LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
Lucíola, de
José de Alencar
Edição de Referência:
A Biblioteca Digital do Estudante
Brasileiro
I
A senhora estranhou, na última vez que estivemos
juntos, a minha excessiva indulgência pelas criaturas infelizes, que
escandalizam a sociedade com a ostentação do seu luxo e extravagâncias.
Quis responder-lhe imediatamente, tanto é o apreço
em que tenho o tato sutil e esquisito da mulher superior para julgar de uma
questão de sentimento. Não o fiz, porque vi sentada no sofá, do outro lado do
salão, sua neta, gentil menina de 16 anos, flor cândida e suave, que mal
desabrocha à sombra materna. Embora não pudesse ouvir-nos, a minha história
seria uma profanação na atmosfera que ela purificava com os perfumes da sua
inocência; e— quem sabe ?— talvez por ignora repercussão o melindre de seu
pudor se arrufasse unicamente com os palpites de emoções que iam acordar em
minha alma.
Receei também que a palavra viva, rápida e
impressionável não pudesse, como a pena calma e refletida, perscrutar os
mistérios que desejava desvendar-lhe, sem romper alguns fios da tênue gaza com
que a fina educação envolve certas idéias, como envolve a moda em rendas e
tecidos diáfanos os mais sedutores encantos da mulher. Vê-se tudo; mas furta-se
aos olhos a indecente nudez.
Calando-me naquela ocasião, prometi dar-lhe a razão
que a senhora exigia; e cumpro o meu propósito mais cedo do que pensava. Trouxe
no desejo de agradar-lhe a inspiração; e achei voltando a insônia de recordações
que despertara a nossa conversa. Escrevi as páginas que lhe envio, as quais a
senhora dará um título e o destino que merecerem. É um perfil de mulher apenas
esboçado.
Desculpe, se alguma vez a fizer corar sob os seus
cabelos brancos, pura e santa coroa de uma virtude que eu respeito. O rubor
vexa em face de um homem; mas em face do papel, muda e impassível testemunha,
ele deve ser para aquelas que já imolaram à velhice os últimos desejos, uma
como essência de gozos extintos, ou extremo perfume que deixam nos espinhos as
desfolhadas rosas.
De resto, a senhora sabe que não é possível pintar
sem que a luz projete claros e escuros. As sombras do meu quadro se esfumam
traços carregados, contrastam debuxando o relevo colorido de límpidos
contornos.
II
A primeira vez que vim ao Rio de Janeiro foi em
1855.
Poucos dias depois da minha chegada, um amigo e
companheiro de infância, o Dr. Sá, levou-me à festa da Glória; uma das poucas
festas populares da corte. Conforme o costume, a grande romaria desfilando pela
Rua da Lapa e ao longo do cais, serpejava nas faldas do outeiro e apinhava-se
em torno da poética ermida, cujo âmbito regurgitava com a multidão do povo.
Era ave-maria quando chegamos ao adro; perdida a
esperança de romper a mole de gente que murava cada uma das portas da igreja,
nos resignamos a gozar da fresca viração que vinha do mar, contemplando o
delicioso panorama da baia e admirando ou criticando as devotas que também
tinham chegado tarde e pareciam satisfeitas com a exibição de seus adornos.
Enquanto Sá era disputado pelos numerosos amigos e
conhecidos, gozava eu da minha tranqüila e independente obscuridade, sentado
comodamente sobre a pequena muralha e resolvido a estabelecer ali o meu
observatório. Para um provinciano recém-chegado à corte, que melhor festa do
que ver passar-lhe pelos olhos, à doce luz da tarde, uma parte da população
desta grande cidade, com os seus vários matizes e infinitas gradações?
Todas as raças, desde o caucasiano sem mescla até o
africano puro; todas as posições, desde as ilustrações da política, da fortuna
ou do talento, até o proletário humilde e desconhecido; todas as profissões,
desde o banqueiro até o mendigo; finalmente, todos os tipos grotescos da
sociedade brasileira, desde a arrogante nulidade até a vil lisonja, desfilaram
em face de mim, roçando a seda e a casimira pela baeta ou pelo algodão,
misturando os perfumes delicados às impuras exalações, o fumo aromático do
havana as acres baforadas do cigarro de palha.
— É uma festa filosófica essa festa da Glória! Aprendi
mais naquela meia hora de observação do que nos cinco anos que acabava de
esperdiçar em Olinda com uma prodigalidade verdadeiramente brasileira.
A lua vinha assomando pelo cimo das montanhas
fronteiras; descobri nessa ocasião, a alguns passos de mim, uma linda moça, que
parara um instante para contemplar no horizonte as nuvens brancas esgarçadas
sobre o céu azul e estrelado. Admirei-lhe do primeiro olhar um talhe esbelto e
de suprema elegância. O vestido que o moldava era cinzento com orlas de veludo
castanho e dava esquisito realce a um desses rostos suaves, puros e diáfanos,
que parecem vão desfazer-se ao menor sopro, como os tênues vapores da alvorada.
Ressumbrava na sua muda contemplação doce melancolia e não sei que laivos de
tão ingênua castidade, que o meu olhar repousou calmo e sereno na mimosa
aparição.
— Já vi esta moça! disse comigo. Mas onde?...
Ela pouco demorou-se na sua graciosa imobilidade e
continuou lentamente o passeio interrompido. Meu companheiro cumprimentou-a com
um gesto familiar; eu, com respeitosa cortesia, que me foi retribuída por uma
imperceptível inclinação da fronte.
— Quem é esta senhora? perguntei a Sá.
A resposta foi o sorriso inexprimível, mistura de
sarcasmo, de bonomia e fatuidade, que desperta nos elegantes da corte a
ignorância de um amigo, profano na difícil ciência das banalidades sociais.
— Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita.
Queres conhecê-la ?. . .
Compreendi e corei de minha simplicidade
provinciana, que confundira a máscara hipócrita do vício com o modesto recato
da inocência. Só então notei que aquela moça estava só, e que a ausência de um
pai, de um marido, ou de um irmão, devia-me ter feito suspeitar a verdade.
Depois de algumas voltas descobrimos ao longe a
ondulação do seu vestido, e fomos encontrá-la, retirada a um canto,
distribuindo algumas pequenas moedas de prata à multidão de pobres que a
cercava. Voltou-se confusa ouvindo Sá pronunciar o seu nome:
— Lúcia!
— Não há modos de livrar-se uma pessoa desta gente!
São de uma impertinência! disse ela mostrando os pobres e esquivando-se aos
seus agradecimentos.
Feita a apresentação no tom desdenhoso e altivo com
que um moço distinto se dirige a essas sultanas do ouro, e trocadas algumas
palavras triviais, meu amigo perguntou-lhe:
— Vieste só?
— Em corpo e alma.
— E não tens companhia para a volta?
Ela fez um gesto negativo.
— Neste caso ofereço-te a minha, ou antes a nossa.
— Em qualquer outra ocasião aceitaria com muito
prazer; hoje não posso.
— Já vejo que não foste franca!
— Não acredita?. .. Se eu viesse por passeio!
— E qual é o outro motivo que te pode trazer à
festa da Glória?
— A senhora veio talvez por devoção? disse eu.
— A Lúcia devota!. . . Bem se vê que a não
conheces.
— Um dia no ano não é muito' respondeu ela sorrindo.
— É sempre alguma coisa, repliquei.
Sá insistiu:
— Deixa-te disso; vem conosco.
— O senhor sabe que não é preciso rogar-me quando
se trata de me divertir. Amanhã, qualquer dia, estou pronta. Esta noite, não!
— Decididamente há alguém que te espera.
— Ora! Faço mistério disto?
— Não é teu costume decerto.
— Portanto tenho o direito de ser acreditada. As
aparências enganam tantas vezes! Não é verdade? disse voltando-se para mim com
um sorriso.
— Não me lembra o que lhe respondi; alguma palavra
que nada exprimia, dessas que se pronunciam às vezes para ter o ar de dizer
alguma coisa. Quanto a Lúcia, fazendo-nos um ligeiro aceno com o leque,
aproveitou uma aberta da multidão e penetrou no interior da igreja, em risco de
ser esmagada pelo povo.
Não preciso dizer-lhe, pois adivinha, que acabava
de fazer uma triste figura. Não sou tímido; ao contrário peco por
desembaraçado. Mas nessa ocasião diversas circunstâncias me tiravam do meu
natural. A expressão cândida do rosto e a graciosa modéstia do gesto, ainda
mesmo quando os lábios dessa mulher revelavam a cortesã franca e impudente o
contraste inexplicável da palavra e da fisionomia, junto à vaga reminiscência
do meu espírito, me preocupavam sem querer. Atribuo a isto ter eu apenas
balbuciado algumas palavras durante a conversa, e haver cortejado
respeitosamente a senhora, que apesar de tudo ainda me aparecia nesta mulher,
mal a voz lhe expirava nos lábios, porque, então, o desdém que vertia de sua
frase volúbil passava, e o semblante em repouso tomava uns ares de meiga
distinção.
A festa continuou, e fomos acabá-la em uma alegre
reunião, onde se dançou e brincou até duas horas da noite.
Quando apaguei a minha vela ao deitar-me, na dúbia
visão que oscila entre o sono e a vigília, foi que desenhou-se no meu espírito
em viva cor a reminiscência que despertara em mim o encontro de Lúcia.
Lembrei-me então perfeitamente quando e como a vira a primeira vez.
Fora no dia da minha chegada. Jantara com um
companheiro de viagem, e ávidos ambos de conhecer a corte, saímos de braço dado
a percorrer a cidade. Íamos, se não me engano, pela Rua das Mangueiras, quando,
voltando-nos, vimos um carro elegante que levavam a trote largo dois fogosos
cavalos. Uma encantadora menina, sentada ao lado de uma senhora idosa, se
recostava preguiçosamente sobre o macio estofo, e deixava pender pela cobertura
derreada do carro a mão que brincava com um leque de penas escarlates. Havia
nessa atitude cheia de abandono muita graça; mas graça simples, correta e
harmoniosa; não desgarro com ares altivos decididos, que afetam certas mulheres
à moda.
No momento em que passava o carro diante de nós,
vendo o perfil suave e delicado que iluminava a aurora de um sorriso raiando
apenas no lábio mimoso, e a fronte límpida que à sombra dos cabelos negros brilhava
de viço e juventude, não me pude conter de admiração.
Acabava de desembarcar; durante dez dias de viagem
tinha-me saturado da poesia do mar, que vive de espuma, de nuvens e de
estrelas; povoara a solidão profunda do oceano, naquelas compridas noites
veladas ao relento, de sonhos dourados e risonhas esperanças; sentia enfim a
sede da vida em flor que desabrocha aos toques de uma imaginação de vinte anos,
sob o céu azul da corte.
Recebi pois essa primeira impressão com verdadeiro
entusiasmo, e a minha voz habituada às fortes vibrações nas conversas à tolda
do vapor, quando zunia pelas enxárcias a fresca viração, minha voz excedeu-se:
— Que linda menina! exclamei para meu companheiro,
que também admirava. Como deve ser pura a alma que mora naquele rosto mimoso!
Um embaraço imprevisto, causado por duas gôndolas,
tinha feito parar o carro. A moça ouvia-me; voltou ligeiramente a cabeça para
olhar-me, e sorriu. Qual é a mulher bonita que não sorri a um elogio espontâneo
e a um grito ingênuo de admiração' Se não sorri nos lábios, sorri no coração.
Durante que se desimpedia o caminho, tínhamos
parado para melhor admirá-la; e então ainda mais notei a serenidade de seu
olhar que nos procurava com ingênua curiosidade, sem provocação e sem vaidade.
O carro partiu; porém tão de repente e com tal ímpeto dos cavalos por algum
tempo sofreados, que a moça assustou-se e deixou cair o leque. Apressei-me, e
tive o prazer de o restituir inteiro.
Na ocasião de entregar o leque apertei-lhe a ponta
dos dedos presos na lava de pelica. Bem vê que tive razão assegurando-lhe que
não sou tímido. A minha afoiteza a fez corar; agradeceu-me com um segundo
sorriso e uma ligeira inclinação da cabeça; mas o sorriso desta vez foi tão
melancólico, que me fez dizer ao meu companheiro:
— Esta moça não é feliz!
— Não sei; mas o homem a quem ela amar deve ser bem
feliz!
Nunca lhe sucedeu, passeando em nossos campos,
admirar alguma das brilhantes parasitas que pendem dos ramos das árvores,
abrindo ao sol a rubra corola? E quando ao colher a linda flor, em vez da suave
fragrância que esperava, sentiu o cheiro repulsivo de torpe inseto que nela
dormiu, não a atirou com desprezo para longe de si?
É o que se passava em mim quando essas primeiras
recordações roçaram a face da Lúcia que eu encontrara na Glória. Voltei-me no
leito para fugir à sua imagem, e dormi.
III
A corte tem mil seduções que arrebatam um
provinciano aos seus hábitos, e o atordoam e preocupam tanto, que só ao cabo de
algum tempo o restituem à posse de si mesmo e ao livre uso de sua pessoa.
Assim me aconteceu. Reuniões, teatros,
apresentações às notabilidades políticas, literárias e financeiras de um e
outro sexo; passeios aos arrabaldes; visitas de cerimônia e jantares obrigados;
tudo isto encheu o primeiro mês de minha estada no Rio de Janeiro. Depois desse
tributo pago à novidade, conquistei os foros de cortesão e o direito de
aborrecer-me à vontade.
Uma bela manhã, pois, estava na crítica posição de
um homem que não sabe o que fazer. Li os anúncios dos jornais; escrevi à minha
família; participei a minha chegada aos amigos; e por fim ainda me achei com
uma sobra de tempo que embaraçava-me realmente. Acendi o charuto; e através da
fumaça azulada, lancei uma vista pelos dias decorridos. «Lembrar-se é viver
outra vez», diz o poeta.
De repente caiu-me um nome da memória. Achara em
que empregar a manhã.
— Vou ver a Lúcia.
Depois da festa da Glória tinha-a encontrado
algumas vezes, mas sem lhe falar. Lembro-me de uma manhã em casa do Desmarais.
Lúcia passava, parou na vidraça e entrou para comprar algumas perfumarias; o
seu vestido roçara por mim; mas ela não me olhou, nem pareceu ter-me visto.
Essa circunstância, e talvez um resquício do desgosto que deixara a minha
decepção, tiraram-me a vontade de a cumprimentar; contudo conservei o chapéu na
mão todo tempo que esteve na loja. Quando escolhia alguns vidros de extratos,
mostraram-lhe um que ela repeliu com um gesto vivo e um sorriso irônico:
— Flor de laranja!. . . E muito puro para mim!
Ao sair, dobrou o seu talhe flexível inclinando-se
vivamente para o meu lado, enquanto a mão ligeira roçava os amplos folhos da
seda que rugia arrastando. Esse movimento podia ser uma profunda cortesia
disfarçada com certo acanhamento; e podia não passar de um gesto habitual de
faceirice feminina.
Outra vez estava no teatro; tinha ido fazer minha
visita a um camarote durante o último intervalo, e conversando reparei na
insistência com que me examinava um binóculo da segunda ordem. Da pessoa que o
fitava só via a mão pequena e a fronte pura, que denunciavam uma mulher.
Depois, ao levantar o pano, vi Lúcia naquela direção, e pareceu-me reconhecer
nela a indiscreta luva cor de pérola e o curioso instrumento que me perseguira
com o seu exame.
Eis quais eram as minhas relações com essa moça; e
confesso que vestindo-me sentia algumas apreensões sobre a recepção que me
esperava; não há nada que mais vexe do que a posição de um homem solicitando da
memória rebelde da pessoa a quem se dirige um reconhecimento tardio.
Não obstante, poucos minutos depois subia as
escadas de Lúcia, e entrava numa bela sala decorada e mobiliada com mais
elegância do que riqueza. Ela mostrou não me reconhecer imediatamente; mas
apenas falei-lhe do nosso primeiro encontro na Rua das Mangueiras, sorriu e
fez-me o mais amável acolhimento. Conversamos muito tempo sobre mil
futilidades, que nos ocorreram; e eu tive ocasião de notar a simplicidade e a
graça natural com que se exprimia.
O que porém continuava a surpreender-me ao último
ponto, era o casto e ingênuo perfume que respirava de toda a sua pessoa. Uma
ocasião, sentados no sofá, como estávamos, a gola de seu roupão azul abriu-se
com um movimento involuntário, deixando ver o contorno nascente de um seio
branco e puro, que o meu olhar ávido devorou com ardente voluptuosidade.
Acompanhando a direção desse olhar, ela enrubesceu como uma menina e fechou o
roupão; mas doce e brandamente, sem nenhuma afetação pretensiosa.
Tal é a força mística do pudor, que o homem o mais
ousado, desde que tem no coração o instinto da delicadeza, não se anima a
amarrotar bruscamente esse véu sutil que resguarda a fraqueza da mulher. Se a
resistência irrita-lhe o desejo, o enleio casto, a leve rubescência que veste a
beleza como de um santo esplendor, influem mágico respeito. Isto, quando se ama;
quando a atração irresistível da alma emudece os escrúpulos e as
suscetibilidades. O que não será pois quando apenas um desejo ou um capricho
passageiro nos excita? Então, ousar é mais do que uma ofensa; é um insulto
cruel.
Se eu amasse essa mulher, que via pela terceira ou
quarta vez, teria certamente a coragem de falar-lhe do que sentia; se quisesse
fingir um amor degradante, acharia força para mentir; mas tinha apenas sede de
prazer; fazia dessa moca uma idéia talvez falsa; e receava seriamente que uma
frase minha lhe doesse tanto mais, quanto ela não tinha nem o direito de
indignar-se, nem o consolo que deve dar a consciência de uma virtude rígida.
Quando me lembrava das palavras que lhe tinha
ouvido na Glória, do modo por que Sá a tratara e de outras circunstâncias, como
do seu isolamento a par do luxo que ostentava, tudo me parecia claro; mas se me
voltava para aquela fisionomia doce e calma, perfumada com uns longes de
melancolia; se encontrava o seu olhar límpido e sereno; se via o gesto quase
infantil, o sorriso meigo e a atitude singela e modesta, o meu pensamento
impregnado de desejos lascivos se depurava de repente, como o ar se depura com
as brisas do mar que lavam as exalações da terra.
E continuávamos a conversar tranqüilamente de mil
coisas, menos daquela que me tinha levado à sua casa. Não posso repetir-lhe
todo esse longo diálogo; mal conseguirei recompor com as minhas lembranças
algum fragmento dele.
— Há muito tempo que está no Rio de Janeiro?
perguntou-me Lúcia depois de uma pausa.
— Há pouco mais de um mês. Cheguei justamente no
dia em que a encontrei pela primeira vez.
— Ah! no mesmo dia?...
Acabava de desembarcar.
— Mas naquela tarde, lembro-me... o senhor estava
fumando. Se quer, pode acender o seu charuto; não me incomoda.
Recusei por delicadeza.
— Veio passear? Demora-se pouco naturalmente.
— Vim ver a corte; e depois talvez me resolva a
ficar.
— De uma vez?
— Se achar meio de estabelecer-me. Sou pobre;
preciso fazer uma carreira; e a corte oferece-me outros recursos, que não
encontro em Pernambuco.
— Ah! é filho de Pernambuco?... Que bonita cidade
que é o Recife! Como são lindos aqueles arrabaldes da Madalena, da Ponta do
Uchoa e da Soledade!..
— Já esteve no Recife! Em que época?
— Faz dois anos.
— Em 1853... Devo tê-la visto alguma vez! Nesse
tempo era eu estudante e conhecia todas as moças bonitas da cidade.
— Então já vê que não me podia conhecer! Demais,
estive apenas uma tarde. O vapor pouco se demorou.
— Donde vinha?
— Da Europa. Apenas desembarquei, meti-me num
carro, e fui passear. Vinte dias embarcada! Sabe o que é isto? Tinha saudade
das árvores e dos campos de minha terra, que eu não via há oito meses! Que
passeios encantadores por aquelas quintas cobertas de mangueiras, que bordam as
margens do rio! Havia uma sobretudo na Soledade, que me encantou: era uma
casinha muito alva que aparecia no fundo de uma rua de arvoredo sombrio; mas
tudo tão gracioso, tão bem arranjado que parecia uma pintura. Duas senhoras,
uma já de idade, que me pareceu a mãe, e outra ainda mocinha e muito bonita,
passeavam pela quinta colhendo flores e frutas. Mandei parar o carro, e fiquei
olhando com inveja para a casa e as duas senhoras, pensando na vida tranqüila e
sossegada que se devia viver naquele retiro.
— A senhora me faz saudades de minha terra.
Lembrei-me de minha casa, e das tardes em que passeava assim por aqueles sítios
com minha mãe e minha irmã.
— O senhor tem mãe e irmão! Como deve ser feliz!
disse Lúcia com sentimento.
— Quem é que não tem uma irmã! respondi-lhe
sorrindo. E minha mãe ainda é muito moca para que eu tivesse a desgraça de a
haver perdido.
— Perdi a minha muito cedo e fiquei só no mundo;
por isso invejo a felicidade daqueles que têm uma família. Há de ser tão bom a
gente sentir-se amada sem interesse!
Depois de uma hora de conversa despedi-me, e voltei
sem ter arriscado um gesto ou uma palavra duvidosa.
— Já vai? disse Lúcia vendo-me tomar o chapéu.
— Não posso demorar-me mais tempo. Se a minha
visita não lhe aborrece, voltarei outro dia.
— Deu-me tanto prazer! Até amanhã; sim?
E apertou-me a mão cordialmente.
Na rua achei-me tão ridículo com os meus vinte e
cinco anos e os meus escrúpulos extravagantes, que estive para voltar. Como
podia eu temer um engano, depois do que sabia dessa mulher ?
Encontrei-me à tarde com Sá no Hotel da Europa,
onde costumava jantar. Estava ainda muito viva a lembrança do que me sucedera
naquela manhã para não aproveitar a ocasião de falar-lhe a respeito, tendo
porém o cuidado de ocultar o papel que havia representado na pequena comédia.
— Tens visto a Lúcia? perguntei-lhe.
— Não; há muito tempo que não a encontro.
— Tu a conheces bem, Sá?
— Ora! Intimamente!
— Tens toda a certeza de que ela seja o que me
disseste na Glória ?
— E esta! Pois duvidas?. . . Vá à casa dela; já te
apresentei.
— Supunha que fosse apenas uma dessas mocas fáceis,
a quem contudo é preciso fazer a corte por algum tempo.
— O tempo de abrir a carteira. Andas no mundo da
lua, Paulo. Queres saber como se faz a corte à Lúcia?... Dando-lhe uma pulseira
de brilhante, ou abrindo-lhe um crédito no Wallerstein.
— Não é sem razão que te pergunto isto; encontrei-a
ha dias, e a sua conversa, os seus modos, pareceram-me tão sérios!
— Por que lhe falaste nesse tom? Naturalmente a
trataste por senhora como da primeira vez; e lhe fizeste duas ou três
barretadas. Essas borboletas são como as outras, Paulo; quando lhes dão asas,
voam, e é bem difícil então apanhá-las. O verdadeiro, acredita-me, é deixá-las
arrastarem-se pelo chão no estado de larvas. A Lúcia é a mais alegre
companheira que pode haver para uma noite, ou mesmo alguns dias de
extravagância.
Acabamos de jantar e não tocamos mais no assunto.
— Tens que fazer sábado depois do teatro?
perguntou-me Sá com um sorriso maligno.
— Nada, senão dormir.
— Pois vá cear comigo. Dormirás durante o dia.
Asseguro-te que não perderás o teu tempo.
— Até sábado, então.
Esta conversa desgostou-me; porque me fez parecer
ainda mais ridículo aos meus olhos.
Tinha uma vaga desconfiança, pelo tom do convite,
de que Lúcia iria à casa do Sá; e protestei que antes disso me reabilitaria de
minha estúrdia ingenuidade.
IV
No dia seguinte à mesma hora voltei à casa de
Lúcia; achei-a ao piano
— O que estava tocando?
— Nem sei!... Uma valsa que aprendi de ouvido.
— Continue!
— Não sei tocar, não! Estava brincando; não tinha
que fazer. Como passou de ontem?
— Bem, obrigado. Já vê que a minha segunda visita
não se demorou muito.
— Ainda assim não compensa a demora da primeira.
— Sentiu essa demora?. Qual! ontem nem me conheceu.
— Tanto como na Glória. Ainda que se tivessem
passado anos, creio que em qualquer parte onde me encontrasse com o senhor, o
reconheceria.
— Por que motivo então fingiu ontem não se lembrar
de mim, logo que entrei ?
— Por quê?... Queria ver uma coisa.
— E não se pode saber o que era?
— Não é preciso!
— Há de me dizer!...
E tomei-lhe as mãos que estavam frias e trêmulas.
— Pois bem, eu lhe digo. Queria ver se ainda se
lembrava do nosso primeiro encontro, respondeu ela furtando o corpo ao meu
abraço.
— Duvidava? . . Não tinha razão; talvez fosse eu o
que melhor guardasse essa lembrança.
Lúcia abanou a cabeça lentamente:
— Que vestido levava eu naquela tarde? perguntou
sorrindo.
A pergunta embaraçou-me. Quando admiro uma mulher
bonita, a impressão que ela produz em mim não me deixa ver mais que a sua
beleza.
— Nem se recorda!
— É um defeito meu. Não reparo na toilette das
moças bonitas pela mesma razão por que não se repara na moldura de um belo
quadro.
— Que desculpa!... E eu por que reparei no seu
traje, na cor de sua sobrecasaca, em tudo; até na sua bengala? Não é esta; a
outra era mais bonita; tinha o castão de marfim. Está vendo que me lembro
perfeitamente, e entretanto não tenho esses objetos diante dos olhos!
— Ah! É este o vestido?
— O vestido, as jóias, o penteado, o leque, aquele
que o senhor apanhou. Nem desse se lembrava! Só falta o chapéu! Quer vê-lo ?
Lúcia saiu um instante e voltou. Ou porque a minha
memória se avivasse, ou porque a ausência desse gentil chapéu, que parecia
fugir-lhe da cabeça, tão de leve a cingia, mutilasse a graciosa imagem que eu
vira na tarde de minha chegada; o fato é que a aparição já desvanecida surgira
de repente aos meus olhos.
— Agora lembro-me! Estou vendo-a como a vi da
primeira vez!
— Como daquela vez não me verá mais nunca!
— O que lhe falta?
— Falta o que o senhor pensava e não tornará a
pensar! disse ela com a voz pungida por dor íntima!
Não compreendi então aquelas palavras, nem o tom com
que foram proferidas; procurei-lhe o sentido, acompanhando com os olhos a Lúcia
que tirava lentamente o chapéu, e fitava na sua imagem refletida pelo espelho
um triste olhar.
— Ah! já sei! O que eu pensava?... Mas ainda penso:
acho-a hoje tão bonita ou mais do que naquela tarde.
— Não é isto!
— O que é então ? Venha dizer-me.
Passei-lhe o braço pela cintura e apertei-a ao
peito; eu estava sentado, ela em pé; meus lábios encontraram naturalmente o seu
colo e se embeberam sequiosos na covinha que formavam nascendo os dois seios
modestamente ocultos pela cambraia. Com o meu primeiro movimento, Lúcia
cobriu-se de ardente rubor; e deixou-se ir sem a menor resistência, com um modo
de tímida resignação.
Quando porém os meus lábios se colaram na tez de
cetim e meu peito estreitou as formas encantadoras que debuxavam a seda,
pareceu-me que o sangue lhe refluía ao coração. As palpitações eram bruscas e
precipites. Estava lívida e mais branca do que o alvo colarinho do seu roupão.
Duas lágrimas em fio, duas lágrimas longas e sentidas, como dizem que chora a
corça expirando, pareciam cristalizadas sobre a face, de tão lentas que
rolavam.
É o coração, quando fortemente confrangido por
violenta emoção, que espreme esse soro do sangue que gela e coalha.
Pungiu-me aquela aflição.
Retirei vivamente o braço; enquanto Lúcia
sentava-se trêmula, afastei-me revoltado contra mim, e ao mesmo tempo indignado
contra essa mulher que zombava da minha credulidade, e contra Sá que me
iludira. Não sabia o que pensar; para fugir a uma posição que me incomodava
horrivelmente, fui debruçar-me na janela.
Um instante depois ouvi sua voz doce e carinhosa:
— Não se agaste comigo !
Voltei-me; ela sorriu a dois passos de mim, e com
uma expressão suplicante, como de quem pedisse perdão.
— Acabemos com isso, Lúcia. Sabes o que me traz à
tua casa: se te desagrado por qualquer motivo, dize francamente, que eu tomo o
meu chapéu e não te aborrecerei mais. Se pensas que valho tanto como os outros,
não percas o tempo a fingir o que não és. Esta comédia de amor pode divertir os
mocinhos de 18 anos e os velhos de 50; mas afianço-te que não lhe acho a menor
graça.
— Não seja tão injusto' Em que lhe pareço fingida?
Já me perguntou alguma coisa que eu lhe negasse? Já me recusei a um pedido seu?
— Entretanto te ofendeste com uma simples carícia!
— Não me ofendi; e a prova é que não dei sinal de
desagrado, nem conservo o menor ressentimento. Não me conhece!... Sei o que
valho, e não sou capaz de iludir a ninguém, muito menos ao senhor.
— Mas, há pouco, o que significavam essas lágrimas?
— Ah, não repare! Sofro do coração; às vezes
sobe-me o sangue à cabeça, fico muito pálida, e sinto uma dor aguda que me
arranca lágrimas dos olhos!. . . Não é nada; passa-me logo. Já passou! concluiu
com um sorriso dorido.
— É diferente; desculpa. Incomodava-me essa idéia
de pensares que estava disposto a fazer-te a corte. Seria soberanamente
ridículo para nós ambos.
— Decerto!
Lúcia acompanhou estas duas palavras com um riso
estridente e um olhar que ainda vejo brilhar nas sombras de minhas recordações:
olhar vivo e cintilante, que luziu como as chispas do brilhante ferido pela
réstia da luz, e veio bater-me em cheio na face, cobrindo-me com o mais agro
desprezo que pode estilar um coração de mulher.
Dirigiu-se a uma porta lateral, e fazendo correr
com um movimento brusco a cortina de seda, desvendou de relance uma alcova
elegante e primorosamente ornada. Então voltou-se para mim com o riso nos
lábios, e de um gesto faceiro da mão convidou-me a entrar.
A luz, que golfava em cascatas pelas janelas
abertas sobre um terraço cercado de altos muros, enchia o aposento, dourando o
lustro dos móveis de pau-cetim, ou realçando a alvura deslumbrante das cortinas
e roupagens de um leito gracioso. Não se respiravam nessas aras sagradas à
volúpia, outros perfumes senso o aroma que exalavam as flores naturais dos
vasos de porcelana colocados sobre o mármore dos consolos, e as ondas de suave
fragrância que deixava na sua passagem a deusa do templo.
Lúcia não disse mais palavra; parou no meio do
aposento, defronte de mim.
Era outra mulher.
O rosto cândido e diáfano, que tanto me
impressionou à doce claridade da lua, se transformara completamente: tinha
agora uns toques ardentes e um fulgor estranho que o iluminava. Os lábios finos
e delicados pareciam túmidos dos desejos que incubavam. Havia um abismo de
sensualidade nas asas transparentes da narina que tremiam com o anélito do
respiro curto e sibilante, e também nos fogos surdos que incendiavam a pupila
negra.
A suave fluidez do gesto meigo sucedeu a veemência
e a energia dos movimentos. O talhe perdera a ligeira flexão que de ordinário o
curvava, como uma haste delicada ao sopro das auras; e agora arqueava enfunando
a rija carnação de um colo soberbo, e traindo as ondulações felinas num espreguiçamento
voluptuoso. As vezes um tremor espasmódico percorria-lhe todo o corpo, e as
espáduas se conchegavam como se um frio de gelo a invadira de súbito; mas breve
sucedia a reação, e o sangue abrasando-lhe as veias, dava à branca epiderme
reflexos de nácar e às formas uma exuberância de seiva e de vida, que realçavam
a radiante beleza.
Era uma transfiguração completa.
Enquanto a admirava, a sua mão ágil e sôfrega
desfazia ou antes despedaçava os frágeis laços que prendiam-lhe as vestes. A
mais leve resistência dobrava-se sobre si mesmo como uma cobra, e os dentes de
pérola talhavam mais rápidos do que a tesoura o cadarço de seda que lhe opunha
obstáculos. Até que o penteador de veludo voou pelos ares, as trancas
luxuriosas dos cabelos negros rolaram pelos ombros arrufando ao contato a pele
melindrosa, uma nuvem de rendas e cambraias abateu-se a seus pés, e eu vi
aparecer aos meus olhos pasmos, nadando em ondas de luz, no esplendor de sua
completa nudez, a mais formosa bacante que esmagara outrora com o pé lascivo as
uvas de Corinto.
Saí alucinado!
Fora delírio, convulsão de prazer tão viva que,
através do imenso deleite, traspassava-me uma sensação dolorosa, como se eu me
revolvera no meio de um sono opiado, sobre um leito de espinhos. É que as
carícias de Lúcia vinham impregnadas de uma irritabilidade que cauterizava
Há mulheres gastas, máquinas do prazer que vendem,
autômatos só movidos por molas de ouro. Mas Lúcia sentia; sentia sim com tal
acrimônia e desespero, que o prazer a estorcia em cãibras pungentes. Seu olhar
queimava; e às vezes parecia que ela ia estrangular-me nos seus braços, ou
asfixiar-me com seus beijos.
De repente surgiu lívida, e estendeu-me a mão
aberta Ouvi uma palavra soluçada, voz opressa, que não entendi, mas adivinhei.
Imagine qual revolução houve em mim; e a profunda
indignação com que me precipitei sobre minha carteira para atirá-la à face
dessa mulher. Mas ela reteve-me com a força sobre-humana que lhe davam as
contrações nervosas.
— Estava gracejando-me! Não é assim que me queria?
E soltou uma gargalhada.
Debalde pedi uma explicação. Ao delírio sucedera
prostração absoluta, orgasmo da constituição violentamente abalada. Vendo então
esse corpo inerte e pasmo, com os olhos vítreos e as mãos crispadas, tive dó e
como um pressentimento de que a vida o abandonaria breve.
Quando lho dei a perceber, ela respondeu-me:
— Que importa? Contanto que tenha gozado de minha
mocidade! De que serve a velhice às mulheres como eu?
Ao retirar-me ia pela segunda vez levar a mão à
carteira, quando o olhar de Lúcia correu-me de vergonha. Entretanto ela,
abatida ainda, porém calma, apertava-me a mão por despedida. Que magia tinham
aqueles olhos fúlgidos, quando um sentimento forte lhes toldava a doce
serenidade!
Conto-lhe estes fatos, como se escrevesse no dia em
que eles sucederam, ignorando o seu futuro; entretanto, talvez que, apesar
disto, compreenda as palavras equívocas e as causas ocultas que naquela ocasião
resistiram à minha perspicácia.
Mas a senhora lê e eu vivia; no livro da vida não
se volta, quando se quer, a página já lida, para melhor entendê-la; nem pode-se
fazer a pausa necessária à reflexão. Os acontecimentos nos tomam e nos
arrebatam às vezes tão rapidamente que nem deixam volver um olhar ao caminho
percorrido.
