LITERATURA BRASILEIRA Textos literários em meio eletrônico “Uma vítima da vaidade”, de Fernandes Pinheiro Júnior _____________________________________________________________________ Edição de Referência: Jornal das Famílias. Tomo 12, março de 1874, p. 64-70. I Na cidade de..., numa chácara retirada, habitava uma família, cujo chefe chamava-se Manoel Correia. Ex-empregado público, obtivera a aposentadoria e aí vivia longe do burburinho da cidade. Homem vaidoso, o seu único anelo era casar uma filha que tinha com algum fidalgo, que entusiasmasse-se pela beleza dela. Com efeito, Elvira (tal era o seu nome) era a moça mais linda que imaginar se pode. Morena, de estatura regular, cabelos e olhos pretos, lábios rosados e pequenos, que, quando entreabriam-se, deixavam ver duas linhas de dentes claros como o marfim; era mais pelas suas maneiras agradáveis do que por esses atributos, que ela cativava a todos aqueles que tinham a dita de conhecê-la. II Alfredo Torres, estudante do quarto ano de medicina, tinha vindo passar, nessa mesma cidade, as férias em casa de sua família, que só à custa de muitos sacrifícios fazia-o prosseguir os estudos. Aí pela primeira vez viu Elvira e logo consagrou-lhe amor: não esse amor vulgar, porém um amor sincero, veemente, arrebatado, capaz de afrontar todos os obstáculos, que, segundo, um escritor contemporâneo, são os maiores incentivos dele. Elvira também, cumpre dizê-lo, logo sentiu no seu peito uma emoção, um não sei que indefinível por Alfredo; mas ao mesmo tempo o seu coração pressago augurava-lhe infortúnios. É que Alfredo além de não ser fidalgo, era pobre, e o seu amor havia de encontrar oposição da parte do seu velho pai, que aspirava ter um parente nobre, que ilustrasse a família. Todavia amaram-se. III Estavam prestes a extinguir-se as suas férias e Alfredo preparou-se para tornar à Corte. Sempre, nessa ocasião, ele partia alegre, pois ia dar mais um passo para chegar ao fim de sua carreira. Desta vez porém, foi preciso que a família designasse-lhe o dia em que devia partir. Nem era de esperar outra cousa: quem pode abandonar sem pena o seu coração? E o coração de Alfredo ficava. Na véspera da partida foi despedir-se da família de Elvira. Oh! Deixem os leitores que eu passe em silencio este ponto de sua vida: era mister outra pena que não a minha para descrever a dor desses dois corações cheios da seiva da juventude, obrigados ainda a ocultá-la, a reprimi-la. IV Havia já três meses que Alfredo partira para continuar os seus estudos que Elvira vivia adormecida nos braços da esperança, quando um dia o seu aristocrático pai introduziu no seio de sua família, com muitas recomendações, um fidalgo recém-chegado à terra. Era de origem espanhola, dizia ele, chamava-se D. José Sanchez e tinha o título de barão da Felicidade. Após dois meses de assídua frequência à casa, pediu ao Sr. Manoel Correia em casamento a sua encantadora filha. Imagine-se a alegria deste, vendo realizada a sua única ambição. Prontamente concedeu-lhe o que queria, sem ao menos consultar a vontade da filha. – Ela é dócil, pensava, e por força há de fazer o que lhe ordenar. Mas, se Elvira era dócil, desta vez enganou-se ele. Não só declarou-lhe que não votava a menor simpatia a esse homem, cujo passado não era conhecido, como até declarou-lhe que já tinha disposto de seu coração. Correia ficou furioso e disse-lhe que nunca permitir-lhe-ia que se casasse senão com Exmº. Barão da Felicidade, ou com outro de sua hierarquia; que Alfredo era um miserável; e que, quanto ao passado do barão, não importava a ninguém. Para ele o titular não era responsável pelos maus atos que praticara anteriormente, quando usava de seu nome de baptismo. Infeliz Elvira! V Vejamos agora quem era o homem destinado para esposo desse querubim. Filho natural dum taverneiro português, nascera ele numa das cidades deste vasto império. Tendo o seu pai, por meio de muitos roubos e baixezas, bem como pela