&emdash;Repeli lo!
Fizeram lhe todas as admoestações; ele insiste&emdash;mate o! Qual é o
direito dele? Nenhum! Um negro forro à pia não pode aspirar à mão de uma
senhora branca e rica! E um crime! é um crime, que 0 facínora quer, a todo
transe, perpetrar contra a nossa sociedade e especialmente contra a família, do
homem a quem você se dedicou, uma família, que, por bem dizer, já é sua, porque
o Manuel Pedro tem sido para você um verdadeiro pai, um amgo sincero, um
protetor que devia merecer lhe, ao menos, o sacrifício que você agora duvida
fazer por ele! E uma ingratidão! nada mais, nada menos! Mas a justiça divina,
seu Dias, nunca dorme! Deus tentou fazer de você um instrumento dos seus
sagrados desígnios, e você se recusa Muito bem! Eu com isso nada mais tenho! é
lá com a sua consciência!... Lavo as mãos! Como sacerdote, e como amigo do seu
benfeitor, já fiz e já disse o que me cumpria; o resto não me pertence! Faça o
que entender!
— Sim... mas...
— Apenas lhe observo o seguinte: ainda mesmo que
Raimundo não consiga realizar o casamento com Ana Rosa, o que aliás é
impossível, porque ela é maior e o outro tem por si a justiça, fique certo de
que, enquanto viver aquele homem, a mãe do filho dele nunca fará o menor caso
de você Isso é o que lhe afianço!
— Mas o pai pode obrigá la a casar comigo
— Não seja pedaço de asno, que uma rapariga
naquelas condições não se casa senão por gosto próprio! mas, quando assim não
fosse, aceitando a hipótese absurda de que o pai a obrigasse, isso então seria
muito pior para você! Era só o Raimundo dizer, em qualquer tempo, a Ana Rosa
"Vem cá!" e ela, a sua esposa, meu caro amigo, seguia o logo, como um
cachorrinho! Você sabe lá o que é a mulher para o primeiro homem que a possui,
principalmente quando ele a emprenha?... E um animal com dono! Acompanha o para
onde ele for e fará somente o que ele bem quiser! E um autômato! Não se
pertence! Não tem vontade sua! Casada com outro? Que importa! há de correr
atrás do amante, segui lo por todas as degradações! há de rir se à custa do
pobre marido! cobri-lo de vergonhas! há de ser a primeira a chamar lhe nomes!
Você, seu palerma, servirá unicamente para apimentar o prazer dos dois, dar lhe
um travo picante de fruto proibido, de pecado! E calcule, por um instante, as
terríveis consequências da sua covardia; não pára aqui a negra cadeia das
vergonhas que o esperam! Raimundo há de, mais cedo ou mais tarde, aborrecer da
amante, como a gente se aborrece de tudo que é ilegal; passada a quadra das
ilusões, desaparecerá o ardor que o prende a Ana Rosa e todo o seu sonho será
conquistar uma posição brilhante na sociedade pois bem, desde que ele
não possa associar a amiga às suas aspirações, às
suas glórias políticas e literárias, ela se converterá num obstáculo à sua
carreira, num estorvo para o seu futuro, num trambolho, a que ele, na primeira
ocasião dará um pontapé, substituindo a por uma esposa legitima, de quem tire
partido para subir melhor! Então, Ana Rosa passará à segunda mão, depois à
terceira, à quarta, à quinta; até que, por muito batida, resvale no lodo dos
trapiches, na taverna dos marujos, em todo lugar, enfim, onde possa vender se
para matar a fome! E lembre se bem que ela, por tudo isto, nunca deixará de ser
sua mulher, sua senhora, recebida aos pés do altar, em face de Deus e dos
homens! Ora diga me pois, seu Dias, não lhe parece que evitar tamanhas
calamidades é servir bem ao nosso criador e aos nossos semelhantes?... Ainda
duvidará que pratica uma boa ação, removendo a causa única de tanta desgraça?..
Vamos, meu amigo, não seja mau, salve aquela ovelha inocente das voragens da
prostituição! Salve a em nome da igreja! em nome do bem! em nome da moral!
E o grande artista levantou os braços para o céu,
exclamando em voz chorosa
— Quis talia fando tempera a lacrymis?...
Dias escutava o concentrado. O cônego prosseguiu,
mudando de tom:
— Viremos a medalha! vejamos agora o que sucederá
se você seguir o meu conselho A rapariga chora por algum tempo, pouco, muito
pouco, porque eu a consolarei com as minhas palavras; depois como precisa de um
pai para o filho, casa se com você e ai está o meu amigo, de um dia para outro,
feliz, rico, independente! sem contar o seu gozo intimo de haver resgatado de
infalível perdição a filha do seu benfeitor, a qual deixará de ser uma mulher
perdida para ser o modelo das esposas!
— É exato!