Assim o meu espírito preocupou-se um momento com a
singularidade daquela cortesã, que ora levava a impudência até o cinismo, ora
esquecia-se do seu papel no simples e modesto recato de uma senhora; porém
vieram logo outros pensamentos distrair-me.
V
As grandes sensações de dor ou de prazer pesam
tanto sobre o homem, que o esmagam no primeiro momento e paralisam as forças
vitais. É depois que passa esse entorpecimento das faculdades, que o espírito,
insigne químico, decompõe a miríada de sensações, e vai sugando a gota de fel
ou de essência que ainda estila dos favos apenas libados.
Foi o que me sucedeu; e não sei se no dia seguinte
trocaria a voluptuosidade lenta e infinita de minhas recordações ainda recentes
por outra hora da febre ardente que na véspera me prostrara nos braços de
Lúcia. Mas então não me lembrava que vendo-a, todos os meus desejos, que eu
supunha extenuados, iam acordar de novo, tigres famintos da presa em que uma
vez se tinham cevado.
Estava no teatro lírico, onde o acaso me colocara
junto de um moço com quem havia feito conhecimento na sociedade e cujo nome não
me acode agora. Em falta de outro, lhe darei o de Cunha.
Esperando que se levantasse o pano, corríamos ambos
com o binóculo as ordens de camarotes, que se começavam a encher. F: um regalo
semelhante ao do gastrônomo, que antes de sentar-se à mesa belisca as iguarias
que vão se ostentando aos olhos gulosos. A comparação me agrada; porque
realmente nunca senti essa gula de olhar que devora com uma fome canina, como
quando contemplava uma multidão de mulheres bonitas. Cada uma delas me
emprestava uma forma sedutora, um encanto, um contorno para a estátua ideal que
a imaginação moldava, aperfeiçoando a capricho.
A medida que fazíamos alguma descoberta
astronômica, ou na região dos planetas de primeira e segunda ordem, ou entre as
nebulosas da última esfera, comunicávamos ao companheiro, que imediatamente
assestava o telescópio. Começavam então as competentes observações sobre o
astro. Já tínhamos examinado algumas constelações ou grupos de estrelas
brilhantes e dois ou três planetas superiores, discorrendo Cunha sobre a sua
órbita, os seus satélites e o ponto da elíptica em que se achavam. Tínhamos
lobrigado no fundo de um camarote a cauda luminosa de um cometa; finalmente
estudávamos um aerólito ou estrela cadente, conjeturando sobre as causas
prováveis do fenômeno atmosférico-financeiro.
— Aí está a Lúcia, disse Cunha Na segunda ordem,
quarto camarote depois de vésper.
Assim havíamos batizado um planeta que se recolhia
infalivelmente entre nove e dez horas da noite.
Esqueci-me dizer que a ópera começara; as nossas
observações podiam fazer-se então em céu desnublado. Vi Lúcia sentada na frente
do seu camarote, vestida com certa galantaria, mas sem a profusão de adornos e
a exuberância de luxo que ostentam de ordinário as cortesãs, ou porque
acreditem que a sua beleza, como as caixinhas de amêndoas, cota-se pelo
invólucro dourado, ou porque no seu orgulho de anjos decaídos desejem esmagar a
casta simplicidade da mulher honesta, quantas vezes defraudada nessa
prodigalidade.
Não me posso agora recordar das minúcias do traje
de Lúcia naquela noite. O que ainda vejo neste momento, se fecho os olhos, são
as nuvens brancas e nítidas, que se frocavam graciosamente, aflando com o lento
movimento de seu leque; o mesmo leque de penas que eu apanhara, e que de longe
parecia uma grande borboleta rubra pairando no cálice das magnólias. O rosto
suave e harmonioso, o colo e as espáduas nuas, nadavam como cisnes naquele mar
de leite, que ondeava sobre formas divinas.
A expressão angélica de sua fisionomia naquele
instante, a atitude modesta e quase tímida, e a singeleza das vestes níveas e
transparentes, davam-lhe frescor e viço de infância, que devia influir
pensamentos calmos, senão puros. Entretanto o meu olhar ávido e acerado rasgava
os véus ligeiros e desnudava as formas deliciosas que ainda sentia latejar sob
meus lábios. As sensações amortecidas se encarnavam de novo e pulsavam com uma
veemência extraordinária. Eu sofria a atração irresistível do gozo fruído, que
provoca o desejo até a consunção; e conheci que essa mulher ia se tornar uma
necessidade, embora momentânea, da minha vida.
— E uma bonita mulher! disse ao meu vizinho, com um
ar de indiferença para disfarçar a minha emoção.
— A mais bonita mulher do Rio de Janeiro e também a
mais caprichosa e excêntrica. Ninguém a compreende.
— Conheço-a apenas de vista; porém disseram-me que
é uma boa moça, muito amável...
— Oh! Posso falar a este respeito. Fui seu amante
quatro meses.
— E por que a deixou? Aborreceu-se?
— Não a deixei. É seu costume; um belo dia, sem
causa, sem o mínimo pretexto, declara a um homem que as suas relações estão
acabadas; e não há que fazer. Podem oferecer-lhe somas loucas, é tempo perdido.
Também no dia seguinte, ou no mesmo, daí a uma hora, toma outro amante que não
conhece, que nunca viu.
— Todas são assim, com pouca diferença; ninguém
sabe qual é o fio que faz dançar essas bonecas de papelão.
— Nem tanto. Há mulheres, que, ou por interesse, ou
por amizade, ou mesmo por hábito, se inquietam com a idéia de que seu amante as
abandone; mas para esta é absolutamente indiferente. Tem dias em que está de um
humor insuportável: fica uma estátua, e não há forças humanas que possam
arrancar daquela massa inerte um sorriso, uma palavra, um movimento. Se o homem
não possui grande dose de paciência para sofrê-la calado, ela fecha-lhe a porta
muito delicadamente, e manda-lhe dizer pela criada— <<que tenha a bondade
de deixá-la tranqüila para todo o sempre».— E uma vez dito, não volta.
— Para quem tem direitos adquiridos, parece-me um
tanto forte!
— É o seu engano, continuou o Cunha que estava de
veia. A Lúcia não admite que ninguém adquira direitos sobre ela. Façam-lhe as
propostas mais brilhantes: sua casa é sua e somente sua; ela o recebe, sempre
como hóspede; como dono, nunca. Na ocasião em que o senhor a toma por amante,
ela previne-o de que reserva-se plena liberdade de fazer o que quiser e de
deixá-lo quando lhe aprouver, sem explicações e sem pretextos, o que sucede
invariavelmente antes de seis meses; está entendido que lhe concede o mesmo
direito.
— Ao menos há reciprocidade!
— Não lhe pede nada, nem sequer doces em tempo de
festa, ou sorvetes quando está no teatro. Nunca a vi bordar em malhas
transparentes um desses desejos disfarçados com que as mulheres iscam à
generosidade de seus apaixonados. Se indagam do seu gosto a respeito de algum
objeto que lhe destinam, desconversa e não responde; aceita friamente o que lhe
dão, e nada mais. Ora, com uma mulher desta natureza, que não oferece a mínima
ocasião de prestar-lhe um serviço e ganhar-lhe a amizade ou a gratidão, é
possível ter direitos adquiridos ?
— Há de sofrer com isso! . . . Tenho-a visto duas
ou três vezes e sempre vestida simplesmente. Não traz um brilhante; entretanto
que outras, que não a valem, andam cobertas. Repare! . . .
— Qual! Não é essa a razão! Nunca lhe faltam
amantes; sei de grandes fortunas no Rio de Janeiro que se dariam por felizes se
ela se decidisse a arruiná-las. E para não ir muito longe, embora não seja
rico, caso ela ainda quisesse...
— Ah! Então as suas relações estão cortadas?
— Inteiramente; e de uma maneira célebre. Vou-lhe
contar. Passeávamos numa noite de luar claro como dia; vendo minha mulher na
janela, escondi-me involuntariamente no fundo do carro com receio de que me
reconhecesse. Era inútil, porque estava distraída olhando para o mar.
Entretanto Lúcia, por maldade, mandou ao cocheiro que parasse, saltou do carro,
e esteve muito tempo, em pé, na grade, voltada para minha casa. Eu não sabia o
que fizesse, compreende bem; não queria mostrar-me, e tinha medo de um
escândalo. Felizmente ela foi caminhando, e a alguma distancia mandou parar um
tílburi que passava; o carro a tinha acompanhado; chegou-se à portinhola e
disse-me: <<Não gosto de gente que se esconde, meu senhor. Vá olhar para
o mar, ao lado de sua mulher; é mais inocente e mais poético. De amanhã em
diante não nos conhecemos>>. Debalde quis impedi-la, meteu-se no tílburi;
e o cocheiro, que tinha um excelente animal, logrou-me: foi-me impossível
segui-los. Voltei nessa mesma noite e nos dias seguintes à sua casa, e achei
sempre a porta fechada para mim; até que me recebeu para dizer-me com toda a
macieza e doçura, que eu supunha ter comprado a chave de sua casa, e por isso
ia-me restituir o preço de uma venda que ficara sem efeito. Saí para não voltar
mais!
— Arrufos! Se não a procurasse, ela o mandaria
chamar no outro dia. É sempre a sombra do provérbio chinês: segue quem a foge.
— São águas passadas. Estávamos falando da
simplicidade de seu trajar. A razão é outra; é pura avareza.
— Como! Não disse que ela não se deixava levar pelo
interesse? Não compreendo. Uma mulher que rejeita ofertas brilhantes e leva o
seu escrúpulo a nunca pedir, nem mesmo uma coisa insignificante... Essa mulher
não pode ser avarenta! O senhor conserva algum ressentimento, disse eu
sorrindo.
— Ora! replicou ele encolhendo os ombros. Não
faltam bonitas mulheres. Mas esse desinteresse de Lúcia é um cálculo, e um
cálculo muito fino. Uma mulher que pede, marca o preço de sua gratidão ou do
seu amor; a mulher que não pede é um abismo que nunca se enche! Tenho
experiência destas coisas.
— Em todo o caso, ainda que ela fosse de uma
mesquinhez sórdida, as jóias não se gastam com o uso.
— Se ela as vende!
— Não é possível!
Também eu duvidei por muito tempo, mas tive a
prova. Há aqui um Sr. Jacinto que fez sociedade com ela; tudo que lhe dão, até
roupas, é imediatamente reduzido a dinheiro. Lúcia deve ter por aí em casa do
Gomes ou do Couto seus trinta a quarenta contos.
— Guarda para a velhice, se lá chegar.
A tecla que vibrara em nosso espírito ressoava tão
melodiosamente, que o pano descera sobre o primeiro ato do Hernani, sem darmos
por isso. O Cunha me parecia conservar vivas saudades de suas relações com essa
moça, que ainda o interessava apesar de tudo. Quanto a mim, todas as
excentricidades e defeitos que atribuíam a Lúcia, ao passo que a faziam descer
na minha estima, davam-lhe um sainete de originalidade e um picante sabor que
me excitava. O vício também tem sua beleza e sua atração, como a virtude; a
diferença é que no âmago do fruto os lábios encontram terra e cinza em vez de
polpa deliciosa.
Há de ter reparado em que me desse por desconhecido
de Lúcia; é hábito meu, desde que entrei no mundo, não admitir os estranhos à
intimidade de minha vida, ainda mesmo quando se trata de objetos sem
conseqüência. Só dispo a minha alma entre amigos.
Como já lhe disse, suspeitava que Lúcia devia
assistir à ceia, para a qual Sá me convidara, na quinta-feira, jantando no
Hotel da Europa. Naquela ocasião quis ter a certeza; e creia que subindo as
escadas da segunda ordem desejava ter-me enganado.
Preciso dizer-lhe a razão?
Ela não estava só: uma multidão de adoradores
invadira a porta de seu camarote. Cortejei-a e passei, esperando a ocasião em
que lhe pudesse falar. Tudo quanto achei para mandar levar-lhe foi sorvetes,
doces, algumas flores de baile que vendiam à porta, e o libreto da ópera. As
mulheres, a senhora o sabe por experiência, agradecem mais essas pequenas
atenções de que a cercam, do que os verdadeiros sacrifícios; e eu tinha
resolvido fazer a conquista de Lúcia por oito ou quinze dias.
Estive com ela no intervalo seguinte.
— Não tinha nem uma moça bonita do seu conhecimento
a quem dar estas flores tão lindas? disse apertando-me a mão e mostrando dois
cactos que se estrelavam, um no seio e outro entre os seus cabelos.
— Sabes quem as mandou?
— Adivinhei pelo cheiro É tão suave!...
— Ficam-te muito bem; parecem ter nascido aí entre
as rendas e os cabelos.
— Hei de enfeitar-me sempre assim.
— E com as flores que eu te mandarei todas as
manhãs.
— Disse isto à toa. Não tenho paciência, nem gosto
para estas coisas! Agora foi uma lembrança e já me está aborrecendo, replicou,
batendo com a ponta dos dedos afilados nas pétalas da flor.
Notei no tom de Lúcia durante o resto desta
conversa uma diferença extraordinária com o modo singelo e modesto que ela
tinha em sua casa; agora era a frase ríspida, incisiva e levemente embebida na
ironia que destilava de seus lábios, e cujas gotas a maior parte das vezes
salpicavam a ela própria. A cortesã revelava-se a mim sem rebuços, depois que
deixara cair na falda do leito o seu último véu. Não sei se estimei ou senti
essa brusca transição; a franqueza me punha mais à vontade, é certo, porém
desvanecia uma doce ilusão, que, por mais transparente que seja, nubla o
espírito crédulo, quando procura no fundo do prazer um átomo sequer de amor.
Perguntei-lhe afinal se me permitia acompanhá-la
depois do teatro.
— Esta noite não me pertence! . . .
— Não vais para casa?
— Não.
— Já sei! Estás convidada para uma ceia...
— Quem lhe disse?
— Em casa do Sá.
— Ah! Não me lembrava que ele é seu amigo! E o
senhor, também vai?...
— Para ter o prazer de tua companhia.
— Ainda não estou inteiramente resolvida! murmurou
com lentidão, e atalhou logo com certo estouvamento: porém não, vou! Por que
deixaria de ir? Havemos de divertir-nos muito: o Sá tem gosto.
Acendeu-se nos seus olhos o fogo que já uma vez me
tinha queimado as faces; só mais tarde devia ter a explicação desse olhar.
Quando tomei o meu lugar nas cadeiras, Lúcia tinha
desaparecido.
VI
Sá habitava, num dos arrabaldes da corte, uma
chácara, que caprichara em preparar.
Com trinta anos de idade, um caráter fleumático e
uma imaginação ardente, o meu amigo tinha errado a sua vocação; a natureza o
destinara para milionário, tal era o seu desprezo pelo dinheiro quando se
tratava de realizar um de seus mil sonhos dourados. Gozando do conforto e mesmo
da elegância que lhe permitia uma folgada abastança, as flores que ia colhendo
pelo caminho estavam longe de satisfazer-lhe as fantasias orientais; por isso
impunha a si mesmo o sacrifício de acumular algumas pequenas reservas, fruto
das economias de muitos dias, para consumi-las em poucas horas, com um desapego
selvagem.
A alma obcecada pelo trabalho, irritada pelas
migalhas de prazer que bajulava aqui e ali, tinha de tempos a tempos
necessidade de um banho russiano. Nesses dias Sá dava férias às ocupações
graves, convidava alguns amigos, e oferecia à imaginação um pasto régio. Era o
reinado efêmero da devassidão, naquela existência alegre, mas calma de
ordinário.
A sua casa de moço solteiro estava para isso
admiravelmente situada entre jardins, no centro de uma chácara ensombrada por
casuarinas e laranjeiras. Se algum eco indiscreto dos estouros báquicos ou das
canções eróticas escapava pelas frestas das persianas verdes, confundia-se com
o farfalhar do vento na espêssa folhagem; e não ia perturbar, nem o plácido
sono dos vizinhos, nem os castos pensamentos de alguma virgem que por ali
velasse a horas mortas.
Cheguei por volta de meia-noite.
Já estavam reunidos os convidados: Lúcia, três
belas mulheres que eu conhecia de vista, e um senhor de cabelos e barbas
brancas, vestido com esmero extremo, mas com alguma excentricidade inglesa; um
desses velhos ainda verdes que se esforçam em reconstruir sobre os últimos
rescaldos de fogos extintos, com o auxílio de um empertigamento cômico, uma
atividade elástica e um fátuo repertório de anedotas galantes, a mocidade
fictícia que só a eles próprios ilude. Sá mo apresentou com estas palavras:
— O Sr. Couto, capitalista.
O sexto convidado era um moço de 17 anos, o Sr.
Rochinha, que trazia impressa na tez amarrotada, nas profundas olheiras e na
aridez dos lábios, a velhice prematura. Libertino precoce, curvado pela
consunção, tinha o orgulho do vício, que estampara nas faces, receando talvez
que o insultassem pondo em dúvida os seus brasões de nobreza, conquistados com
o copo em punho nalguma tasca imunda. Se fosse pobre, o Sr. Rochinha teria
fumaças de poeta byroniano; mas ainda era rico da herança que esbanjava, e
portanto não passava de um moço gasto!
Sá tinha jeito para escolher os seus convidados. O
contraste do vício que apresentavam aqueles dois indivíduos: o velho
galanteador, fazendo-se criança com receio de que o supusessem caduco; e o moço
devasso, esforçando-se por parecer decrépito, para que não o tratassem de
menino; essa antítese viva devia oferecer ao observador cenas grotescas. O que
eu vi entrando era uma pequena amostra.
O Sr. Couto, fresco e repolhudo, bamboleando-se na
cadeira, fazia sortes que as mulheres aplaudiam, e consumia o terceiro copo de
água gelada, para abrandar o fogo interno. O Sr. Rochinha, derreado pelo sofá,
erguia às vezes a cabeça pesada de sono e torpor para absorver um cálice de
conhaque da garrafa que tinha ao lado.
Sá, que se embalançava numa cadeira de palha,
saboreando o antegosto das delícias gastronômicas, ergueu-se para receber-me:
— Só esperávamos por ti. Onde te meteste no teatro,
— Estive do lado oposto...
— Cuidei que nos encontrássemos na saída. É
meia-noite; vamos cear.
Ao som do tímpano apareceu um criado, que recebeu
ordem de servir.
A reunião nada tinha ainda que assustasse os bons
costumes. A exceção de alguns gracejos dúbios da galantaria enrugada do Sr.
Couto, conversava-se alegremente como no mais aristocrático salão. Havia mesmo
um ligeiro tom de cerimônia, que, se não era bastante para acanhar, tirava contudo
ao diálogo o colorido vivo e animado que lhe dá a palavra solta.
Entretanto, se a senhora não conhece as odes de
Horácio e os Amores de Ovídio, se nunca leu a descrição da festa de Baco e não
tem notícia dos mistérios de Adônis ou do rito afrodísio das virgens de Pafos,
que em comemoração do nascimento da deusa iam certos dias do ano banhar-se na
espuma do mar e oferecer as primícias do seu amor a quem mais cedo as cobiçava;
se ignora tudo isto, rasgue estas folhas, ou antes queime-as, para que sua neta,
achando as` tiras que ficarem sobre a mesa, não se lembre de fazer delas
papelotes.
Se ao contrário apreciou esses trechos admiráveis
da literatura clássica, pode continuar a ler, pois não achará imagem, nem
palavra que revolte o bom gosto: sensitiva delicada dos espíritos cultos.
Anunciada a ceia, atravessamos o jardim para ir à
sala do serviço.
Não posso deixar de fazer-lhe uma breve descrição
dessa parte da casa, que ocupava a ala direita do edifício, formando uma
espécie de pavilhão. Era o palácio encantado do sibaritismo, que só de longe em
longe e nas horas mortas da noite, abria suas portas a chave de ouro para
alguns adeptos de seu culto ou para algum profano que desejasse iniciar-se nos
lúbricos mistérios.
Entremos, já que as portas se abrem de par em par,
cerrando-se logo depois de nossa passagem. A sala não é grande, mas espaçosa;
cobre as paredes um papel aveludado de sombrio escarlate, sobre o qual destacam
entre espelhos duas ordens de quadros representando os mistérios de Lesbos.
Deve fazer idéia da energia e aparente vitalidade com que as linhas e colorido
dos contornos se debuxavam no fundo rubro, ao trêmulo da claridade deslumbrante
do gás.
A mesa oval, preparada para oito convivas, estava
colocada no centro sobre um estrado, que tinha o espaço necessário para o
serviço dos criados; o resto do soalho desaparecia sob um felpudo e macio
tapete que acolchoava o rodapé e também os bordos do estrado. Os aparadores de
mármore cobertos de flores, frutos e gelados, e os bufetes carregados de
iguarias e vinhos, eram suspensos à parede. Não pousava o pé de um móvel na
orla aveludada que cercava a mesa, e parecia abrir os braços ao homem ébrio de
vinho ou de amor, convidando-o a espojar-se na macia alcatifa, como um jovem
poldro nas cálidas areias da várzea natal.
Pela volta da abóbada de estuque que formava o
teto, pelas almofadas interiores das portas, e na face de alguns móveis, havia
tal profusão de espelhos, que multiplicava e reproduzia ao infinito, numa
confusão fantástica, os menores objetos. As imagens, projetando-se ali em todos
os sentidos, apresentavam-se por mil faces.
Não lhe falo da ceia que nada tinha de especial.
Suntuosa e delicada, como os sabem preparar aqui, sorria aos olhos e trescalava
de aromas penetrantes e deliciosos, que iam prurir as fibras gástricas. Esse
perfume sibárico e o aspecto brilhante das iguarias esquisitas, entre as
irradiações do cristal e os reflexos áureos, rubros ou violáceos do madeira, do
porto e do borgonha, é talvez o mais delicado acepipe que um anfitrião de gosto
oferece aos seus hóspedes; porque nesse bocado homérico os olhos e o olfato
servem com fartura ao paladar um pouco de tudo; um primor de todos os manjares
que a capacidade do estômago não permite absorver.
Sentamo-nos dois a dois, porque só havia na sala
quatro cadeiras. Não se espante; eram cadeiras medidas para dois corpos,
espécies de pequenos sofás de palhinha, onde se estava mais do que comodamente.
Esta singularidade era um símbolo da união, ou melhor, da comunhão, que o dono
da casa queria que houvesse durante a ceia: não eram oito pessoas, mas quatro
amigos que se divertiam em amável companhia. Acrescia que a longa separação das
cadeiras, e a espessa cortina de flores, deixava a cada um plena liberdade: era
ao mesmo tempo a solidão e a convivência.
Ao anunciar da ceia, Lúcia tomou-me o braço que ia
oferecer-lhe. Sentamo-nos a um dos lados da mesa em face de Sá. O Sr. Couto,
como de rigor, impava de gula e fatuidade, defronte da sonolência do Rochinha e
à ilharga de uma linda espanholita, que o olhava à sorrelfa com um momo de
petulante zombaria.
Depois da sopa, Sá ergueu o copo cheio de velho
madeira E saudou os seus hóspedes:
— Estão feitos os cumprimentos, meus senhores:
gozemos. t: meia-noite, disse mostrando a pêndula de alabastro. Até uma hora
come-se. Caso alguém reclame, prorroga-se o tempo.
— A não ser o Sr. Couto! murmurou a companheira
deste.
— Aprovado sem discussão, retrucou o velho. Com os
diabos, Nina! Comer é uma das boas coisas deste mundo; porém não é a melhor.
— Demais, a mesa ai fica; e ninguém erra a boca
mesmo no escuro! acudiu Laura rindo.
Creio que o Sr. Couto corou; em todo o caso
remexeu-se, como se estivesse sobre alfinetes.
— Ora! Isso sucedeu uma vez; e foi para te meter
febre.
— Não se trata dos sessenta anos do Sr. Couto...
— Quarenta e cinco, minha jóia! E por fazer!...
— Passemos à ordem do dia! exclamava uma francesa
já abrasileirada, que tinha privado com um orador da câmara.
— Bem! continuou Sá: a hora seguinte bebe-se. É
bastante?
— É demais! Em menos tempo dou conta de uma cesta
de champanha ! gritou Nina.
— Não admira! Uma burra r vale mais do que uma
cesta; e tu eras capaz de esvaziá-la num minuto!
— Então, adotada a meia hora? perguntou Sá
interrompendo o Couto.
— Para mim é indiferente, respondeu o Rochinha
acordando. Já se foi o tempo em que me embriagava com essas limonadas de espuma
e esses vinagres do Reno. Sou uma velha esponja, meu caro: fui curtido a kirsch
e rum.
— Manda-se preparar para ti uma gengibrada.
— Que bicho é esse?
— É uma infusão de gengibre fervida em aguardente
de trinta e seis graus, com uma garrafa de marasquino.
— Deliciosa bebida! disse Lúcia. Não leva também
algumas gotas de chumbo derretido?
— Finalmente, meus senhores, as duas horas em
ponto, imola-se a razão no fundo das garrafas.
— Bravo! gritaram as mulheres em coro.
— Aceito por unanimidade!
— Posso imolar a minha desde já, gritou o Couto.
— Não admito! Requeiro que se respeitem as cãs. . .
— E a inocência dos criados.
— A vista das considerações devidas ao sexo, cedo!
— É melhor; mesmo porque seria difícil imolar o que
não existe.
— Procedamos em regra. As duas horas portanto
pára-se a pêndula. Abolição completa da razão, do tempo, da luz; e inauguração
solene do reinado das trevas e da loucura. Até lá liberdade completa dentro dos
limites da decência; tudo quanto possa alegrar, como o gracejo, a cantiga, o
brinde ou o discurso, é permitido; salvo o direito ao respeitável público
feminino e masculino de patear as sensaborias.
— Nota do taquígrafo. Numerosos apoiados; o orador
é cumprimentado.
E o Couto para realizar o seu dito propôs a saúde
de Sum, e acompanhou-a com um discurso recheado de disparates, interrompido a
cada palavra pela algazarra dos estouros báquicos.
Não tomei nem uma parte nesse primeiro tiroteio;
Lúcia apenas dissera uma palavra. Ela estava visivelmente contrariada; por
momentos caia em profunda distração, de que eu a tirava a custo; depois
tomava-se de um estouvamento e sofreguidão que não era natural. Uma vez levantado
o cálice, a contração muscular foi tão violenta que o cristal espedaçou-se
entre as falanges delicadas. Tinha-se ferido, e para estancar o sangue,
mergulhou o dedo no meu copo cheio de Sauterne: o áureo licor enrubesceu; e eu
esgotei-o até a última gota num assomo de galanteio romântico.
Lúcia acompanhou o meu movimento com um olhar tão
cheio do que olhava, como se eu lhe bebera a própria vida nessas gotas tintas
de seu sangue.
— Se o bebesse todo!... balbuciou.
— Tu morrias, Lúcia! respondi sorrindo.
— Eu. .. viveria; e o resto seria pasto dos
vermes,, como foi pasto dos homens.
Semelhante à mosca importuna que se afoga no vinho,
a palavra lúgubre afogou-se no entusiasmo que começava a brilhar em todas as
frontes.
Lúcia apanhou no ar o primeiro dito que passava
para fazê-lo ressaltar com uma das réplicas vivaces, titilantes de sarcasmo e
ironia, que em certos momentos fervilhavam de seus lábios. Era impossível
segui-la nesse brilhante rasto de seu espírito.
VII
Sr. Couto, dizia Sá, recomendo-lhe estas perdizes!
Estão saturadas de trutas e castanhas.
— Obrigado; é muito forte para mim. Daqui a dez
anos, não digo que não.
— Passa-me as perdizes! exclamou o Rochinha
piscando os olhos com certa malícia.
— Por favor, Sr. Couto, disse Lúcia rindo, empreste
ao Sr. Rocha os seus cabelos brancos! Por esta noite ao menos. . .
— Oh! já não são poucos os que eu tenho.
— Mas não são bastantes, Rochinha, atalhou Sá.
Lúcia tem razão.
Esta continuou:
Vou fazer uma proposta.
Muito bem; atenção em ambas as colunas, gritou o
velho Couto abrindo os braços. — Proponho... — A minha saúde ? — Um coro com
acompanhamento de pratos? — Não! não! Se continuam, subo à rampa!
Silêncio!
— Proponho que esta noite o Sr. Couto seja tratado
por Coutozinho, que é mais terno; e o Sr. Rochinha sem o embirrante diminutivo,
que lhe dá uns ares de menino de colégio!. . .
Houve explosão de gritos e aplausos.
— Acrescenta, disse o Sá, que Nina chamará o Sr.
Couto — nhonhô, e Laura o Rochinha— papai.
— Não admito! O incesto é contra a moral, gritou
Lúcia.
— Como trata-se de nomes, eu também proponho uma
mudança, bocejou o Rochinha. Em lugar de Lúcia— diga-se Lúcifer I
— velho! Não valia a pena acordar para isto. Quem
não sabe que eu sou anjo de luz, que desci do céu ao inferno?
A guerrilha de facécias e ditos mais ou menos
chistosos continuou tão viva, que renuncio à idéia de reproduzi-la.
Não pensava, quando comecei a escrever estas
páginas que lhe destino, lutar com tamanhas dificuldades; uma coisa é sentir a
impressão que se recebeu de certos acontecimentos, outra comunicar e transmitir
fielmente essa impressão. Para o conseguir, cumpre que nada se omita; e ai
justamente está o meu embaraço, porque há episódios daquela noite, que eu
desejava bem poder deixar nos refolhos de minha memória ou no fundo do meu
tinteiro.
Se tivesse agora ao meu lado o Sr. Couto, estou
certo que ele me aconselharia para as ocasiões difíceis uma reticência. Com
efeito, a reticência não é a hipocrisia no livro, como a hipocrisia é a reticência
na sociedade?
Sempre tive horror às reticências; nesta ocasião
antes queria desistir do meu propósito, do que desdobrar aos seus olhos esse
véu de pontinhos, manto espesso, que para os severos moralistas da época,
aplaca todos os escrúpulos, e que em minha opinião tem o mesmo efeito da
máscara, o de aguçar a curiosidade .
Por isso quando em alguns livros moralíssimos vejo
uma reticência, tremo! Se uma curiosidade ingênua de 15 ou 16 anos passar por
ali, não verá abrir-se em cada um desses pontinhos o abismo do desconhecido.
A minha história é imoral; portanto não admite
reticências; mas tenho um desvanecimento, pouco modesto, confesso. Caso a
senhora cometesse a indiscrição de ler estas páginas a alguma menina inocente,
talvez chegassem ao fim sem uma única pergunta. A borboleta esvoaça sem pousar
entre as flores venenosas, por mais brilhantes que sejam; e procura o pólen no
cálice da violeta e de outras plantas humildes e rasteiras. O espírito da moça
é a borboleta; o seu instinto a castidade.
Entretanto, se este manuscrito tivesse de sair à
luz pública algum dia, e um editor escrupuloso quisesse dar ao pequeno livro
passaporte para viajar das estantes empoeiradas aos toucadores perfumados e às
elegantes banquinhas de costura, bastaria substituir certos trechos mais
ousados por duas ordens de pontinhos.
A que se reduz por fim de contas a moral literária!
Ao mesmo que a decência pública: a alguns pontos de mais ou de menos.
Lúcia fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria,
e caíra no costumado abatimento e distração. Eu a contemplava admirado do
letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava, quando ela
voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaído:
— Não lhe disse que nos havíamos de divertir muito?
— Contudo preferia estar só contigo. Todo o prazer
de tão amável companhia, todo o brilho de teu espírito, que como o diamante
faísca mais vivo quanto mais vivos são os raios da luz que o fere, nada disto
faz esquecer a manhã de ontem!
— Ora! Há tanta mulher bonita! Qualquer destas vale
mais do que eu, acredite! Demais, quando tiver bebido alguns copos de clicot e
sentir-se eletrizado, saberá o senhor de quem são os lábios que toca? Qual? É
uma mulher! Uma presa em que ceva o apetite! Que importa o nome? Sabe
porventura o nome das aves e dos animais que lhe preparam esta ceia?
Conhece-os?... Nem por isso as iguarias lhe parecem menos saborosas.
Estas palavras, assim lidas friamente, nada são
comparadas com a voz amarga e sibilante que as pronunciava. Soltavam-se de seus
lábios, e caíam no meu espírito, tão impregnadas de ondas de sarcasmo, que
deixavam passando uma impressão cáustica e dolorosa.
— Não fales assim, Lúcia. Podia responder-te com a
tua mesma comparação. Estas gelatinas e massas delicadas sabem que paladar as
tem de gozar? Nem por isso deixam de exalar os mesmos aromas e guardar igual
sabor para o dono da casa, como para qualquer dos convidados.
— Ou para os criados a quem se atiram os sobejos da
ceia?... Não cuide que me ofendo! Se o senhor não diz por que é delicado,
pensa-o talvez!
— Mudemos de conversa. Este tom de ironia me
incomoda. Deste-me uma hora de prazer, que não esquecerei nunca. Não apagues o
perfume desta lembrança.
— Que mal faz? Comprará outras horas de igual
prazer: custam-lhe tão pouco!
— Oh! não seria o mesmo, não!
— Já não teria o encanto da novidade?
— Não teria a doce ilusão que arrancarias do meu
espírito.
— Mas o senhor não sabe então?... perguntou
erguendo os grandes olhos límpidos e fulgurantes.
— Sei tudo, mas não o quero saber; e menos de tua
boca! Não sou para ti mais do que os outros; não te mereço nada; porém deixa-me
a venda sobre os olhos, eu te peço! Sinto-me feliz com ela.
— O que não o impediria de ver-me com indiferença
passar dos seus braços aos de qualquer destes homens, daquele velho por
exemplo.
— Serias capaz de fazer isso, Lúcia?
— O que tenho eu feito toda a minha vida? Logo ou
alguns dias depois... Questão de tempo!
— Não falas seriamente! É impossível!
— Aborreço o fingimento: não gosto de passar pelo
que não sou. É tão ridícula essa comédia do amor, que representam os velhos e
os meninos!
O escárnio da repetição de palavras, que eu lhe
dissera na véspera, esmagou-me.
— Estás tão calada agora, Lúcia! exclamou o Couto.
— Paulo está naturalmente fazendo-lhe a corte!
replicou Sá rindo.
— E por isso Lúcifer desapareceu do horizonte!
— Lúcifer espera o reino das trevas! O Sr. Paulo
fazendo-me a corte!... Seria soberanamente ridículo para nós ambos!
— É a segunda vez que repetes uma palavra dita por
mim num momento de despeito! Se te ofendi, perdoa-me, murmurei à meia voz.
— Gostei da frase!
Estourava o champanha, fumegando nos cálices de
cristal. Foi o sinal de um concerto infernal de saúdes, hurras e cantigas
descabeladas, com o acompanhamento de uma orquestra de copos e pratos; no meio
do rumor distinguia-se a voz de falsete do Couto, e a risada estridente de
Lúcia, cujas volatas tinham o timbre metálico do canto da araponga entre os
murmúrios da floresta. Apenas começaram as primeiras explosões produzidas pelos
vapores do vinho aristocrático, os criados saíram batendo a porta do serviço,
que fechou-se interiormente.
Estávamos sós; a pêndula marcava uma hora e
quarenta minutos; pouco tardaria o momento solene que o dono da casa, novo
Erasmo, destinara para a inauguração da loucura.
