Article Image



Como os dois lados da fronteira interpretam a nova lei de imigração do Arizona

Dois meses depois de a governadora Jan Brewer ter assinado a nova lei de imigração do Arizona — SB1070 —, a controvérsia em torno dela continua enorme. A lei, que entra em vigor no dia 28 de julho, permitirá à polícia do Arizona exigir a documentação pessoal de quem ela suspeite ter algum envolvimento com atividades criminosas. Embora a maior parte dos habitantes do estado ao sul da fronteira americana apóie a SB1070— e entre os especialistas americanos em assuntos relacionados aos EUA e ao México o apoio se dá de ambos os lados do Rio Grande —, a reação tem sido quase sempre negativa.

Contudo, há um mosaico enorme de opiniões entre seus adversários sobre o impacto de longo prazo da lei. Em um extremo, críticas vindas do México acusam a SB1070 de racista, comparando-a a alguns dos piores excessos da Alemanha nazista. Dizem eles que a lei poderá prejudicar as relações interculturais e de raça no Arizona, ao mesmo tempo que pouco ou nada faz para pôr fim à imigração ilegal. “Temos de declarar guerra ao Arizona”, escreveu o colunista Ricardo Rocha no jornal El Universal do México. “Os mexicanos deveriam boicotar completamente o estado: não deveriam comprar os produtos locais, deveriam se abster de viajar para a região e se recusar a freqüentar as universidades do estado. Essa lei injuriosa lembra a Alemanha nazista, em que os judeus tinham pavor de sair às ruas”, acrescentou.

Outros mexicanos que desaprovam o projeto de lei dizem que o México seria parcialmente culpado por sua popularidade, e que os EUA e o México deveriam, na verdade, negociar uma reforma abrangente da imigração, se é que existe realmente alguma perspectiva de deter a onda de ilegais. Em algum lugar no meio disso tudo aparece o governo mexicano, que não se sente plenamente à vontade para acusar muito seriamente o Arizona, já que o governo Obama também critica a SB1070. Em 22 de junho, o México entrou com uma peça legal no tribunal federal dos EUA no Arizona contestando a constitucionalidade da lei e solicitando que ela “não seja sancionada”. Com isso, o governo mexicano dificilmente diz alguma coisa que outros também não estejam dizendo. O presidente Barack Obama disse que o governo americano contestará o projeto do Arizona no tribunal federal. As prefeituras de Seattle a Baltimore aprovaram resoluções contra a lei, impedindo inclusive que funcionários municipais viajassem ao Arizona. O Partido da Ação Nacional do México (PAN), por sua vez, convocou um boicote total ao turismo mexicano no Arizona.

“De modo geral, há diversas opiniões no México sobre essa lei, e são todas negativas”, diz Rodolfo Cruz, professor do departamento de estudos populacionais na Faculdade da Fronteira Norte, em Tijuana, no México. “Entendemos a posição daqueles que querem boicotar o Arizona, porém o posicionamento do governo mexicano não é tão duro porque existe o interesse de manter relações comerciais e econômicas com o governo americano.”

“Não há um acadêmico sequer no México que diga que a lei é boa, mas há quem queira que o governo reaja mediante um posicionamento mais contundente que favoreça o surgimento de empregos de melhor qualidade no México”, diz Cruz.

A nova lei realmente é racista?

Ernesto Camou Healy, pesquisador do CIAD, Centro de Pesquisas de Alimentação e Desenvolvimento em Hermosillo, no México, assinala que “no fundo, a SB1070 diz que as pessoas que estão no Arizona sem a documentação exigida dos imigrantes (passaporte, visto, permissão, residência etc.) são criminosas e devem ser processadas” pelas autoridades locais. “Se alguém roubar ou matar, é evidente que deva ser objeto de processo pelo aparelho judicial do estado: agora, com a SB1070, quem não estiver de posse da documentação requerida, não importa a que classe pertença, incorrerá em ato igualmente punitivo. Esquecer a documentação no hotel e agredir uma senhora idosa passará a ser a mesma coisa. As penalidades para esse novo crime vão de seis meses de detenção a multas no valor de US$ 2.500”.