miséria em que viviam, ajuntado muitos cabedais, morrendo, deixou-lhe toda a sua fortuna. Digno filho de tal pai, D. José Sanchez, que nesse tempo era conhecido por José Medeiros, continuando a acumular dinheiro do mesmo modo, e só empregando-o em negócios ilícitos, fez afinal uma viagem a Espanha e a Portugal, donde voltou com o título de dom, outro nome e um baronato. Eis quem era D. José Sanchez, barão da Felicidade. VI Dois meses se tinham passado depois do infausto dia em que o futuro de Elvira tinha sido anuviado por seu pai. Durante esse tempo, nunca se passou um só dia em que ela não ouvisse, direta ou indiretamente, alusões a si, como filha desobediente e de sentimentos baixos, ameaças de maldição paterna e por consequência de castigos na outra vida. Finalmente uma manhã apresentou-lhe o seu progenitor um ultimatum: por bem, ou por mal havia de cumprir as suas ordens. A pobre moça, tendo perdido esperança de casar-se com Alfredo, e temendo as ameaças de seu pai, pois era uma filha modelo, disse-lhe que estava ao seu dispor, que fizesse o que intendesse, não obstante desprezar o noivo que se lhe impunha. Mal ouviu isto dirigiu-se logo Correia ao palácio do barão, relatou-lhe o ocorrido e pediu-lhe que determinasse com presteza o dia em que se devera efetuar o seu consorcio. VII Faltavam oito dias para Elvira perder o seu nome, tornar-se baronesa da Felicidade, ela – a vítima da desgraça. O Sr. Manoel Correia exultava, crendo ter conseguido a execução de seu maior anelo – afidalgar sua família. O barão ainda mais contente estava por ter comprado com a sua infâmia a posse de uma divindade terrestre. Só Elvira era triste, apesar das felicitações que de toda a parte e a cada instante recebia. Pálida, magra, sempre pensativa, dir-se-ia que era presa de alguma enfermidade. E na realidade bem próximo estava o dia de sua morte. Pressentindo-o, escreveu a Alfredo a seguinte carta, cinco dias antes do destinado para a realização do seu himeneu. “Alfredo, “Perdoa-me o golpe que subitamente vou dar-te; mas se não dei-te antes foi esperando que a desgraça se compadecesse de mim e de ti. “Cinco meses depois de sua partida, meu pai ofereceu-me como esposo um fidalgo improvisado, um tal barão da Felicidade, recém-vindo do estrangeiro. “Recusei: disse-lhe que só a ti consagrava amor, que detestava esse homem. “Julgava ter vencido a férrea vontade de meu pai; mas eis que há poucos dias ordenou-me que lhe obedecesse, isto é, que casasse-me com o seu escolhido, sob pena de, caso de novo rejeitasse, merecer a sua maldição. “Sem lhe dizer que sim, respondi que fizesse o que entendesse. Tu és bom, meu querido Alfredo, podias aprovar a desobediência de uma filha? “Ajustaram meu pai e o meu futuro marido que a celebração do meu matrimonio terá lugar daqui a cinco dias. Mas creio que o céu se compadeceu de mim; parece-me que estou bem doente, que está próximo o dia de minha morte. “Adeus; Alfredo; sou e continuarei a ser, Tua fiel amante Elvira”. VIII No dia seguinte àquele em que escrevera a carta acima, Elvira foi acometida duma febre tão violenta, que os médicos logo a desenganaram. Nos momentos de delírio, o nome de Alfredo, acompanhado de palavras ininteligíveis, nunca lhe saiu dos lábios. A morte zombou da ciência: no dia em que devia cingir a capela de noiva, cingiu a da imortalidade, deu a alma ao criador. Pobre vítima da ambição e do orgulho, foi no céu receber entre os anjos, seus irmãos, o prêmio de seu martírio. Quando Alfredo, já aflito pela leitura da carta que ela lhe dirigiu, recebeu a notícia de sua morte, despedaçou o crânio com um tiro de revólver. IX No dia 2 de novembro de 1860, um velho chorava sobre uma sepultura e arrancava os cabelos, com visíveis sinais de loucura. A sepultara encerrava os despojos mortais de Elvira e o velho era Manoel Correia, que murmurava febrilmente: — Elvira . . . Alfredo . . . perdoai ao vosso assassino. L. L. Fernandes Pinheiro Junior