— Meus senhores, confesso que a minha vaidade de
anfitrião, amador das artes, está um tanto humilhada! Ainda não disseram uma
palavra a respeito dos meus quadros!
— De quem é a culpa? A magnificência da ceia e a
amabilidade do hóspede não consentiram que levantássemos os olhos.
— Mas são realmente soberbas estas pinturas!...
exclamou o Couto. Que posições admiráveis!... Ressuscitariam um morto. Apenas
noto a ausência absoluta do sexo feio.
— Isso prova o bom gosto do pintor.
— E o mau gosto das filhas de Lesbos.
— Então acham essas mulheres admiráveis?
— Provocantes!
— Arrebatadoras! . . .
— E tu, Paulo, que dizes?
— Digo que vi ontem um quadro deste gênero, que eu
não trocaria por todas as tuas pinturas! Era uma mulher; mas as formas
palpitavam; a carne latejava sob os olhos que a devoravam; os lábios comiam de
beijos a vítima que eles provocavam; e entre a cútis transparente corria o
sangue, que se precipitava do coração espadanando em cascatas!
— Sublime! A descrição é digna do quadro... que eu
não vi! disse o Rochinha.
— Onde descobriste essa maravilha?
— É meu segredo.
— Nem se pode saber o nome do artista, Sr. Silva?
— Não adivinharam ainda!
— Será Rafael ?
— É um Ticiano póstumo!
— Ou algum gênio desconhecido ?
— Enganaram-se: é um artista de todos os tempos e
de todos os Países; é o artista divino que fez as flores, as estrelas e as
mulheres!
— Ah! neste gênero de pintura tenho visto o melhor
que é possível!
— Eu aposto, disse Lúcia, que o Sr. Silva, como os
poetas, embelezou o seu quadro. Viu o que sentia; mas não o que era.
— Que importa! É outra ilusão minha que desejo
guardar!
— Talvez não a guarde por muito tempo...
— Pois, meus senhores, continuou Sá, mostrando-lhes
estas pinturas, preparei-lhes uma agradável surpresa. É nada menos que o
original delas; não o original frio e calmo, mas um verdadeiro modelo, vivendo,
palpitando, sorrindo, esculpindo em carne todas as paixões que deviam ferver no
coração daquelas mulheres.
— Onde está ele?
— Lúcia vai mostrar-nos.
— Ah!...
— Magnífico!
— Que maçada! Esqueci o meu pince-nez, disse o
Rochinha.
— Estás pronta, Lúcia?
Ela ergueu-se, circulando a mesa com o olhar
ardente e fascinado.
— Tu não farás isto, Lúcia! disse-lhe eu à meia
voz.
Dobrando como uma palma flexível o seu talhe
esbelto, atirou-me ao ouvido uma palavra, que vazou no meu cérebro e correu-me
pela medula dos ossos, como gata de metal em fusão.
— É preciso pagar a conta da ceia!
Travei-lhe da mão:
— Eu te suplico.
O seu corpo oscilou; caiu inerte sobre a cadeira.
— Que é isso? exclamou Sá. Tens vergonha de Paulo?
É a única pessoa demais que está hoje aqui.
— Ah! não é a primeira vez? perguntei
empalidecendo.
— Será a primeira vez que copiará estes quadros,
pois não há oito dias que os comprei; mas Lúcia não precisa de modelos, e já
nos mostrou, não uma, porém muitas noites, que tem, com a beleza dos anjos, o
gênio da estatuária. Não é verdade, meus senhores?
— Bem vês, Sá, que a honra não é para todos. Sou
indigno dela! disse eu.
— O que me está parecendo é que Lúcia quer
apaixonar-te.
Soltei uma gargalhada.
— Perde o seu tempo! A mim?
Lúcia ergueu a cabeça com orgulho satânico, e
levantando-se de um salto, agarrou uma garrafa de champanha, quase cheia.
Quando a pousou sobre a mesa, todo o vinho tinha-lhe passado pelos lábios, onde
a espuma fervilhava ainda. Ouvi o rugido da seda; diante de meus olhos
deslumbrados passou a divina aparição que admirara na véspera.
Lúcia saltava sobre a mesa. Arrancando uma palma de
um dos jarros de flores, trançou-a nos cabelos, coroando-se de verbena, como as
virgens gregas. Depois agitando as longas tranças negras, que se enroscaram
quais serpes vivas, retraiu os rins num requebro sensual, arqueou os braços e
começou a imitar uma a uma as lascivas pinturas; mas a imitar com a posição,
com o gesto, com a sensação do gozo voluptuoso que lhe estremecia o corpo, com
a voz que expirava no flébil suspiro e no beijo soluçante, com a palavra
trêmula que borbulhava dos lábios no delíquio do êxtase amoroso.
Deviam de ser sublimes de beleza e sensualidade
esses quadros vivos, que se sucediam rápidos; porque até as mulheres aplaudiam
com entusiasmo e frenesi. Revoltou-me tanto cinismo; ergui-me da mesa.
— Que é isso? Não admiras? O que viste era mais
perfeito'
— Não por certo!. . . Estes quadros são mais
expressivos e naturais! São sublimes de verdade! Porém sinto-me sufocado pela
atmosfera desta sala; preciso de ar.
Abri a porta que dava para o jardim, e saí.
VIII
Não Sou dos felizes, que conservam a virgindade
d'alma, e levam a santa comunhão do casamento a pureza e castidade das emoções.
Bem cedo ainda senti murchar a bonina delicada do coração; e afoguei a minha
ignorância nos gozos rapidamente fruídos e brevemente olvidados.
Há porém na febre dos sentidos uma união intima da
matéria, unissonância de desejos e repercussão instantânea do prazer, que opera
a transfusão mística da palavra santa. O homem e a mulher são a possessão mútua—
una caro, a carne única, onde vivem duas almas que nada vêem, porque só vêem a
si.
Compreenda agora por que a bacante ficou fria e
gelada para mim, na sua ardente lascívia. A mulher que com seus encantos cevava
outros olhos que não os meus, a estátua animada de desejos que eu não havia
excitado, em vez de provocar em mim a admiração, indignou-me. Tive vergonha e
asco, eu, que na véspera apertara com delírio nos meus braços essa mesma
cortesã, menos bela ainda e menos deslumbrante, do que agora na sua fulgurante
impudência.
Quando a mulher se desnuda para o prazer, os olhos
do amante a vestem de um fluido que cega; quando a mulher se desnuda para a
arte, a inspiração a transporta a mundos ideais, onde a matéria se depara ao
hálito de Deus; quando porém a mulher se desnuda para cevar, mesmo com a vista,
a concupiscência de muitos, há nisto uma profanação da beleza e da criatura
humana, que não tem nome.
É mais do que a prostituição: é a brutalidade da
jumenta ciosa que se precipita pelo campo, mordendo os cavalos para despertar-lhes
o tardo apetite.
Contudo, passado o primeiro assomo, achei em minha
alma, talvez mais piedade do que indignação. Lembrei-me do que Lúcia me tinha
dito ao ouvido, da entonação áspera de sua voz, do estrépito nervoso de seu
riso, e tive dó dessa moça. Que motivo a obrigava a descer tão baixo? Não era a
cupidez, não; apesar de quanto me dissera o Cunha no teatro, havia naquela
mulher um quer que seja, que revelava à primeira vista a nobreza do caráter.
Devia de ser a depravação; mas a depravação como ainda não tinha encontrado,
que se violentava, em vez de comprazer-se nos seus excessos.
Uma curiosidade irresistível me aproximara da porta
que ficara entreaberta.
Lúcia, trançando a sua longa manta listrada de
escarlate, que a envolveu como um pálio romano, voltara ao seu lugar e amolgara
sobre a cadeira um corpo sem articulações. Os aplausos e a ruidosa grita
continuavam no meio do fogo rolante de ditos licenciosos. Passado um instante
ela ergueu a cabeça, e seu olhar embaciado circulou, indo lentamente de um a
outro conviva.
— Quem estava aqui? balbuciou indicando o lugar que
eu havia deixado.
— Já perdeste a memória? Bom sinal!
— Era eu, Lúcia! Não te lembras! disse o Couto.
— Mas havia alguém aqui?
— Não te inquietes!. . . Paulo foi tomar ares no jardim.
Já volta.
— E se não voltar..., disse o Couto esticando-se na
sua pretensiosa reticência.
— Era ele!... exclamou Lúcia rindo às gargalhadas.
— Está embriagada! pensei eu.
— E tu, Nina, não queres que também admiremos a tua
beleza? dizia Sá.
— É verdade! Apreciaremos o contraste! gritou o
Rochinha.
— Nada, ainda não desci a este ponto.
— Com efeito é preciso ter perdido a vergonha,
murmurou Laura com desprezo.
Lúcia, que saíra da mesa, voltou-se com uma
dignidade e nobreza impossível de pressentir na cortesã da véspera e na bacante
de há pouco; mas essa expressão foi rápida; sucedeu-lhe a habitual doçura,
ainda realçada por um tom humilde.
— Não faças caso, é inveja, exclamou Sá.
— Tens razão, Laura, perdi a vergonha para ganhar o
dinheiro de que precisas; e desci a este ponto, Nina, desde que me habituei a
desprezar o insulto, tanto como o corpo que nós costumamos vender.
E sem esperar resposta, dirigiu-se à porta e saiu.
O meu primeiro movimento foi de repulsão; mas não sei que atração irresistível
me prendia a esta mulher, que a segui de longe. Vi-a caminhar de um lado para
outro, olhando em torno como se procurasse alguém; por fim caiu extenuada sobre
um banco de relva.
Aproximei-me então, e tomei-a nos braços; metiam dó
as contrações nervosas que crispavam seu belo corpo, e os soluços de angústia
que lhe partiam o seio e cerravam a garganta, sufocando-a. Penou assim um tempo
longo, em que receei por vezes que não expirasse sobre o meu peito. Finalmente
a crise passou; foi-se acalmando, e desfaleceu.
— Que idéia triste o senhor deve ter de mim!
murmurou com a voz sumida.
— Para que te prestas a estas coisas!
— O que sou eu ?
— Embora! Há sempre um resto de dignidade, que
impede a mulher de consentir no que acabas de fazer.
— Dignidade de quem se despreza a si mesma!... O
que é este corpo que lhes mostrei há pouco, e que lhes tenho mostrado tantas
vezes! O que vale para mim? O mesmo, menos ainda, do que o vestido que despi;
este é de seda e custou o que não custa uma de minhas noites!. . . Oh! creia,
mais nua do que há pouco me sinto eu agora, coberta como estou e aqui onde a
sombra nem lhe deixa ver meu rosto!... Porém sua alma vê o que fui e o que sou,
e tenho vergonha!
Lúcia atirou-se soluçando sobre o meu peito; e o
que me restava ainda de indignação, desvaneceu-se.
— Por que não persististe na tua musa? Eu te pedi!
— Tinha eu o direito de recusar? Não foi para isso
que se deu esta ceia!
— Sá te disse alguma coisa a meu respeito?
— Não; mas adivinhei Queria que lhe roubasse a
surpresa que estava preparada, e aguasse com uma contrariedade a festa de seu
amigo? Demais, não havia de saber; não lhe contariam, se já não lhe contaram,
toda a minha vida?
— Não me incomodaria tanto como o que vi.
— Mas então para que veio?
— Não sabia o que se tinha de passar; suspeitava
que te havia de encontrar aqui; porém nunca pensei que homens de educação
achassem prazer em obrigar uma pobre mulher a semelhante degradação!
— Eles compram o seu prazer onde o acham; a
degradação e a miséria é a de quem recebe o preço. Senti-o hoje ! Nunca isso
custou-me tanto! Conheci que era uma infâmia; se o senhor não zombasse de mim,
não o teria feito por coisa alguma deste mundo.
Nem sei onde estava naquele momento! Mas, Lúcia, já
que o confessas, promete-me... Nada sou para ti, as nossas relações datam de
ontem; porém em nome da indignação que senti, e do interesse que me inspiras,
promete-me que nunca mais farás semelhante coisa.
Ela ergueu-se:
— Eu lhe juro, disse com a fala grave e comovida.
Sentando-se de novo ao meu lado, continuou:
— E o senhor não me julgará muito indigna? Não me
desprezará?
— Não te desprezo; tenho pena de ti.
Lúcia travou-me da mão e beijou-a.
Esse beijo submisso fez-me mal.
Afastei-me arrebatadamente. Senti as mãos úmidas de
lágrimas, que eu não sentira chorando-as. Lúcia aproximou-se pouco e pouco; os
seus passos ligeiros crepitavam na areia; parou diante de mim, e não me animei
a olhá-la.
Estranha contradição!
Quando a lembrança ainda recente devia avivar as
cores do quadro vergonhoso e revoltante que me tinha indignado, eu esquecia a
pesar meu. Se fazia um esforço para evocar a cena da ceia, as idéias
confundiam-se; a imagem da bacante, surgida um momento, ia-se desvanecendo até
sumir-se; e nas sombras que nublavam o meu pensamento assomava radiante a
mulher que eu possuíra na véspera com todas as forças de minha vitalidade. O
desejo parecia mesmo ter adquirido nova têmpera, e mais poderosa, na luta de
que saíra.
Lúcia se tinha sentado junto de mim; alisava-me os
cabelos, olhando-me à luz das estrelas.
— Se não tivesse vindo! suspirou ela Não me
fugiria; talvez olhasse para mim como das primeiras vezes que nos vimos; ao
menos ainda poderia dar-lhe um pouco de prazer, já que nada mais tinha para
dar-lhe.
— E por que não me darás ainda, Lúcia, esse prazer?
— Depois do que se passou ?
— Cala-te! murmurei surdamente. Tu és uma
criança!... Não tens culpa do que fizeste!
— Deveras me perdoa ?. . . Ainda me quer?
Colei os meus lábios ao ouvido de Lúcia; tinha
vergonha do eco de minhas palavras.
— Quero-te para sempre' Quero que sejas minha e
minha só.
— Ah!...
Lúcia saltou como a gazela prestes a desferir a
corrida, quando as baforadas do vento lhe trazem o faro de tigre remo to; estendendo
o braço mostrou-me a sala da ceia, donde escapava luz e rumor.
— Mais longe!...
Fomos através das árvores até um berço de relva
coberto por espêsso dossel de jasmineiros em flor.
— Sim! Esqueça tudo, e nem se lembre que já me
visse! Seja agora a primeira vez!... Os beijos que lhe guardei, ninguém os teve
nunca! Esses, acredite, são puros!
Lúcia tinha razão. Aqueles beijos, não é possível
que os gere duas vezes o mesmo lábio, porque onde nascem queimam, como certas
plantas vorazes que passam deixando a terra maninha e estéril. Quando ela colou
a sua boca na minha pareceu-me que todo o meu ser se difundia na ardente
inspiração; senti fugir-me a vida, como o liquido de um vaso haurido em ávido e
longo sorvo.
Havia na fúria amorosa dessa mulher um quer que
seja na rapacidade da fera.
Sedenta de gozo, era preciso que o bebesse por
todos os poros, de um só trago, num único e imenso beijo, sem pausa, sem
intermitência e sem repouso. Era serpente que enlaçava a presa nas suas mil
voltas, triturando-lhe o corpo; era vertigem que vos arrebatava a consciência
da própria existência, alheava va um homem de si e o fazia viver mais anos em
uma hora do que em toda a sua vida.
A aspereza e feroz irritabilidade da véspera se
dissipara. O seu amor tinha agora sensações doces e aveludadas, que penetravam
os seios d alma, como se a alma tivera tato para senti-las.
Não fui eu que possuí essa mulher; e sim ela que me
possuiu todo, e tanto, que não me resta daquela noite mais do que uma longa
sensação de imenso deleite, na qual me sentia afogar num mar de volúpia.
Quando o primeiro raio da manhã tremulando entre as
folhas rendadas veio esclarecer-nos, Lúcia, reclinada a face na mão, me olhava
com o ressumbro de doce melancolia, que era a flor de seu semblante em repouso.
Embebendo o olhar no meu, procurou o pensamento no fundo de minha alma. Sorri;
ela corou; mas desta vez entravam também no rubor os toques vivaces do júbilo
que iluminou-lhe a fronte.
Incompreensível mulher!
A noite a vira bacante infrene, calcando aos pés lascivos
n pudor e a dignidade, ostentar o vício na maior torpeza do cinismo, com toda a
hediondez de sua beleza A manhã a encontrava tímida menina, amante casta e
ingênua, bebendo num olhar a felicidade que dera, e suplicando o perdão da
felicidade que recebera.
Se naquela ocasião me viesse a idéia de estudar,
como hoje faço à luz das minhas recordações, o caráter de Lúcia, desanimaria
por certo à primeira tentativa. Felizmente era ator neste drama e guardei, como
a urna de cristal guarda por muito tempo, o perfume de essência já evaporada,
as impressões que então sentia. É com ela que recomponho este fragmento de
minha vida.
Lúcia disse-me adeus; não consentiu que a
acompanhasse, porque isso me podia comprometer. Insisti debalde; e recolhi-me
de meu lado quebrado de fadiga e sono.
Em casa de Sá já se dormia quando partimos.
IX
Acordei por volta de duas horas, e fui escrever.
Depois da noite que passara talvez suponha que fiz versos. Pois engana-se: fiz
contas.
Revi o meu livro de assentos, dando balanço à minha
fortuna, que então orçava por uma quinzena de contos. Era bem pobre; mas estava
independente, formado, no ardor da mocidade e sem encargos de família. Já tinha
a intenção de estabelecer-me aqui; e antes de começar a vida árida e o trabalho
sério do homem que visa ao futuro, queria dar um último e esplêndido banquete
às extravagâncias da juventude.
Quem melhor do que Lúcia me ajudaria a consumir as
migalhas que me pesavam na carteira, e me embelezaria um ou dois meses da vida
que eu queria viver por despedida? Separei o necessário para a minha
subsistência durante dois anos; e com a fé robusta que se tem aos vinte anos,
rico de esperanças, destinei o resto ao festim de Sardanapalo, onde eu devia
queimar na pira do prazer a derradeira mirra da mocidade.
Tendo registrado no meu budget, com um simples
traço de pena, a importante resolução, saí para matar a sede de ar, de sol e de
espaço que sente o homem depois do sono tardio e enervador. Espaciei o corpo
pela Rua do Ouvidor; o espírito pelas novidades do dia; os olhos pelo azul
cetim de um céu de abril e pelas galas do luxo europeu expostas nas vidraças.
Era um domingo; o ócio dos felizes desocupados
tinha ganhado o campo e os arrabaldes. Encontrei por isso poucos conhecidos e
fria palestra.
Queria fazer horas para ir ver Lúcia. Com os
hábitos de voluptuosa indolência, que tomam as mulheres a quem faltam os
cuidados domésticos, não era natural que tão cedo fosse visível. Para ocupar-me
dela, entrei em casa do Valais, o joalheiro do bom-tom.
Comprei, não o que desejava, mas o que permitiam as
minhas finanças. Só os milionários gozam do prazer de medir a sua liberalidade
pela efusão do sentimento; entretanto o desejo avulta justamente onde mingua a
fortuna. Tinha escolhido uma dessas galantarias de ouro e brilhantes, que
custam algumas centenas de mil-réis, e valem um capricho, uma tentação, um
sorriso de prazer.
Ao sair vi um adereço de azeviche muito
simplesmente lavrado, e por isso mesmo ainda mais lindo na sua simplicidade.
Tênue filete de ouro embutido bordava a face polida e negra da pedra. Há certos
objetos que um homem dá à mulher por um egoístico instinto do belo, só para ver
o efeito que produzem nela. Lembrei-me que Lúcia era alva, e que essa jóia
devia tomar novo realce com o brilho de sua cútis branca e acetinada. Não
resisti; comprei o adereço, e tão barato, que hesitei se devia oferecê-lo.
Seriam quatro horas.
Achei Lúcia reclinada no sofá. Estava matando o
tempo, ora examinando o crivo dos punhos e o debuxo do penteador de cambraia,
ora cerrando as pálpebras para engolfar o espírito nalguma deliciosa
reminiscência.
— Preguiçoso! Há duas horas que o espero! disse
dando-me a mão e sorrindo.
— Saí há muito tempo, e não passei por aqui com
receio de incomodar-te.
— Tenha bondade de dizer: quem lhe deu o direito de
pensar que me incomoda?
— O meu gênio! Desconfio de mim.
— Pois o seu gênio enganou-o; fique sabendo que o
senhor nunca me pode incomodar a qualquer hora que venha aqui! Nunca; ouviu ?
— E quanto tempo durará isso?
— Ah! já lhe disseram que sou volúvel! Eles têm
razão de o dizer; porém má como sou, ainda assim não me julgue pelo que lhe
contarem.
— Não te julgo, nem te quero julgar. Conheço-te de
ontem; de ontem somente, tu o disseste!
— Pois essa que fui ontem continuarei a ser, já que
Deus não quis que fosse a outra, que viu da primeira vez.
— Não era mais bonita do que a desta noite.
— Quem sabe? Mas diga-me, continuou acariciando-me
o rosto com a mão travessa; deveras pensou hoje alguma vez em mim, ou
esqueceu-se apenas nos separamos?
— Tanto, que te trouxe uma lembrança.
— Ah! quero ver, sou muito curiosa!
Tirei as jóias e dei-lhe; o sorriso faceiro que
despontava no lábio murchou de repente. Atribuí a excesso de curiosidade e
atenção, porém ela abrindo lentamente a caixa, lançou-lhe apenas um olhar
distraído, e deitou-a sobre a cadeira com uma frieza glacial e um desgosto, que
transparecia entre a expressão de forçada amabilidade com que me agradeceu:
— Obrigada; não valho tanto!
Esse tanto foi dito com uma surda vibração, e
profunda, como se a voz que o articulara houvesse ferido interiormente todas as
cordas de sua alma. <<Cunha tinha razão, pensei eu; a cupidez e a avareza
são as molas ocultas que movem este belo autômato de carne. Está habituada a
presentes de milionário; desdenha a migalha do pobre>>.
Tive ímpetos de cuspir dos lábios os beijos que
recebera e não podia pagar pelo seu justo preço.
Abria ela a outra caixa com a mesma lentidão e
indiferença; quando súbito expandiu-se num desses enlevos que descem, como
ondas de fluido luminoso, da fronte apaixonada e inteligente da mulher que ama.
Soltou um pequeno grito de prazer, e agradeceu-me desta vez sem palavras, com
um só olhar, mas olhar como ela unicamente os tinha; olhar fundo e longo, que
parecia surgir de um abismo e dilatar-se ao infinito.
Posso eu descrever-lhe a ingênua alegria e as
visagens graciosas e infantis que ela fez diante dessa jóia sem valor? Era a
gárrula travessura da criança a quem se deu um brinquedo bonito; a mimosa
garridice da menina que festeja o seu primeiro enfeite de moca; as carícias
felinas do gato brincando com a tímida presa que vai devorar.
— Que bonito, meu Deus! exclamava a cada instante.
Quero ver como me fica! Hei de trazê-lo sempre!
Imediatamente substituiu os brincos que tinha pelos
de azeviche, cingiu o colar, e saltando como uma louquinha, correu ao espelho;
ai repetiu-se a mesma cena. Apesar da naturalidade e do ímpeto involuntário
destes gestos, a minha habitual desconfiança suspeitou naquela efusão de
contentamento uma zombaria amarga; supus um momento, que ela pretendia
ironicamente fazer-me sentir por esse modo a mesquinhez do presente.
Não lhe cause isto surpresa; lembre-se que idéia
devia fazer então dessa mulher pelos precedentes que conhecia de sua vida.
— Que significa esta admiração fora de propósito,
Lúcia? Estou arrependido de te haver oferecido semelhante ninharia; mas cuidei
que me perdoasses em atenção à outra, que não me parecia muito digna de tua
beleza Não sou rico; e há pouco a indiferença com que recebeste esta pulseira
fez-me sentir bem amargamente a minha pobreza. Estou convencido que o fizeste
sem querer.
Essa criatura tinha a intuição rápida e
instantânea, que é no homem a segunda vista do gênio, e em algumas mulheres
privilegiadas um instinto sutil do coração. À primeira palavra, a expansiva
alegria que vertia de toda sua pessoa caiu-lhe aos pés. Ficou séria, submissa e
envergonhada, como a criança traquinas, que surpreende em flagrante o ralho
paterno. Recolheu confusa o adereço e veio sentar-se ao meu lado.
— Diz que recebi com indiferença esta pulseira! E
qual é a causa da minha alegria? Disfarcei para o senhor não pensar que desejo
me venha ser somente pelo valor destes brilhantes. Além disto, quando se recebe
mais do que se vale, fica-se acanhada
Compreendo hoje as rápidas transições que se
operavam nessa mulher; mas naquela ocasião, como podia adivinhar a causa ignota
que transfigurava de repente a cortesã depravada na menina ingênua, ou na
amante apaixonada!
— Mas por isso não se zangue comigo!
E inclinou a face para receber uma carícia.
— Torno a pedir-te, Lúcia; nunca me digas o que não
sentes. Tens o mau gosto de te rebaixares.
— Se eu quisesse parecer melhor do que realmente
sou e fingir sentimentos que não posso ter, me tornaria ridícula. Talvez o
senhor fosse o primeiro a escarnecer de mim.
— Tudo isto, sabes o que é? É orgulho ofendido por
algumas palavras que me escaparam anteontem. Não negues; já te conheço melhor
do que tu mesma.
— Deveras! É difícil conhecer-me; mais difícil do
que pensa. Eu mesma, sei o que às vezes se passa em mim? E o motivo que me
arrasta sem querer? Não repare nestas esquisitices! Ralhe comigo, quando eu
merecer; prometo corrigir-me.
— Era o meio de me tornar insuportável. Daqui a uma
semana não me poderias aturar.
— Experimente!
— Não; dizem que és muito caprichosa, e não há nada
que eu respeite como os caprichos de uma mulher. Fica o que tu és; somente
sentiria que cometesses excessos como os de ontem.
— Já lhe dei um juramento!
— Acredito nele. Portanto não há necessidade de te
humilhares diante de mim, que não tenho direito de pedir-te contas de tua vida.
Não te pergunto pelo passado. O que te peço são alguns instantes de prazer.
Quando te aborrecer, previne-me.
O senhor nunca me há de aborrecer! Se este prazer
que lhe dou vale alguma coisa, tome dele quanto queira; pertence-lhe todo!
Davam seis horas. Lúcia pediu-me que jantasse com
ela, e fê-lo com tal humildade e timidez, que apesar dos meus escrúpulos
aceitei para não mortificá-la. Enquanto ela vestia-se no toucador, recostei-me
no sofá e descontei quase uma hora do sono perdido na véspera. Abrindo os olhos
vi Lúcia reclinada sobre mim.
— Devias estar maçada por me ver dormir. Por que
não me acordaste?
— Agora mesmo acabei de aprontar-me.
Estava encantadora com o seu roupão de seda cor de
pérola ornado de grandes laços azuis, cuja gola cruzando-se no seio deixava-lhe
apenas o colo descoberto. Nos cabelos simplesmente penteados, dois cactos que
apenas começavam a abrir às primeiras sombras da noite. Mas tudo isso era nada
a par do brilho de seus olhos e do viço da pele fresca e suave, que tinha
reflexos luminosos.
— Foi para mim que te fizeste tão bonita?
— E para quem mais? disse com um acento queixoso.
Estou a seu gosto?
— Como sempre.
— Pois vamos jantar.
Ela fez-me as honras de sua casa como uma
verdadeira senhora, com o tato esquisito que põe o hóspede à sua vontade,
cercando-o contudo de mil atenções delicadas. O jantar foi sério. Ou porque
Lúcia nessa ocasião desejasse conservar a sua dignidade de dona-de-casa; ou
porque a presença dos criados a acanhasse, o fato é que não deixou nunca o tom
ligeiramente cerimonioso que havia tomado.
Depois de jantar sentamo-nos no terraço, onde
tomamos café, e eu fumei o meu charuto, do qual ela brincando roubou-me algumas
fumaças com tal graça e prazer, que bem provavam ter cultivado mais esse vício.
A noite estava bonita e estrelada, e o céu coalhado
de nuvens que recortavam sobre o azul as formas caprichosas. Lúcia tinha a alma
poética; falava da natureza com o entusiasmo ingênuo que dá a vida
contemplativa àqueles que não conhecem os segredos da ciência; muitas vezes
fazia-me perguntas que me embaraçavam; outras cortava a frase colorida com um
riso em que vertia a sua fina ironia.
— Ali está a minha estrela! Olhe, sou eu! disse
mostrando-me Lúcifer, que se elevava no oriente, límpida e fulgurante.
Não pude deixar de sorrir-me.
— És muito linda no céu, sobretudo hoje que vestes
um manto de tão puro azul; mas eu te prefiro aqui junto de mim, Lúcia.
— Também eu; antes queria viver sempre neste
cantinho da tem como agora, respondeu-me tomando as mãos e olhando-me, do que
no céu como ela brilhando para o mundo inteiro.
Calou-se um instante.
— Se eu ainda lá estivesse, desceria agora para vir
sentar-me aqui. Mas Lúcifer deixou no céu a luz que perdeu para sempre.
Quando voltamos ao salão, já estava iluminado.
É preciso ter como Lúcia a beleza, a sedução e o
espírito que enchem uma sala; a mobilidade e a elegância que multiplicam uma
mulher, como o prisma reproduz o raio do sol por suas mil facetas; para assim
consumir deliciosamente uma noite com as filigranas da galantaria feminina. Em
três horas, que voaram, quer saber o que fez essa mulher? Tocou e cantou com
sentimento, conversou com a sua graça habitual, representou-me tipos da comédia
fluminense; fez a sátira dos ridículos da época; recitou versos de Garrett,
como o faria a Gabriela; brincou, saltou, dançou; e por fim acabou tornando-me
criança como ela, e obrigando-me a jogar prendas que eram resgatadas com um
beijo na face.
As dez horas quis retirar-me. Lúcia suspendeu-se ao
meu ouvido, e balbuciou muito baixo uma súplica:
— Fique!
Um olhar eloqüente, raio voluptuoso que rompeu o
enleio encantador de seu gesto, disse-me quanto havia nessa palavra. O meio de
resistir a semelhante pedido?
X
Recolhendo-me no dia seguinte, encontrei Sá que
subia as escadas do hotel.
— Que fim levaste anteontem, que ninguém te viu
mais? — Voltei para casa.
— Com Lúcia, já se sabe! Ainda estás muito
atrasado, Paulo. Tens o amor no meio de uma claridade esplêndida, em volta de
uma mesa bem servida, sobre macios tapetes; e preferes o amor bucólico ao
relento e sobre a relva!. . .
— Sou extremamente egoísta nesta matéria, meu
amigo; só partilho o amor com a mulher que o sente.
— São gostos; mas ficaste sabendo o que é Lúcia, e
entretanto ela estava de mau humor. Num dos seus bons dias, não tem que invejar
às cortesãs gregas ou as messalinas romanas.
— Ela já contou-me tudo isso, Sá, respondi com
impaciência.
— Pudera não! São os seus brasões de glória; e por
isso previno-te. É uma mulher que só pode ser apreciada de copo na mão e
charuto na boca, depois de ter no estômago dois litros de champanha pelo menos.
Nessas ocasiões torna-se sublime! Fora disso é excêntrica, estonteada e
insuportável. Ninguém a compreende.
— Eu compreendo-a perfeitamente. É uma moça gasta
para os prazeres; ainda jovem no corpo, mas velha n'alma. Quando se atira a
esses excessos de depravação, é estimulada pela esperança vã de um gozo que lhe
foge; atordoa-se, embriaga-se e esquece um momento; depois vem a reação, o nojo
das torpezas em que rojou, a irritabilidade de desejos que a devoram e que não
pode satisfazer; nestas ocasiões tem suas veleidades de arrependimento; a
consciência solta ainda um grito fraco; a cortesã revolta-se contra si mesma.
Isso passa no dia seguinte. Eis o que é Lúcia; daqui a algum tempo o hábito
fará dela o mesmo que tem feito das outras: envelhecerá o corpo, como já
envelheceu a alma.
Sá me ouviu rindo à socapa e com malícia:
— Pois já que a compreendeste tão bem, explica-me
isto.
E apresentou-me uma carta aberta, que ao tirar do
sobrescrito deixou cair algumas notas do banco. Era de Lúcia, e dizia:
«O senhor enganou-se. Sou eu que lhe devo, e tanto,
que não lho poderei pagar nunca.:,
Senti lendo esta carta um bem-estar inexprimível.
— Que dizes? perguntou Sá. - Digo que ela fez o que
devia. -Talvez por conselho teu?
— Afirmo-te que não sabia disto; e que soubesse,
bem se importa Lúcia com os meus conselhos. Seguiu o seu próprio impulso;
arrependeu-se do que fez; e te agradece a lição. Nada mais natural.
Sá olhou-me um instante:
— Somos ambos moços, Paulo; porém sou mais velho três
anos de idade, e oito anos de Rio de Janeiro. A corte é um país onde se
envelhece depressa; por isso não te admires se falo como um homem de cinqüenta
anos. Queres te divertir: é justo, é mesmo necessário; porém não tomes Lúcia ao
sério.
— Não te entendo!
— Sabes que terrível coisa é uma cortesã, quando
lhe vem o capricho de apaixonar-se por um homem! Agarra-se a ele como os
vermes, que roem o corpo dos pássaros, e não os deixam nem mesmo depois de
mortos. Como não tem amor, e não pode ter, como a sua inclinação é apenas uma
paixão de cabeça e uma excitação dos sentidos, orgulho de anjo decaído mesclado
de sensualidade brutal, não se importa de humilhar seu amante. Ao contrário
sente um prazer novo, obrigando-o a sacrificar-lhe a honra, a dignidade, o sossego,
bens que ela não possui. São seus triunfos. Fá-lo instrumento da vingança
ridícula, que todas essas mulheres prosseguem surdamente contra a boa
sociedade, porque não as aplaude. O seu ciúme é fome apenas; se o amante tem
alguma afeição honesta, ela torna-se confidente de seus amores, encoraja-o,
serve-o mesmo, para ter o gosto de mais tarde disputar a presa. Então não há
excesso que não cometa. Se for necessário aviltar o homem, ela o fará, à
semelhança desses torpes glutões que cospem no prato para que os outros não se
animem a tocá-lo.
— Mas a que vem este sermão, Sá? As minhas relações
com Lúcia não têm nada que se pareça com o teu romance; tu me conheces bem para
saber que não há mulher no mundo capaz de me atar à cauda de seu vestido, ainda
quando fosse para elevar-me, quanto mais para arrastar-me na lama.
— Quando essa mulher é Lúcia, o próprio José devia
temer, Paulo.
— É perigosa assim? perguntei zombando.
— A mulher de Putifar foi uma pobre moça, devorada
pela concupiscência, que se atirava cega e alucinada nos braços do homem,
desejado. Era natural que a virtude chocada bruscamente repelisse o vício, como
um corpo elástico repele outro. Essa mulher não conhecia a arte da tentação. Se
ardendo em febre sensual, quando estendia a perna nua ou descobria o seio a
José, tivesse a força de olhá-lo como ao cão importuno que gira em torno do
festim a quem o conviva repele com o pé, não se passaria muito tempo sem que o
animal exasperado se lançasse sobre o osso, que o tentava, para devorá-lo, embora
soubesse que lhe atravessaria a garganta.