Para garantir que os trabalhadores sem documentação sejam presos, prossegue Camou Healy, “a lei obrigará a polícia estadual a encontrar e a processar quem estiver sem documentos, e a própria polícia será objeto de sanções se não o fizer”. No passado, cabia à patrulha de fronteira dos EUA — uma organização federal bem diferente da polícia estadual ou local — prender imigrantes ilegais, disse Camou Healy. De modo geral, esses funcionários do governo “não questionavam a situação dos imigrantes, e faziam vista grossa aos informantes dos ilegais. Jan Brewer, governadora do Arizona, disse que a medida era necessária, porque o governo federal não protege a fronteira e acaba sempre empurrando os trabalhadores sem documentos para seu estado”.

Camou Healy acusou o senador John McCain, republicano do Arizona, de ter apoiado a lei SB1070 depois de se empenhar anos a fio para que os EUA aprovassem uma reforma da lei de imigração que fosse mais esclarecida e abrangente. “McCain rejeitou completamente princípios e convicções que defendeu durante décadas, e acolheu a lei racista. Resta saber como os latinos que votaram nele no passado votarão na próxima eleição.” Embora os partidários da SB1070 neguem que a lei seja racista, Camou Healy diz que o apelido é “apropriado”, porque a lei concede à polícia o direito de determinar o critério adequado que lhe permita separar os suspeitos dos que não são. “Não há outro critério nesse contexto exceto o sotaque, a cor da pele e a nacionalidade da pessoa em questão”, diz ele.

A criminalidade irá aumentar ou diminuir com a aprovação da lei?

Mas será que a SB1070 terá, de fato, um impacto tão devastador? John D. Skrentny, professor de sociologia do Centro de Estudos sobre Imigração da Universidade da Califórnia, em San Diego, ao norte da fronteira com o México, não crê nisso. Skrentny não gosta da nova lei, mas diz que os meios de comunicação do país exageraram sua importância. Com base no estudo que fez sobre os grupos de imigrantes nos EUA, Skrentny avalia que a SB1070 talvez não tenha muito efeito prático. “É esperar para ver, porque a polícia do Arizona já tem muito o que fazer. Os policiais sabem que seu trabalho é medido pelo tanto que conseguem diminuir a criminalidade. Seu desempenho é mensurado pelo número de prisões feitas e pela diminuição da taxa de criminalidade.” Portanto, embora ¾ da população do Arizona tenha dito que apoia o projeto de lei, esse apoio pode facilmente se dissipar se a taxa de criminalidade aumentar depois que a polícia for obrigada a passar mais tempo questionando as pessoas que pareçam ser de origem mexicana, mas que fora isso não teria motivo algum para ser questionada sob a suspeita de que estivesse envolvida em atividades criminosas.

A SB1070 pode também dificultar a conquista do apoio popular para o serviço da polícia do Arizona em outras atividades voltadas para a erradicação do crime. “Há um forte movimento no estado em torno do apoio da população ao serviço da polícia. Para isso, os policiais fazem rondas a pé; há também lojas que prestam serviços comunitários”, diz Skrentny. “No entanto, se as pessoas acharem que ao entrar em contato com a polícia elas podem acabar sendo deportadas para o México, poderão não cooperar mais” com informações sobre um crime qualquer. Por motivos culturais profundamente arraigados em sua cultura, diz ele, a maior parte dos mexicanos há tempos não confia na polícia, quer estejam residindo nos EUA, quer no México. Um estudo da Universidade do Texas realizado vários anos atrás, por exemplo, constatou que muitos latinos nos EUA preferiam aguardar alguns dias antes de dar informações à polícia sobre um determinado crime porque receavam ser punidos pelos criminosos, além de haver entre a população latina uma desconfiança generalizada acerca das intenções dos policiais.