— Pois mãos à obra! Todo aquele que encontra em
casa o ladrão que lhe vai roubar o simples dinheiro tem direito a meter lhe uma
carga de chumbo nos miolos, e, como há de fica. de braços cruzados o que se vê
ameaçado na sua honra, na sua fortuna na sua mulher e na sua tranqüilidade?...
Sim, fica... quando é um miserável! um basbaque!
— Reverendo, juro lhe que...
— Então avie se! Está a fugir a única ocasião que
Deus lhe faculta!.. Amanhã será tarde!... já ele a terá por justiça e, ainda
que não se casem, o escândalo será patente! Resolva se ou deixe por uma vez o
campo livre ao mais forte e mais esperto!
— Adeus, senhor cônego!
— Vá com a Virgem Santíssima!
E o Dias, de cabeça baixa, passos largos e abafados
subiu a Rua da Estrela. De repente, voltou, chamou o padre e perguntou-lhe
alguma coisa ao ouvido.
— E melhor, é...
O caixeiro tomou então a Rua de Santana.
Daí a uma hora, o compadre de Manuel, depois de
saborear a sua canja e depois de amaciar o lombo luzidio do seu maltês fazia a
oração do costume e espichava se tranqüilamente numa rede de algodão, lavada e
cheirosa, disposto a passar uma boa noite.
18
Entrementes, Ana Rosa chorava no seu quarto; Manuel
continuava a passear na sala, com as mãos cruzadas atrás e a cabeça descaída
sobre o peito, como se uma preocupação de chumbo a puxasse para baixo; e Maria
Bárbara ceava na varanda, resmungando, embebendo fatias de pão torrado na sua
xícara de chá verde. E a noite envelhecia, e as horas rendiam-se, que nem
sentinelas mudas, e nenhum dos três procurava dormir, afinal, Marta Bárbara
obrigou o genro a recolher-se, depois foi ter com a neta e dispôs-se a fazer-lhe
companhia até amanhecer Em breve, porém a velha ressonava, e tanto o pai, como
a filha, viram, através das suas lágrimas, nascer o dia.
Raimundo, esse vagara pelas luas da cidade, com o
coração encharcado de um grande desanimo. Apoquentava-o menos a estreiteza da
situação do que a brutal pertinácia daquela família, que preferia deixar a
filha desonrada a ter de dá-la por esposa a um mulato. "Com efeito!... Em
preciso levar muito longe o escrúpulo de sangue!..." E, malgrado o vigor e
a firmeza com que ele até ai afrontara as contrariedades, sentia-se agora
abatido e miserável Na transtornada corrente das suas idéias a do suicídio
misturava-se, como uma moeda falsa que mareasse as outras Raimundo repelia-a
com repugnância, mas a teimosa reaparecia sempre. Para ele o suicídio era uma
ação ridícula e vergonhosa, era uma espécie de deserção da oficina; então, para
animar-se, para meter-se em brios, evocava a memória dos fortes, lembrava-se
dos que lutaram muito mais contra os preconceitos de todos os tempos; e, de
pensamento em pensamento, sonhava se em plena felicidade doméstica, ao lado de
uma família amorosa, cercado de filhos, e feliz, cheio de coragem, trabalhando
muito, sem outra ambição, além de ser um homem útil e honrado. Mas todas estas
esperanças já lhe não acordavam no espírito o mesmo eco de entusiasmo agora, o
que mais o preocupava era a sua humilhação e o seu amor ultrajado: desejava
esposar Ana Rosa, desejava-o, como nunca, mas por uma espécie de vingança
contra aquela maldita gente que o envilecia e rebaixava; queria amarrá-la ao
seu destino, como se a amarrasse a um posto infamante: queria espalhar bem o
seu sangue, porque onde ele caísse, deixaria uma nódoa escandescente;
precisava, para sofrer menos, ver sofrer alguém; era necessário que os outros
chorassem muito, para que, por sua vez. risse um pouco. "Oh! havia de
rir!. Ana Rosa pertencer-lhe-ia. de direito! .. Por que não? . Ele tinha a lei
por si! Quem poderia impedir lhe de tirá-la por justiça?... Além de que, com um
filho nas entranhas. ela lhe obedeceria como escravas!..."
E ruminando estes projetos fingindo-se muito senhor
de si, mas com grande desespero a ladrar-lhe por dentro. Raimundo vagabundeava
pelas mas, `a espera que amanhecesse, com as mãos nas algibeiras. vacilante
como um ébrio. Impacientava-se pelo dia seguinte, perecia atraí-lo com a sua
ansiedade crescente; aquela noite, comprida e silenciosa, pesava-lhe nas
costas, que nem a mochila do soldado no meio da batalha. "Sim! urgia que
amanhecesses!... queria tratar dos seus interesses, liquidar aquela maçada.
aquela grande maçada!. . Mais doze horas, doze horas! e estaria tudo concluído!