— Mas eu não sou José I, respondi sorrindo; e
prefiro a carne que me dão, ao osso, que me recusam.
— Por isso mesmo, bebeste o primeiro trago do vinho
provaste uma vez do fruto proibido. Já conheces o amor dessa mulher: é um gozo
tão agudo e incisivo que não sabes se é dor ou delícia; não sabes se te
revolves entre gelo ou no meio das chamas. Parece que dos seus lábios borbulham
lavas em bebidas em mel; que o ligeiro buço que lhe cobre a pele acetinada se
eriça, como espinhos de rosa através das pétalas macias; que o seu dente de
pérola te dilacera as carnes deixando bálsamo nas feridas. Parece enfim que
essa mulher te sufoca nos seus braços, te devora e absorve para cuspir-te
imediatamente e com asco nos beijos que atira-te à face!
— É verdade! disse eu lembrando-me, mas já a senti
uma vez sem esse sabor agro e corrosivo.
— Porque teu paladar se vai habituando. Só conheci
uma criatura assim e não era uma cortesã... Mas não se trata disto, atalhou Sá
como repelindo uma recordação importuna. Quando supuseres que o tédio te
invade, procurarás debalde o prazer; a mulher a mais provocante, esteja ela
possessa de vinho e de amor, te parecerá morta. Eis o perigo: terás a força de
resistir?
— Tu não resististe ?
— Com esforço; e entretanto quando a conheci, há um
ano, já tinha feito todas as minhas provas; não creio que possas dizer o mesmo.
— Mas, se Lúcia é essa mulher esquisita,
insuportável e caprichosa, ela mesma se incumbirá de curar-me.
— E se eu te disse que é essa versatilidade e
inconstância de humor que a torna mais excitante! Acrescenta que Lúcia tem
vontade de apaixonar-se por ti.
— Oh! essa é galante! Como fizeste semelhante
descoberta ?
— Esta carta! O que é que Lúcia me pode dever
daquela ceia, senão o teu conhecimento?
— Eu já a conhecia.
— De vista.
— Na frase da escritura, Sá.
— Ah!
— Estive em sua casa, quinta-feira.
— Bem: cumpri o meu dever de amigo; cumpre o teu de
homem sensato. Adeus.
Voltei de tarde à casa de Lúcia; encontrei na sala
uma das nossas companheiras de ceia. Lúcia vendo-me entrar, ergueu-se
bruscamente.
— Desculpa, Laura, amanhã passarei por tua casa, e
então conversaremos; agora não posso.
— Eu te deixo, mas acredita que não esquecerei
nunca o favor que me fizeste.
— Não vale a pena. Adeus.
— Hei de lembrar-me sempre que sem ti, não teria
amanhã onde dormir. É pequeno serviço?
— Não vês que me estás aborrecendo, Laura! disse
Lúcia batendo o pé com impaciência.
— Está bem, não quero que te arrependas do
benefício.
— Certamente me farás arrepender Sabes que eu não
gosto que me contrariem. Adeus.
Laura fitou nela um olhar surpreso, no qual passou
rapidamente a sombra de um ressentimento; mas acabou rindo-se, e saiu depois de
dizer estas palavras:
— Tu me expulsas de tua casa? Não tenho o direito
de me ofender; acabas de pagar o aluguel da minha.
A porta fechada por Lúcia bateu com tanta força que
as vidraças das janelas estremeceram.
Tinha assistido de parte a esse pequeno e vivo
diálogo, e compreendera tudo. A alusão que Lúcia fizera na noite da ceia
realizava-se; Laura recorrera a ela numa dificuldade, e acabava de receber o
benefício da mão que insultara. Inda mais, sem delicadeza para compreender o
motivo da contrariedade de Lúcia que desejava ocultar de mim a sua
generosidade, saía maculando com uma ironia grosseira a gratidão que exprimia.
O coração de uma me apareceu vil e torpe, quanto a
alma da outra se mostrava nobre, elevada e rica de sensibilidade.
Lúcia deu algumas voltas pela sala, enquanto
dominava a sua agitação, e caminhou para mim risonha, meiga, e ainda
resplandecente das cores vivas que uma cólera passageira abrira em suas faces,
como as tempestades rápidas, que atravessam a atmosfera, deixando a natureza
mais brilhante e viçosa.
— Agora é meu até?. . . e a última palavra
desfez-se num sorriso celeste. Até amanhã! E meu só.
Inclinou a fronte, que eu beijei.
Por que estavas há pouco tão zangada?
— Já não me lembro! respondeu com faceirice,
pousando a unha rosada no lugar que os meus lábios tinham tocado. Apagou tudo!
Estas horas que acabam de passar, não contam na minha vida Dormi e sonhei. Foi
o senhor que me acordou; e eu acordei rindo-me. Não viu?
— Quiseste ocultar-me; mas entendi tudo. Acabavas
de fazer um benefício à mulher que te ofendeu.
— Ela não teve culpa! Foi um despeito porque não
lhe deram a preferência: eu faria o mesmo. Demais, não era justo o que ela
disse!
— Em todo o caso é preciso muita baixeza para
pedir-se um favor à pessoa a quem se dirigiu um insulto.
— Tinha pedido antes; e nem foi o que o senhor
pensa
— Ah! Veio exigir o cumprimento da promessa feita.
— Não foi assim, não senhor. Não exigiu coisa
alguma.
— E que fazia ela aqui quando eu cheguei?
— Estava me aborrecendo.
— Estava te agradecendo.
— É o mesmo.
— E por que te agradecia? Porque lhe tinhas dado c
que veio pedir; o dinheiro para pagar o aluguel da casa.
— Que teimoso! Se estou lhe dizendo que ela não me
veio pedir nada.
— Percebo; tu lhe ofereceste espontaneamente, e ela
aceitou, porque vindo aqui não tinha outro fim.
— Meu Deus! disse com um gracioso enfado, quando eu
estou junto dele, não me lembro de outra coisa; e ele esquece-se de mim para
ocupar-se com Laura! Quer saber tudo? pois eu lhe digo. Fui eu quem lhe mandou
ontem esse dinheiro, uma ninharia; e ela veio aqui aborrecer-me e contar as
suas desgraças. Está contente ?
— Não; fizeste uma esmola, é generoso; quiseste
ocultá-la é modesto; mas esqueceste que eu devia ter a minha parte nessa boa
ação; e não te perdôo.
— Assim nunca remiria os meus pecados! E o que eu
fiz, não é tal uma boa ação; quando chegar a minha vez de precisar, ela me
dará.
— Ainda!.. . Deixarás de pedir-me a mim para pedir
a ela?
— Disse-o sem sentir! Não precisarei de nada; de
nada senão que me venha ver! Isso, fique certo que lhe pedirei todos os dias.
Tomou-me a cabeça. e reclinando-a sobre o ombro,
cobriu-me de carícias.
— Hão de lhe ter dito já que sou muito avarenta.
Não lhe enganaram, não! Sou; gosto de esconder assim o meu tesouro; de fazer
tinir docemente as minhas moedas; de contá-las uma a uma até perder a soma; de
embriagar-me como agora na contemplação de meu ouro, e estremecer só com a
idéia de perdê-lo!
Cada uma dessas palavras caía através dos beijos
amiudados que me sufocavam.
— Dizem que a avareza é um vicio; mas desse não
peço perdão a Deus, que me deu o meu tesouro, mesmo para que o escondesse do
mundo, e não expusesse a maus olhados. Portanto fique sabendo, não há de vir à
minha casa todos os dias como pensa!
Quis levantar-me despeitado. Ela obrigou-me a
sentar; e saltando ligeira sobre os meus joelhos, desfolhou no meu rosto uma
risada fresca e argentina.
— Não, senhor; não ha de vir todos os dias: Ah:
supunha ?. . .
— Tinha-me enganado; não será a última vez.
— Já está me querendo mal; pois tenha paciência. Só
há de entrar aqui duas vezes por semana: na segunda e na quinta-feira.
XI
Encontram-se nas florestas do Brasil árvores
preciosas, que, feridas, vertem em lágrimas o bálsamo que encerram.
Assim era, quando uma palavra involuntária da minha
parte ofendia-lhe a suscetibilidade e banhava-lhe o rosto do pranto, que Lúcia
me revelava toda a riqueza da sua alma.
As nossas relações duravam havia um mês; apenas
algumas ligeiras nuvens, das que achamalotam o azul da atmosfera nas tardes calmosas,
toldaram por vezes o nosso céu risonho. Mas, como brisa suave, o hálito de
Lúcia as delgaçava logo, e elas se desvaneciam com um sorriso doce e carinhoso.
Era eu que desastradamente acumulava sobre o nosso horizonte esses vapores do
meu mau humor; e era ela que os expelia, não perdoando, mas pedindo perdão da
ofensa que recebera.
A questão econômica, questão delicada em que se
chocavam o seu nobre desinteresse e a minha dignidade, havia sido felizmente
resolvida.
Tinha visto Lúcia esconder num vaso do toucador a
chave da gaveta onde guardava o seu dinheiro. Cometi a indiscrição de abrir uma
vez por semana essa gaveta, e deitar a soma que comportava com a minha fortuna
e com o luxo em que ela vivia.
A primeira vez que isso sucedeu, foi na manhã seguinte
à visita de Sé; todo o dia se passou sem a menor alteração, o que me
tranqüilizou, porque estava firmemente resolvido a não ceder. Já por diversas
vezes Lúcia tinha aberto a gaveta; era natural que houvesse percebido; e
contudo não me dissera uma palavra.
A tarde porém pareceu-me ouvir ao longe rugir a
tempestade.
— Mandei comprar um camarote!
— Se querias ir ao teatro, por que recusaste o que
te ofereci ?
— Estou tão rica hoje! Não sei o que hei de fazer
do dinheiro, respondeu sorrindo.
Veio nesse sorriso um espinho que entrou-me n'alma;
olhei-a fixamente, porém já o seu rosto estava calmo e sereno. A consciência
que eu tinha, de não ser bastante rico para essa mulher, pungia-me tanto e a
cada momento, que à menor palavra dúbia, ao menor gesto equívoco, os meus brios
se revoltavam. Farejava uma ironia até no seu próprio desinteresse, que podia
ser inspirado pelo conhecimento de minha pobreza.
Mas essa foi a última ocasião em que Lúcia deu azo
à minha desconfiança; desde então quando eu ia à gaveta do toucador, por mais
que o disfarçasse, ela adivinhava imediatamente, não sei por que secreta
revelação; e mal eu me sentava ao seu lado dizia-me com uma mansuetude e uma
gratidão sublime, apertando a minha mão ao seio:
— Obrigada!
Como explicar essa rápida e extraordinária mudança?
A mulher que dois dias antes se indignava com um oferecimento delicadamente
feito, agora não só recebia o serviço oferecido, mas o agradecia com tanta
efusão e reconhecimento! Teria nesse momento grande e urgente necessidade de dinheiro,
ou a sua primeira recusa não fora sincera?
Compreenda, se pode; quanto a mim, expliquei as
repugnâncias de Lúcia por um resto de pudor; e regozijei-me com as suas novas
disposições, que vinham poupar-nos futuros dissabores.
Desde que os meus escrúpulos desapareciam com a
posição que tomara, não havia motivo para deixar de beber a longo trago na taça
do prazer, que Lúcia me apresentava sorrindo. Passava todo o meu tempo em sua
casa e ao seu lado; conversávamos, ríamos, colhíamos as flores que a mocidade
espargia em nosso caminho; e assim corriam as horas tecidas a fio de ouro e
púrpura.
Às vezes lia para ela ouvir algum romance, ou a
Bíblia, que era o seu livro favorito. Lúcia conservava de tempos passados o
hábito da leitura e do estudo; raro era o dia em que não se distraía uma hora
pelo menos com o primeiro livro que lhe caía nas mãos. Dessas leituras rápidas
e sem método provinha a profusão de noções variadas e imperfeitos que ela
adquirira e se revelavam na sua conversação. As segundas e quintas-feiras eu
saía; mas apenas tinha comprado algumas galantarias que lhe destinava, já os
pés me pruriam para tomar o caminho de sua casa. Depois de três ou quatro horas
inutilmente desperdiçadas, voltava ao meu berço de rosas; e por mais cedo que chegasse,
sempre chegava tarde para ela, e para mim.
Lúcia tinha a poesia da voluptuosidade.
«Fazer nascer um desejo, nutri-lo, desenvolvê-lo,
engrandecê-lo, irritá-lo, afinal satisfazê-lo, diz Balzac, é um poema
completo.:> Ela compunha esses poemas divinos com um beijo, um olhar, um
sorriso, um gesto. Que de harmonias sublimes não arrancava da lira do amor com
aquelas notas de sua chave voluptuosa! E a sua beleza admirável, como a sua
graça infinita, davam sempre àqueles hinos do prazer uns retoques originais.
Entretanto devo dizer-lhe: nunca mais admirei essa
mimosa criatura no esplendor da sua beleza. A cortesã que se despira friamente
aos olhos de um desconhecido, em plena luz do dia ou na brilhante claridade de
um salão, não se entregava mais senão coberta de seus ligeiros véus: não havia
súplicas, nem rogos que os fizessem cair. As vezes e quantas, ela chegava-se
para mim corando, e começava a olhar-me com os seus grandes olhos negros, tão
afogados em languidez, que eu percebia imediatamente o turbilhão de desejos que
se agitava naquele seio ofegante. E quando a tomava nos meus braços, debatia-se
esgarçando com prazer as rendas e a escumilha, até que, rendida na luta que
provocava, caia trêmula e palpitante no meu peito.
Apesar de minhas instâncias, Lúcia recusava ir ao
teatro, sair a passeio, ou gozar de algum dos poucos divertimentos que lhe
oferecia esta insípida cidade.
— Não sei quanto tempo durará a minha felicidade; e
não quero esperdiçá-la.
— Eu te acompanharei!
— Nem eu devo aceitar esse sacrifício que o
comprometeria; nem que o aceitasse, me podia divertir. Não estaríamos sós!
Eis a situação em que nos achávamos quando uma
manhã, passando pelo hotel, achei uma carta de convite para uma partida. O Sr.
R..., a quem fui recomendado por amigos de minha província, pedia-me
encarecidamente que ao menos no dia dos anos de sua senhora lhe desse o prazer
de ver-me em sua casa. Realmente estava em falta para com a família, que apenas
visitara com um cartão, e à qual devia muitas finezas! Era ocasião de reparar a
minha descortesia.
Mostrei a carta a Lúcia:
— Deve ir, respondeu adivinhando o meu pensamento!
— Entretanto tu renuncias aos teus divertimentos
por minha causa. Por que não farei o mesmo?
— Essa partida não é só um divertimento para o
senhor, é também um dever.
— Assim queres que vá me divertir sem ti?
— Não o posso acompanhar! disse ela com uma
expressão que significava— um abismo nos separa.
Fui à partida, que esteve brilhante. Lá a
encontrei, à senhora, e à sua filha, anjo que ainda não tinha batido as asas
brancas, deixando viúvas a velhice e a infância de quem tanto amara neste
mundo. Havia moças lindas e elegantes, que tornavam a dança verdadeiro prazer,
e não sacrifício penoso, como sucede na maior parte desses saraus, em que o
convidado é apenas um instrumento de quadrilha, compasso coreográfico, que se
transforma na hora da ceia em máquina gastronômica.
A Sr.ª R..., com uma amabilidade que eu decerto não
merecia, esmerou-se em tornar agradáveis as horas que passei em sua casa:
apresentou-me a quanto havia ali de distinto pela beleza, pela inteligência e
pela virtude; e com o tato fino da mulher de salão poupava-me as banalidades
cerimoniosas das apresentações, fazendo-me entrar logo na conversação que
animava com a sua graça e os seus repentes felizes. A filha, gentil moça de 17
anos, fez-me a honra de uma contradança e de algumas voltas de valsa.
Confesso que fiquei fazendo melhor idéia das
reuniões dançantes da sociedade fluminense
Pouco tempo antes de retirar-me, vi Sá que me
acenava de uma janela da sala de jogo, onde se abrigara para fumar. Logo ao
entrar tinha-lhe falado; mas evitara a sua conversa, com receio de que me
fizesse perguntas sobre Lúcia; sentia remorder-me a consciência; e pouco
disposto a aceitar os seus conselhos, previa que eles me haviam de irritar
tanto mais, quanto seriam prudentes e razoáveis.
— Desculpa-me: vou dançar.
— A quadrilha ainda se demora, bem sabes; mas
queres
— Que idéia!
— Queres escapar-te, sim. Cuidas que sou desses
homens que perseguem os seus amigos de conselhos que nada lhes custam, porque
nem sequer dão o exemplo; e com isso julgam-se quites de todos os deveres da
amizade! Estás enganado, Paulo. Disse-te uma vez a minha opinião sobre as tuas
relações com Lúcia; fiz o que me cumpria: o resto te pertence.
— Estava tão longe de pensar nisso agora! Como tens
achado a partida? Há muito tempo não me divirto tanto!... Rostos encantadores,
toilettes de gosto, excelente serviço; nada falta!
— Deixa estes elogios aos folhetinistas em cata de
novidades. Compreendes que não te chamei para ouvir o teu juízo sobre a reunião
do Sr. R...
— E para que me chamaste então?
— Para pedir-te um conselho.
— A mim?
— De que te admiras? Porque não os dou, segue-se
que não posso pedi-los? Ao contrário!
— Vejamos que negócio importante é esse que exige o
meu voto ?
— Julgas que um amigo deva referir ao outro tudo o
que se diz a seu respeito? Vamos; a tua opinião franca!
— Julgo que é o maior serviço que possa prestar a
amizade.
— Bem. Ouve então o que dizem de ti.
— Para quê? Não dou peso à maledicência, Sá.
— Pode ser que tenhas razão; mas ouve primeiro;
depois riremos dessas parvoíces. Há aqui no Rio de Janeiro certa classe de
gente que se ocupa mais com a vida dos outros, do que com a sua própria; e em
parte dou-lhes razão; de que viveriam eles sem isso, quando têm a alma oca e
vazia? Essa gente já sabe quem tu és, que fortuna tens, quanto ganhas, onde
moras e como vives.
— É fácil saber; não tenho que ocultar, mercê de
Deus.
— Estou convencido que poderias habitar a casa de
vidro de Catão; mas infelizmente não a habitas; e portanto o mundo não vê
justamente o que a tua modéstia esconde por detrás das paredes, isto é, o lado
nobre e honroso da tua vida. O resto está patente.
— Mas ainda uma vez, Sá, o que pretendes com isso?
Que me importa o que pensam a meu respeito? Não tenho reputação a perder.
— Mas tens reputação a ganhar. És amante de Lúcia,
há um mês; e eu te conheço, sei que estás te sacrificando. Entretanto, como
Lúcia não aparece mais no teatro, não roda no carro mais rico, e já não esmaga
as outras com o seu luxo; como a Rua do Ouvidor não lhe envia diariamente o
vestido de melhor gosto, a jóia mais custosa, e as últimas novidades da moda;
sabes o que se pensa e o que se diz? Que estás sacrificando Lúcia. . . que
estás vivendo à sua custa!
O primeiro ímpeto de minha indignação caiu sobre
Sá, em quem se encarnava o insulto vago e anônimo; cometia um excesso, se o seu
olhar franco e leal não me fizesse entrar em mim.
— Então! Não te ris dessa estúpida calúnia?...
Tomas isto ao sério?
— Dize-me o nome de um só dos infames que se ocupam
com a minha vida. O teu dever, já que assim o chamaste, o exige, e eu te peço!
— O nome?... É o mundo, a gente, a sociedade! Vai
tomar-lhe satisfações.
— Mas tu ouviste de um homem?
— Que ouviu de outro e outro. Procura numa árvore a
folha que gerou e nutriu a vespa que te morde?
Sá tinha razão. Senti a impotência do homem contra
a calúnia impalpável que esvoaça e zune e ferroa como a vespa, e escapa nas asas
à raiva e desespero da vitima É a fábula do leão e do mosquito. Mas o que então
se passou em mim lhe parecerá incrível: a minha cólera precisava desabafar-se
contra alguém, e na impossibilidade de dar um corpo àquela injúria atroz, levei
a ingratidão até encarná-la em Lúcia, causa inocente do que sucedia. Ela tinha
razão quando temia que as nossas relações fossem conhecidas, e quando fazia
tudo por escondê-las, como se escondem à sombra as flores delicadas que o vento
fresco ou o sol ardente crestam e matam.
Sai bem decidido a pôr um termo à situação
vergonhosa e humilhante em que me achava colocado. As palavras de Sá me
queimavam os ouvidos. Eu vivendo à custa de Lúcia, eu que esbanjava a minha
pequena fortuna por ela! Mas as calúnias tinham razão em um ponto; não exibia a
minha amante como um traste de luxo, ou um manequim da moda; roubava o bem que
lhes pertencia, visto que não era milionário para ter o direito de possuí-lo
exclusivamente.
Não me dei ao trabalho de procurar o meu tílburi e
parti a pé; precisava agitar-me.
Um vulto de mulher passou rapidamente. Ao voltar a
esquina, encontrei-o parado. Chegou-se a mim e ergueu o véu. Reconheci Lúcia.
— Divertiu-se muito? perguntou-me com interesse.
— Oh, muito; nem fazes idéia!
— Eu vi! disse timidamente.
Não compreendi.
O que viste?
Vi-o dançar, passear na sala com as moças;
acompanhei-o de longe toda a noite. Estava defronte, escondida por detrás das
cortinas.
Havia em face da casa do Sr. R... um miserável
botequim, onde ela alugara um quarto a fim de passar a noite vendo-me. Era
sublime de delicadeza, e contudo esta prova de afeição, que em outra
circunstância me comoveria, pareceu-me uma perseguição insuportável, e esteve
quase fazendo transbordar a minha cólera concentrada.
— Não gosto nada destas extravagâncias, que dão em
resultado comprometer-me.
— Ninguém me conhece ali; e não podem adivinhar o
que me trouxe. Agora mesmo, se a rua não estivesse deserta, me animaria a
falar-lhe? Fique certo de uma coisa: não há nada neste mundo que eu deseje
tanto como vê-lo; e me privaria desse prazer se ele pudesse trazer-lhe um
dissabor.
— Com que fim vieste a essa casa? Não posso sair
uma noite sem que me veja espiado! Hás de confessar que não é muito agradável;
se pensas que é este o meio de me prender, estás completamente enganada.
Aprecio muito a minha liberdade; deves te lembrar que entre nós não existem
compromissos.
— Nem um decerto!
— Portanto não temos que espiar-nos um ao outro.
— Perdoe-me: fiz mal, não o farei nunca mais.
Calei-me.
— Diga-me ao menos que não está agastado!
— Boa-noite!
Lúcia precipitou-se para impedir-me o passo; vi um
instante brilhar na sombra o seu olhar cintilante, mas logo deixou pender os
braços, curvando a cabeça: — O coração me adivinhava! O Sá!... Continuei o meu
caminho. Era a primeira noite, depois de um mês, que passava no hotel, e longe
de Lúcia; como me achei só no deserto da nova existência que ia começar!
XII
Meio-dia a dar no sino das torres, e eu entrando em
casa de Lúcia.
Tinha refletido: essa amizade não podia continuar;
se havia de desatar mais tarde, depois de me ter feito curtir mil dissabores,
bom era que cessasse desde logo. Não julgue porém que estava resolvido a
separar-me por uma vez de Lúcia; minha coragem não chegava a tanto. O que eu
desejava era demitir de mim um titulo que me esmagava na minha pobreza, o
titulo de amante exclusivo da mais elegante e mais bonita cortesã do Rio de
Janeiro.
Ela recebeu-me com brandura. Tinha os olhos rubros
e pisados de lágrimas; apertando minha mão, beijou-a Que pretendia ela exprimir
com esse movimento! Seria a imagem viva da humilde fidelidade do cão, afagando
a mão que o acaba de castigar?
Estivemos muito tempo sem trocar palavra.
Enfim Lúcia fez um esforço, sorriu como se nada
houvesse passado, e veio sentar-se nos meus joelhos, acariciando-me com a
ternura e a graciosa volubilidade que ela tinha quando o júbilo lhe
transbordava d'alma. Aproveitei o momento para alijar o peso que desde a
véspera me acabrunhava.
— Sabes que eu não sou rico, Lúcia!
Seu olhar luminoso penetrou-me ate os seios d'alma
para arrancar o pensamento que inspirava essas palavras; respondeu com um
pálido sorriso:
— Pensava ao contrário que era muito rico!
Pois pensaste mal. Sou pobre, e não posso sustentar
o luxo de uma mulher como tu.
— Acha pouco o que me tem dado!
— O que dei não vale a pena de ser lembrado.
Falemos do que devia dar, e não pude, porque não tinha. Neste mês que se
passou, a tua vida não foi tão brilhante como era antes.
— Por que eu não quis, e não porque me faltasse
coisa alguma. Nunca me achei tão rica como agora.
— Não tens sido vista nos teatros e passeios; já
não tens um carro; não és enfim a mulher do tom que eu ainda conheci!
Aborreci-me de tudo isto!
— Não te podes aborrecer sem que o mundo repare!
— Como! Não sou senhora de viver a meu modo, desde
que com isso não faço mal a ninguém? Se apareço, é um escândalo; se fico no meu
canto, ainda se ocupam comigo.
Que queres! Há certas vidas que não se pertencem,
mas à sociedade onde existem. Tu és uma celebridade pela beleza, como outras o
são pelo talento e pela posição. O público, em troca do favor e admiração de
que cerca os seus ídolos, pede-lhes conta de todas as suas ações. Quer saber
por que agora andas tão retirada; e não acha senão um motivo.
— Qual? perguntou Lúcia com ansiedade.
Supõe que eu te sacrifico aos meus ciúmes; e não me
perdoa. porque não sou bastante rico para ter semelhantes caprichos.
— É isso que o incomoda! Meu Deus! Fique
descansado: terei carro, aparecerei como dantes! Hoje mesmo!... Verá! Não sabe
quanto me custa esse sacrifício; mas um só beijo me paga com usura!
Estalou o lábio entre os meus.
— Precisava dele para me dar coragem; agora sinto
me forte.
— Aonde vais? perguntei retendo-a.
— Vou mandar a cocheira ver o meu carro; escrever à
Gudin que me faça ama dúzia de vestidos os mais ricos; dizer ao caixeiro do
Wallerstein que me traga para escolher o que ele tem de melhor em modas
chegadas ultimamente! É verdade, esquecia-me de mandar tomar uma assinatura no
teatro lírico, e encomendar uma nova parelha de cavalos. A minha caleça já está
usada; preciso trocá-la por urna vitória, e renovar o fardamento tios criados
Ate à noite tenho tempo para tudo. O Jacinto se incumbirá de uma parte das
comissões.
Olhei para Lúcia; ou está louca, ou zomba de mim,
foi a minha primeira idéia, ouvindo a sem-cerimônia e o desplante com que ela
decretava um orçamento de despesa que faria estremecer o mais pródigo
financeiro.
— Espera, Lúcia!
— Ainda não é bastante? Que hei de fazer mais? disse
com um gesto de cômico desespero. Ah! Mandarei arranjar de novo a minha casa, e
darei um baile! Que diz!
— Farás o que for do teu gosto!
— Do meu!..
— Goza da tua mocidade, é justo: tu podes e deves
fazer; mas como só eu venho à tua casa e todo o mundo sabe que não sou
milionário, compreendes que, se isto continuasse, suspeitariam, diriam mesmo,
se já não disseram, que vivo à tua custa'
Lúcia ficou lívida; tinha compreendido
— Então não posso dar-me a quem for de minha
vontade? — Quem diz isso? Eu é que não te posso aceitar por semelhante preço. A
custa da honra... é muito caro, Lúcia!
— Ah! esquecia que uma mulher como eu não se
pertence; é uma coisa pública, um carro da praça, que não pode recusar quem
chega. Estes objetos, este luxo, que comprei muito caro também, porque me
custaram vergonha e humilhação, nada disto é meu. Se quisesse dá-los, roubaria
aos meus amantes presentes e futuros; aquele que os aceitasse seria meu
cúmplice. Esqueci, que, para ter o direito de vender o meu corpo, perdi a liberdade
de dá-lo a quem me aprouver! O mundo é lógico! Aplaudia-me se eu reduzisse à
miséria a família de algum libertino; era justo que pateasse se eu tivesse a
loucura de arruinar-me, e por um homem pobre! Enquanto abrir a mão para receber
o salário, contando os meus beijos pelo número das notas do banco, ou medindo o
fogo das minhas carícias pelo peso do ouro; enquanto ostentar a impudência da
cortesã e fizer timbre da minha infâmia, um homem honesto pode rolar-se nos
meus braços sem que a mais leve nódoa manche a sua honra; mas se pedir-lhe que
me aceite, se lhe suplicar a esmola de um pouco de afeição, oh! então o meu
contato será como a lepra para a sua dignidade e a sua reputação. Todo o homem
honesto deve repelir-me!
Impetuosas como a torrente que borbota em cachões,
ardentes como as bolhas d'água em plena ebulição, essas palavras se
precipitavam dos lábios de Lúcia, em tropel e quase sem nexo. Às vezes de tão
rápidas que vinham lhe tomavam a respiração, e parecia que a estrangulavam. Até
que por fim um soluço cortou-lhe a voz; o seio ofegou como se o coração lhe
quisesse saltar com o último grito de indignação de sua alma ofendida.
Que responder àquela lógica inflexível da paixão
fazendo justiça aos prejuízos sociais? Nada. Calei-me, irritado contra os
estímulos nobres que recebemos na infância e não nos permitem praticar
cientemente um ato de que devamos corar.
— Tu me fazes arrepender da minha franqueza, Lúcia!
disse passado um momento. Preferias que deixasse de ver-te?
— Não! Antes assim! O senhor quer... Será feita a
sua vontade! Terei amantes!
Saiu arrebatadamente e fechou-se no toucador.
Voltei, refletindo se o que tinha feito era
realmente uma ação digna, ou uma refinada cobardia; servilismo à inveja e
malevolência social, que se decora tantas vezes com o pomposo nome de opinião
pública.
Às três horas da tarde passando pela Rua do Ouvidor
vi Lúcia na casa do Desmarais, cercada por uma grande roda, na qual eu
distingui logo o Sr. Couto e o Cunha.
Lúcia estava rutilante de beleza; a sua formosura
tinha nesse momento uma ardentia fosforescente que eu atribuí à irritação
nervosa da manhã. O orgulho e o desprezo vertiam-Ihe de todos os poros, nos
olhos, nos lábios, nas faces e no porte desenvolto. Ela flutuava numa atmosfera
maléfica para o coração, que, entrando naquela zona abrasada, sentia-se
asfixiar. A roda elegante festejava o astro que surgia, depois do seu eclipse
passageiro, mais que nunca brilhante.
Atirando a réplica viva e incisiva a todos os
adoradores que a cortejavam; escarnecendo da fineza, e fazendo ressaltar a
zombaria contra o que a lançara, Lúcia, com a mesma liberdade que teria em sua
casa, continuava a escolher na grande exposição de objetos de fantasia que
cobria os balcões.
Que sentimento me obrigava a parar na loja para
seguir com os olhos essa mulher, à posse exclusiva da qual eu acabava de
renunciar? Que motivo estranho, vendo-a agora cercada de apaixonados, me fazia
sofrer, a mim que não havia duas horas tinha assistido friamente à explosão
violenta da sua cólera?
Lúcia me viu, porém não me deu atenção. Dirigiu-se
ao Couto; trocando com ele algumas palavras em segredo, voltou para o caixeiro
e declarou que comprava os objetos apartados, cujo preço lhe seria enviado no
dia seguinte.
Vendo o gesto significativo do Couto ao dono da
loja, como eu, todas as pessoas presentes ficaram persuadidas que da bolsa do
velho saía o dinheiro que ela acabava de atirar a mancheias de uma a outra
ponta da Rua do Ouvidor.
Felizmente para mim, que já não me podia conter, o
suplício terminou. Ela retirava-se. Passando junto de mim cortejou-me, e disse
em vez baixa:
— Está satisfeito?
O sorriso em que ela envolveu estas palavras, caiu,
se me posso assim exprimir, como a dobra de uma mortalha; tal foi a súbita
lividez que lhe cobriu o rosto, e o desanimo que abateu o seu corpo.
O Couto apressou-se a oferecer-lhe a mão para
ajudá-la a entrar no carro.
— Até logo! disse-lhe ela bem alto.
Podia-me restar a menor dúvida? Lúcia era amante do
Couto.
Enquanto acompanhava com os olhos a cortesã
desprezível que se balançava lubricitante no seu novo carro, insultando com o
luxo desmedido as senhoras honestas que passavam a pé, sabe de que me lembrei?
Não foi da ceia em casa de Sá, nem do mês que acabava de passar; foi unicamente
da suave aparição da Rua das Mangueiras no dia da minha chegada. São
extravagâncias da memória. Quem conhece o fio misterioso que leva o pensamento
através do labirinto do passado a uma lembrança remota?
— Rei morto, rei posto! disse-me o Cunha, que
chegara à porta para ver Lúcia entrar no carro.
— Não sei a que se refere!
— Referia-me, Sr. Silva, continuou apontando para o
carro que ainda aparecia, àquele trono de sedas e veludos que vagou esta manhã,
e que uma hora depois já estava preenchido.
— Enganou-se, Sr. Cunha, respondi no mesmo tom de
gracejo, fui apenas regente durante uma curta vacância.
— Pois não é isso o que se dizia.
— O que se dizia então? repliquei tornando-me
sério, porque as palavras de Sá me acudiram ao pensamento.
— Dizia-se que o senhor mudara o sistema de governo
daquele estado, e sucedera na qualidade de autocrata aos reis constitucionais,
como eu tive a honra de sê-lo em certo tempo.
— O que entende por autocrata, Sr. Cunha?
— Perdão: vejo que toma ao sério um gracejo. Mudes
de assunto; não desejo ofendê-lo.
O Couto, que nos ouvia de principio, interveio na
conversa.
— A significação da palavra é bem clara, Sr. Silva,
disse .n o seu fátuo sorriso.
— Se o Sr. Couto quisesse fazer-me o favor de
explicá-la Tenho a inteligência embotada.
O velho calou-se com visível embaraço. Continuei
pesando as minhas palavras:
— O senhor quer talvez lembrar-me que os autocratas
têm o costume de tiranizar os povos e vexá-los de imposições; razão por que os
povos, quando os expulsam, se tornam excessivamente exigentes para com os
truões que lhes sucedera. Não é isto? Diga-me por obséquio: não faz idéia da
ansiedade com que procuro desde ontem um homem que tenha a coragem de
repetir-mo em face!
— Ora, o senhor está brincando!
E o Sr. Couto fez-me uma profunda cortesia, e saiu
empertigando-se mais que de costume.
Voltei-me para o Cunha.
— Bem dada lição! disse estendendo-me a mão.
Decididamente não havia meio de brigar; o homem que
eu procurava fugia-me como uma sombra.
XIII
À noite, quando dei por mim, subia as escadas de
Lúcia. Se alguém me perguntasse o que ia fazer, ficaria bem embaraçado para
responder e bem admirado da pergunta.