A SB1070 poderia acabar criando uma relação ainda mais antagônica entre a comunidade latina e a polícia local do Arizona numa época em que a polícia vem se esforçando para criar laços de cooperação entre os dois lados. “A percepção que as pessoas têm da lei é mais importante do que a lei em si”, diz Skrentny. “No momento em que você não tem mais controle sobre essa percepção, há um impacto sobre a sociedade.” Embora as pesquisas mostrem que cerca de 80% dos latinos no Arizona se oponham a SB1070, não há estudos que abordem de maneira mais sutil como os latinos encaram a lei. Será que eles acreditam que ela afetará de maneira desfavorável a forma como reagem aos esforços da polícia quando investiga a ocorrência de crimes nos bairros de população latina? Simplesmente não sabemos, diz Skrentny.

Novas rotas para ilegais a caminho do norte

Há uma decorrência da SB1070 que já ganha contornos bastante nítidos, diz Cruz. A nova lei poderá introduzir mudanças substancias nas rotas por terra seguidas pelos imigrantes ilegais ao entrarem nos EUA. Nos últimos sete ou oito anos, Sasabe, no Arizona, e também a fronteira com o estado de Sonora (no México), tornaram-se a principal porta de entrada de imigrantes ilegais, tomando o lugar de Tijuana. Depois de voar até Hermosillo, mais para o interior do país, muitos imigrantes ilegais vão até a cidade de Anahuac, próxima da fronteira, onde são orientadas por contrabandistas especializados. Cruz diz que esse modelo pode começar a mudar em julho ou agosto deste ano como consequência da SB1070. Ele lembra, porém, aos partidários da lei que “o modelo de imigração mudará se a lei do Arizona entrar em vigor, mas isso não deterá o processo”.

Por onde os ilegais irão cruzar a fronteira agora? Em muitos casos, eles tentarão entrar nos EUA através de diferentes estados se a notícia se espalhar de que Sasabe, no Arizona, realmente se tornou um local menos hospitaleiro em decorrência da aplicação da lei. “A primeira opção não será voltar para o México, e sim ir para outros estados, talvez a Califórnia”, diz Cruz. “Há também um padrão se configurando em que trabalhadores sem documentos procuram a Geórgia, as Carolinas do Norte e do Sul.” No momento, acrescenta, “o Texas não é um bom lugar para encontrar trabalho”, porque há poucas vagas disponíveis na construção civil em Dallas e em Houston para ilegais. Embora não aprovem a SB1070, as comunidades latinas de cidades como San Diego e El Paso não dão muita importância à lei de imigração do Arizona, diz Cruz, porque não são diretamente afetadas por ela, pelo menos não ainda. Contudo, há um “temor generalizado” de que se a lei for aprovada, pode um dia chegar à Califórnia e a outros estados com grandes contingentes de população hispânica.

Será que a agitação em torno da SB1070 pode acabar se tornando uma oportunidade de conquista do apoio dos políticos para uma reforma abrangente e há muito necessária da lei de imigração dos EUA? Isso pode demorar um pouco. Para Cruz, nem os EUA, nem o governo mexicano querem, atualmente, gastar muito capital político com a questão da imigração, porque “estão ambos mais interessados em outras questões políticas. Eles sabem muito bem que a imigração é um assunto bastante controverso”.

Pior de tudo, eles parecem se dar conta de que as reformas jurídicas resolverão apenas a questão da imigração ilegal, dada as enormes disparidades econômicas entre os EUA e o México. “A migração é um problema econômico, e o México não tem condições de oferecer trabalho para o conjunto de seus trabalhadores”, diz Cruz. Enquanto o México não for capaz de levar a prosperidade a uma fatia maior de sua população — sobretudo nas cidades remotas do interior —, os imigrantes ilegais continuarão a cruzar a fronteira, não importa qual lei tenham de violar.


Publicado em: 30/06/2010


Printer Friendly Version



Sponsor Knowledge@Wharton

buscar | inscrição | sobre nós | ajuda | início | contato | patrocinadores


O copyright de todos os materiais é propriedade da Wharton School da Universidade de Pennsylvania e Universia. Política de Privacidade