19
No dia seguinte estaria tudo pronto! ele no
primeiro vapor seguiria para a Corte, acompanhado da esposa, feliz,
independente! sem lembrar-se, nunca mais, do Maranhão, dessa província madrasta
para os filhos!'
Ao chegar ao Largo do Carmo, assentou-se num banco.
Um vento fresco agitava as árvores: ameaçava chuva; ouvia-se o surdo e
longínquo marulhar da costa, e, por ali perto, em algum sarau, urna garganta de
mulher cantava ao piano a "Traviata".
Raimundo passou a mão pela testa e reparou que
estava suando] frio. Deram duas horas. Um policia aproximou-se vagarosamente r
pediu-lhe um cigarro e o fogo, e seguiu depois, com ar preguiçoso de quem
cumpre uma formalidade inútil aborrecida. E Raimundo ficou a escutar os passos
sonoros do rondante, cadenciados com a regularidade monótona de uma pêndula.
Deram três horas Chuviscava.
Raimundo levantou-se e seguiu pela Rua Grande.
"Agora talvez dormisse um pouco... Estava tão fatigado!...""
Quando atravessou o campo de Ourique, pensou sentir alguém acompanhando-o,
olhou para os lados e não descobriu viva alma. "Enganara-se com certeza...
Era talvez o eco dos seus próprios passos..." Continuou a andar, até
chegar a casa.
Mas, do vão escuro, em que se formava 0 limite da
parede, rebentou um tiro, no momento em que ele dava volta à chave.
Este tiro partira de um revólver fornecido ao Dias
pelo cônego Diogo. Todavia, no instante supremo, faltara ao pobre-diabo coragem
para matar um homem, mas as palavras do padre ferviam-lhe na cabeça, em tomo da
sua idéia fixa. "Como poderia agora perder num momento o trabalho de toda
uma existência, destruir o seu castelo dourado a sua preocupação, a coisa boa
da sua vida?... Perder o jogo no melhor lance!... inutilizar-se reduzir-se a
lama, quando, só com um ligeiro movimento de dedo, estaria tudo salvo!..."
Isto pensava o caixeiro de Manuel escondido na
treva, por detrás de um montão de pedras e barrotes, ao lado dos espeques de um
casebre em ruínas. Mas o tempo corria, e Raimundo ia entrar pra casa, sumir-se
numa fronteira inexpugnável, e só reapareceria no dia seguinte, à luz do sol.
"Era preciso aviar!... Um instante depois seda tarde, e Ana Rosa passaria
às mãos do mulato e a cidade inteira ficaria senhora do escândalo, a
saboreá-lo, a rir-se do vencido! E, então, estaria tudo acabado, para sempre!
sem remédio! E ele, o Dias, coberto de ridículo e... pobre! "
Nisto, rangeu a fechadura. Aquela porta ia abri-se
como um túmulo, onde o miserável sentia resvalar o seu futuro e a sua
felicidade; no entanto, tamanha calamidade dependia de tão pouco! O grande
obstáculo da sua vida estava ali, a dois passos, em magnífica posição para um
tiro.
Dias fechou os olhos e concentrou toda a energia no
dedo que devia puxar o gatilho. A bala partiu, e Raimundo, com um gemido,
prostrou-se contra a parede.
Amanhecera um dia enfadonho, cheio de chuviscos e
umidade. Pouca gente pela rua; nenhum sol, e um aborrecimento geral a abrir a
boca por toda parte. Grossas nuvens, grávidas e sombrias, arrastavam-se pelo
espaço, no peso da sua hidropisia; o ar mal podia contê-las. Ouvia-se um
trovejar ao longe, que lembrava o rolar de balas de peça por um assoalho.
A casa de Manuel tinha a silenciosa quietação do
luto; as janelas fechadas; os moradores tristes; a varanda e a sala de visitas
totalmente desertas. Embaixo, no armazém, os caixeiros fingiam não saber de
nada. Os pretos cochichavam na cozinha, com medo de falar alto, e iam dar trela
à vizinhança, onde se comentava já o escândalo da véspera.
Manuel só apareceu fora do quarto à hora do almoço,
que nesse dia foi tarde, porque os escravos, privados da vigilância de Maria
Bárbara e empenhados no mexerico, descuidaram-se das obrigações. O pobre homem
trazia no rosto, fotografada, a sua dor e a sua insônia tinha os olhos pisados
e intumescidos. Mal tocou nos pratos, cruzou logo o talher e limpou com o
guardanapo uma lágrima, que o lugar vazio de Ana Rosa lhe desprendera. Aquela
cadeira sem dono parecia dizer-lhe com a tristeza: "Descansa, desgraçado,
que filha nunca mais terás tu!..." Não quis descer ao armazém e fechou-se
em cima, no seu escritório, recomendando que mandassem lá o Dias quando
chegasse.