Tinha passado o resto do dia a atordoar-me, a fazer
esforços inúteis para expelir da idéia uma lembrança que me afligia; à noite
não pude resistir: senti uma necessidade invencível de ver aquela mulher, que
eu já aborrecia.
Tinha-a eu amado para ter o direito de odiá-la.
Lúcia estava no toucador, acabando de vestir-se. A
minha entrada lhe causou alguma surpresa. O acolhimento que me fez foi triste,
mas doce e afável.
— Cometi uma indiscrição talvez, usando da
liberdade que me deu outrora.
— Quem fez do presente um passado já tão remoto?
Não fui eu! Mas fique certo que esta casa, hoje, como ontem, como amanhã, não
tem para o senhor nem portas, nem paredes.
— Renuncio de bom grado a tanta honra; prefiro
esperar no topo da escada, a correr o risco de uma surpresa ridícula para
ambos.
Lúcia fitou-me por muito tempo, e chegou-se ao
espelho para dar os últimos toques ao seu traje, que se compunha de um vestido
escarlate com largos folhos de renda preta, bastante decotado para deixar ver
as suas belas espáduas, de um filó alvo e transparente que flutuava-lhe pelo
seio cingindo o colo, e de uma profusão de brilhantes magníficos capaz de
tentar Eva, se ela tivesse resistido ao fruto proibido. Uma grinalda de espigas
de trigo, cingia-lhe a fronte e cala sobre os ombros com a basta madeixa de
cabelos, misturando os louros cachos aos negros anéis que brincavam.
Estava excessivamente pálida, e a cor escarlate do
vestido ainda lhe aumentava o desmaio; os olhos luziam com ardor febril que
incomodava, e os lábios se contraíam num movimento que não era riso nem ânsia,
mas uma e outra coisa. Entretanto nunca essa mulher me pareceu tão bela; a
idéia de que ela se enfeitava para outro homem irritava-me a ponto que estive
para precipitar-me e espedaçar, arrancando-lhe do corpo, as galas que a cobriam.
— Ainda não a felicitei pelo seu novo amante!
— Quem não tem o direito de escolher, aceita o
primeiro que lhe chega; e o mais ridículo é sempre o melhor.
— É naturalmente para ele que está se pondo tão
bonita!
— Acha que estou bonita? perguntou com o sorriso
que deve ter o condenado para o Sol nascente que vem alumiar o seu suplício.
— Nunca a vi tão fascinadora, nem vestida com tanto
primor. Ele merece.
— Dizem que outrora ornavam-se as vítimas para o
sacrifício.
— Isso foi outrora; mas hoje que os sacrifícios são
incruentos, a vítima orna-se para o sacrificador; também em vez do sangue
daquela, é o ouro deste que corre nas aras consagradas ao prazer.
Lúcia quis responder-me, mas reprimiu-se a tempo de
sorver a palavra que já lhe espontava no lábio. Foi uma coisa que notei desde
que começaram as nossas relações: esse espírito mordaz e cintilante, esse verbo
rápido que não deixava sem resposta nem um motejo, se ofuscava sempre e
emudecia diante de mim.
— Pode-se saber onde vai, se não é segredo?
Dirige-se talvez ao templo do sacrifício.
— Vou ao Paraíso.
Tão alheio andava eu deste mundo fluminense! Nem
sabia que naquela noite havia um baile público.
— Ah! vais ao baile! Então não se demore; são
horas.
— Estou à espera de alguém.
— Diga do Sr. Couto; já não é segredo. E agora me
lembro, a minha presença aqui pode comprometê-la; eu me retiro.
— O senhor está na minha casa; não a chamo sua para
não ofendê-lo.
— Ou para que não me venham tentações de ficar.
— Quem lhe impede?
— Deveras!... Seria agradável para a senhora deixar
um paciente em casa contando as horas, enquanto vai ao baile exibir a sua nova
conquista, e arrular pombinhos nalgum hotel de Botafogo. Na volta esse paciente
pode servir para apagar o fogo que as brumas do inverno apenas sopraram.
Infelizmente por mais inocente que seja esse pequeno manejo, não estou disposto
a prestar-me a ele.
— Que gosto tem em me estar assim torturando! O
senhor sabe que por mais cruel que seja a sua zombaria, não sei retorquir-lhe!
Não quer que eu saia de casa? Basta-lhe dizer uma palavra!
— E a senhora ficaria?
— Duvida!
Com um movimento rápido, Lúcia correu a mão pelos
cabelos, e o penteado desfez-se como por milagre, deixando cair a grinalda aos
pés e rolar as tranças pelas espáduas.
Ouviu-se rumor de passos na sala.
— Não faça isto!. . . Aí está o Couto; ele vai
ficar furioso e com razão! Pode dar algum escândalo! disse escarnecendo.
A um sinal de sua senhora, a escrava de Lúcia abriu
a porta ao Couto, que entrou sem me ver.
— Ainda neste estado!. . . Se eu adivinhasse, tinha
trazido o cabeleireiro para penteá-la.
— Não se precisa aqui desta gente! murmurou
Joaquina
— Pois faz a tua obrigação, penteia tua senhora; e
se andares depressa, terás uma boa molhadura.
— Não vou ao Paraíso! disse Lúcia friamente.
— Como, minha amiga! Que capricho é este! O baile
deve estar brilhante. O que há de mais chibante na corte lá se achará esta
noite. Faze idéia! Venderam-se todos os bilhetes ! Tão cedo não teremos outro
baile como este! Bem sabes que são raros no Rio de Janeiro.
— Prefiro ficar em minha casa. O Sr. Silva toma chá
comigo; estaremos sós e conversaremos mais à vontade!
Foi então que o Sr. Couto me viu sentado no sofá;
desta vez não me cumprimentou. Era demais.
— Então é esse o motivo por que não vai ao baile! E
foi para isso que me mandou chamar e me fez acompanhá-la esta manhã pela Rua do
Ouvidor? O meio é engenhoso! Finge-se um arrufo, e põe-se o amor em leilão a
quem mais der.
— Uma infâmia de mais ou de menos para quem já
perdeu a conta, vale a pena que se ocupem com ela? Não vou ao teatro, repito; e
peço-lhe que me deixe tranqüila.
O Couto fez um gesto soberbo, e uma saída teatral.
Tinha assistido mudo e com aparente indiferença a
esse incidente; mas que rápida sucessão de sentimentos houve no meu coração! À
vaidade de ver Lúcia ceder pronta e espontaneamente a um desejo meu apenas
suspeitado, sucedeu o prazer da humilhação do Couto em minha presença. Depois,
quando o velho libertino revelou o procedimento vil da cortesã, e esta com toda
a desvergonhez apanhou a lama em que patinhava para lançá-la ao seu parceiro,
senti, com o asco e o vexame de achar-me ligado a tanta miséria, um consolo
imenso das torturas que sofrera naquele dia. Esses dois entes são dignos em do
outro, murmurou minha alma ao coração ainda magoado.
Mas restava uma última emoção. Reatar as relações
que bradas dessas duas criaturas; entregá-las uma à outra com' presas
destinadas a saciar a cupidez e a lascívia uma da outra jungir o vício ardente
e moço, ao vício enregelado e decrépito fazê-los arrastar na mesma canga a
crápula ignóbil, ferroando-os com o aguilhão do meu sarcasmo: seria a minha
vingança.
Vingança de quê ? Tinha-me essa moca ofendido para
assanhar em mim o ódio e os instintos perversos do coração humano? Não era eu a
causa única de tudo o que se passava.
A razão dormia naquele momento. Ordenei à escrava
que chamasse o Couto em nome da senhora; e o fiz com tanto império que ela
obedeceu-me apesar do gesto de Lúcia.
Então voltei-me para esta:
— Agradeço-lhe muito a fineza; mas é um sacrifício
que não tem o direito de fazer, e que eu não terei decerto o desfaçamento de
aceitar. Esta noite a senhora não se pertence: é um objeto, um bem do homem que
a vestiu, que a enfeitou e cobriu de jóias, para mostrar ao público a sua
riqueza e generosidade.
— A mim?... exclamou Lúcia indignada, e continuou
com sorriso amargo: Pois sim, roubei-o! E ele deve agradecer-me; porque assim
leva a honra intata!
— A senhora vai ao baile!
— Morta podem levar-me; viva não.
— Então expulsa-me da sua casa Sabe o que esse
velho palhaço, que é hoje seu amante, pensava esta manhã, sem ter a coragem de
o dizer? Que eu a havia desfrutado corpo e bens durante as nossas relações, e
por isso era tempo da senhora indenizar-se do prejuízo! Não basta! t: preciso
que ele pense ainda que este pretendido arrufo foi um expediente engenhoso da
minha parte para encher o cofre que esgotei!
Lúcia não me respondeu uma palavra; com a mesma
vivacidade que pusera em desfazer o seu penteado, arranjou-o de novo sem
alinho; e voltou-se para mim de olhos baixos e submissa, como uma escrava que
esperasse a última ordem do senhor.
Que miserável animalidade havia em mim naquela
noite ! Quando essa pobre mulher atingia o sublime do heroísmo e da abnegação,
eu descia até à estupidez e à brutalidade!
— Pois realmente capacitou-se de que eu podia ter
ciúmes de um Couto! Que extravagância! Nem dele, nem de qualquer outro! Era
preciso que tivesse um ciúme bem elástico para poder abarcar todos os que a
senhora distinguiu e há de distinguir com os seus favores! Fique sossegada:
virei alguma vez colher a minha flor; mas em ocasião que não perturbe os seus
bucólicos amores. Então me contará os ridículos de seu velho amante, e
afianço-lhe que passaremos uma hora divertida, rindo-nos à custa do próximo:
salvo bem entendido, a cada um de nós o direito de rir-se interiormente do
outro.
— Duas vezes no mesmo dia! É muito, meu Deus!
exclamou Lúcia tragando um soluço.
O Couto entrava morno e carrancudo.
— A senhora arrependeu-se; e está pronta a
acompanhá-lo ao baile.
— E ao senhor é que devo agradecer esta resolução
repentina ?
— O senhor. . . O senhor só tem que me agradecer
uma coisa: é a minha paciência. Quanto ao baile, a senhora é livre, e eu não
tive parte nem na sua recusa de há pouco, nem na sua aceitação de agora.
— Se assim não fosse, rejeitaria o favor.
— Pois saiba que vou a esse baile, disse Lúcia,
unicamente porque o Sr. Silva me ordenou; e devo obedecer-lhe.
O Sr. Couto procurou o lenço e não acertou com o
bolso da casaca.
— Não se esqueça de deitar uni pouco de carmim!
disse eu a Lúcia despedindo-me. Está horrivelmente pálida.
Ela sorriu.
— Não faz mal! Julgarão que passei a noite de ontem
nalguma orgia! Faz seu efeito!
Nesse momento a mucama lhe apresentava as luvas e o
leque, o mesmo do nosso primeiro encontro, e que ela costumava trazer sempre.
Lúcia recuou como se uma áspide a quisesse morder.
— Esse não!
Cuida que a minha raiva brutal ficou satisfeita?
Entrei no baile aspirando no ar um faro de sangue.
E verdade, tinha frenesi de matar essa mulher; porém matá-la devorando-lhe as
carnes. sufocando-a nos meus braços, gozando-a uma ultima vez, doixando-a já
cadáver e mutilada para que depois de mim ninguém mais a possuísse.
Ela lá estava sempre bela, sempre radiante. Júbilo
satânico dava a essa estranha criatura ares fantásticos e sobrenaturais entre
as roupas de negro fescarlate.
Junto dela descobri a Nina, que, apesar da sua
graça, desaparecia completamente naquela zona que Lúcia deslumbrava com a sua
reverberação. Mas eu que via com os olhos do despeito, percebi-a imediatamente.
Nina sabia das nossas relações f ignorava ainda o
desenlace muito recente As minha. pretensões deviam pois ter para ela o encanto
que acha toda a mulher em afligir outra que lhe é superior pela graça e
formosura; assim explicam-se os avanços de amabilidade que me fez, à custa de
algum crédulo e paciente admirador; deu-me uma entrevista em sua casa depois do
baile.
Mas esse favor, discretamente concedido, não me
servia; era preciso que mais alguém o soubesse.
— Então, uma hora depois do baile? disse eu alçando
a voz.
— Sim; mas segredo! respondeu Nina levando o dedo à
boca.
— Estará só? perguntei para mais fazer ainda ouvir
a minha fala.
Nina fez um momo gracioso; os ombros de Lúcia
agitaram-se com um tremor nervoso.
Não conheço mais estúpido animal do que seja o
bípede implume e social, que chamem homem civilizado.
Na véspera era feliz. Estava numa brilhante
reunião, onde se achavam talvez as mais bonitas senhoras do Rio de Janeiro.
Observando-as com o culto do belo e a religião da mulher, que é inata em mim,
conhecia que em graça e atrativos não tinha que invejar ao mortal ditoso a quem
elas abandonassem um dia os primores de sua mocidade. Mais linda que todas, uma
mulher me esperava, que em troca da pureza que não tinha, me guardava seus
imensos tesouros de voluptuosidade; ela me esperava cheia de mim; e para não
deixar-me um instante, me acompanhara de longe com os olhos através do mundo
que fechara-lhe as suas portas.
Bastou uma palavra, um sentimento de convenção,
para que o meu orgulho destruísse a felicidade que as suas mãos delicadas
tinham tecido com tanta paciência e esmero. E como remate da minha demência,
depois de haver torturado aquela pobre mulher, depois de a ter insultado
cobardemente, acabava de entregá-la a um velho histrião, para agarrar-me à
fralda da primeira saia que passava pelo meu caminho. E eu considerava isto a
minha vingança!
Como tinha razão o poeta que chamou o homem um
menino corpulento— puer robustus!
XIV
Foi uma noite horrível.
O baile terminara às duas horas. Lúcia assistira
até o fim, o que ainda mais me irritou, porque eu desejava triunfar com a sua
saída precipitada, depois do desprezo que lhe mostrara. «Se ela se retirasse,
pensava eu, correria à sua casa para pedir-lhe perdão». Mas não acredite que o
fizesse: procederia com o mesmo orgulho estúpido que me dominou no momento em
que ela despediu o Couto e renunciou ao baile para ficar comigo.
Na retirada o velho esperava-a na porta, e partiram
ambos de carro.
— Está acabado! disse comigo. Não pensemos mais
nisto.
Porem não era coisa fácil apagar no meu espírito a
profunda impressão que aí deixara gravada a imagem de Lúcia. Tomei o braço do
Rochinha, que encontrei ao sair, e fomos cear no primeiro hotel que encontramos
aberto. Em qualquer outra ocasião esse moço me enjoaria com a sua afetada
decrepitude moral; nesse momento era um homem que podia falar-me de Lúcia e
dizer mal dela.
Com efeito o Rochinha contou-me diversas anedotas
escandalosas da vida de Lúcia; e concluiu dizendo:
— Não acredito ainda que esse Diógenes do Couto
seja seu amante.
— Ouvi-a confessar esta noite mesmo. Saíram juntos
do baile.
— Pois admira-me; porque há muito tempo que ele a
persegue debalde. Lúcia tinha-lhe tal birra, que no dia em que o via, ficava de
um humor insuportável.
— São coisas que passam. O velho abriu os cordões
da bolsa; e o motivo da antipatia desapareceu.
— Pode ser que ela esteja agora em crise
financeira; mas asseguro-lhe que a questão não era de dinheiro, não. O Couto,
como todos os velhos gamenhos que compram o amor, à hora certa, é mais que
generoso, é pródigo; vi-o oferecer a Lúcia somas fabulosas que ela rejeitava
sempre e com desprezo.
Essas palavras me consolaram. Uma débil esperança
espontou-me no coração; corri à casa de Lúcia.
A porta ainda estava aberta; Lúcia não tinha
voltado! eram perto de três horas e meia, naturalmente estava em casa do Couto.
Pus-me a passear na calçada; ao surdo rodar de um
carro que passava longe, aplicava o ouvido para conhecer se ele se aproximava;
o rumor se desvanecia e com ele minha esperança, para ressurgir de novo, e de
novo extinguir-se. Nestas alternativas sem repouso vi os primeiros clarões do
dia.
Dirigi-me tristemente para o hotel e dormi, porque
a fadiga me vencia.
Eis qual tinha sido a minha noite; o acordar não
foi menos cruel. Sucede com as feridas d'alma o mesmo que às feri das do corpo;
é quando elas esfriam, que a dor se torna aguda e lancinante. Lembrei-me do que
sucedera; repassei uma a uma as circunstâncias do dia anterior; reconheci a
minha grosseira imbecilidade; e a consciência de que eu tinha sido o mais culpado,
devia dizer o único, exacerbava o meu sofrimento.
E essa pobre moça, a Nina, inocente da minha
loucura, que talvez por meu respeito perdera o seu amante? Era a primeira vez,
desde que a deixara, que me recordava dela. Devia-lhe uma desculpa; e como não
tinha outra coisa que fazer, aproveitei esse pretexto para sair.
Pensava, chegando à casa de Nina, encontrar um
rosto fechado, um momo despeitado, e um bom dia atirado da ponta de um beiço
desdenhoso. Qual não foi portanto a minha surpresa vendo-a precipitar-se para
mim, abraçar-me com ímpeto, e atirar-me de repente pela testa e pelo rosto uma
chuva de carícias que me azoou.
Afinal consegui desprender-me dos braços que me
enlaçavam; ia pedir uma explicação, quando Nina atalhou-me:
— Estou muito zangada com o senhor! disse com um ar
que exprimia inteiramente o contrário. Fazer-me esperar até não sei que horas!
— Confesso que cometi uma falta; mas há de me
desculpar.
— Ah! Cuida que a pulseira que me mandou paga o
prazer de sua companhia! Enganou-se!. .
— A pulseira! balbuciei sem compreender.
— É linda que faz gosto. Não há segunda: a Lúcia
não tem melhor. Também o senhor nem sabe como lhe agradeço.
E um novo granizo de beijos ia cair sobre mim; mas
desta vez desviei-me a tempo.
— Está gracejando! Que quer dizer isto?
— Ora, faça-se desentendido! Já não se lembra de
que me mandou pelo seu criado esta manhã?
Julguei que a moça tinha perdido a cabeça, ou que
eu sofria uma mistificação.
— Ah! percebo! exclamou Nina que de seu lado também
me considerava com surpresa. Queria achar-me com. ela! Tem razão.
Saiu e logo voltou trazendo um cartão meu e uma
caixa de jóia que eu abri precipitadamente. Tinha reconhecido a pulseira de
brilhantes que dera a Lúcia no dia seguinte à ceia do Sá.
Entrei no primeiro tílburi que passou, e atravessei
as ruas a galope.
Lúcia estava atirada a um sofá de bruços nas
almofadas que escondiam-lhe o rosto. Tinha o mesmo vestido de seda escarlate
que levara ao teatro, porém amarrotado, com as rendas despedaçadas e os colchetes
arrancados da ourela, onde se viam os traços evidentes das unhas. Os cabelos em
desordem flutuavam sobre as espáduas nuas; a grinalda despedaçada, o leque e as
luvas jaziam por terra; numa cadeira ao lado estavam amontoadas todas as suas
jóias.
Vendo-me, ergueu-se de um salto e quis
precipitar-se para mim; porém decerto o meu olhar cru a conteve, porque
deixou-se cair sentada sobre o sofá em que estava. Sentei-me também, e
incomodado; viera com uma cólera violenta; mas começava a sentir-me mau e pequeno
diante dessa mulher sublime nas suas paixões. O seu rosto pisado, os olhos
injetados de sangue e febricitantes ainda aumentaram o meu vexame.
Peguei maquinalmente nas jóias que estavam sobre a
cadeira.
— Estas jóias são de muito valor!... Mas falta aqui
uma, a mais insignificante! Não era digna por certo de brilhar no seu braço;
atirou-a de esmola a alguma mendiga, e deu uma lição ao bobo que teve a ousadia
de oferecer-lhe semelhante miséria. Aquilo quando muito, é o preço de uma noite
de qualquer mulher à-toa, da Nina por exemplo.
Ela tinha-se erguido trêmula; e foi-se a pouco e
pouco retraindo até cair de joelhos.
— Foi uma loucura, e eu mereço toda a sua cólera.
Mas para que me fazer penar assim, meu Deus! Que prazer lhe podia dar essa
mulher?. . . Não me tinha a mim? Uma escrava humilde, pronta para lhe obedecer,
e que em paga de tanta submissão só lhe pedia que a não expulsasse!
— E a senhora não chamou um velho desprezível para
sua casa?
— É tão diferente! Eu! Não fui atirada contra minha
vontade à lama de que desejava erguer-me? Recuando ainda, não fui à noite
repelida cruelmente e lançada nos braços desse homem, que no meu desespero eu
procurei, por ser mesmo o ente mais vil e ignóbil que eu conheço; pois era
preciso que o suplício fosse bastante violento para matar-me logo, e sem lenta
agonia! No baile, apesar de tudo, não esperei uma palavra, um sinal para correr
a seus pés, e suplicar-lhe como agora o meu perdão!
Lúcia pousou a cabeça sobre os meus joelhos,
sufocada pelo pranto; e eu não a ergui logo e não a apertei ao meu seio, porque
achei-me tão infame a par dessa mulher, que sentia um vexame insuperável. Por
fim levantei-a nos meus braços, e confesso que foi corando de vergonha.
— Quem deve pedir perdão desta como de todas as
vezes, Lúcia, sou eu: mas não o mereço, não.
— Basta! Já me falou como outrora! Disse o meu
nome! Que mais quero eu saber? Esqueci tudo.
— Deixa-me falar; não me interrompas. Sou um
miserável, indigno de ti. Eu só com o meu orgulho estúpido fui causa do que
temos sofrido; mas é justo que a punição recaia sobre mim unicamente. Se a
idéia de que tive um instante aquela mulher, te aflige, expele a lembrança
desse mau sonho; pisei em sua casa pela primeira vez hoje, há meia hora. Vi a
pulseira, compreendi tudo, e corri até aqui!
Que êxtase de bem-aventurança foi o de Lúcia quando
ouviu a confissão que eu lhe fazia! A mulher quebrada de fadiga, prostrada por
uma noite de vigília e de violentas emoções, transfigurou-se de repente: o anjo
de suave beleza surgiu na sua auréola luminosa, ao bafejo de uma felicidade
celeste.
— Passei esta noite, continuei, cheio de teu
pensamento e de tua imagem. Às duas horas estive aqui, não te disseram?
Esperei-te passeando na calçada até quase ao amanhecer; e as torturas que eu
sofri é impossível dizer. Mas eu a procurei; não me posso queixar de ti, não
tenho que pedir-te contas! Fui eu que te arrastei à força, louco que eu estava.
— Não fale mais nisso! Acabou; foi um pesadelo que
tivemos. Esqueça tudo! Eis o que vai apagar para sempre essa lembrança
importuna.
Dizendo isto Lúcia estendeu-me o lábio risonho; eu
recuei como se visse por entre o carmim brilhar o dente de uma víbora. Ela
empalideceu.
— Nunca mais, eu juro, Lúcia, tu me ouvirás as
palavras que ontem te disse; nunca mais também me verás rejeitar por causa das
calúnias de alguns miseráveis as provas de tua afeição. Mas esse beijo,
agora!…não me perguntes a razão!
Não! não o posso aceitar; e Lúcia cobriu-me com um
olhar límpido, raio de luz de sua alma; o seu sorriso era sublime de candura.
— Aquele homem não tocou no meu corpo, porque até a
mão que roçou na sua, estava calçada com esta luva, que eu já despedacei, disse
estendendo a ponta do pé. Mas tem razão, bastava o seu hálito para manchar.
Olhe para mim. Quando eu despir esta roupa, despirei trapos que para nada
servem!
Foi então que reparei na desordem de seu traje.
— Não me enganas, Lúcia?
— Que juramento quer que lhe dê? O mais sagrado!...
Se não fosse assim, teria animo de falar-lhe, de
vê-lo ainda! Também eu, não sabe? Estive na rua até quase ao amanhecer, olhando
a casa onde supunha que o senhor apertava nos braços outra mulher! Não se morre
de dor, porque eu não morri esta noite!
— Não me devias dizer semelhante coisa para me
punir!
Fui eu que procurei então o lábio que ela há pouco
me oferecera.
— Espere!...
Lúcia demorou-se algum tempo. Quando apareceu, saia
do banho fresca e viçosa. Trazia os cabelos ainda úmidos; e a pele rorejada de
gotas d'água. Rica e inexaurível era a organização dessa moça, que depois de
tão violento abalo parecia criar nova seiva e florescer com o primeiro raio de
felicidade!
Fora o acaso ou uma doce inspiração, que arranjara
o traje puro e simples que ela trazia? Tudo era branco e resplandecente como a
sua fronte serena: por vestes cassas e rendas; por jóias somente pérolas. Nem
uma fita, nem um aro dourado, manchava essa nítida e cândida imagem. Creio
antes na inspiração. Lúcia tinha no coração o germe da poesia ingênua e
delicada das naturezas primitivas, que se revela por um emblema e por uma
alegoria. Ela me dizia no seu traje, o que nunca se animaria a dizer-me em
palavras, que estava tão pura como eu a tinha deixado, do contato de outro
homem.
Lúcia expandia-se com tal efusão de contentamento,
que, se há felicidade neste mundo, devia ser a que ela sentia. Entretanto,
passada essa primeira e fugace irradiação, achei-a fria, quase gelada; apenas
respondia às minhas carícias ardentes e impetuosas. Naquele momento atribui à
prostração natural depois de tão fortes emoções; porém me enganava.
A frieza continuou aumentando de dia em dia, até
que uma vez não me pude conter:
— Parece-me que já te aborreceste de mim, Lúcia!
— Creio que estou doente! sofro tanto!
— De quê? Dessa moléstia do coração de que já me
falaste ?
Fugiu-lhe pelos lábios um sorriso sinistro.
— Sim; dessa moléstia do coração que me há de
matar!
E então, como para desvanecer a impressão que me
deixara a sua frieza, atirava-se aos meus braços com uma espécie de frenesi;
mas a sua ternura tinha um desabrimento e rispidez que me lembravam as palavras
de Sá, e as impressões acres da primeira vez que possuíra esta mulher.
A minha Lúcia dos bons dias, que aveludava-se no
estreito enlace com que me cerrava ao seio, que diluía-se de gozo engolfando-me
num mar de voluptuosidades, que aspirava-me a vida num beijo para vazá-la de
novo e gota a gota: essa, eu só revia nas minhas doces recordações; porque a
realidade fugia-me, quando a buscava com desespero.
Esqueci-me de lhe contar um incidente que se passou
na mesma manhã da nossa reconciliação. Quis sair um momento para ir pagar as
dívidas que Lúcia fizera na véspera.
— Já estão pagas! me respondeu sorrindo e mostrando
os recibos.
— Por quem? perguntei com severidade.
— Por mim! Quem, senão eu, tinha o direito de
pagá-las?
— Mas ontem o Couto te acompanhava...
— O senhor queria que eu tivesse amantes! disse
Lúcia entristecendo. Mandei chamar esse velho. Não sabe por quê?... Antes
queria dar-me a um escravo, do que vender-me a ele por todo o ouro deste mundo!
— E a tua pulseira? Ficarás sem ela?
— Psiu! fez Lúcia levando o dedo à boca e baixando
a voz. Não fale mais nisso! Deixa-a ir; queimava! Ficou-me a sua lembrança!
Tirou então o adereço de azeviche que eu lhe tinha
dado.
— Apareceu enfim!
— Não se lembra do motivo?... Agora já não preciso
escondê-lo! Vale os brilhantes que perdi.
Desde então realmente a sua predileção por aquelas
jóias tornou-se uma espécie de fetichismo para esse coração, que por muito
tempo ermo e vazio, sentia ardente sede de afeição.
XV
Decorreram vinte dias.
Chegando uma tarde vi Lúcia assustar-se e esconder
sob as amplas dobras do vestido um objeto que me pareceu um livro.
— Estava lendo?
— Não, estava esperando-o.
— Quero ver que livro era.
Meio à força e meio rindo consegui tomar o livro
depois de uma fraca resistência. Ela ficou enfadada.
Era um livro muito conhecido— A Dama das Camélias.
Ergui os olhos para Lúcia interrogando a expressão de seu rosto. Muitas vezes
lê-se não por hábito e distração, mas pela influência de uma simpatia moral que
nos faz procurar um confidente de nossos sentimentos, até nas páginas mudas de
um escritor. Lúcia teria, como Margarida, a aspiração vaga para o amor?
Sonharia com as afeições puras do coração?
Ela tornou-se de lacre sentindo o peso de meu
olhar. - Esse livro é uma mentira!
— Uma poética exageração. mas uma mentira, não!
Julgas impossível que uma mulher como Margarida ame?
— Talvez; porém nunca desta maneira ! disse
indicando
— De que maneira?
— Dando-lhe o mesmo corpo que tantos outros
tiveram. Que diferença haveria então entre o amor e o vício? Essa moça não
sentia, quando se lançava nos braços de seu amante, que eram os sobejos da
corrupção que lhe oferecia? Não temia que seus lábios naquele momento latejassem
ainda com os beijos vendidos ?
O amor purifica e dá sempre um novo encanto ao
prazer. Há mulheres que amam toda a vida; e o seu coração, em vez de gastar-se
e envelhecer, remoça como a natureza quando volta a primavera.
— Se elas uma só vez tivessem a desgraça de se
desprezar a si próprias no momento em que um homem as possuía; se tivessem
sentido estancarem-se as fontes da vida com o prazer que lhes arrancavam à
força da carne convulsa, nunca mais amariam assim. O amor é inexaurível e
remoça, como a primavera; mas não ressuscita o que já morreu.
— Pelo que vejo, Lúcia, nunca amarás em tua vida!
— Eu?... Que idéia! Para que amar? O que há de real
e de melhor na vida é o prazer, e esse dispensa o coração. O prazer que se dá e
recebe é calmo e doce, sem inquietação e sem receios. Não conhece o ciúme que
desenterra o passado, como dizem que os abutres desenterram os corpos para
roerem as entranhas. Quando eu lhe ofereço um beijo meu, que importa ao senhor
que mil outros tenham tocado o lábio que o provoca ? A água lavou a boca, como
o copo que serviu ao festim; e o vinho não é menos bom, nem menos generoso, no
cálice usado, do que no cálice novo. O amor!. . . O amor para uma mulher como
eu seria a mais terrível punição que Deus poderia infligir-lhe! Mas o verdadeiro
amor d'alma; e não a paixão sensual de Margarida, que nem sequer teve o mérito
da fidelidade. Se alguma vez essa mulher se prostituiu mais do que nunca, e se
mostrou cortesã depravada, sem brio e sem pudor, foi quando se animou profanar
o amor com as torpes carícias que tantos haviam comprado.
Lúcia falou com uma volubilidade nervosa. Às vezes
o rosto se tornava sombrio e torvo para esclarecer-se de repente com um raio de
indignação, que cintilava na pupila; outras, a sua palavra sentida e apaixonada
estacava no meio da vibração, afogando num sorriso de desprezo.
— E houve um homem que aceitasse semelhante amor?
— Ele também a amava; e certamente não pensava como
tu.
— Mas é impossível amar uma mulher que se compra, e
se tem apenas a desejam! A menos que não se ame por especulação e cálculo para
obter-se de graça o que não se pode pagar.
— Seria uma infâmia! Não dês a isto o santo nome do
amor.
— E podemos nós ser amadas de outro modo? Como?
Arrependendo-nos, e rompendo com o passado? Talvez o primeiro que zombasse da
mísera fosse aquele por quem ela desejasse se regenerar. Pensaria que o
enganava, para obter por esse meio os benefícios de uma generosidade maior.
Quem sabe?... suspeitaria até que ela sonhava com uma união aviltante para a
sua honra e para a reputação de sua família. Antes mil vezes esta vida, nua de
afeições, em que se paga o desprezo com a indiferença! Antes ter seco e morto o
coração do que senti-lo viver para semelhante tortura.
— Está bem: deixemos em paz A Dama das Camélias. Nem
tu és Margarida, nem eu sou Armando.
— Oh! juro-lhe que não!
Esse juramento teve uma solenidade que me pareceu
caricata. Ou porque o percebesse, ou por uma das inexplicáveis transições que
lhe eram freqüentes, Lúcia soltou uma gargalhada.
— Realmente este livro não presta. Nem quero
acabá-lo. Cometeu-se aí um sacrilégio literário.
As folhas desse primor da escola realista voaram
despedaçadas pelas mãos crispadas de Lúcia, que parecia antes estrangular uma
víbora, do que rasgar o livro inocente que tivera a infelicidade de irritar-lhe
o humor.
Tinha ido levar a Lúcia um bilhete de teatro, que
ela aceitou. As nossas relações tinham-se modificado insensivelmente, depois do
choque violento que sofreram.
Há de ter visto em nossas matas algumas árvores
estreitamente abraçadas pelas delgadas enrediças que lhes cingem o tronco,
confundindo na mesma copa as suas folhas e flores. Um dia vem a borrasca que
abala com rudeza o arvoredo: não conseguem os ímpetos da ventania quebrar os
elos que prendem as duas plantas amigas; porém a enrediça deslizando inclinou
para a terra. Volta a bonança: a seiva expande-se com as águas que passaram; o
pâmpano tocando o chão começa se lastrar; a haste da árvore desassombrada se
lança. No ano seguinte, quando de novo por aí passar, verá o tronco nu e
isolado, e o verde dossel bordado de flores que o cobria se estenderá ao longe
humilde e rasteiro.
É a imagem fiel do que nos acontecera. O mundo
soprando o seu hálito frio na intimidade de nossa existência não tinha podido
separar Lúcia de mim; porém o estame delicado de sua vida desprendeu-se do meu
seio, onde ela o escondera e abrigara. A flor mimosa de sua alma talvez
sentisse que a sombra das ramas ia faltar-lhe contra os sóis abrasadores, como
a proteção do tronco contra os vendavais. E inclinou-se, langue e desfalecida.
Eu, que a devia erguer, não o fiz, porque também sentia o mundo que me impelia;
as aspirações do futuro me chamavam à vida de estudo e trabalho.
Involuntariamente pois, sem queixas nem
recriminações, apenas com uma doce saudade dos tempos que fugiam rápidos, ambos
cedíamos a uma lei natural, e víamos afrouxarem os laços que nos uniam. Lúcia,
sempre meiga e terna para mim, não podia já esconder a frieza com que recebia 0
gozo que outrora era a primeira a provocar. Quando as minhas instâncias
redobravam, ela, que a princípio se expandia entre o rubor, sorria constrangida
como uma escrava submissa ao aceno do senhor.
Eu assistia em silêncio a essa transformação.
Algumas vezes tentava ainda soprar naquelas cinzas para ver se ateava uma chama
do intenso fogo que lavrara ali; mas esmorecia, porque já o frio me ia
invadindo; e só colhia as pálidas rosas que ainda espontavam breves e rápidas
como flores de chuva. Contudo, ou por um doce hábito, ou por uma misteriosa
influência do passado, preferia a frieza dessa mulher aos transportes de
qualquer beleza; guardava-lhe sem sacrifício, como sem intenção, uma fidelidade
exemplar.
Não se admire pois se eu lhe disser que já não ia
todos os dias à casa de Lúcia, apesar de suas instâncias; contudo sentia que a
minha presença ainda lhe era agradável, e que ela a desejava, senão
ardentemente, com uma doce emoção. Parecia que o prazer fugindo deixava a
amizade calma e serena.
