O cinismo de Sir Humphrey não explica o Brexit, mas tem piada

O Reino Unido sai da União Europeia depois de ter estado lá dentro meio século. Se o objetivo secreto era dividir para reinar, como a série Sim, Senhor Ministro especulava num episódio de 1981, então os britânicos nunca deixariam de ser membros. É que a realidade pode ultrapassar até a melhor das ficções da BBC.

Morreu há poucos dias Derek Fowlds, que interpretava Bernard Wooley em Sim, Senhor Ministro. Era o último sobrevivente do trio que ajudou a tornar mítica esta série da BBC. Paul Eddington, que fazia de Jim Hacker, e o fabuloso Nigel Hawthorne, o tão culto como cínico Sir Humphrey Appleby, já partiram há muito. Não tiveram oportunidade de ver o referendo sobre o Brexit nem todo o circo parlamentar que se seguiu em Westminster de modo a concretizar a saída do Reino Unido da União Europeia, reagendado para este 31 de janeiro. O divórcio com os outros 27 chegou a estar marcado para 29 de março do ano passado, depois para 31 de outubro.

Baseada nos livros de Antony Jay e Jonathan Lynn, Sim, Senhor Ministro e Sim, Senhor Primeiro-Ministro, a série passou nos anos 1980 na RTP e entre os geniais diálogos está um sobre o compromisso europeu dos britânicos, membros da CEE (depois UE) desde 1973. Tornou-se viral na internet depois do referendo de 2016 essa conversa em que Sir Humphrey explica a um atónito ministro Hacker que o Reino Unido não era mais do que um cavalo de Troia: "Ministro - O gabinete dos negócios estrangeiros está consciente dos danos que isto causará ao ideal europeu? Sir Humphrey - Tenho a certeza de que sabe, foi por isso que aprovou. Ministro - Seguramente o Ministério dos Negócios Estrangeiros é europeísta, certo?

Sir Humphrey - Sim e não... perdoe a minha expressão. O Ministério dos Negócios Estrangeiros é muito europeísta por ser eurocético. O Reino Unido tem os mesmo objetivos externos que tinha há, pelo menos, 500 anos: criar uma Europa desunida." Bernard, também funcionário, está a ouvir, evitando demasiada reação às palavras do chefe.

Baseada nos livros de Antony Jay e Jonathan Lynn, Sim, Senhor Ministro e Sim, Senhor Primeiro-Ministro, a série passou nos anos 1980 na RTP e entre os geniais diálogos está um sobre o compromisso europeu dos britânicos, membros da CEE (depois UE) desde 1973.

É fácil encontrar este pedaço de episódio no YouTube. Um reencontro delicioso para quem via a série há umas décadas, uma descoberta feliz para as novas gerações. E recomendo também a leitura do diálogo publicado no The Guardian logo no verão de 2016, e escrito pela dupla Jay e Lynn, em que o Brexit votado é o tema de conversa entre o ministro e Sir Humphrey, terminando deliciosamente assim: "Ministro - Sim, sim! Ouvi sobre isso tudo. Mas você é a favor do Brexit? Sir Humphrey - Isso depende do que ele significa. Ministro - Brexit significa Brexit. Sir Humphrey - Sim, senhor ministro."

Há pouco descrevi como circo aquilo que ao longo de três anos e meio se foi passando no parlamento britânico. No sentido de ser divertido, sim, visto de fora, com cada um a escolher os seus heróis e os seus vilões, de um vasto leque de políticos, como o trabalhista Jeremy Corbyn, o eurocético mal disfarçado, Theresa May, a primeira-ministra conservadora incumbida de negociar o Brexit apesar de ser contra, e Boris John­son, agora primeiro-ministro, agora também vencedor de umas eleições antecipadas que sorriram ao Partido Conservador, e homem feliz a desempenhar esta missão de confirmar que as Ilhas Britânicas estão mesmo separadas do continente. Admirado por todos só John Bercow, o agora ex-speaker do Parlamento, que no fundo foi capaz de mostrar que o circo não era mais do que a experiente democracia britânica a funcionar, com todos os seus freios e contrapesos, cada deputado com uma legitimidade dada pelo voto direto que os torna livres da obediência partidária.

Estive em reportagem para o DN em duas eleições legislativas britânicas, as de 2001, que deram a segunda vitória ao trabalhista Tony Blair, e as de 2010, que resultaram no triunfo de David Cameron sobre Gordon Brown e significaram o fim de 13 anos de governação do Labour. E se Blair e Brown, dois escoceses, eram (e são) euroentusiastas, não se pode dizer que o inglês Cameron alguma vez tenha sido um eurocético. Fui reler as minhas reportagens de há dez anos e aquilo de que as pessoas falavam era de emprego, de sistemas de saúde e de educação, também de alguma preocupação com a chegada de imigrantes.