O sabiá trinava desesperadamente na varanda.
Tinham-se esquecido de encher-lhe o comedouro.
Ana Rosa não saíra da rede; estava excitada,
doente, toda nervosa, com uma irritação de estômago. A avó, cheia de mau humor,
levara lhe um bule de chá de contra-erva, para a febre, e, depois de recomendar
à neta que não saísse do quarto e fizesse por dormir, fechou-se com os seus
santos, a rezar.
A rapariga ignorava o que ia lá por fora. Amância
foi a única visita que apareceu, falando muito da palidez que lhe notara.
— Até lhe achei mau hálito, disse à Mônica, logo
que saiu do aposento da enferma.
— É do estômago, explicou a cafuza. Ela, coitada,
ainda hoje não comeu nada, e ainda não pregou olho desde ontem de manhã!
A velha passou à cozinha, à procura da Brígida,
para indagar que diabo havia sucedido naquela casa, que andavam todos a modos
de assombrados!
Ana Rosa achava-se, com efeito, muito abatida, num
estado perigoso de irritação e fraqueza. Mônica obrigou-a a tomar um mingau de
farinha, e ela vomitou-o logo. — Hê, Iaiá! Isto assim não está bom!...
censurava maternalmente a preta. Não te fica nada no bucho!
— Mãe-pretinha, pediu depois a moça, eu posso ir
até à sala? Não cone vento; as vidraças estão fechadas!
— Vai, laiá, porém mete algodão no ouvido. Espera!
agasalha a cabeça!
E envolveu-lhe a testa com um lenço encarnado de
seda.
— laia quer que eu te ajude?
— Não, mãe-pretinha, fique; você deve estar
cansada.
A preta assentou-se junto à rede, encolheu as
pernas, que abrangeu com os braços, e pôs-se a cochilar, escondendo a cara
contra os joelhos. Ana Rosa levantou-se muito fraca e, lentamente, apoiando-se
nos móveis, atravessou por entre o desarranjo do seu quarto e foi até à sala.
Fazia má impressão vê-la com aquele andar vagaroso
e triste, acompanhado de suspiros e descaimentos de pálpebras. Parecia
convalescente de uma longa moléstia grave; estava cor de cera, com grandes
olheiras roxas; muito puxada, os cabelos, despenteados e secos, caíam-lhe por
debaixo do lenço vermelho, que lhe dava à cabeça certa expressão pitoresca e
graciosa Dela toda respirava um tom melancólico e dolorido: o longo roupão,
desabotoado sobre o estômago, arrastando-se negligentemente pelo chão, os
braços moles, as mãos frouxas, o pescoço bambo, os lábios entreabertos,
estalando de febre, o olhar morto, infeliz, mas embebido de ternura. tudo nela
transpirava um tácito queixume de fundas mágoas escondidas. Seus pezinhos
traziam de rastros umas chinelas de criança e, por entre a abertura do
vestidos, via-se-lhe a camisa de rendas amarrotada e um cordão de ouro
escorrendo pela brancura do seio, com um pequeno crucifixo que se lhe balançava
entre os peitos.
E, com a resignação dos doentes que não podem sair
do quarto, passeava pela saia o seu isolamento, procurando entreter-se a
examinar os objetos de cima dos consolos, minuciosamente, como se nunca os
tivera visto. Tomou entre os dedos um galgozinho de jaspe e ficou a observá-lo
um tempo infinito. P que seu pensamento não estava ali; andava lá fora, em
busca de Raimundo em busca do seu cúmplice estremecido, o autor daquele delito
que ela sentia dentro de si, enchendo-a de alegria e de medo. Amava-o muito
mais agora, tal como se o seu amor crescesse também como o feto que se lhe agitava
nas entranhas. Apesar da estreiteza da situação, achava-se cada vez mais feliz;
sonhara a ventura de ser mãe e sentia-a realizar-se no seu corpo, no seu
ventre, de instante a instante, com um impulso misterioso, fatal
incompreensível. "Era mãe!... Ainda lhe parecia um sonho!... "
Impacientava-se por preparar o enxoval do seu
filhinho Um enxoval bom, completo, a que nada, nada, faltasse Ah! ela sabia
perfeitamente como tudo isso era feito; qual a melhor flanela para os cueiros
quais as melhores toucas e os melhores sapatinhos de lã. Via em sonhos um berço
junto a sua rede, com um entezinho dentro, todo rendas e fitas cor-de-rosa, a
vagir uns princípios de voz humana. E fazia-se muito pressurosa, a queimar
alfazema, para defumar os panos da criança; a preparar água com açúcar, para
curar-lhe as cólicas; a evitar em si mesma o abuso do café e de todo o alimento
que pudesse alterar-lhe o leite, porque ela queria ser a própria a criar o seu
filho, e por coisa nenhuma desta vida, o confiaria à melhor ama. E, a pensar
nestas coisas, que, aliás, nunca ninguém procurara ensinar-lhe, esquecia-se
inteiramente dos vexames e das dificuldades que a sua falsa posição teria de
levantar; nem sequer, lhe passava pela idéia a hipótese de não casar com
Raimundo. "Oh, isso havia de ser, desse por onde desse e sofresse quem
sofresse!"