Qual era a existência de Lúcia durante o tempo que
não passava em sua casa? Ignorava completamente; tinha até receio de
conhecê-la; quando nalgum circulo a conversa caía sobre ela, de ordinário me
retirava. Adivinha a razão. Lúcia não tinha compromissos para comigo; devia usar
de sua liberdade; se eu lhe havia guardado uma fidelidade espontânea, não tinha
por isso direito de exigir retribuição, sobretudo depois que minhas visitas se
tornavam mais curtas e menos freqüentes.
Contei-lhe tudo isto a propósito do teatro, onde
nos devíamos encontrar.
Lá estava a família do Sr. R. . . a quem fui
cumprimentar apenas caiu o pano. A mãe, absorvida por uma velha titular, que
lhe contava maravilhas do teatro 3. João, depois de acolher-me com a sua
costumada amabilidade, deixou-me à filha, que estava desesperada por achar um
cúmplice para a inocente critica feminina. Não tendo nada que me ocupasse,
entretive-me mais tempo do que era natural com essa conversa, que não deixava
de ser agradável para quem aprecia como eu a botânica da flor viva, gênero
zoófito, que se chama mulher. A menina as vezes debruçava-se para comunicar-me
alguma observação mais cáustica; e eu tinha ocasião de sentir um hálito
fragrante, e entrever na sombra a marmórea saliência de um seio virgem.
Saindo vi sentada na porta do seu camarote uma das
poucas lorettes de Paris, que por um belo dia de inverno, como verdadeiras aves
de arribação, batem as asas, atravessam o Atlântico, e vêm espanejar-se ao sol
do Brasil nas margens risonhas da mais bela baía do mundo. Ela tinha e tem,
comi a cor da Espanhola e os cabelos da Italiana, a suprema elegância do passo
e da atitude que o solo parisiense inocula pelas plantas de suas filhas
prediletas. Admirava e conhecia essa mulher de a ter encontrado algumas vezes,
mas as nossas relações não passavam de uma polidez mútua.
Vendo-a, tive como um pressentimento de que essa
mulher era a única que poderia apagar a lembrança de Lúcia. Levado por
semelhante idéia, e também por esse desejo que temos todos de tocar com o ciúme
o ouro de uma afeição, a fim de lhe conhecer o quilate, aproximei-me:
conversamos alguns instantes.
Não sei se a senhora achará prazer na leitura
destas cenas sem colorido, estirado diálogo entre dois atores, raro
interrompido pelo mundo, que lhes atira um eco de seus rumores. Já tenho tido
vezes de arrependimento depois que comecei estas páginas, que eu podia tornar
mais interessantes, se as quisesse dramatizar com sacrifício da verdade: porém
mentiria às minhas recordações e à promessa que lhe fiz de exumar do meu
coração a imagem de uma mulher.
Fui ver Lúcia. Ela estava pensativa e distraía-se
continuamente para fitar o óculo na direção do camarote do R... Nem uma palavra
a respeito da francesa, o que me contrariava, como deve supor.
— Ainda há pouco te vi de um camarote!
— Onde está uma família?
— Não, de outro mais chegado à cena, disse
sorrindo.
— Sei, também o vi na porta.
— E uma bonita mulher, não achas? repliquei
fingindo indiferença, mas realmente humilhado pela calma e sossego de Lúcia.
— Não conheço nem uma no Rio de Janeiro, nem mais
bonita, nem mais graciosa. Merece todas as atenções de que a cercam.
— Estive conversando com ela; achei-a muito
agradável. Se não tivesse receio de desgostar-te, iria vê-la.
Lúcia calou-se e levou o binóculo aos olhos. Era
demais; nem sequer um despeito simulado. A consciência de sua infidelidade a
pungiria tanto que se reconhecia indigna até de fingir ciúmes? Ou desejava ela
ver romper-se o último véu que ainda nos ocultava a ambos a realidade de uma
afeição partida?
— Sabes o provérbio, Lúcia. Quem cala consente.
— Como! Não ouvi! disse-me retirando o óculo e
voltando-se para mim com a expressão lesa de quem procura apreender uma idéia
no vácuo da memória.
— É indiferente para ti que eu veja aquela
francesa! O teu silencio é claro!
— Tenho acaso o direito de me queixar? disse com
melancolia. O prazer que ela lhe promete, sinto que já não posso dá-lo.
— Porque não queres; porque já não és a mesma'
— Não decerto, não sou a mesma! Mudei tanto!
— Para mim unicamente!
Ela fitou-me com um olhar ingênuo. Hoje que me
lembro da expressão desse olhar leio nele perfeitamente: <<Vive no mundo
alguém mais?>> Era a frase muda de seus olhos.
Lúcia ergueu de novo o binóculo.
— Aquela família com quem esteve não é a mesma que o
convidou para a partida? A filha é muito bonita! O senhor dançou com ela!
XVI
Dias depois estava em casa de Lúcia; conversávamos
tranqüilamente como dois bons amigos num momento de expansão.
Ela me contara vagamente, sem indicação de datas
nem de localidades, as impressões de sua infância passada no campo entre as
árvores e à borda do mar; seu espírito adejava com prazer sobre essas
reminiscências embalsamadas com os agrestes perfumes da mata, e por vezes a
poesia da natureza fluía no seu ingênuo entusiasmo.
Pela primeira vez também, desde o momento em que a
conhecera, Lúcia se mostrara curiosa a respeito do meu passado, de minha
família, e de minhas ambições de futuro. Até então só conhecia de mim o meu
nome e a minha pessoa; nem mostrava desejar mais. Os meus sentimentos, a minha
vida íntima era um mundo em que se julgava profana, e no qual não ousava ou não
queria mesmo penetrar.
Já tinha por vezes refletido nessa abstenção, a
qual aparentemente denotava que Lúcia só estimava em mim o homem exterior; o
moço que encontrara num dia de desenfado, e que lhe agradara pela figura, pelos
modos, ou antes por capricho seu. Pouco lhe importando saber donde vinha e para
onde ia esse companheiro de viagem, unira-se a ele para amenizar, durante o
tempo que seguissem o mesmo rumo, os incidentes do caminho e a solidão do
pouso.
Naquele dia, pois, satisfazendo o seu desejo,
falei-lhe pela primeira vez do meu verdadeiro eu; das minhas esperanças, das
minhas afeições, dos meus sonhos. Ela ouvia tudo com evidente interesse: o nome
de uma pessoa querida por mim, ou de parente ou de amigo; uma data de família;
uma localidade que fora teatro de algum dos pequenos acontecimentos da vida;
tudo se gravara tão rápida e profundamente no seu espírito, que as suas
observações não pareciam de quem acabava de ouvir, mas de quem acompanhara dia
por dia os fatos que eu lhe contava. Identificando-se com a minha alma, graças
à admirável flexibilidade do senso íntimo da mulher, ela sentia e comovia-se,
recordando as minhas afeições; e nutria-se das minhas ambições, sonhando com
elas, e dourando-as aos reflexos de sua rica imaginação.
Lúcia trazia nessa manhã um traje quase severo:
vestido escuro, afogado e de mangas compridas, com pouca roda, simples
colarinho e punhos de linho rebatidos; cabelos negligentemente enrolados em
basta madeixa, sem ornato algum. Em vez dos pantufos aveludados que costumava
usar em casa, no desalinho, calçava uma botina de merinó preto, que ia-lhe
admiravelmente, porque ela tinha o mais lindo pé do mundo. Quando o vento que
entrava pela janela erguia indiscretamente a fímbria da saia, apesar do
movimento rápido que a conchegava, descobria-se a volta bordada de uma calça
estreita, cerrando o colo esbelto da perna divina.
O homem é um sistema de contrariedade.
As confidências mútuas, as expansões d'alma
despegada do seu invólucro material, o recato austero do traje que ocultava
belezas criadas para viver em plena luz e ao ar livre, como as flores do
trópico, deviam alhear-me os sentidos. Mas bem longe disso, no fim da nossa
conversação remordiam-me as recordações. Meu olhar insinuava-se perfidamente
pela abertura do colarinho modesto que cingia uma garganta pura,
espreguiçava-se pela seda avara que entufava a marmórea rijeza de um seio
comprimido; enleava-se nas pregas fofas que quebravam a harmonia das formas.
Tomei as mãos de Lúcia sorrindo, e meus olhos foram
à porta vendada de sua alcova. Ela ergueu-se rapidamente, e disse-me com um
modo ríspido:
— Vou sair!
Era a primeira recusa que eu sofria.
O constrangimento de Lúcia tinha ido sempre em
aumento; mas nunca, até ali, o meu desejo encontrara uma resistência; nunca uma
desculpa, um pretexto, o contrariara. Ainda pronta para sair, no momento de
entrar no carro, já no teatro ou no passeio, bastava uma palavra minha para
fazê-la voltar, muda e fria, é verdade, mas obediente e resignada. Em qualquer
ocasião, a qualquer hora do dia ou da noite, se meu lábio procurava o seu,
achava-o, seco e áspero, mas dócil à carícia.
— A que horas voltas?
— Não sei; é natural que me demore.
— Até à noite, então
A noite, quando voltei, queixava-se de uma
indisposição. Repeliu-me ainda; só abracei um corpo convulso e gelado que me
assustou; sobretudo quando, levando as mãos à cabeça, soltou um gemido
plangente e doloroso.
Estava realmente doente; respeitei-a. As nove
horas, apesar de minhas instâncias para ficar velando-a na sua enfermidade,
obrigou-me a sair, e disse-me adeus sem acrescentar, como tinha de costume:
— Até amanhã.
Era também a primeira vez que a minha presença
parecia contrariá-la. De manhã soube que o seu incômodo se agravara durante a
noite. Achei instalada em sua casa, como enfermeira, uma tal Sr.ª Jesuína,
mulher de cinqüenta anos, seca e já encarquilhada, com quem embirrei
solenemente desde o momento em que a vi. Essa insuportável criatura não deixava
um momento a borda do leito; e quando alguma vez eu tomava as mãos de Lúcia, ou
reclinava-me para ela, quando meus lábios iam roçar a flor de seu rosto, a Sr.ª
Jesuína tinha sempre um remédio a dar, um travesseiro a endireitar, uma
recomendação a fazer.
Um dia retirando-me, a velha acompanhou-me até a
sala; aí no meio de biocos e gatimanhos, deu-me a entender que o médico
proibira terminantemente a Lúcia o menor excesso, que lhe podia ser fatal.
— Mas qual é a moléstia de Lúcia?
— Não me recordo; esses nomes de medicina são tão
esquisitos! A moléstia agora não vale nada; amanhã está de pé; e num mês pode
ficar inteiramente boa. Somente nada de excesso!
A velha carregou na palavra, piscando os olhos
pequeninos.
— Pode custar-lhe a vida' acrescentou.
— Qual é o médico que trata dela?
— Um tal... Não me lembro agora. Mas é bom doutor.
— A que horas costuma vir?
— Não tem hora certa. Quando o senhor chegou, tinha
saído.
— Onde mora?
— Nem sei! Ele disse; porém já me esqueci!
Desejava falar ao médico para saber com certeza o
estado de Lúcia; não o consegui porém. No dia seguinte já encontrei Lúcia na
sala, ainda abatida, mas sem sofrimento algum.
Decorreu uma semana. Lúcia tinha-se restabelecido completamente;
continuávamos as nossas longas conversas de outrora, mas não a sós. A Sr.ª
Jesuina ficara a título de caseira ou dama de companhia; encontrava-a
invariavelmente repimpada numa cadeira de balanço, a dois passos de Lúcia,
lendo uma coleção de novelas em que brilhavam Zaíra, e os Azares da Fortuna. Se
alguma vez Lúcia se levantava, a Sr.ª Jesuína atirava com um movimento da
cabeça os óculos de tartaruga sobre a ponta do nariz, e seguia-a para lhe
perguntar se queria um refresco, um banho, o jantar, a roupa para sair, ou
qualquer outra coisa.
Afinal não me pude ter.
— Já estás boa, Lúcia; não precisas mais de
enfermeira. Que faz aqui esta velha?
— Faz-me companhia. Vivo tão só!
— Outrora a minha companhia te bastava.
Não me respondeu.
— Manda-a embora!
— Não é possível preciso dela, mesmo para o arranjo
da casa.
— Bem; como eu não a posso suportar, não voltarei
enquanto ela aqui estiver.
A Sr.ª Jesuína tinha ouvido, o que me era
completamente indiferente. Lúcia abaixara a cabeça e ficara pensativa; ao
retirar-me, quando me apertava a mão, disse:
— Não a encontrará mais!
De fato no outro dia não encontrei a Jesuína. Lúcia
estava só; todos os obstáculos e contrariedades que sofria depois de duas
semanas, me tinham irritado creio Que fui até violento e grosseiro; mas
debalde. A resistência era tenaz e friamente calculada. Um momento. enquanto se
debatia nos meus braços, o egoísmo cruel que às vezes faz do homem uma fera, e
lhe dá instintos carniceiros, levou-me a dizer-lhe com escárnio:
— É a recomendação do médico ? Tens medo de
adoecer!
— Se fosse isso! Ainda quando soubesse que morreria
nos seus braços... Que morte mais doce podia eu desejar. Não; não é esse o
motivo. Não houve tal recomendação, nem aqui veio medico. Repugna-me enganá-lo
tudo foi uma mentira daquela mulher.
— Não estiveste doente? perguntei admirado.
Tive uma ligeira indisposição. Naquele dia em que
saí, andei muito e apanhei bastante sol; quando voltei. tinha dores de cabeça
horríveis. O senhor chegou. .. E naquele momento cuidei que ia ter uma
vertigem. Mas passou.
E a que veio a história daquela velha?
Lúcia perturbou-se e a custo balbuciou esta
explicação:
— Chamei esta mulher para junto de mim porque tinha
medo de estar só com o senhor.
— Ah!
— Ela inventou a mentira, de que eu não gostei; mas
não tive animo de desenganá-lo!
— E por que receias estar só comigo, Lúcia?
Ela hesitou; por fim prorrompeu-lhe a voz do seio
arquejante:
— Porque não posso fazer-lhe a vontade... Não!
Sofro horrivelmente!
— Isto quer dizer que eu te incomodo vindo aqui
— Ao contrário, meu Deus! É a única alegria que
tenho neste mundo. Dê-me esse consolo! Venha conversar comigo! Todos os dias! .
. .
— Tenho agora muito que fazer; estou tratando de
estabelecer-me. A tua conversa é bastante agradável, mas falta-me o tempo.
— E nos domingos ? . . .
— Ora Lúcia, sejamos francos. Melhor é confessares
que eu te importuno. Já sabia disso; não me dirias nada de novo.
Quer saber o que respondeu?
— Se lhe incomoda vir aqui, eu irei vê-lo.
— Para conversar?...
Deixou pender a cabeça abatida.
— Para isso, continuei, não se incomode. li, até
favor não ir; porque vendo-a não me saberei dominar, e posso causar-lhe algum
horrível sofrimento.
— É justo! Servi apenas para matar um desejo! E
hoje nem para isso!.. .
Ainda voltei uma vez à casa de Lúcia.
Era natural; à medida que eu sentia essa criatura
desapegar-se de mim, agarrava-me a ela com a ânsia do náufrago. Suspeitava que
Lúcia tinha um amante. Queria desenganar-me; o acaso favoreceu-me.
Vi entrando na sala um objeto que pela sua novidade
atraiu logo a minha atenção. Era um elegante vaso de cristal cor de leite,
representando uma tuberosa; a flor que lhe servia de bocal ostentava uma
camélia soberba; o ciúme, que é instinto e faro da paixão, descobriu logo entre
o pé do vaso e o mármore do consolo a ponta de uma carta em papel rosa.
Lúcia teve um sobressalto quando entrei. Podia ser
um assomo de alegria, por me ver depois de três dias de ausência; podia ser
também um movimento de contrariedade. Atribui ao segundo motivo.
— Estavas esperando alguma pessoa?
— Já ninguém me visita.
— Por que razão?
— Os meus antigos amantes se enfastiaram de mim!
disse com voz amarga.
— Virão novos! Já eles se anunciam! respondi
indicando a camélia. É naturalmente pela pessoa que te mandou esta flor, que
esperas.
Lúcia ergueu os olhos surpresos e pareceu ver pela
primeira vez o vaso e a camélia.
— É um lindo presente com efeito! disse ela
chegando-se ao consolo. E uma flor tão bonita não tem perfume!...
Levantando o vaso, descobriu a carta que eu
entrevira, e que ela passou-me sem ter rompido o fecho.
— Leia.
Corri os olhos pela carta; era do Cunha; insistia
com Lúcia para aceitar o seu amor, oferecendo-lhe as condições mais brilhantes
que poderia desejar uma mulher na sua posição. Enquanto lia, ela se aproximara
da janela.
— Ah! que pena! exclamou rindo.
O vaso e a flor acabavam de despedaçar-se nas
pedras da calçada. Lúcia tomou-me a carta das mãos e sem ter rasgou-a
friamente.
— Não desconfie; desse menos que de qualquer outro.
Já foi meu amante; uma noite vi sua mulher, que ele abandonava por minha causa,
triste e pensativa. Desde esse momento deixou de existir para mim.
Lembra-se do que me dissera o Cunha no teatro? Era
assim que caluniavam essa moca; porque também ela punha sobre o coração a
máscara do capricho.
Tínhamos esquecido o Cunha e falávamos de outras
coisas.
— Decididamente, Lúcia, não queres mais saber de
mim?
— Eu!... Se é preciso, suplico-lhe de joelhos que
me venha ver!
Abanei a cabeça.
— Se tens um amante e desejas guardar-lhe
fidelidade, é diferente; podemos ficar amigos e ver-nos ainda de vez em quando.
Mas para satisfazer um capricho pueril! Não estou disposto.
— Então se eu tivesse um amante, faria o que eu lhe
peco ? Viria ver-me ?
— Nesse caso haveria um motivo justo, que eu
respeitaria.
— Pois bem; eu tenho!
— Um amante?
— Sim!
— Quem é ele?
— Não sei. Ainda não tenho; mas terei amanhã; hoje,
se quiser.
— Agora mesmo! Serei eu!
— Oh! não!
— Bem vês que não passa de um capricho. Já me
tinham falado dessa tua excentricidade. Gostas de fechar a porta aos teus
amantes, quando eles menos esperam; talvez para puni-los do prazer que lhes
deste! É uma vingança!
— Aqueles que lhe falaram assim tinham razão; mas
nenhum, fique certo, se queixará de o ter eu enganado.
XVII
Havia mais de quinze dias que já não ia a casa de
Lúcia; tinha-a encontrado três ou quatro vezes na rua, e não lhe falara: fingia
não vê-la.
A princípio custou-me não ceder àquele doce hábito;
mas convencido como estava de que essa mulher zombava de mim, e queria ver-me
representar o ridículo papel de amante titular, ou honorário, satélite de um
astro que brilha para outros! paciente caudatário que as cortesãs gostam de
trazer por orgulho e vaidade, revesti-me de coragem, e quebrei de uma vez com
essas relações. O tempo e remédio soberano; os dias correram; a pouco e pouco
fui-me resignando à. separa ao.
Tinha aproveitado a minha liberdade para me
preparar à vida séria. Mudara-me do hotel, e tomara um primeiro andar na Rua da
Assembléia. As passadas necessárias para fazê-lo mobiliar e arranjar. as
compras de arranjos domésticos tinharn feito uma poderosa diversão que muito
concorreu para fortalecer-me na resolução que havia tomado
Contudo a lembrança de Lúcia não se apagava: eu
vivia ainda das recordações da felicidade que ela me dera; e quando saía
afagava sempre a esperança de encontrá-la. Se isto sucedia, apesar de minha
aparente indiferença, sentia uma emoção que achava ridícula e não podia dominar.
A conversa do Rochinha, ou do Cunha, me era agradável, porque dava ocasião de
saber notícias dela. Uma vez me disseram que Lúcia saía freqüentemente, e
passava todos os dias pela Rua do Ouvidor; a idéia de que ela o fazia para ter
ocasiões de me ver consolou-me.
Uma manhã lia os jornais sobre a mesa do almoço,
esperando que me servissem, quando o moleque prorrompeu na sala com o ar
espantado, com que correria a anunciar-me que tínhamos fogo em casa.
— Está aí uma moça!
— Uma moça! repeti com um batimento de coração.
— O rosto dela está coberto com véu; mas eu vi!. .
. muito bonita, sim senhor!
Quem podia ser senão Lúcia ? Não me enganei.
Avistando-me roçagou o véu, e disse com um triste sorriso:
— Resisti enquanto pude: não tenho mais forças.
Estou pronta para tudo.
— Para tudo? perguntei sorrindo.
— Já que é preciso para vê-lo!
— Com que ar dizes isto! Se e um sacrifício,
renuncio.
— E continuará a fugir-me? Passará por mim sem
olhar-me. Não; não é um sacrifício. Preferia que nos víssemos de outra maneira;
mas não é possível! O senhor quer; e o meu maior prazer não é fazer-lhe todas
as vontades?
— Vamos almoçar; passarás hoje o dia comigo.
— Só com uma condição.
— Qual será essa condição que eu não aceite para
ter o prazer de possuir-te um dia inteiro ?
— É... que não há de ser hoje! disse ela
enrubescendo.
— Começas de novo com os teus caprichos.
— Então não fico! replicou atando as fitas do
chapéu, e com o tom decidido.
— Deixa-te disto, Lúcia.
— Adeus; até amanhã.
— Está bem; aceito a condição.
— Dá-me sua palavra?
— Faço-te um juramento se quiseres.
— Não é preciso: estou satisfeita, e em paga do
sacrifício, quero ser generosa.
Deu-me um beijo, um só, e na fronte.
— Então o beijo é permitido? disse eu sorrindo.
— Da minha parte unicamente; da sua, não senhor.
— Por que essa diferença? Deve haver completa
igualdade.
— E não há! Se eu fico com o direito de dar, o
senhor não tem o de recusar?
— Tu bem sabes que me faltaria a coragem!
— Não é culpa minha!
— E de quem é? De quem te fez tão bonita?
— Já fui! disse ela sorrindo com melancolia.
Realmente Lúcia estava mudada: tinha perdido o
esmalte fresco e suave da tez; parecia mesmo desfeita e abatida; porém isso,
longe de desmerecer a sua beleza, dava-lhe certa morbidez lânguida que a
tornava ainda mais sedutora. Há dois momentos em que a rosa, a flor da beleza,
tem para mim um irresistível encanto: é quando desata as mil folhas ostentando
o brilho das cores e a régia altivez de sua coroa, e quando desfalece ao beijo
ardente do sol, evaporando das pétalas flácidas o pálido matiz e o aroma sutil.
Saí um instante depois do almoço para ir ao
escritório da Companhia de Paquetes pagar o frete de umas encomendas que
enviava à minha família, e para encarregá-las à solicitude de um empregado do
vapor.
Quando voltei, a minha casa de homem solteiro tinha
sofrido uma alteração completa. Os vidros que em quinze dias já tinham
adquirido uma crosta espessa dessa poeira clássica do Rio de Janeiro, como é
clássica a lama de Paris, os vidros brilhavam na sua límpida transparência
entre as bambinelas de cassa que um armador acabava de pregar. Os móveis
espanejados tinham mudado de lugar, tomando a posição melhor e formando esse
quadro harmônico, que o olhar de uma mulher esboça com a rapidez do pensamento;
porque ela tem em si o instinto da forma, como a luz encerra a diversidade de
cores que reflete sobre os objetos. Do recosto do sofá e das cadeiras pendiam
lindas cobertas a crochê; nos vasos dos consolos se expandiam ramos de flores
que embalsamavam a sala.
No meu gabinete de estudo, a desordem desaparecera
ao toque mágico do condão de uma fada hospitaleira: os livros arrumados na
estante, e em seu devido lugar; os manuscritos reunidos sob pesos de cristal;
as cartas emaçadas em ganchos de metal pregados junto à mesa e ao alcance da
mão; ao lado da cadeira de braços uma cesta de palha para receber as tiras de
papel, e na frente um pequeno tapete felpudo para aquecer os pés nas noites
frias.
Igual revolução no meu quarto de vestir. Sobre o
toucador uma profusão de perfumarias e pequenos objetos de fantasia. Na cômoda
a roupa estava arranjada como no tempo em que minha mãe se incumbia desse
trabalho. Um dedal de ouro, um papel de botões, e preparos de costura, que se
viam sobre a cadeira numa caixinha de tartaruga, indicavam que antes da
arrumação, mãozinha ágil e habilidosa da costureira reparara os estragos do
uso.
Mas eu tinha corrido toda a casa, notando essa
transformação repentina, sem descobrir a autora; já estava inquieto quando pela
janela da sala de jantar, a vi na cozinha, e num estado que só tanta beleza e
graça podia salvar do ridículo. Figure uma moça vestida de ricas sedas, com as
mangas enroladas e a saia arregaçada e atada em nó sobre o meio da crinolina;
com uma toalha passada pelo pescoço à guisa de avental; vermelha pelo calor e
reflexo do fogo, batendo gemas de ovos para fazer não sei que doce. Repito: era
preciso ter a faceirice e gentileza daquela mulher, para nessa posição e no
meio da moldura de paredes enfumaçadas, obrigar que a admirassem ainda.
Fui tirá-la da sua azáfama doceira, e a trouxe
confusa e envergonhada. Depois que ela reparou a desordem de seu traje, tanto
quanto era possível, tomei-lhe contas severas.
— Quando pedi à senhora que passasse o dia comigo,
não foi para me servir nem de cozinheira, nem de costureira, nem de criada.
— De que posso eu servir-lhe?
— O mais grave porém não é isso: a senhora encheu a
minha casa de objetos que não me pertencem, porque não os comprei.
Ela tirou um papel do seio:
— Oh! eu o conheço!... Tudo foi comprado com o
dinheiro que tirei da sua gaveta. Aqui tem a conta. Se fiz mal em gastar sem
sua ordem, ralhe comigo; suponha que eu pedi essa quantia, que o senhor decerto
não me recusaria.
Lúcia deu-me a conta que eu rasguei sem ler
fazendo-a sentar nos meus joelhos, e cobrindo-a de beijos.
— Olhe lá! Já faltou ao prometido! Mas desta vez
passe; porque me perdoou. Se não se apressasse, eu mesma lhos daria.
— Ainda está em tempo!
— Não, senhor. Quero fazer valer a minha riqueza.
Darei se me afiançar outra vez que aprova tudo que fiz!
O ajuste foi aceito e concluído. Eram uma perfídia
de Lúcia, como verá.
Estive para esquecer o nosso compromisso. Lúcia
escapou-se; fitando-me com um olhar de exprobração disse-me:
— E sua promessa!
— Não tenho forças para cumpri-la!
— E eu tenho para ceder-lhe! Pois bem; restituo sua
palavra, para não obrigá-lo a faltar a ela. Quer-me assim mesmo morta?
Lúcia deu um passo para mim. Era realmente um corpo
morto e uma feição estúpida que ela me oferecia. Repeli com vago terror. Então,
serenou, e conseguiu sorrir:
— Amanhã!
Depois com a voz triste e grave acrescentou:
— Será sempre cedo!
Chegou o moleque que tinha ido à sua casa buscar um
vestido; poucos instantes depois ela apareceu com um traje fresco e risonho de
que tinha, mais que nenhuma mulher, o encantador segredo. Eu embalava-me na
rede. Lúcia, depois que cansou de traquinar, fazendo-me cócegas, cobrindo-me o
rosto com as franjas e oferecendo-me entre as malhas um beijo que eu não podia
colher e se evaporava no ar, foi à estante escolher um livro, e sentou-se na
esteira para ouvir-me ler.
O livro que ela trouxe era esse gracioso conto de
Bernardin de Saint-Pierre, que todos lemos uma vez aos quinze anos, quando
ainda não o sabemos compreender; e outra aos trinta, quando já não o podemos
sentir. O que seduzira Lúcia foi o nome de Paulo que ela ao entregar-me o
volume mostrara sorrindo. Quando eu lia a descrição das duas cabanas e a
infância dos amantes, Lúcia deixou pender a cabeça sobre o seio, cruzou as mãos
nos joelhos dobrando o talhe, como a estatueta da Safo de Pradier que por aí
anda tão copiada em marfim e porcelana.
De repente a voz desatou num suspiro:
— Ah! meu tempo de menina!
Voltei-me para ela; as lágrimas caíam-lhe em bagas;
quis atraí-la, fugiu, arrebatando-me o livro das mãos.
Escolhi outro livro para distraí-la; li a Atala de
Chateau-briand, que ela ouviu com uma atenção religiosa. Chegando a essa
passagem encantadora em que a filha de Lopes declara ao jovem selvagem que
nunca será sua amante, embora o ame como à sombra da floresta nos ardores do
sol, Lúcia pousou a mão sobre os meus olhos dizendo-me:
— Não podíamos viver assim?
— Atala tinha um motivo para resistir, Lúcia!
— E eu não tenho?
— Ela obedecia a um voto; e a virgindade lhe servia
de defesa.
Lúcia respondeu-me arrebatadamente:
— Alguns espinhos que cercam a rosa, valem o veneno
de certas flores? Um voto é coisa santa; mas a dor da mãe que mata seu filho é
horrível.
— Não te entendo!
Ela demorou um instante o seu olhar ardente sobre
mim, e murmurou abaixando as longas pálpebras:
— Queria dizer que se eu fosse Átala, poderia
perder a minha alma para dar-lhe a virgindade que não tenho; mas o que eu não
posso, é separar-me deste corpo!
Jantamos; nunca lauto banquete foi festejado por
epicuristas, como a minha modesta colação pelos dois convivas que partilhavam o
mesmo prato e bebiam no mesmo copo, rindo e brigando de qual daria ao outro uma
preferência mutuamente recusada.
As oito horas da noite acompanhei Lúcia a casa.
Poucos momentos depois de entrar ela foi ao
toucador e voltou em traje de dormir; os cabelos soltos e uma longa camisola de
linho, sem uma renda, nem um bordado.
— Já vais dormir?
— Vou deitar-me; estou fatigada; trabalhei hoje
muito! respondeu sorrindo e tomando-me pela mão. Mas podemos conversar até dez
horas. Durmo cedo agora.
O seu quarto de dormir já não era o mesmo; notei
logo a mudança completa dos móveis. Uma saleta cor-de-rosa esteirada, uma cama
de ferro, uma banquinha de cabeceira, algumas cadeiras e um crucifixo de
marfim, compunham esse aposento de extrema simplicidade e nudez.
A idéia que primeiro me ocorreu foi que Lúcia tivera
necessidade de dinheiro, e vendera os seus ricos trastes; isso me causou um
aperto de coração.
— Por que esta mudança?
— Durmo aqui melhor. O outro quarto lá está como o
senhor deixou.
— Nada lhe falta ?
— Nada absolutamente. Admira-se de que me prive da
minha rica mobília, para usar de outra mais simples?
— Decerto; foi uma despesa inútil.
— Mas o senhor não sabe que posso comprar o que me
parecer sem que reparem; e não posso vender coisa alguma sem que me suponham
arruinada?
— A minha questão é da preferência que dás a esses
trastes ordinários sobre os teus lindos móveis de pau-cetim.
— Grande questão. . . Questão de mulher no fim de
contas: capricho. Nesta cama que o senhor acha tão feia, e neste quarto que lhe
parece tão triste, o sono é doce para mim e os sonhos alegres. Quando entro
aqui, sacudo no limiar da porta, como os viajantes, a poeira do caminho; e Deus
me recebe.
Dizendo estas palavras, Lúcia ajoelhou em face do
crucifixo e recolheu-se numa breve oração mental; depois regaçou a roupa da
cama e espreguiçou-se entre as alvas lençarias, com o voluptuoso bem-estar que
sente o corpo repousando depois da fadiga.
— Como é bom adormecer assim! disse-me ela pousando
a cabeça no travesseiro e fechando-me as mãos entre as suas. Fale; conte alguma
história! Sou uma criança! É verdade! Preciso que me acalentem. Mas fale!
Diga-me...
— O quê?
— Não se agaste. Qual foi a primeira moça de quem o
senhor gostou?
— Foi uma menina, não foi uma moça, respondi
sorrindo.
— Ah ! Que idade tinha ?
— Doze anos; e eu acabava de completar dezesseis.
— Oh ! Conte-me como foi !
Contei; um desses idílios das primeiras flores da
vida; amores infantis que balbucia o coração ignaro, como antes balbuciara o
lábio a palavra indecisa; arpejos vagos que o sopro da brisa arranca das cordas
de uma lira ainda não dedilhada. Essas primeiras impressões são tão ricas de
sentimento, que nunca o espírito penetra nelas sem achar uma melodia
arrebatadora, mais viva e mais brilhante, à medida que o homem declina para a velhice.
É natural que eu falasse com animação e entusiasmo. Lúcia cerrara as pálpebras
para ouvir-me, e embalada pelas minhas palavras pareceu ir adormecendo
insensivelmente. Calei-me, admirando com respeitosa ternura o rosto puro e
cândido que entre a alvura do linho e no repouso das paixões tomara uma diáfana
limpidez.
Meus lábios roçaram apenas a tez mimosa, tanto eu
receava manchar com o hálito a flor dessa alma, que se abria na sombra e no
silêncio, como o cacto selvagem de nossos campos. Nesse momento Lúcia ergueu as
pálpebras, e seu olhar vago, já nublado pelo sono, afagou-me docemente.
— Foi o dia mais feliz da minha vida! murmurou ela
com a voz quase imperceptível.
Ainda hoje não posso compreender que força
misteriosa me obrigou a respeitar um dia inteiro essa mulher, que eu possuíra,
e ainda apertava nos meus braços, recebendo a carícia de seu lábio amante.
Chegando a casa, e na ocasião de dar o dinheiro
para as compras, conheci que Lúcia tinha-me enganado: a soma que eu possuía
estava intata.
E contudo a minha suscetibilidade extrema emudeceu
nesse momento. Não sei que voz interior me disse que Lúcia tinha o direito de
fazer aquilo, e eu a obrigação de respeitar a sua vontade e agradecer-lhe.
O que outrora me parecia vileza, era já delicada
atenção.
XVIII
Vi no dia seguinte correr de novo aquela mesma
cortina de seda azul que abrira para mim, como nuvem serena, um céu de
delícias. Penetrei o templo do prazer, que eu entrara pela primeira vez
esmagado por um olhar de tão soberano desprezo. Mas não encontrei nem a antiga
fragrância, nem a atmosfera tépida e embalsamada que outrora o enchia. Estava
frio e triste, como um aposento por muito tempo privado de ar e luz.
Lúcia não proferira uma palavra desde a minha
chegada. Muda e submissa obedecera ao meu olhar; quando a toquei, teve uma
comoção violenta, verdadeiro choque elétrico. Fugiu espavorida; mas voltou
logo; e caminhando para mim, entregou-se com um cínico desgarro.
Há de ter ouvido falar na sensualidade nefanda dos
coveiros de cemitério, que saciavam no cadáver das belas mulheres um desejo
brutal. Não creio que esses abutres da lascívia apertassem corpo mais gelado e
insensível do que a múmia que se inteiriçava nos meus braços. Senti o frio
horror de Virgílio correr-me pela medula dos ossos.