A União Europeia pouco peso teve na campanha, na qual, aliás, os liberais tiveram um excelente resultado e eles são o partido mais eurófilo de todos. "Entre os milhões de formiguinhas que, vistas do ar, se preparam para votar, há umas que parecem mais tensas: o conservador David Cameron, que anseia ser primeiro-ministro, o trabalhista Gordon Brown, que tenta manter-se à frente do governo, e o liberal-democrata Nick Clegg, que descobriu que conta mais do que pensava. E outros quatro mil candidatos, que disputam 650 assentos na Câmara dos Comuns. Atenção ali ao sul da Inglaterra: em Brighton há uma mulher que acredita que vai ser notícia. É Caroline Lucas, líder dos verdes, provável deputada", foi o início do artigo que publiquei o DN a 6 de maio de 2010 e como veem nada que soasse a Brexit. Nessas eleições Nigel Farage nem sequer foi candidato à Câmara dos Comuns e se houve figura a destacar-se entre os pequenos partidos essa foi a líder dos verdes.

Em dezembro de 2011, tudo mudou. Cameron começou a entrar em choque com a UE, cada vez mais refém dos eurocéticos na bancada tory. E foi então que fiz uma crónica intitulada "Cameron aprendeu tudo a ver Sim, Senhor Ministro" onde, claro, falava do tal resumo de Sir Humphrey sobre a prioridade da diplomacia britânica - evitar uma Europa continental demasiado forte. Uma interpretação muito especial da célebre frase de Lord Palmerston, que foi primeiro-ministro no século XIX: "As nações não têm aliados ou inimigos permanentes, só têm interesses permanentes."

Hoje diz-se que Cameron nunca quis o Brexit, que o referendo foi convocado para, confirmando a opção europeísta, acabar de vez com um debate que dividia os conservadores. Também se diz que foi um eleitorado ignorante das consequências do Brexit que votou neste por escassa maioria. E não faltam vozes que veem nesta rutura com a UE o prenúncio de uma rutura do próprio Reino Unido, com a Escócia a tornar-se independente e a Irlanda do Norte a ser incluída na República da Irlanda. Quase tudo dependerá da qualidade da governação de John­son e de como Londres e a Comissão Europeia em Bruxelas se entenderem e continuarem a cooperar.

Convém mesmo relembrar que se o Reino Unido não esteve entre os fundadores da CEE em 1957, nunca esteve de todo alheado da ideia de construir uma unidade europeia. Carlos Gaspar, autor de A Balança da Europa e investigador do Instituto Português de Relações Internacionais, relembrou-me de tal numa entrevista em que disse: "A reconstrução da Europa, a seguir à Segunda Guerra Mundial, tem origem sobretudo na Inglaterra. É a Inglaterra que tem a iniciativa do Tratado de Dunquerque, que tem a iniciativa do Tratado de Bruxelas, que tem a iniciativa do Tratado de Washington, que cria a NATO em 1949. A Inglaterra está com a França no Plano Marshall e no início do processo de integração europeia. A Grã-Bretanha é um dos reconstrutores da Europa do pós-guerra, neste sentido em que as instituições de segurança são pelo menos tão importantes como as instituições que vão realizar a integração económica. A NATO é tão importante como as comunidades europeias e, de certa maneira, sem a NATO as comunidades europeias não existem." E tenhamos também em conta que se a adesão britânica aconteceu só na década de 1970 foi porque a França presidida pelo general Charles de Gaulle antes a vetara.

Voltemos a Sir Humphrey. É realmente tentador ver nas palavras daquele alto funcionário público a antecipação do Brexit, ainda mais ditas em 1981, quando Margaret Thatcher se tornou primeira-ministra. Sim, no passado a Inglaterra, ou a Grã-Bretanha, ou o Reino Unido, como quisermos, saiu do seu isolamento insular quando a Espanha de Filipe II era demasiado poderosa,

interveio contra a França quando Napoleão pretendia ser imperador de tudo, ergueu-se contra a Alemanha no século XX para evitar a nazificação do continente. Mas se a lógica de Sir Humphrey fizer sentido, o Brexit é a sua negação. Sair deixa os 27 à solta, destinados numa perspetiva otimista a ser mais coesos, dotados de uma moeda única e sob liderança do eixo franco-alemão. Um gigante, se deixar de ser uma potência hesitante, com um vizinho Reino Unido pequeno em comparação, por muito que os brexiteers elogiem a Commonwealth e a relação especial com os Estados Unidos como fontes de poder.

Estou convencido de que o Reino Unido e os 27 continuarão aliados. E ainda mais seguro da força da relação entre o Reino Unido e Portugal, que partilham muitos interesses: "Os laços entre as nossas nações e os nossos povos são tão fortes e relevantes hoje em dia quanto foram nos tempos antigos, e isso dá-me uma enorme esperança para o futuro", disse-me há uns tempos Chris Sainty, embaixador britânico em Lisboa, diplomata fluente em português.

Estou também convicto de que, sendo um erro do povo britânico (reversível ou não, veremos), o Brexit não se explica com o cinismo de Sir Humphrey.

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