Assim lhe correu o dia. Só despertou dos seus
devaneios às duas e meia da tarde, quando o sino da Sé badalou o dobre dos
finados "Por quem estaria dobrando?..." perguntou de si para si,
tomada de compassiva estranheza. Parecia-lhe absurdo que alguém cuidasse em
morrer, quando ela só pensava em dar à vida aquele outro alguém que tanto a
preocupava.
Todavia, o dobre continuou ao longe, rolando no
espaço, como um soluço que se desdobra. E aquele som lúgubre, ali, na saia toda
fechada, parecia fazer o dia mais triste e o céu mais sombrio e chuvoso. Ana
Rosa sentiu um ligeiro tremor de medo indefinido arrepiar-lhe as carnes;
lembrou-se de rezar, chegou mesmo a dar alguns passos na direção da alcova, mas
deteve-a um rumor de vozes que vinha da nua.
Foi até à janela. O zunzum do povo crescia
"Alguma briga!..." pensou ela, encostando a cara na vidraça, para
espiar o que se passava lá fora
O motim recrescia à proporção que um grupo imenso
de homens e mulheres se aproximava cheio de curiosidade Ana Rosa pôde então
compreender a causa do ajuntamento: dois pretos traziam um corpo dentro de uma
rede, cuja taboca carregavam no ombro.
— Credo! Que agouro!... disse impressionada.
E quis afastar-se da janela, mas deixou-se ficar,
por curiosidade. "Algum pobre homem que ia doente para o hospital... ou
talvez fosse algum defunto, coitado!..." E procurou pensar no filho, para
desfazer a impressão desagradável que acabava de receber.
O corpo estava inteiramente coberto por um lençol
de linho e parecia ser de um homem de boa estatura. Algumas manchas vermelhas
destacavam-se aqui e ali na brancura do pano.
Ana Rosa sentia já certo interesse aterrorizado;
quis de novo deixar a janela; agora, porém, o que se passava lá na rua
atraía-lhe irresistivelmente o olhar. A fúnebre procissão aproximava-se
entretanto chegando-se para a parede do lado em que ela estava Ia deixar de
ver, mas não lhe convinha abrir a janela, por causa do vento; além disso
ameaçava chuva; era até muito natural que estivesse chuviscando. Continuou a
olhar atentamente, com o rosto achatado de encontro aos vidros.
A rede adiantava-se a pouco e pouco, jogando com a
irregularidade da rua e do caminhar desencontrado dos carregadores; o que
obrigava o lençol a fazer e desfazer fartas nugas instantâneas. Ana Rosa
sentiu-se inquieta e sobressaltada, como se aquilo lhe dissera respeito; a rede
ia desaparecer de todo a seus olhos, porque cada vez mais se aproximava da
parede, já mal podia alcança-la com a vista.
Céus! Dir-se ia que se encaminhava para a porta de
Manuel!
Uma rajada de nordeste esfuziou nos vidros. Os
chapéus dos transeuntes saltaram como folhas secas; as janelas de diversas
casas bateram contra os caixilhos num repelão de cólera; o vento zuniu com mais
força e, numa segunda refrega, arrancou de uma só vez o lençol que cobria a
rede.
Ana Rosa estremeceu toda, deu um grito, ficou
lívida, levou as mãos aos olhos. Parecia-lhe ter reconhecido Raimundo naquele
corpo ensangüentado. Duvidou e, sem animo de formular um pensamento, abriu de
súbito as vidraças. Era com efeito, ele.
O povo olhou todo para cima e viu uma coisa
horrível. Ana Rosa, convulsa doida, firmando no patamar das janelas as mãos,
como duas garras, entranhava as unhas na madeira do balcão, com os olhos a
rolarem sinistramente e com um riso medonho a escancarar-lhe a boca, as ventas
dilatadas, os membros hirtos.
De repente, soltou um novo rugido e caiu de costas.
A mãe-preta acudira logo e arrastou-a para o
quarto.
A moça deixou atrás de si, pelo chão, um grosso
rastro de sangue, que lhe escorria debaixo das saias, tingindo-lhe os pés. E,
no lugar da queda, ficou no assoalho uma enorme poça vermelha seguinte.
No dia seguinte por todas as ruas da cidade de São
Luís do Maranhão, e nas repartições públicas, na Praça do Comércio, nos
açougues nas quitandas, nas saias e nas alcovas, boquejava-se largamente sobre
a misteriosa morte do Dr. Raimundo. Era a ordem do dia.
Contava-se o fato de mil modos; inventavam-se
lendas; improvisavam-se romances. O cadáver fora recolhido pela Santa Casa de
Misericórdia; procedeu-se a um corpo de delito; verificou-se que o paciente
morrera a tiro de bala, mas a policia não descobriu o assassino.
Nessa mesma tarde os caixeiros de Manuel, vestidos
de luto, entregavam de porta em porta a seguinte circular
"Ilmo. Sr.
Manual Pedro da Silva e o cônego Diogo de Melo
Freitas Santiago participam a V.Sª que acabam de receber o profundo golpe do falecimento
de seu prezado e nunca assaz chorado sobrinho e amigo Raimundo José da Silva;
e, como o seu cadáver tenha de baixar ao túmulo, hoje às 4 e 1/2 horas da
tarde, no cemitério da Santa Casa de Misericórdia, esperam receber de V.Sª o
piedoso obséquio de acompanhar o féretro da casa de seu inconsolável tio à Rua
da Estrela n.° 80, pelo que desde já se confessam etemamente agradecidos.
Maranhão, etc, etc "
A Misericórdia uma sepultura. mediante a quantia de
60$000 réis. O enterro foi a pé e bastante concorrido. Muitos negociantes
acompanharam-no por consideração ao colega; grande número de pessoas por mera
curiosidade.
O cônego ungiu o cadáver com água benta e
encomendou-o a Deus.
Maria Bárbara. para completo descargo de
consciência e porque soubessem que ela não tinha mau coração, prometeu uma
missa por alma do mulato.
Dias só apareceu em casa a tarde, à hora do
saimento Notaram que o bom rapaz muito se sentira daquela morte e que, no ato
de baixar o caixão à sepultura, afastara-se de todos, naturalmente para chorar
mais à vontade. Não constou que mais ninguém, além dele e o cônego, tivesse
chorado.
De volta do cemitério, Freitas, em conversa com os
caixeiros de Manuel, mais o Sebastião Campos e o Casusa, lamentou com palavras
finas o lastimável falecimento do infeliz moço, e disse que sentia bastante não
ter a policia descoberto o autor do crime; mas que, segundo a sua modesta
opinião' aquilo fora, nada mais, nada menos, do que um suicídio, e que Raimundo
viera até à ponta da nua nas agonias da morte.
— Uma fatalidade! rematou ele, filosoficamente, a
espanar com o lenço os seus sapatos envernizados. — Não me posso conformar com
o diabo deste pó vermelho de São Pantaleão!. . mas creiam que me comoveu bastar
te a morte do pobre Mundico! Era um moço hábil.. Tinha muita habilidade para
fazer versos...
— E muita presunção, vamos lá!
— Não, coitado! tinha seus estudos, tinha! não se
lhe pode negar! .
— Mas também não era lá essas coisas que queria
ser!...
— Ah, sim, não digo o contrário... Concordou
delicadamente o pai de Lindoca porque não tinha por costume contrariar ninguém.
— Uma fatalidade!... repetiu, meneando a cabeça
— E talvez não fique nesta!.. observou Sebastião A
pequena está bem perigosa!...
— E! Ouvi dizer que sim.
— O Jauffret mandou que a carregassem pra fora.
— Segue, num dia destes para a Ponta-d'Areia.
— Não. Para o Caminho Grande.
— Ah! Ela era perdida pelo Raimundo!...
— Tolice.
E deram de mão o assunto para ouvir Casusa, que
contava alegremente o caso de um bêbado que uma vez fora parar no cemitério e
lá ficara fechado; e que. depois, acordando pelas altas horas da noite,
levantara-se para ir até ao portão pedir fogo ao ronda. que fumava muito
distraídos encostado de costas nas grades, e que o soldado, sentindo,
passar-lhe no pescoço a mão fria do borracho, deitara a correr e a pedir
socorro em altos berros.
Todos acharam graças, e o Freitas contou logo um
fato equivalente que lhe sucedera no tempo de rapaz. Esta anedota puxou por
outras, e cada qual exibiu as que sabia: de sorte que. ao entrarem na Rua
Grande ainda empoerados da terra vermelha de São Pantaleão, riam-se a bom rir
apesar da profunda tristeza do crepúsculo, que nesse dia não vestira as galas
do costume.
O Pescada, mal o tempo levantou, mudou-se, junto
com a filha e a sogra, para um sítio ao Caminho Grande, onde Ana Rosa esteve à
morte Chegaram a fazer Junta de médicos.
Desde então o pobre Manuel vivia muito apoquentado.
Falou-se que os seus cabelos tinham embranquecido totalmente e que ele agora se
dedicava ao trabalho como nunca, com uma espécie de furor, um desespero de quem
bebe para esquecer a sua desventura.
A nova firma comercial, Silva e Dias, nasceu
entretanto, no meio da mais completa prosperidade.
Seis anos depois, em meado de fevereiro, havia uma
partida no Clube Familiar Era uma galanteria que os liberais dedicavam a um seu
correligionário político, chegado da Corte por aqueles dias, com destino à
presidência do Maranhão.
Estava-se no rigor do inverno e chovera durante
toda a tarde. As calçadas refletiam em ziguezague a luz vermelha dos lampiões.
Alguns telhados ainda gotejavam melancolicamente, e o céu, todo negro, pesava
sobre a cidade que nem uma tampa de chumbo. Não obstante, chegava bastante
gente para a festa; velhas carruagens enfileiravam-se na Rua Formosa,
despejando golfadas de seda e cambraia. As damas, finamente envolvidas nas
ondas dos seus pufes, subiam, arrepanhando a cauda, aos salões do baile, pelo
braço de homens sérios de casaca. Havia luxo. Os lances da escadaria
mostravam-se juncados de flores desfolhadas e folhas de mangueira, e os
degraus, de quatro a quatro, estavam guarnecidos por grandes vasos de pó de
pedra, vazios de planta. Espelhos de bom tamanho refletiam de alto a baixo, no
corredor, os pares que subiam. Em todas as portas havia alvas cortinas de
labirinto.
O presidente acabava de chegar, e a banda do 5.° de
Infantaria tocava embaixo o Hino Nacional. Todos se agitavam para vê-lo;
comentavam-lhe já, em voz soturna, a figura, os movimentos, o andar, a cor, e
os botões da camisa.
Na sala de honra, as senhoras, parafusadas nas suas
cadeiras, numa resignação cerimoniosa, espichavam discretamente o pescoço, para
ver o "Presidente novo". Os rapazes, com o cabelo dividido em duas
pastas sobre a testa, fumavam nos corredores ou bebiam nos bufetes Na varanda
jogavam em silêncio os inalteráveis pares do voltarete A casa toda recendia a
perfumaria francesa.
Reinava um constrangimento pesado e estúpido;
poucos se animavam a conversar, e ninguém ria. Mas de improviso, a orquestra
deu o sinal da primeira quadrilha e uma onda de homens invadiu brutalmente as
salas, por todas as portas. Era uma aluvião mesclada; havia o croisé de luva
branca, a casaca sem luva, o fraque de três botões com o lenço de seda azul
debruçado na algibeira; sobressaíam as enormes gravatas de cambraia engomada,
com as pontas em bico sistematicamente espichadas sobre a negrura da lapela.
Alguns tinham um tique pretensioso; outros um ar encalistrado e cheio de
rubores. Principiava-se a suar.
Destacavam-se os filhos dos negociantes ricos, que
haviam ido à Europa "estudar comércio" e os acadêmicos de Pernambuco,
Bahia e Rio, que estavam de férias na província. A dança abalava-os a todos as
senhoras iam-se já levantando; arrastavam-se cadeiras; a luz do gás mordia os
ombros nus e fazia faiscar os diamantes; as rabecas começavam a gemer.
As quadrilhas e as valsas sucederam-se quase sem
intervalo. O entusiasmo apoderou-se dos ânimos.
Tremia no ambiente o vozear frouxo dos cochichos,
das coisas amorosas, dos pequeninos risos delicados, do tilintar dos
braceletes, do farfalhar das saias, do rumorejar dos leques e do surdo arrastar
dos pés no tapete.
As mulheres presas pela cintura, num abandono voluptuoso,
com a cabeça esquecida sobre a espádua do cavalheiro. De envolta com os
extratos de Lubin, saturava a atmosfera um cheiro tépidos e penetrante de
carnes e cabelos. Pares fatigados prostravam-se nos canapés, amolecidos por um
entorpecimento sensual; dilatavam-se as narinas, ofegavam os colos e as
pálpebras bambeavam num quebranto de febre.
Em breve, porém, um frenesi galvânico eletrizou
todos os pares "Galop!" gritaram E um turbilhão doido, desenfreado,
precipitou-se pelas saias, percorrendo-as aos saltos, numa confusão de casacas
e caudas de seda; anovelando-se, abalroando-se e rebentando afinal numa vozeria
medonha, atroadora, num bramido de onda que espoca em plena tempestade.
Rasgaram-se vestidos, espicaçaram-se folhos de
renda, desfloraram-se penteados e soltaram-se exclamações de prazer.
Um rapaz, ao terminar a quadrilha, refugiava-se,
coxeando, na varanda Tinham-lhe pisado o melhor calo.
— Maus raios te partam, diabo!
E foi assentar-se a um canto, segurando
carinhosamente o pé.
— Ó seu Rosinha, fale com os amigos velhos!.. disse
o Freitas, aproximando-se dele e estendendo-lhe a mão. Não sabia que o tínhamos
aqui em nossa terra, doutor!
Estava o mesmo homem, sempre engomado e teso, com o
seu eterno colarinho à Pinaud e a sua unha de estimação. "Então!. que lhe
contava o caro Sr. Rosinha, depois que se viram a última vez? Já lá se iam três
anos!..."
Rosinha achava-se em férias; era terceiranista de
Direito em Pernambuco.
O Freitas notou que ele estava rapagão; estava
muito melhor; mais desenvolvido!
O Faísca sorriu. Com efeito engrossara de ombros e
deitara melhor corpo. Agora tinha um par de suíças e parecia menos tolo, porém
muito mais míope. Falaram superiormente contra aquele modo bárbaro de dançar. O
estudante descreveu as dores que sentiu quando lhe pisaram o cato e jurou nunca
mais dançar com semelhantes estouvados. Depois, conversaram a respeito do novo
presidente; Freitas queixou-se do partido liberal. "Uma súcia de
criançolas!... dizia ele, indignado Era fechar os olhos e apanhar o
primeiro!... O tal Gabinete de 5 de janeiro podia limpar as mãos à parede!...
Incúrias! só incúrias!" Em seguida ocuparam-se do passado; lembraram-se do
defunto Manuel Pescada e da falecida Maria Bárbara.
— A velha Babu! .. murmurou o Freitas, cheio de
recordações
Outro pediu noticias de Lindoca.
Sempre gorda! Agora estava lá pela Paraíba, com o
marido, o Dudu Costa, que fora removido para a alfândega dessa província. Sabe?
A Eufrasinha fugiu com um cômico!...
— Ah, sei! sei!
Estonteada! O pobre Casusa, coitado, é que estava
perdido! — Extravagâncias!... Rosinha, se o visse, não o conheceria. — Muito
desfigurado, cheio de cãs! Faisca declarou que ainda não o tinha encontrado em
parte alguma.
— Qual encontrado o quê! Estava de cama!.
entrevado! Uma perna, que era isto!
E o Freitas mostrou a cintura.
— E o Sebastião? perguntou o rapaz.
Metido na fazenda. Já não havia quem o visse. E
acrescentou sem transição.
— Homem, quer saber quem está... O nosso cônego
Diogo!
— Sim. Já ouvi dizer
— Coitado! retenção de urina. Ele sempre sofreu de
estreitamento!
— Um santo!
— Se o é!...
E ambos sacudiram a cabeça, no recolhimento da
mesma convicção.
Faisca calculava escrever o necrológio do cônego.
caso este morresse antes da sua volta para Pernambuco. Falaram também do
Cordeiro, que se tinha estabelecido com Manuelzinho. O Freitas afirmava que iam
muito bem, porque o Bento Cordeiro deixara o diabo do vicio. F interrompeu-se,
para segredar ao outro:
— Você conhece este rapaz, que vai passando de
braço dado a uma moça?
— Não
— É o Gustavo!
— Que Gustavo?
— De Vila Rica! Aquele que foi caixeiro do
Pescada!...
Ah, sim! já sei! Mas, como ficou mudado! ele que
era um rapaz tão bonito!...
De fato, Gustavo perdera inteiramente as suas belas
cores européias e tinha agora a cara sarapintada de funchos venéreos.
Estava para casar com a moça, que levava pelo
braço. Uma filha do velho Furtado da Serra.
— Hum! Bravo! Está bom!
Dava meia-noite e algumas famílias embrulhavam-se
nas capas para sair O Freitas despediu-se logo do Rosinha, apressado.
— Depois da meia-noite — nada! nada
absolutamente!... observava ele, sempre metódico
Mas, no patamar da escada, teve de esperar um
instante que descesse um casal que se despedia. Adivinhava-se que era gente de
consideração pelo riso afetuoso com que todos o cumprimentavam; muitos se
arredavam pressurosos, para lhe dar passagem. O próprio presidente
acompanhara-o até ali e agradecia lhe o obséquio do comparecimento ao baile,
com um enérgico aperto de mão, à inglesa.
O par festejado eram o Dias e Ana Rosa, casados
havia quatro anos. Ele deixara crescer o bigode e aprumara-se todo; tinha até
certo emproamento ricaço e um ar satisfeito e alinhado de quem espera por
qualquer vapor o hábito da Rosa; a mulher engordara Um pouco em demasia, mas
ainda estava boa, bem torneada, com a pele limpa e a came esperta.
Ia toda se saracoteando muito preocupada em apanhar
a cauda do seu vestido, e pensando, naturalmente, nos seus três fiihinhos, que
ficaram em casa a dormir.
— Grand'chaine, double, serré! berravam nas salas
O Dias tomara o seu chapéu no corredor e, ao
embarcar no carro, que esperava pelos dois lá embaixo, Ana Rosa levaram-lhe
carinhosamente a gola da casaca.
Agasalha bem o pescoço, Lulu! Ainda ontem tossiste
tanto à noite, queridinho!...
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