Lúcia atravessou o aposento com o passo hirto, e
saiu. Entrou alguns minutos depois. O calor voltara à epiderme, que abrasava
agora; o corpo tinha, não a doce flexibilidade que lhe era natural, porém uma
elasticidade nervosa e convulsa, que o enrolava como a cauda de uma serpente na
agonia. Em vez do seu hálito sempre perfumado, a boca exalava o bafo ardente de
uma chama interior e o fumo alcoólico de espírito fortíssimo.
— O que bebeste tu, Lúcia? perguntei-lhe inquieto.
— Sofro do estômago, bebi um gole de kirsch,
respondeu com a voz trôpega.
— Que extravagância!
Ela cortou-me a palavra com um beijo de fogo;
escaldou-me da lava que corria-lhe do corpo; mas de repente repeliu-me
bruscamente escondendo o rosto nas mãos:
— Não posso! É mais forte do que eu!
Soluçava como uma criança; riu depois como uma
louca.
Conheci então a verdade; Lúcia estava embriagada.
A sua saída repentina fora um ato de desespero para
vencer o gélido espasmo que a marmorizava. Tinha quase esvaziado uma garrafa de
kirsch. Acreditei enfim na sinceridade da repugnância de Lúcia; renunciei de
uma vez ao meu desejo. Sentia profunda compaixão por essa mulher. O seu pranto
me enterneceu; chorei com ela.
O abalo moral foi-lhe dissipando a embriaguez, até
que adormeceu profundamente sobre o meu peito.
Quando acordou, Lúcia percorreu algum tempo com os
olhos o aposento, como se coligisse os vestígios esparsos de recordações
esvanecidas pelo sono, até que a idéia do que se havia passado desenhou-se
lúcida no seu espírito. Então volveu para mim o olhar humilde juntando as mãos
com uma expressão suplicante.
— Logo mais terei forcas! balbuciou ela. Era a
primeira vez depois de tanto tempo; e não pensei que me faltasse o animo.
— Não, Lúcia; nunca mais!
O seu rosto anuviou-se:
— Então vai abandonar-me de novo?
— Supunha que isso não passava de uma
excentricidade; o meu orgulho se revoltava. Mas há pouco o suplício horrível
por que passaste me comoveu a ponto que chorei contigo.
— Chorou?... E por mim!
— Conheci que havia uma dor profunda e intensa no
que me parecia ridículo capricho! Hei de me lembrar sempre que te vi quase
morta nos meus braços! Um desejo de hoje em diante seria uma idéia assassina!
Não posso, não o devo ter! És sagrada para mim; sagrada pelo martírio que te
causei; sagrada pelas lágrimas que derramamos juntos. A tua beleza já não tem
influência sobre os meus sentidos. Posso te ver agora impunemente.
Lúcia me escutava com enlevo, bebendo uma a uma as
minhas palavras e o meu olhar, como se foram um elixir poderoso que a regenerasse.
Apenas me calei, desprendeu-se docemente de meu seio, e caiu de joelhos.
Ergueu-se depois grave e recolhida para dizer-me:
— Deus me abençoou.
Houve um grande silêncio, em que Lúcia, imóvel e
recolhida, continuava absorta no seu êxtase religioso, e eu contemplava-a mudo
sem me animar a interrompê-la.
— Agora deves ter confiança em mim, Lúcia;
explica-me a razão dessa singularidade.
— Eu mesma não sei! respondeu com ingênua
simplicidade.
Ainda receias?...
— Não! Alguma coisa me diz que eu vibro no seu
coração uma corda, embora seja a da compaixão e da piedade. Posso abrir-lhe
minha alma e deixar que penetre nela. Veja se compreende: eu não posso.
— Mas devias sentir alguma coisa ?
— Sentia a morte que me invadia o corpo, enquanto
eu vivia dentro dele sofrendo torturas horríveis. Se eu tivesse ainda minha mãe
expirante diante de meus olhos, amaldiçoando-me no seu último soluço; se por
algum crime infame me açoitassem nua pelas ruas, cuspindo-me às faces no meio
das vaias do povo, creio que não sentiria o que sinto nesses momentos. Por que
razão?
— Entretanto houve um tempo em que, se não me
engano, tu eras feliz como eu do prazer que me davas.
— É verdade! Esse tempo foi uma eternidade de
delícias para mim; desejava até, louca que eu era! . . . desejava que fosse
possível morrermos assim um no outro... uma só vida extinguindo-se num só
corpo! Mas passou!... Devia passar.
— Por quê?
— Não sei!... Quando me lembro...
Tornou-se lívida; a voz encobriu-se: — Quando me
lembro, que um filho pode gerar das minhas entranhas, tenho horror de mim
mesma!
— Não digas isso, Lúcia! Que mulher não deseja
gozar desse sublime sentimento da maternidade!
— Oh! Um filho, se Deus mo desse, seria o perdão da
minha culpa ! Mas sinto que ele não poderia viver no meu seio! Eu o mataria,
eu, depois de o ter concebido!
Não compreendia esse fenômeno; ainda hoje não o
posso explicar senão por alguma das misteriosas afinidades do corpo com o
espírito que o habita.
— Mas que importa? continuou Lúcia. Aquelas
delícias passadas não valem a felicidade que eu sinto agora quando o vejo,
quando lhe falo. Se eu pudesse viver toda a minha vida assim, sentada nos seus
joelhos, olhando-o, não pediria a Deus nada mais!
Entramos então em uma nova fase de nossa mútua
existência, fase original e curiosa que me faria rir quinze dias antes. Com
efeito, quem poderia julgar possível uma amizade fraternal e pura entre duas
criaturas que meses antes trocavam as mais ardentes expansões da sensualidade?
Quem poderia conceber uma abstinência absoluta num caráter ardente, provocado
todos os dias e a todas as horas pela beleza sempre radiante de uma mulher
divina, que retraçava com um olhar e um sorriso os poemas da voluptuosidade
fruída?
Nessa época se revelavam francamente em Lúcia as
aspirações ingênuas para uma juventude perdida, os sonhos vivos do passado, que
desde muito tempo espontavam por vezes através do luxo e agitação de uma vida
elegante. Com a timidez de seu olhar velado pelos longos cílios, com o modesto
recato de sua graça e o seu vestido de cassa branca, Lúcia parecia-me agora uma
menina de quinze anos, pura e cândida.
Por que segredo ignoto da natureza a rosa que há
pouco se ostentava no viço da florescência, abrochara as folhas, e agora botão
recente, mal ia desatando o seio? Por que mágica força de vegetação a palmeira
altiva que hasteava no vale as verdes frondes, se transformara de repente na
mimosa sensitiva!
Muitas vezes achava Lúcia cosendo e cantando à meia
voz alguma monótona modinha brasileira, que só a graça de uma bonita boca, e a
melodia de uma voz fresca, pode tornar agradável. Outras vezes passava horas
inteiras esboçando um desenho, tirando uma música ao piano, escrevendo uma
lição de francês, língua que aliás traduzia sofrivelmente; ou enfim bordando ao
bastidor algum presente que me destinava.
Não saía mais durante o dia; à noite pedia-me que a
levasse a algum arrabalde distante da cidade, à Lagoa, ou ao Cosme-Velho.
Partíamos de carro; parávamos nalgum lugar mais espovoado; ela recostava-se no
meu braço, e passeávamos durante uma ou duas horas. Outras noites preferia o
mar; embarcávamos num bote e vogávamos pela baía.
O seu traje habitual nestes passeios era vestido de
merinó escuro, mantelete de seda preta, e um chapéu de palha com laços azuis.
Mas essa mulher tinha a beleza luxuosa que se orna a si mesma, e que os
enfeites, longe de realçar, amesquinham; nunca ela me parecia mais linda do que
sob essa simplicidade severa.
Um dia Lúcia chegou-se a mim com certo ar de
mistério:
— Quer fazer amanhã um passeio comigo?
— Aonde?
— A São Domingos.
— Se isto te causa prazer!...
Partimos às 4 horas da madrugada numa falua, que
atravessou rapidamente a baía e levou-nos à praia do Icaraí. Não sei se ainda
aí perto existe um velho casebre, escondido no mato e habitado por uma velha e
dois filhos, que nos hospedaram, ou por outra, nos deram sombra e água fresca.
Quando Lúcia pôs o pezinho calçado com a botina de
duraque preto na areia úmida da praia, pareceu que a mobilidade e agitação das
ondinhas que esfrolavam murmurando, comunicou-se-lhe pelo contato. Em um
instante chegou à casa, abraçou a velha, correu todos os recantos, o terreiro,
o quintal e o mato que se estendia em roda. Ora suspendia-se aos ramos das
árvores e colhia os frutos verdes que saboreava com delícia; ora pulava sobre a
relva soltando gritos de prazer como as aves quando atitam ao raiar da manhã.
E no meio de tudo isso voltava para mim, e me
obrigava a tomar a minha parte do prazer que ela sentia. O meio de não comer
frutas verdes quando elas nos são apresentadas entre duas linhas de pérolas e a
sombra de lábios vermelhos, que fugiam furtando o beijo que prometiam? O meio
de não fazer toda a sorte de loucuras, quando um talhe esbelto suspende-se ao vosso
flanco, e uma voz aveludada murmura uma prece ao ouvido ?
Almoçamos. Lúcia contentou-se com uma códea de pão
e um copo de leite, que bebeu sentada sobre uma pedra.
Depois do almoço ela tomou-me pelo braço:
— Foi nesta casa que eu nasci, disse-me ela. Não
era então velha como hoje está. Tudo muda; tudo passa!
Mostrou-me o lugar onde seu pai costumava
trabalhar, onde sua mãe cosia; lembrava-se de todos os cantos, do lagar de cada
móvel, da idade de cada fruteira, dos menores incidentes passados nesta área de
terra.
— Faz sete anos que deixei este lugar; parece-me
que foi ontem. Quando venho aqui alguma vez, acho ainda viva e fiel a minha
infância tão feliz! Recorda-se da Glória? De lá olhei para esta praia. O senhor
estava perto de mim. Mal pensava que três meses depois aqui viríamos juntos!
— E o que é feito de tua família? Como a perdeste?
Nunca me quiseste dizer nada a este respeito.
— Toda a minha vida lhe pertence; o passado como o
futuro. Mas aqui não teria animo: aqui vive a minha infância, que eu respeito.
Não quero que estes lugares, que me viram tão alegre, me vejam sofrer, tendo-o
junto de mim. Não falemos nisso agora; suponho que dormi estes sete anos e
acordei hoje de repente.
Sentamo-nos sobre a relva coberta de flores e à
borda de um pequeno tanque natural, cujas águas límpidas espelhavam a doce
serenidade do céu azul. Lúcia tirou do bolso o seu crochê e o novelo de torçal,
e continuou uma gravata que estava fazendo para mim. Enquanto ela trabalhava,
eu arrancava as flores silvestres para enfeitar-lhe os cabelos; ou arrastava-me
pela relva para beijar-lhe a ponta da botina que aparecia sob a orla do
vestido.
Deixei cair algumas pedras no tanque. Não sei que
impressão triste faz sobre o espírito a plácida imobilidade da onda, que
desafia o homem a quebrar a quietude da natureza. Os olhos acompanham então com
uma indefinível satisfação os círculos concêntricos que surgem à tona e vão-se
dilatando até correr nas margens do lago.
Ia atirar uma nova pedra, quando Lúcia que eu
supunha ocupada com o seu trabalho, reclinou-se para mim, de mãos juntas, e
disse-me com uma voz angustiada:
— Não ! Coitadinha ! Tenha pena dela!
Encarei com Lúcia: seu rosto traía uma aflição
profunda. De surpreso, deixei cair a pedra.
— Oh! Como deve sofrer! balbuciou ela mostrando-me
com a mão trêmula a água que se toldava e enegrecia.
— Que é isto? Em que estás pensando, Lúcia? disse
apertando-lhe as mãos com força.
Volveu para mim os olhos vagos; contemplou-me um
instante e riu:
— Uma loucura!... Não sei como me veio semelhante
idéia! Vendo esta água tão clara toldar-se de repente, pareceu-me que via minha
alma; e acreditei que ela sofria, como eu quando os sentidos perturbam a doce
serenidade de minha vida.
Depois de uma pausa continuou:
— Naquele dia. . . não soube explicar-lhe. . . É
isto! Veja! A lama deste tanque é meu corpo: enquanto a deixam no fundo e em
repouso, a água está pura e límpida!
Acredite ou não, Lúcia acabava de me revelar
naquela imagem simples um fenômeno psicológico que eu nunca teria suspeitado.
XIX
Talvez não se lembre de um Jacinto, cujo nome,
então desconhecido para mim, ouvira uma vez da boca de Lúcia.
Era um homem de 45 anos; feição comum e espírito
medíocre. Encontrava-o agora todos os dias em casa de Lúcia; e desde a primeira
vez antipatizara com a sua enjoativa figura.
— Quem é este senhor? perguntei a Lúcia.
Ela perturbou-se.
— É um sujeito que costuma tratar dos meus
negócios.
— Que importantes negócios são os teus que eu não
me possa incumbir deles ?
— Compras... Não tenho outros. Para que incomodá-lo
com isso?
— Também sou ciumento: não desejo que ocupes outra
pessoa além de mim.
— Esse homem é quase um criado.
A palavra produziu o seu efeito; desde que o
Jacinto desceu ao mister de homem assalariado, não fiz mais reparo na sua
assiduidade. Quase sempre o encontrava na escada interior, descendo quando eu
subia; dava-lhe tanta atenção como ao carroceiro que enchia as talhas d'água,
ou ao cozinheiro que saía a compras.
Tínhamos partido de São Domingos na véspera às oito
horas da noite; às onze deixara Lúcia em sua casa, desculpando-me de não ir
vê-la no dia seguinte de manhã, por causa de algumas visitas de rigor.
— Sucedeu porém que, voltando de uma dessas
visitas, o cocheiro do tílburi passasse pela porta de Lúcia. Não pude resistir
ao desejo de vê-la, apertar-lhe a mão e saber como havia passado a noite.
Cheguei à sala de jantar sem encontrar viva alma; supondo achar Lúcia na sala,
dirigi-me para ali, pelo corredor particular. Abafei os passos, para
surpreendê-la.
O surpreendido foi eu, ouvindo vozes na alcova,
onde tanto havia, já ninguém entrava. Enfiei o olhar pela fresta que deixava a
sanefa de tafetá na porta envidraçada; e o que vi me fez empalidecer. A pessoa
que estava com Lúcia era o Jacinto; ela abanava a cabeça; ele sorria com um ar
de estúpida satisfação, e abria lentamente uma nojenta carteira de couro da
Rússia.
Corri o aposento com uma vista rápida e ansiada: o
leito estava desfeito e os móveis em desordem. O Sr. Jacinto tirara da carteira
um maço de bilhetes do banco, que Lúcia escondera no seio com um expressivo
gesto de contentamento. Não havia dúvida possível; as provas da infâmia eram
evidentes; e para cúmulo do cinismo, o preço depois de regateado fora pago à
vista. Uma parede que desabasse não me atordoaria como aquela cena a que eu
acabava de assistir. Não sei quanto tempo fiquei ali, atirado contra a porta,
sem sentidos nem espírito, somente com a consciência de uma imensa dor. Quando
voltei a mim, a alcova estava deserta; o Jacinto tinha partido, e Lúcia cosia
no toucador, cantando a meia voz. Hesitei se devia fugir para nunca mais ver
semelhante monstro de mulher, ou se ficaria para lançar-lhe em rosto a sua
ignomínia.
Conhecendo o meu passo, ela jogou de si a costura,
e precipitou-se para mim; trazia o sorriso orvalhado de carícias, o olhar cheio
de candura.
— Infame!
A indignação e o desespero que fermentavam no meu
seio borbotaram nessa única palavra, grito e soluço de uma angústia cruel.
Lúcia tornou-se lívida; vacilou. Com um supremo esforço dominando a vertigem
que a tomava, cobriu-me com um olhar frio, cheio de tanta dignidade e altivez,
que me colou imóvel sobre o chão. Assim pasmo e quedo, vi-a atravessar com
lentidão a sala e desaparecer detrás de uma porta, que se fechou surdamente.
Pareceu-me ouvir selar a lousa do túmulo, onde eu acabasse de sepultar uma
porção de minha alma.
Lancei-me pelas ruas desatinado. As quatro horas da
tarde ainda eu vagava sem destino.
O Sá passava no seu tílburi; viu-me e parou:
— Que milagre é este: ressuscitaste!
— Não me fales nisso!
— Ah! estás apenas em convalescença; mas desta vez
incumbo-me de curar-te, para que não tenhas nova recaída.
— Asseguro-te que não há mais perigo.
— Se não me engano, ainda não jantaste.
— Nem quero.
— Vem jantar comigo; entrarás imediatamente no
regime higiênico que pretendo receitar-te.
Tomou as rédeas do cocheiro, que seguiu a pé, e
ofereceu-me um lugar no tílburi.
Mais tarde Sá interrogou-me sobre o que se tinha
passado; porém recusei constantemente satisfazer a sua curiosidade. Para que
ele compreendesse o meu sofrimento, fora mister contar-lhe as minhas relações
intimas com Lúcia; e era esse mistério que invencível pudor d'alma não me
deixava expor a outros olhos, fossem eles de um amigo.
Achei-me num estado de apatia moral; tinha medo da
iniciativa, porque vagamente pressentia que ela me arrastaria de novo à casa de
Lúcia, quando não fosse senão para ter o agro prazer de insultá-la com o meu
desprezo. Nessa situação era natural que Sá não encontrasse a menor resistência
no que ele chamava o regime higiênico da minha paixão.
Durante três dias corremos os arrabaldes da cidade.
Passávamos uma tarde a cavalo por Santa Teresa na
direção da Caixa d'Água, quando vimos parado defronte de uma pequena casa,
reparada de novo, o Jacinto. Esse homem me atraía, pelo ímã irresistível de
Lúcia; e entretanto eu o detestava.
— Pertence-lhe esta casa, Sr. Jacinto? disse-lhe Sá
respondendo à cortesia.
— Não, senhor. Pertence a uma pessoa do seu conhecimento,
a Lúcia.
— Como! Lúcia vem morar numa casa térrea e de duas
janelas ? Não é possível.
— Também eu não acreditei quando ela me falou
nisso! Cuidei que estava brincando; porém é negócio sério.
— Então comprou esta casa?
— E mandou prepará-la. Já está mobiliada e pronta.
Devia mudar-se hoje; não sei que transtorno houve. Ficou para a semana!
— Está bem! São luxos de passar o verão no campo!
Não lhe dou um mês que não esteja arrependida, e não volte para a sua casa da
cidade.
— Para essa, há de ser difícil, disse o Jacinto com
um sorriso.
— Por que razão?
— Vendeu-me o arrendamento e toda a mobília.
— Que diz!
— Na quinta-feira fechamos o negócio. Dei-lhe um
conto de réis de sinal. Porém o mais interessante é que mandou fazer leilão de
tudo quanto possuía, inclusive jóias e roupa.
— Terá ela caído na miséria?
— Qual! Tem perto dos seus cinqüenta contos e quer
gozar da vida tranqüilamente. Doidice; podia fazer uma fortuna, e ajudar os
outros.
O Jacinto cumprimentou e desceu a ladeira. A
conversa que acabava de ouvir me tinha completamente perturbado; enquanto Sá
aproximava-se do portão para examinar o jardim, ficara eu imóvel e perplexo.
Por fim, impelido por uma força superior, segui precipitadamente o homem que
levava consigo o sossego e tranqüilidade do meu espírito.
Alcancei-o junto aos arcos. Procurei o pretexto do
aluguel da casa em que Lúcia morara, e obtive a narração minuciosa do que se
passara. Aquela desordem do leito não fora outra coisa mais que o exame de um
comprador de trastes, que antes de fechar o negócio deseja conhecer o estado da
mercadoria.
Corri à casa de Lúcia.
— Sofri muito, ainda sofro; mas sinto a necessidade
de perdoar, disse-me ela grave e melancólica.
Nem um transporte de alegria, nem um sobressalto de
surpresa por ver-me chegar arrependido e suplicante. Recebeu-me com uma serena
placidez e um olhar de meiga exprobração:
— Não é generoso ofender a quem não sabe e não pode
repelir a ofensa.
Era estranha para mim a expressão de calma e serena
dignidade que se difundia pelo seu rosto e por toda a sua pessoa; alguma vez já
vira passar-lhe na fronte um reflexo de nobre altivez, mas de relance, como a
eletricidade que lambe a face da nuvem. Naquele momento porém a luz irradiava
de um foco íntimo; e na feição, como na atitude de Lúcia, aparecia
profundamente impresso o pudor de uma alma ressentida.
Pela primeira vez a mulher submissa, que temia
ofender-me, mostrando-se ofendida de minhas injustiças, conservava contra mim
uma queixa, e assumia o direito de perdoar. Admirando, aceitava todas as
gradações por que passara a sua existência depois que nos conhecíamos.
— Duvidou de mim! disse Lúcia fitando-me com os
seus grandes olhos límpidos.
Ia balbuciar uma desculpa; ela atalhou-me.
— Não! A mulher de quem duvidou já não existe,
morreu! É uma história bem triste! Ouça!
Lúcia ficou um momento absorvida nas suas
recordações; afinal chegando um banquinho de tapete, sentou-se aos meus pés:
— Deixamos São Domingos para vir morar na corte;
tinham dado a meu pai um emprego nas obras públicas. Vivemos dois anos ainda
bem felizes. À noite toda a família se reunia na sala; eu dava a minha lição de
francês a meu mano mais velho, ou a lição de piano com minha tia. Depois
passávamos o serão ouvindo meu pai ler ou contar alguma história. Às nove horas
ele fechava o livro, e minha mãe dizia: «Maria da Glória, teu pai quer cear».
Levantava-me então para deitar a toalha.
— Maria da Glória !
— É meu nome. Foi Nossa Senhora, minha madrinha,
quem mo deu. Nasci a 15 de agosto. Por isso todos os anos vou levar-lhe um
trabalho de minhas mãos, e pedir-lhe que me perdoe. Outrora pedia-lhe que me
fizesse feliz; toda a minha família me acompanhava; agora vou só e escondida.
— E que é feito de tua família?
— Lembra-se da febre amarela em 1850?
— Não estava aqui.
— Verdade! Foi um ano terrível. Meu pai, minha mãe,
meus manos, todos caíram doentes: só havia em pé minha tia e eu. Uma vizinha
que viera acudir-nos, adoecera à noite e não amanheceu. Ninguém mais se animou
a fazer-nos companhia. Estávamos na penúria; algum dinheiro que nos tinham
emprestado mal chegara para a botica. O médico, que nos fazia a esmola de
tratar, dera uma queda de cavalo e estava mal. Para cúmulo de desespero, minha
tia uma manhã não se pôde erguer da cama; estava também com a febre. Fiquei só!
Uma menina de 14 anos para tratar de seis doentes graves, e achar recursos onde
os não havia. Não sei como não enlouqueci.
Lúcia apertou a cabeça com as mãos, como se ainda
temera que a razão lhe fugisse.
— Tudo quanto era possível, meu Deus, sinto que o
fiz. Já não dormia; sustentava-me com uma xícara de café. Nalgum momento de
repouso ia à porta e pedia aos que passavam. Pedia para meu pai enfermo, e para
minha mãe moribunda, não tinha vexame. Uma tarde perdi a coragem; meu irmão
estava na agonia, minha mãe despedira-se de mim, e Ana, minha irmãzinha, que eu
tinha criado e amava como minha filha, já não dava acordo de si. Passou um
vizinho. Falei-lhe; ele me consolou e disse-me que o acompanhasse à sua casa. A
inocência e a dor me cegavam: acompanhei-o.
Lúcia fez um esforço para continuar:
— Esse homem era o Couto...
_ Ah!
— Ele tirou do bolso algumas moedas de ouro, sobre
as quais me precipitei, pedindo-lhe de joelhos que mas desse para salvar minha
mãe; mas senti os seus lábios que me tocavam, e fugi. Oh! Não posso contar-lhe
que lata foi a minha: três vezes corri espavorida até à casa, e diante daquela
agonia sentia renascer a coragem, e voltava. Não sabia o que queria esse homem;
ignorava então o que é a honra e a virtude da mulher
o que se revoltava em mim era o pudor ofendido.
Desde que os meus véus se despedaçaram, cuidei que morria; não senti nada mais,
nada, senão o contato frio das moedas de ouro que eu cerrava na minha mão
crispado. O meu pensamento estava junto do leito de dor, onde gemia tudo o que
eu amava neste mundo.
Lúcia escondeu o rosto nos meus joelhos e emudeceu.
Quando levantou a fronte, implorava com as mãos juntas e o olhar súplice. O
quê? O perdão de sua primeira falta?
Não sei. Faltaram-me as palavras para consolar dor
tão profunda: beijei Lúcia na face.
— Obrigada! exclamou ela; obrigada! Alguma coisa me
diz que mereço este consolo. Terei forças para concluir. O dinheiro ganho com a
minha vergonha salvou a vida de meu pai e trouxe-nos um raio de esperança.
Quase que não me lembrava do que se tinha passado entre mim e aquele homem; a
consciência de me ter sacrificado por aqueles que eu adorava, fazia-me forte.
Demais, um esquecimento profundo, só explicável pela alheação completa do
espírito, ocultava-me a triste verdade. Devia compreendê-la, e de que modo, ó
meu Deus!
Como impelida por um choque elétrico, Lúcia
ergueu-se galvanizada por súbita e violenta recordação.
— Ainda vejo! As melhoras foram aparentes! Meus
dois irmãos acabavam de expirar, minha tia entrava na agonia, minha mãe tivera
um novo acesso. Felizmente já meu pai estava em convalescença, e saiu para
tratar do enterro. Ele não tinha dinheiro, apresentei-lhe as últimas moedas de
ouro que me restavam. «Quem te deu este dinheiro?. . . Roubaste?. . .»
Contei-lhe tudo; tudo que eu sabia na minha inocência. Ele compreendeu o resto.
Expulsou-me!
— A ti que lhe salvaste a vida?
— Meu pai julgava que eu tinha um amante e iria
viver com ele! A não ser assim, exporia sua filha a morrer de fome? Saí de
casa. O único ente que me sorriu e me abraçou por despedida foi o anjinho que
Deus me dera por irmã e conforto. Sentei-me na calçada. Era bastante tarde já,
quando uma mulher que se recolhia me perguntou o que fazia ali àquelas horas.
«Perdi meu pai e minha mãe, respondi, não tenho onde viver». Jesuína... Era
ela... levou-me consigo. Não me esqueci dos meus. A forca de rogos e instâncias
Jesuína mandava constantemente à casa saber notícias e levar os socorros
necessários: nada faltou, nem médico, nem enfermeiros. A paz voltou enfim; e eu
tive o supremo alívio de comprar com a minha desgraça a vida de meus pais e de
minha irmã. Jesuína, o senhor adivinha o que foi ela, tinha posto um preço aos
seus serviços; não sei se a primeira humilhação custou mais do que a segunda;
mas o sacrifício devia se consumar, porque não tive mão que me amparasse. A
minha felicidade estava destruída; cuidei que não havia maior infâmia do que a
minha. Resolvi viver para tranqüilidade e ventura de uma família inocente da
minha culpa Quinze dias depois de expulsa por meu pai era. . . o que fui.
O sorriso pálido, que contraiu o rosto de Lúcia,
parecia despedaçar-lhe a alma nos lábios:
— Sabe agora o segredo da cupidez e avareza de que
me acusavam. Encontram-se no Rio de Janeiro homens como o Jacinto, que vivem da
prostituição das mulheres pobres e da devassidão dos homens ricos; por
intermédio dele vendia quanto me davam de algum valor. Todo esse dinheiro
adquirido com a minha infâmia era destinado a socorrer meu pai, e a fazer um
dote para Ana. Jesuína continuava a servir-me. Minha família vivia tranqüila, e
seria feliz se a lembrança do meu erro não a perseguisse. Nisto uma moça quase
de minha idade veio morar comigo; a semelhança de nossos destinos fez-nos amigas;
porém Deus quis que eu carregasse só a minha cruz. Lúcia morreu tísica; quando
veio o médico passar o atestado, troquei os nossos nomes. Meu pai leu no jornal
o óbito de sua filha; e muitas vezes o encontrei junto dessa sepultura onde ele
ia rezar por mim, e eu pela única amiga que tive neste mundo.
Morri pois para o mundo e para minha família. Foi
então que aceitei agradecida o oferecimento que me fizeram de levar-me à
Europa. Um ano de ausência devia quebrar os últimos laços que me prendiam. Meus
pais choravam sua filha morta; mas já não se envergonhavam de sua filha
prostituída. Eles tinham me perdoado. Quando voltei, só restava de minha
família uma irmã, Ana, meu anjo da guarda. Está num colégio educando-se.
Eis a minha vida. O que se passava em mim é difícil
de compreender, e mais difícil de confessar. Eu tinha-me vendido a todos os
caprichos e extravagâncias; deixara-me arrastar ao mais profundo abismo da
depravação; contudo, quando entrava em mim, na solidão de minha vida íntima,
sentia que eu não era uma cortesã como aquelas que me cercavam. Os homens que
se chamavam meus amantes valiam menos para mim do que um animal; às vezes
tinha-lhes asco e nojo. Ficaram gravados no meu coração certos germes de
virtude. . . Essa palavra é uma profanação nos meus lábios, mas não sei outra.
Havia no meu coração germes de virtude, que eu não podia arrancar, e que ainda
nos excessos do vício não me deixavam cometer uma ação vil. Vendia-me, mas
francamente e de boa-fé; aceitava a prodigalidade do rico; nunca a ruína e a
miséria de uma família.
Aquele esquecimento profundo, aquela alheação
absoluta do espírito, que eu sentira da primeira vez, continuou sempre. Era a
tal ponto que depois não me lembrava de coisa alguma; fazia-se como que uma
interrupção, um vácuo na minha vida. No momento em que uma palavra me chamava
ao meu papel, insensivelmente, pela força do hábito, eu me esquivava,
separava-me de mim mesma, e fugia deixando no meu lugar outra mulher, a cortesã
sem pudor e sem consciência, que eu desprezava, como uma coisa sórdida e
abjeta.
Mas horrível era quando nos braços de um homem este
corpo sem alma despertava pelos sentidos. Oh! Ninguém pode imaginar! Queria
resistir e não podia! Queria matar-me trucidando a carne rebelde! Tinha
instintos de fera! Era uma raiva e desespero, que me davam ímpetos de
estrangular o meu algoz. Passado esse suplício restava uma vaga sensação de dor
e um rancor profundo pelo ente miserável que me arrancara o prazer das entranhas
convulsas!
Comovida e lacrimosa, ela atirou-se ao meu peito, e
enlaçou-me com os braços trêmulos:
— Perdão! Houve um momento bem rápido em que o
odiei também! Como sofri, meu Deus! Devia resgatar essa dor a felicidade que
pela dor havia perdido!
Lúcia concluindo essa narração, que a fatigara em
extremo, enxugou as lágrimas e deu algumas voltas pela sala.
— Se eu ainda tivesse junto de mim todos os entes
queridos que perdi, disse-me com lentidão, veria morrerem um a um diante de
meus olhos, e não os salvaria por tal preço. Tive força para sacrificar-lhes
outrora o meu corpo virgem; hoje depois de cinco anos de infâmia, sinto que não
teria a coragem de profanar a castidade de minha alma. Não sei o que sou, sei
que começo a viver, que ressuscitei agora. Ainda duvidará de mim?
— Tu és um anjo, minha Lúcia!
XX
Às cinco horas da manhã estava de pé, vestindo-me
para ir buscar Lúcia.
Na véspera ao despedir-se de mim ela me dissera:
— Amanhã mudo-me. Venha-me buscar ao romper do dia.
Desejo... careco de entrar apoiada ao seu braço na casa onde vou viver a minha
nova existência.
Achei-a pronta e esperando-me; os vestígios da
comoção violenta que haviam produzido as amargas recordações, desapareciam sob
a plácida serenidade que reslumbrava de sua alma e dava à sua beleza uma suave
limpidez.
Partimos a pé, com a fresca da manhã; fizemos um
dos mais belos passeios de que se pode gozar no Rio de Janeiro. A casa ainda
estava fechada: o preto que a guardava veio abrir-nos o portão; corremos o
jardim colhendo flores, enquanto se arejavam as salas para receber-nos. Os
cômodos eram suficientes para duas pessoas; Lúcia devia morar com sua irmã, que
ia sair do colégio. Apesar da revelação da véspera, continuava a dar a Lúcia
esse doce nome, que estava tão habituado a pronunciar. Uma vez porém ela
olhou-me com uma expressão de mágoa:
— Paulo, disse-me com brandura, chama-me Maria!
Desde então quando eu pronunciava esse nome, sua
alma tinha enlevos, e ela acompanhava o movimento de meus lábios estremecendo
de gozo, como se todo o seu corpo sentisse uma doce carícia.
— Quando me chamas assim, Paulo, murmurava ela,
parece-me que tu me embebes e me afagas num só e imenso beijo que me envolve
toda
Também a partir daquele momento ela sentia um
prazer indizível em articular o meu nome, que seus lábios às vezes desfolhavam
num sorriso, e outras debulhavam lentamente, letra por letra, como um favo de
mel, que estilassem gota a gota. Nunca Lúcia (quero chamá-la assim ainda,
porque foi esse o primeiro nome que amei, e que ainda amo) nunca Lúcia deixara
o tratamento cerimonioso que me dava, mesmo no mais intimo das nossas relações.
Nesse dia porém, de repente, sem vexame e sem o menor esforço, começou a
atuar-me.
Almoçamos, como os pastores de Teócrito, frutas,
pão e leite cru: ainda não havia preparos de cozinha, nem fogo. Por volta de
onze horas do dia chegou a criada, com uma menina de doze anos, linda e mimosa
como um anjinho de Rafael. Era o retrato de Lúcia, com a única diferença de ter
uns longes de louro cinzento nos cabelos anelados. Ana já conhecia a irmã e a
amava ignorando os laços de sangue que existiam entre ambas; mas o instinto de
seu coração fizera adivinhar à pobre órfã um amor quase materno na afeição
ardente e apaixonada que lhe votava Lúcia.
As seis horas da tarde deixei as duas irmãs já
definitivamente instaladas no seu modesto retiro.
Continuei a visitá-las todos os dias, mas ao cair
do dia. Fora Lúcia quem regulara estas visitas.
— Tens agora o teu escritório, e eu preciso
trabalhar para viver; além disso quero ensinar a Ana o pouco que sei. Não
podemos estar todo o dia juntos. Vem ver-me à tarde, à hora da ave-maria.
Passaremos as noites no jardim, ou passeando. No domingo porém jantarás sempre
comigo; se não vieres, sei que não terei fome.
Quando a noite estava bonita, íamos os três até a
Caixa-d'água, ou até os Dois Irmãos, gozar da frescura das árvores e da água
corrente. Lúcia reclinava-se ao meu braço, e eu dava a outra mão livre a Ana.
Assim caminhávamos, quase sempre mudos e silenciosos, contemplando a beleza das
cenas que se desenrolavam aos nossos olhos, ou absorvidos em nossos pensamentos
íntimos. Quando Ana soltava a minha mão para correr diante de nós com a
inquieta travessura de sua idade, Lúcia erguia-se na ponta dos pés, e
suspirava-me ao ouvido alguma palavra terna, alguma doce confidência de sua
alma.
— Sou feliz! dizia-me uma noite, muito feliz! Deus
se compadeceu de mim dando-me essa força de vontade que me faz separar de minha
vida o tempo que não vivi. Ele me aparece como um sonho, como uma nuvem sombria
que se vai sumindo.
Outras noites nos sentávamos sobre as pedras do
caminho, e eu, respondendo às perguntas de Ana, falava-lhe da natureza, das
flores, das árvores, das estrelas, com o entusiasmo e a poesia que as belas
criações de Deus despertam em nossa alma.
— Fala ainda! balbuciava Lúcia ao meu ouvido,
quando me calava. Fala! É tão bom ouvir-te.
Era unicamente aos domingos que eu tinha um momento
de estar só com Lúcia. Então ela tomava-me a cabeça que escondia no seio com um
anelo de ternura; fechava-me os olhos, e eu sentia os seus lábios roçarem o meu
rosto, tão de leve como as tranças de seus cabelos; por fim olhava-me, ora
sorrindo, ora séria e absorvida nos seus pensamentos.
— Isto não pode durar muito! É impossível!
murmurava como se respondesse a uma reflexão íntima.
— Por que razão, Maria?
— Por quê? Porque não se goza da bem-aventurança na
terra.
A exceção desses raros instantes, sua irmã não nos
deixava, e em presença dela Lúcia não me permitia uma carícia, por mais
inocente que fosse. O dia se passava ouvindo Ana tocar, vendo-a brincar, e
brincando com ela. Éramos três crianças; e delas talvez a mais moça fosse a que
mais juízo tivesse naqueles alegres folguedos.
Uma tarde, havia poucos instantes que eu tinha
chegado, quando Lúcia tomou-me pela mão, e levou-me ao seu toucador.
— Não entendo de negócios, me disse abrindo uma
gaveta; e não sei pedir senão a ti. Toma; é a escritura de compra desta casa,
que pertence a Ana: há de ser preciso pagar décima. Tira do dinheiro destes
vales; do resto comprarás apólices em nome dela.
Examinei os papéis que Lúcia me dera; representavam
um valor de mais de cinqüenta contos de réis; dez no prédio, o resto em
dinheiro.
— E tu com que ficas? Longe de mim censurar a tua
generosidade, minha boa Maria; mas não é justo que te sujeite, a passar
privações.
— Eu também tenho a minha fortuna! disse-me
sorrindo. Mostrou-me uma carteira, que eu lhe tinha dado.
— Queres ver? Olha! Foste tu que ma deste, Paulo!
Guardei-a para o tempo em que fosse digna dela. Quando eu te agradecia então,
nem suspeitavas que te agradecia pelo futuro, por este tempo em que não me
peja, ao contrário tenho orgulho, de viver por ti e para ti.
A carteira continha pequenos maços de notas, com o
algarismo e uma data escrita no rótulo.
— Não sei o que quer dizer isto!
— Não te lembras, quando ias à gavetinha do meu
toucador? Aí está o que me davas, dia por dia. Compreendes agora ?
— Mas isto é uma bagatela; não é uma fortuna!
— Chega-me; demais, eu trabalho, e quando alguma
vez precisar, não terei vergonha de pedir-te. Verás.
— O que me parece de eqüidade é dividires esta soma
com tua irmã, e guardares o resto. Ela pode casar, seguir seu marido. . . Quem
sabe o que sucederá?
— Tudo quanto quiseres, Paulo, menos isso. Não
tenho outra vontade que não seja a tua, mas estou certa que me hás de
compreender e consentir. O que me custou tantas angústias, e tantas
humilhações, não me pode pertencer, não. Só uma coisa justifica essa fortuna, é
o motivo santo por que me vendi para adquiri-la. Ana pode gozar dela sem
remorso e sem vexame, porque não saberá donde lhe vem; a mim amargaria o pão
amassado com tanto fel! Não achas que eu tenho razão?
— Maria, meu anjo, não fales nisso mais nunca! Faze
o que quiseres; eu aprovo tudo.
— Deixa-me acabar. Agora só vivo, e só quero viver
do que me deste; porque a minha coragem, o meu trabalho, tudo é inspiração tua.
O dinheiro pois que ganhar com minhas mãos, ainda me vem de ti! Não possuo hoje
um objeto, a coisa mais insignificante, que tenha outra origem. É talvez uma
superstição; mas quero conservá-la.
Ao despedir-me nessa noite Lúcia, como para dar-me
uma prova da sua sinceridade, disse-me:
— Paulo, traze-me amanhã quando vieres uma caixinha
sortida de linhas e agulhas.
Era uma ninharia; mas era a primeira coisa de valor
pecuniário que ela me pedia.
Essa vida calma e tranqüila, remanso de uma
existência tão agitada, durava cerca de um mês. Nada perturbava a serenidade de
Lúcia. Parecia realmente que sua alma cândida, muito tempo adormecida na
crisálida, acordara por fim, e continuara a mocidade interrompida por um longo
e profundo letargo. Lúcia tinha então 19 anos; mas o seu coração puro e virgem
tinha apenas a idade do botão de rosa na manhã do dia em que deve florescer, ou
a idade do casulo quando a ninfa vai fendê-lo, desfraldando as tenras asas.
Como as aves de arribação, que tornando ao ninho
abandonado, trazem ainda nas asas o aroma das árvores exóticas em que pousaram
nas remotas regiões, Lúcia conservava do mundo a elegância e a distinção que se
tinham por assim dizer impresso e gravado na sua pessoa. Fora disto, ninguém
diria que essa maca vivera algum tempo numa sociedade livre. As suas idéias
tinham a ingenuidade dos quinze anos; e às vezes ela me parecia mais infantil,
mais inocente do que Ana com toda a sua pureza e ignorância.
Talvez a senhora julgue isso impossível; mas é a
verdade. Se não fosse a originalidade dessa fase de uma vida que em quatro
meses passara aos meus olhos por tão profunda revolução, não teria nada que lhe
contar, e não valeria a pena revolver o rescaldo de minhas reminiscências.
Quis pintar-lhe o que vi: a incubação de uma alma
violentamente comprimida por uma terrível catástrofe; a vegetação de um corpo
vivendo apenas pela força da matéria e do instinto; a revelação súbita da
sensibilidade embotada pelos choques violentos que partiram o estame de uma
infância feliz; a floração tardia do coração confrangido pelo escárnio e pelo
desprezo; finalmente a energia e o vigor do espírito que surgia, soldando por
misteriosa coesão os elos partidos da vida moral e continuando no futuro a
adolescência truncada.
Quantas vezes absorto na admiração que me causava
esse fenômeno, não acompanhava com um olhar pasmo e surpreso os movimentos de
Lúcia brincando com a irmã, e criança como ela na expansão da beleza que eu
vira radiar no mundo com todas as graças e encantos da mulher! Quantas vezes
desesperado pela naturalidade do seu gesto e pela ingênua simplicidade de suas
palavras, que excluíam a mais leve suspeita de afetação, não pensava comigo:
«Esta mulher ou é um demônio de malícia, ou um anjo que passou pelo mundo sem
roçar as suas asas brancas!»
Se ela surpreendia o meu olhar perscrutador,
sorria, e caminhando para mim, movia lentamente a cabeça:
— Não compreendes, Paulo? Também eu não compreendo.
Quem me fez menina assim ?. . . Devo-te parecer ridícula. Eu, que desejo ter
para Ana a gravidade de mãe, torno" -me mais travessa do que ela, Mas que
queres? É preciso que eu brinque... como as cigarras hão de cantar daqui a um
ano quando acordarem!
O jardim da casa de Lúcia era dividido, por um
gradil de madeira, da chácara vizinha. Isso a desgostara desde o primeiro dia;
e era sua intenção fazer passar um muro que ocultasse às vistas estranhas o seu
modesto retiro; um sentimento de delicadeza retardara só a realização desse
projeto. As moças daquela chácara tinham pouco depois de sua mudança procurado
entreter relações de vizinhança; e quase todas as tardes vinham conversar com
Ana.
Lúcia quis logo impedir essa amizade, mas não teve
animo de privar sua irmã de tão inocente distração; contentou-se de sua parte
em se esquivar aos avanços das vizinhas, retribuindo com polidez as suas
saudações. As instâncias porém foram tão repetidas e tão amáveis, que, apesar
de sua modesta reserva, Lúcia não pôde deixar algumas vezes de responder às
palavras que lhe dirigiam. Demais, elas tinham achado o caminho de seu coração;
com uma liberdade censurável começaram a pedir-lhe pequenos favores: hoje era a
muda de uma flor, amanhã o molde de um vestido, depois o desenho de um bordado.
Lúcia, que não aceitava coisa alguma do mundo, não sabia recusar um serviço.
Uma tarde ela estava conversando comigo, quando Ana
veio pedir-lhe em nome da mais moça das vizinhas, sua predileta, que lhe fosse
ensinar um ponto de crochê.
— Tu não sabes, Ana?
— Mas não sei como tu, maninha.
Lúcia aproximou-se do gradil; tomou das mãos da
moça o fio e a agulha e teceu com agilidade e destreza uma carreira de malhas,
acompanhando o movimento rápido de seus dedos afilados com as explicações
precisas. Como isto não bastasse tirou do braço uma pulseira de contas tecida
por ela e deu-a para servir de modelo.
Nessa ocasião adiantavam-se por entre as árvores as
outras mocas acompanhadas de um homem, cujo rosto não pude ver logo por entre a
folhagem. Lúcia, atenta aos esforços que fazia sua discípula para acertar, não
reparou nessa circunstância.
O grupo parou a alguma distancia; eu reconheci o
Couto no momento em que se adiantava com um movimento de espanto. Corri para
fazer Lúcia retirar-se antes de vê-lo; mas estava distante, e quando cheguei,
já a mais velha das moças se tinha aproximado, e arrancando a pulseira das mãos
de sua irmã, atirou-a por cima da grade:
— Não toques em coisa que pertença a esta mulher! É
uma perdida!
Lúcia tinha erguido a cabeça no primeiro instante
de surpresa; nada porém perturbava a serenidade e quietude de seu rosto
iluminado por uma doce altivez; circulou com um olhar límpido os atores desta
cena, como se lhes pedisse a explicação do desagradável incidente; e tomando
Ana pela mão e passando o braço pelo meu, afastou-se com uma dignidade meiga e
nobre.
Contudo pensei que esse sossego era aparente, e que
sua alma devia ter sido traspassada por aquele ultraje. Ela respondeu à
interrogação muda do meu olhar murmurando-me ao ouvido para que sua irmã não a
ouvisse:
— Elas não sabem, como tu, que eu tenho outra
virgindade, a virgindade do coração! Perdoa-lhes, Paulo.
E o sorriso, que banhou estas palavras como de uma
luz divina, parecia abrir o céu aos arroubos de sua alma.
XXI
Era um domingo.
O novo ano tinha começado. A bonança que sucedera
às grandes chuvas trouxera um dos sorrisos de primavera, como costumam
desabrochar no Rio de Janeiro entre as fortes trovoadas do estio. As árvores
cobriam-se da nova folhagem de um verde tenro; o campo aveludava a macia
pelúcia da relva, e as frutas dos cajueiros se douravam aos raios do sol.
Uma brisa ligeira, ainda impregnada das evaporações
das águas, refrescava a atmosfera Os lábios aspiravam com delícias o sabor
desses puros bafejos, que lavavam os pulmões fatigados de uma respiração árida
e miasmática. Os olhos se recreavam na festa campestre e matutina da natureza
fluminense, da qual as belezas de todos os climas são convivas.
Subia a passo curto e repousado a ladeira de Santa
Teresa, calculando a hora de minha chegada pelo despertar de Lúcia; o meu
pensamento porém abria as asas, e precedendo-me, ia saudar a minha doce e terna
amiga.
Havia oito dias que Lúcia não andava boa. A fresca
e vivace expansão de saúde desaparecera sob uma langue morbidez que a
desfalecia; o seu sorriso, sempre angélico, tinha uns laivos melancólicos, que
me penavam. Às vezes a surpreendia fitando em mim um olhar ardente e longo;
então ela voltava o rosto de confusa, enrubescendo. Tudo isto me inquietava;
atribuindo a sua mudança a algum pesar oculto, a tinha interrogado,
suplicando-lhe que me confiasse as mágoas que a afligiam.
— Não digas isso, Paulo! respondia com um tom de
queixa. Posso ter pesares junto de ti? É uma ligeira indisposição; há de
passar.
De bem longe avistei Lúcia que me esperava e me fez
um aceno de impaciência; apressei o passo para alcançar o portão do jardim. Ela
estendeu-me as mãos ambas risonha e atraindo-me, reclinou-se sobre o meu peito
com um gracioso abandono. Sentamo-nos nos degraus da pequena escada de pedra, e
informei-me de sua saúde.
— Já estou boa. Não vês?
Realmente as rosas de suas faces viçavam; era
cintilante o brilho que desferia a sua pupila negra. Pelos lábios úmidos
lentejava a onda perene de um sorriso, que orvalhava-lhe o semblante de luz e
graça.
— Ainda bem! Já me habituaste a só achar bonito
aquilo que vejo através do teu mimoso sorriso. Agora é que eu começo a gozar
desta linda manhã.
Trocamos ainda algumas palavras.
De repente Lúcia atirou-se a mim. Com uma
arrebatada veemência esmagou na minha boca os lábios túrgidos, como se os
prurisse fome de beijos que a devorava. Mas desprendeu-se logo dos meus braços,
e fugiu veloz' ardendo em rubor, sorvendo num soluço o seu último beijo.
Fugiu, e ao passar fechou a porta que comunicava
com o interior.
Contrariado por este obstáculo, consolei a minha
impaciência com o sabor a esperança que se insinuara no meu coração. A fúria
amorosa dos primeiros tempos, recalcada por uma força misteriosa, despertava.
Outra vez a febre voluptuosa nos arrebataria para abrir-nos a mansão do prazer
e dos mágicos deleites.
A minha esperança afagava-me tanto mais risonha,
quanto desde o momento cruel em que vira Lúcia quase morta nos meus braços,
nunca mais a ponta mimosa do seu lábio roçara sequer pelo meu, ávido de
carícias. O seu beijo quase de irmã apenas de longe em longe bafejava-me a
fronte; e isso mesmo depois de ter-me cerrado as pálpebras com a mão, para que
eu não visse arder o lacre de suas faces.
A porta abriu-se enfim.
Lúcia apareceu trazendo a irmã pela mão. Sua
fisionomia e atitude reslumbravam já a casta serenidade, que obrigava quantos a
cercavam agora, a uma doce e terna veneração. Procurei debalde, sob essa calma
aparência, um vestígio das emoções recentes; a tranqüilidade vinha do intimo,
exalava dos seios d'alma, e difundia-se brandamente por toda a sua pessoa.
Julgaria que nada tinha passado, se as lágrimas já estanques não houvessem
empanado a habitual limpidez de seu olhar.
Ana adiantou-se para mim, e dando-me a mão como
costumava, apresentou rubescente a fronte pura e angélica. Admirado não sabia o
que fizesse, quando por cima da loura cabeça da menina vi o gesto imperativo de
Lúcia. Toquei com os lábios a raiz daqueles cabelos sedosos que ondulavam com o
sopro de minha respiração. Ana teve um estremecimento intimo; e banhou-se na
onda de púrpura que descendo-lhe da fronte, derramou-se pelas espáduas,
roseando a branca escumilha.
— É assim que se deve dizer adeus quando se quer
bem! exclamou Lúcia abraçando a irmã.
Partimos para a missa, como de costume. Lúcia e a
irmã com os braços enlaçados, eu a alguma distância, passando por desconhecidos
que seguiam o mesmo caminho. Mas de longe mesmo, um olhar rápido trocado a
furto, um gesto imperceptível, nos aproximava um do outro no meio da multidão.
Ambas trajavam de preto, com véus espessos; elas
sentiam quanto é tocante o uso de só penetrar na casa de Deus ocultando a
beleza sob a gala triste e grave, que prepara o espírito para o santo recolho.
De volta da missa, tomaram de novo as suas alvas
roupas de cassa, e vieram sentar-se junto de mim; porém Lúcia que costumava
ficar entre nós, trocou o lugar com a irmã. Toda a nossa vida era tão igual, e
sucedia-se com tal regularidade, que essa circunstância não me podia escapar.
Apesar da separação, em que não tinha de todo
perdido a minha fagueira esperança, aproveitava o momento em que a menina
voltava o rosto, para suplicar Lúcia com um gesto; ela respondeu com um olhar
de tão fria severidade que gelou-me
— Ana, vai mandar deitar o almoço. Paulo hoje
acordou muito cedo!
Acompanhou com os olhos a irmã até que ela
desapareceu no fundo do corredor; e voltou-se para mim séria e recolhida:
— Foi uma loucura! Esqueçamos esse momento, Paulo.
— Se tivesses verdadeira afeição a teu amigo,
Maria, não o tratarias com tanta severidade!
— Paulo! Paulo... Tu bem sabes que com esta palavra
me farias cometer crimes, se crimes fossem necessários para te provar que eu só
vivo da vida que me dás, e me podes tirar com um sopro. Não sou eu criatura
tua? Não renasci pela luz que derramaste em minha alma? Não és meu senhor, meu
artista, meu pai e meu criador?
Fez-me um gesto para que não a interrompesse.
— Tu podes me fazer voltar à treva de que me
arrancaste; podes estancar as fontes de minha existência que manam de tua alma;
e não me hás de ouvir uma só queixa. A dor, como a alegria, serão sempre
benditas, porque virão de ti. Mas, Paulo, a súplica do humilde não ofende. Deus
a permite e exalça. Não me retires a graça e a bênção que me deste! Salva-me,
Paulo! Salva-me de ti. Salva-me de mim mesma!...
Deixou-se cair a meus pés, e sua voz espedaçou-se
num grito pungente:
— De mim que não terei forças para resistir, se a
tua coragem me não exaltar.
Ergui-a, fazendo-a sentar nos meus joelhos. Ela
deixou-se atrair, com meiga confiança. Seu instinto sutil lhe dizia que não
devia temer naquele momento; adivinhava o respeito e a unção de que minha alma
a envolvia, santificando-a.
— Maria, minha amiga, sossega! Se for preciso, eu
terei força por nós ambos. Perdoa-me, porque te ofendi; não soube resistir. Não
sucederá mais nunca, eu te prometo! Recobra o teu sorriso celeste, que me purifica!
Lúcia sorriu; nesse sorriso banhou-se minha alma e
eu a senti melhor e mais pura.
— Tu és bom, como Deus, que me deu a ti, Paulo,
para não esperdiçar as sobras de tua alma. Tu deves ler dentro de mim, e
compreender o que eu não sei dizer, o que não sei nem mesmo pensar. A vida como
tu ma fizeste é a bem-aventurança, porque vivo já no céu. Entre nós ambos nada
existe; tu me absorves em ti, somos um: em torno de nós só Deus que nos
protege, que nos une, e envolve-nos com um único de seus olhares. Tu, Paulo, tu
podes tocar a terra sem quebrar essa coesso de nossas almas; porque sou uma
coisa tua, uma porção de teu ser; porque te pertenço e te sigo fatalmente;
porque na terra, como no céu, longe ou perto, vivo de tua vida. Mas tua Maria,
o reflexo de tua luz e a flor de tua seiva, se ela caísse no pó, se
desprenderia de ti para sempre. . . Como aqueles a quem o Senhor abandona na
hora extrema! Compreendes, Paulo, compreendes !
Respondi apenas com o olhar; a voz me falecia,
tanto aquelas palavras tocantes de Lúcia me comoviam.
— Se estivesses junto de mim durante aquela
eternidade de vinte dias em que me deixaste só com a minha consciência, verias
que martírio foi o meu, quando eu queria erguer-me do abismo para abrigar-me e
esconder-me em ti; mas sentia a tua própria mão que me repelia e precipitava de
novo! Verias também no meu rosto quanto horror me causava a só idéia de que eu
talvez trouxesse já nas entranhas o verme que me devia roer as vísceras. Que
importa que esse verme fosse gerado do teu e do meu sangue? Ele me arrancaria
uma porção deste espírito que é teu, e criara uma vida nova nesta carne que já
morreu, e não pode ressuscitar para sentimento algum!
Ana veio chamar-nos para almoçar.
Saindo da mesa, dávamos habitualmente algumas
voltas pelo jardim: elas colhendo flores para os vasos, eu fumando o meu
charuto. Às dez horas pouco mais ou menos entrávamos. Lúcia levava-nos então
para o seu toucador bem pobre e bem modesto, mas ainda assim encantador, como
tudo que essa mulher tocava com as pontas de seus dedos de fada ou bafejava com
o seu hálito celeste.
Então Lúcia ocupava-se em anelar os cabelos louros
da irmã e a toucá-la com tanto esmero como se a preparasse para alguma festa
esplêndida; essa festa era a nossa intimidade, que Ana alegrava com o seu
sorriso e inocência Depois de ter posto a irmã tão bonita, quanto ela
caprichava em tornar-se simples, fazia-me admirar aquela formosura infantil e
gozava do prazer que nos fazia sentir. Durante o seu trabalho, eu lia para
ambas alguma página de literatura, ou falava sobre um tema agradável.
Nesse dia porém a ordem de nossa comum existência
fôra perturbada. Lúcia chamou-me para ajudá-la a pentear a irmã: fez-me sentar
ao lado; deu-me a segurar um após outro os lindos anéis que se enroscavam entre
os seus dedos; e rindo e folgando afagava-me o rosto com a nuvem desses cabelos
finos e sutis, e obrigava-me a beijar as pontas. O que ela exigiria de mim que
eu não fizesse para vê-la feliz do seu desejo satisfeito ?
As duas horas costumava eu sair e fazer um passeio
pelo encanamento. Esse caminho estava tão cheio da imagem de Lúcia, que
deixando-a em casa um momento, parecia-me que ela me acompanhava, que eu sentia
a pressão do seu braço no meu e a frescura embalsamada do seu hálito na minha
face; ao mais leve estremecimento das folhas supunha ouvir o rugir da seda de
seu vestido. Trazia do meu passeio alguma flor silvestre, uma borboleta,
qualquer coisa, colhida em sua intenção para dizer-lhe que me lembrara dela:
eram relíquias para o seu coração.
Quando cheguei, Lúcia estava só no jardim, debaixo
de uma espessa e sombria latada de maracujás, tão absorvida em sua meditação
que não me percebeu.
— Onde andava este pensamento tão longe de mim?
disse-lhe sentando-me ao lado.
Sobressaltou-se, e abanou a cabeça sorrindo:
— Longe de ti?... Estava fazendo projetos para a
nossa felicidade.
— Já não é ela uma realidade, Maria?
— E por isso, porque eu sei o que ela vale, receio
que não dure sempre. Tu vives num mundo, Paulo, onde há condições que serás
obrigado a aceitar, cedo ou tarde; um dia sentirás a necessidade de criar uma
família, e gozar das afeições domésticas.
— Não me casarei nunca!
— Agradeço-te essa palavra; mas recuso o
sacrifício. Se a tua bondade por mim não te cegasse neste momento, me darias
razão. Há sentimentos e gozos que ainda não sentiste, e só uma esposa casta e
pura te pode dar. Por mim te havias de privar de tão santas afeições, como são
o amor conjugal e o amor paterno ?
— Assim, eram estes os projetos que fazias sobre a
nossa felicidade? repliquei com um sorriso amargo. Se essa necessidade de que
falas é tão forte que ninguém se pode esquivar a ela, o que eu contesto, nunca
pensei que fosses tu que a lembrasse.
— Escuta-me primeiro, Paulo, meu amigo; depois pune-me,
se eu merecer, mas não retires de mim o teu olhar. Pensas que essa idéia de que
um dia me poderás abandonar por uma mulher a quem deverás consagrar toda a tua
vida, não me tortura? Se assim fosse, por que me preocuparia com isto? É porque
temo essa desgraça, que refletia no meio único de evitá-la.
— E esse meio?. . . Qual é ele? Dize-me.
— Ana! respondeu Lúcia timidamente.
Não compreendi.
— Poderias escolher uma noiva rica, de alta
posição, porém não acharás alma tão pura, nem mais casto amor.
— Queres casar-me com Ana ? Com tua irmã, Maria ?
— Quero uni-la ao santo consórcio de nossas almas.
Formaremos uma só família; os filhos que ela te der, serão meus filhos também;
as carícias que lhe fizeres, eu as receberei na pessoa dela. Seremos duas para
amar-te; uma só para o teu amor. Ela será tua esposa; eu completarei todas as
outras afeições de que careces, serei tua irmã, tua filha, tua mãe!
— E podes dispor assim dos sentimentos de Ana?
— Era preciso que ela não vivesse comigo, para
deixar de amar-te! Já te ama. Não sabes então que o meu pensamento e a minha
alegria têm sido formar aquela alma pelo molde da minha?
— Tudo isto é um sonho teu, minha amiga! Vivamos
com a realidade; e deixemos vir um futuro que pertence a Deus.
— Por que este sonho não se realizaria, querendo
tu? Seria a consagração da minha felicidade. Sim; não há sacrifício de minha
parte. Ana te daria os castos prazeres que não posso dar-te; e recebendo-os
dela, ainda os receberias de mim. Que podia eu mais desejar neste mundo? Que
vida mais doce do que viver da ventura de ambos? Ana se parece comigo; amarias
nela minha imagem purificada, beijarias nela os meus lábios virgens; e minha
alma entre a sua boca e tua gozaria dos beijos de ambos. Que suprema delícia...
Lúcia calou-se de súbito, empalidecendo. Toda a sua
pessoa assumiu-se, tomando a expressão vaga e extática de quem é absorvido por
um recolho íntimo: figurava uma pessoa escutando-se viver interiormente. Até
que ergueu-se espavorida; soltou um gemido pungente levando a mão ao regaço, e
caiu fulminada em meus braços.
O abalo interior que sofrera esse corpo delicado
fora tão forte, que a cintura do vestido se despedaçara.
Conduzi Lúcia ao seu leito, e só depois de cruéis
angústias tive o consolo de vê-la recobrar os sentidos, mas para cair logo numa
prostração, em que apesar dos meus rogos e instâncias, só a ouvia murmurar
surdamente estas palavras incompreensíveis:
— Eu adivinhava que ele me levaria consigo!
— Ele quem, minha boa Maria?
— O teu, o nosso filho! respondeu-me ela.
— Como! Julgas ?. . .
— Senti há pouco o seu primeiro e o seu último
movimento!
— Um filho! Mas é um novo laço e mais forte que nos
prende um ao outro. Serás mãe, minha querida Maria? Terás mais esse doce
sentimento da maternidade para encher-te o coração; terás mais uma criatura com
quem repartir a riqueza inexaurível de tua alma!
— Cala-te, Paulo! Ele morreu! disse-me com a voz
surda. E fui eu que o matei!
— Para que te afliges assim! Nosso filho vive, há
de viver! Não sentiste há pouco o seu primeiro movimento.
Nisto chegou o médico a quem tinha escrito
imediatamente, e que depois de examinar o estado de Lúcia, declarou que não
inspirava receio. Ela estava ameaçada de um aborto, resultado do choque
violento que sofrera, quando conheceu que se achava grávida. O doutor, um dos
mais hábeis parteiros da corte, procurou desvanecer os receios de Lúcia,
assegurando-lhe que seu filho vivia, e nada ainda fazia recear pela sua vida.
Apenas o médico saiu, ela olhou-me tristemente:
— Era o primeiro! Mas o tato das entranhas
maternas, sejam elas virgens ainda, não engana. Nosso filho, Paulo, o teu,
porque ele era mais teu do que meu, já não existe.
À noite declarou-se a febre; uma febre intensa que
a fez delirar. Foi então que conheci quanto eu vivia no seu pensamento: ela não
disse no delírio uma só palavra que não se referisse a mim e a alguma
circunstância de nossa vida mútua, desde o primeiro dia em que nos encontramos.
Pela manhã, depois de um sono curto e agitado,
achei-a mais tranqüila:
— Tu me prometes, Paulo, casar com Ana!
— Não tratemos disso agora, minha amiga! Quando
ficares boa, tudo o que tu quiseres eu farei para a tua felicidade.
— Mas essa promessa me daria tanto agora!
Escuta, Maria, esse casamento nos tornaria
infelizes a ti, à tua irmã, e a mim que não poderia amá-la, mesmo por causa
dessa semelhança! Tu viverias sempre entre mim e ela!
— Pois bem, promete-me que se ela não for tua
mulher, lhe servirás de pai.
— Juro-te!
Beijou-me as mãos:
— Ela vai ter tanta necessidade de um pai!
Os acessos de febre repetiram-se durante três dias,
e sempre mais graves. Uma tarde em que o médico apresentou a Lúcia um remédio:
— Para que é isso? perguntou ela com brandura.
— Para aliviá-la do seu incomodo. Logo que lançar o
aborto, ficará inteiramente boa.
— Lançar!... Expelir meu filho de mim?
E o copo que Lúcia sustentava na mão trêmula,
impelido com violência, voou pelo aposento e espedaçou-se de encontro à parede.
— Iremos juntos'... murmurou descaindo inerte sobre
as almofadas do leito. Sua mãe lhe servirá de túmulo.
De joelhos à cabeceira eu suplicava-lhe que bebesse
o remédio que a devia salvar.
— Queres acompanhar teu filho, Maria, e
abandonar-me só neste mundo. Vive por mim!
— Se eu pudesse viver, haveria forças que me
separassem de ti? Haveria sacrifício que eu não fizesse para comprar mais
alguns dias da minha felicidade? Mas Deus não quis. Sinto que a vida me foge!
A instâncias minhas bebeu finalmente o remédio, que
nenhum efeito produziu. A febre lavrava com intensidade; eu já não tinha esperanças.
— O remédio de que eu preciso é o da religião.
Quero confessar-me, Paulo.
Lúcia tomou os sacramentos com uma resignação
angélica; e abraçando a irmã, disse-lhe:
— Perdes uma irmã, Ana; fica-te um pai. Ama-o por
ele, por ti e por mim
O dia se passou na cruel agonia que só compreendem
aqueles que ajoelhados à borda de um leito viram finar-se gradualmente uma vida
querida.
Quebrado de fadiga e vencido por uma vigília de
tantas noites, tinha insensivelmente adormecido, sentado como estava à beira da
cama, com os lábios sobre a mão gelada de Lúcia e a testa apoiada no recosto do
leito. O sono foi curto, povoado de sonhos horríveis; acordei sobressaltado e
achei-me reclinado sobre o peito de Lúcia, que se sentara de encontro às
almofadas para suster minha cabeça ao colo, como faria uma terna mãe com seu
filho.
Mesmo adormecido ela me sorria, me falava, e
cobria-me de beijos:
— Se soubesses que gozo supremo é para mim
beijar-te neste momento! Agora que o corpo já está morto e a carne álgida, não
sente nem a dor nem o prazer, é a minha alma só que te beija, que se une à tua
e se desprende parcela por parcela para se embeber em teu seio.
E seus lábios ávidos devoravam-me o rosto de
carícias. bebendo o pranto que corria abundante de meus olhos:
— Se alguma coisa me pudesse salvar ainda, seria
esse bálsamo celeste, meu amigo!
Eu soluçava como uma criança.
— Beija-me também, Paulo. Beija-me como beijarás um
dia tua noiva! Oh! agora posso te confessar sem receio. Nesta hora não se
mente. Eu te amei desde o momento em que te vi ! Eu te amei por séculos nestes
poucos dias que passamos juntos na terra. Agora que a minha vida se conta por
instantes, amo-te em cada momento por uma existência inteira. Amo-te ao mesmo
tempo com todas as afeições que se pode ter neste mundo. Vou te amar enfim por
toda a eternidade.
A voz desfaleceu completamente, de extenuada que
ela ficara por esse enérgico esforço. Eu chorava de bruços sobre o travesseiro,
e as suas palavras suspiravam docemente em minha alma, como as dulias dos anjos
devem ressoar aos espíritos celestes.
— Nunca te disse que te amava, Paulo!
— Mas eu sabia, e era feliz!
— Tu me purificaste ungindo-me com os teus lábios.
Tu me santificaste com o teu primeiro olhar! Nesse momento Deus sorriu e o
consórcio de nossas almas se fez no seio do Criador. Fui tua esposa no céu ! E
contudo essa palavra divina do amor, minha boca não a devia profanar, enquanto
viva. Ela será meu último suspiro.
Lúcia pediu-me que abrisse a janela: era noite já;
do leito víamos uma zona de azul na qual brilhava límpida e serena a estrela da
tarde. Um sorriso pálido desfolhou-se ainda nos lábios sem cores: sublime
êxtase iluminou a suave transparência de seu rosto. A beleza imaterial dos
anjos deve ter aquela divina limpidez.
— Recebe-me... Paulo!...
Terminei ontem este manuscrito, que lhe envio ainda
úmido de minhas lágrimas.
Relendo-o, admirei como tivera a coragem de alguma
vez, no correr desta história, deixar a minha pena rir e brincar, quando o meu
coração estava ainda cheio da saudade, que sepultou-se nele para sempre.
É porque, repassando na memória essa melhor porção
de minha vida, alheio-me tanto do presente que revivo hora por hora aqueles
dias de ventura, como de primeiro os vivo, ignorando o futuro, e entregue todo
às emoções que sentia outrora. Quando eu gracejava, Lúcia estava ainda ao meu
lado; ainda eu era feliz da minha lembrada felicidade.
Há seis anos que ela me deixou; mas eu recebi a sua
alma, que me acompanhará eternamente. Tenho-a tão viva e presente no meu
coração, como se ainda a visse reclinar-se meiga para mim. Há dias no ano e
horas no dia que ela sagrou com a sua memória, e lhe pertencem exclusivamente.
Onde quer que eu esteja, a sua alma me reclama e atrai; é forçoso então que ela
viva em mim. Há também lugares e objetos onde vagam seus espíritos; não os
posso ver sem que o seu amor me envolva como uma luz celeste.
Ana casou-se há dois anos. Vive feliz com seu
marido, que a ama como ela merece. É um anjo de bondade; e a juventude
realçando-lhe as graças infantis, aumentou a sua semelhança com a irmã; porém
falta-lhe aquela irradiação intima de fogo divino. Almas como as de Lúcia, Deus
não as dá duas vezes à mesma família, nem as cria aos pares, mas isoladas como
os grandes astros destinados a esclarecer uma esfera.
Cumpri a vontade de minha Lúcia; tenho servido de
pai a essa menina; com a sua felicidade paguei um óbolo de minha gratidão à
doce amiga que tanto amou-me.
Estas páginas foram escritas unicamente para a
senhora. Vazei nelas toda a minha alma para lhe transmitir um perfume da mulher
sublime, que passou na minha vida como sonho fugace. Creio que não o consegui;
por isso fecho aqui alguns fios da trança de cabelos, que cortei no momento de
dizer o último adeus à sua imagem querida.
Há nos cabelos da pessoa que se ama não sei que
fluido misterioso, que comunica com o nosso espírito. A senhora há de amar
Lúcia, tenho a certeza; talvez pois aquela relíquia, ainda impregnada de seiva
e fragrância da criatura angélica, lhe revele o que eu não pude exprimir.
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística