Imigração: a fronteira dos direitos humanos no século XXI

A afirmação de que a imigração constitui, no século XXI, a principal fronteira dos direitos humanos convida à reflexão e sugere duas idéias: a primeira, de que a imigração está pondo à prova a capacidade do mundo de universalizar os direitos humanos; a segunda, de que a imigração está desvelando a face dupla com que atuam os países centrais, generosos quando se trata de plasmar declarações internacionais de direitos humanos, mesquinhos na hora de fazer efetivos esses mesmos direitos dentro dos seus próprios territórios. Com pouquíssimas exceções, as políticas de imigração dos países centrais estão sendo construídas de cima para baixo e tendem a funcionar como políticas repressivas e excludentes, com práticas que priorizam o controle de fronteiras sobre a integração dos imigrantes. Assim, nesses países, conquanto desfrute de certa proteção social, o estrangeiro legalmente admitido costuma ser acolhido com os braços fechados, o que resulta em uma integração incompleta e de má qualidade. A situação dos estrangeiros irregulares, por outro lado, é muito mais problemática. Além disso, ao longo dos últimos anos, os estrangeiros sempre foram responsabilizados, de alguma forma, nos países centrais, pelo desemprego, pela crise do Estado, pelo crescimento da insegurança pública e da violência nas grandes cidades, etc. Com escassas exceções, partidos nacionalistas têm fomentado, na Europa, ideologias xenófobas que têm encontrado eco em parcelas consideráveis do eleitorado em países como Áustria, Bélgica (Flandres), Dinamarca, França, Itália e República Tcheca.

De fato, o fenômeno da imigração passou a ocupar, a partir dos últimos anos do século XX, um lugar central nos debates políticos nas sociedades capitalistas centrais, desvelando-se uma convergência cada vez mais intensa entre as políticas de imigração e de nacionalidade e as políticas econômicas, equação cada vez mais impactada pelo inexorável processo de globalização. As políticas de imigração e de nacionalidade têm, pois, uma relação que pode ser descrita como dialética e cada vez mais intensa com as políticas econômicas, como se pode verificar a partir da história recente do desenvolvimento dos fluxos migratórios e, em especial, a partir das restrições impostas às imigrações pelos países centrais desde as três últimas décadas do século XX, com as crises dos paradigmas que haviam garantido a bonança do crescimento econômico nos anos do pós-guerra.

Nesse contexto, a situação atual das políticas migratórias é o resultado de vários fatores, entre os quais se destaca o notável aumento da pressão migratória sobre os países centrais. As correntes migratórias atuais obedecem a um desnível e tendem a nivelar, mas não se trata apenas de um desnível demográfico: há uma clara correspondência entre as situações econômicas e políticas imperantes nos Estados e as correntes migratórias. Atualmente, estamos diante de um processo que está reestruturando as sociedades em escala planetária e as migrações internacionais são componentes desse processo de globalização e de reestruturação do sistema mundial.

Para manejar essa situação, em que as migrações internacionais respondem a dinâmicas cada vez mais complexas, os Estados buscam instrumentos que permitam não apenas a regulação dos fluxos migratórios, mas, diante da real insuficiência fática das medidas de controle de fronteiras, a promoção da integração social dos recém-chegados. Há uma crescente percepção, nos diversos países receptores de imigrantes, de que não é possível rechaçar por completo a entrada de estrangeiros e de que as suas capacidades de absorção são muito limitadas e geram problemas econômicos, sociais e culturais não apenas para os recém-chegados, mas para toda a sociedade, se não forem tomadas medidas que favoreçam a sua integração. As políticas migratórias correspondem, nesse contexto, não apenas ao conjunto de leis e disposições nacionais relativas à entrada, à circulação e à estadia de estrangeiros no território de um país, mas, com intensidade cada vez maior, às formas como se pretende dar a inserção desses estrangeiros na sociedade. Esses conjuntos de leis, disposições, propostas e indicações que constituem as políticas de imigração provocam frequentes dilemas e implicam, inclusive, mutações no conceito contemporâneo de cidadania.

O crescente fluxo de imigrantes lançou uma série de desafios para os países centrais, inclusive quanto à questão da imigração ilegal, à forma de integração dos imigrantes às sociedades nacionais e à provisão de direitos e garantias individuais e sociais. Entretanto, por outro lado, os imigrantes enfrentam o desafio de integrar-se a uma sociedade que muitas vezes reage com suspeita e hostilidade diante da sua chegada. Por não serem cidadãos nacionais, gozam de menos direitos do que a população nativa, sendo frequentemente explorados e discriminados, inclusive na esfera trabalhista: as exclusões ou preferências segundo o tipo de emprego que podem ou não podem ocupar, desigualdades salariais, proibição do exercício de atividades sindicais, etc. Quanto aos irregulares, frequentemente são detidos e deportados em condições que violam as normas mais elementares de direitos humanos.

De fato, a verdade é que os países centrais, com destaque para os Estados Unidos e a União Européia, estão direcionando suas políticas de migração para a detenção e a repatriação de imigrantes (no espaço da União Européia há 224 centros de detenção de imigrantes, com capacidade para 30 mil detentos) e para as cotas de imigração, convertendo o controle da migração em um amplo laboratório de políticas repressivas. No Ano Europeu do Diálogo Intercultural (2008), a Europa fomentou o afastamento e a expulsão através da “diretiva de retorno”, que causou tanto escândalo a ponto de ser chamada de “diretiva da vergonha”, com disposições que permitem, por exemplo, que um imigrante irregular possa ser detido por dezoito meses sem o devido processo legal e que crianças possam ser detidas e expulsas (a “diretiva de retorno”, no entanto, não se demonstrou eficiente como política de controle sobre a imigração, pois muitos países têm rechaçado algumas repatriações forçadas: assim, por exemplo, na Espanha, em 19 de setembro de 2008, o Ministério do Interior teve que dar a ordem de retorno para um vôo com 101 imigrantes gambianos que seriam repatriados, pois as autoridades de Banjul não permitiram o desembarque).

Nesse contexto, são especialmente importantes e simbólicas, na atualidade, as provocações da imigração africana na Itália e na Espanha, no marco da ortodoxia restritiva européia. De fato, a partir dos anos 1990, os “novos” receptores de imigração no Sul da Europa, em particular Itália e Espanha, foram considerados pelos “velhos” países do Norte como países com regimes migratórios insuficientes, caracterizados por uma estendida tolerância com a imigração irregular e por uma destacada tendência a realizar regularizações com efeitos negativos sobre a gestão racional dos fluxos. Transformados nos guardiões da fronteira pelo Tratado de Schengen, Itália e Espanha tiveram que enfrentar as críticas dos países centrais europeus, que sempre se mostraram muito céticos a respeito da eficiência mediterrânea em matéria de controle migratório. Hoje, contemplamos uma política de revitalização das fronteiras em que o Mediterrâneo se converteu, depois da queda do Muro de Berlim, na grande fronteira entre os mundos, na qual muitos morrem afogados.

Mas a melhoria dos controles exteriores e a pressão sobre os fluxos de clandestinos não pôde evitar a presença de estrangeiros irregulares tout court, produto de leis de imigração de orientação restritiva, acolhidos por uma abundante economia submersa. Hoje, estima-se em oito milhões os imigrantes irregulares no espaço europeu, e é impensável que os governos europeus expulsem oito milhões de pessoas. Mas, além da expulsão, os governos dão alguma alternativa a essas pessoas? Se não forem dadas alternativas, a mensagem que se está a passar é que essas pessoas devem manter-se na clandestinidade.

A clandestinidade, por sua vez, acentua ainda mais a vulnerabilidade dos imigrantes, gerando maior insegurança quanto a seu estatuto, dependência total em relação ao empregador, submissão à arbitrariedade das autoridades e falta de procedimentos de recurso: os imigrantes irregulares ficam, assim, mais vulneráveis à exploração em todos os níveis e fundamentalmente à exploração laboral. Os estrangeiros irregulares, mesmo quando são vítimas, são considerados culpados pela sua situação. Isso faz com que os Estados centrais sintam-se menos à vontade para regularizar os trabalhadores que estão em seus países e para fomentar políticas de integração. Entretanto, a clandestinidade tem gerado, na Europa, a reinvenção da escravidão. Nos países centrais, o escravismo contemporâneo está diretamente relacionado ao trabalho de imigrantes irregulares. Levados para os países centrais, muitos trabalhadores imigrantes em situação irregular são empregados clandestinamente no setor agrícola, no trabalho doméstico, na construção civil, etc., em situações de extrema vulnerabilidade.

A verdade é que, para além da fronteira, o debate deveria centrar-se atualmente na integração dos imigrantes e no conceito contemporâneo de cidadania, tendo por base o respeito mútuo, a primazia dos direitos humanos e o reconhecimento da riqueza cultural transportada. De fato, a delimitação da fronteira entre os direitos dos nacionais e os direitos dos estrangeiros está subordinada, desde o século XVIII, a dois acontecimentos: a ligação entre o Estado, a nação e o povo, concretizada na idéia de cidadania, e a difusão, a partir da Revolução Francesa, da crença na existência dos direitos humanos, comuns a todas as pessoas e inalienáveis. As questões envolvidas aqui são: qual a diferença entre os direitos do homem e os direitos do cidadão, frequentemente citados como equivalentes na Europa, e qual a possibilidade de um estrangeiro adquirir os direitos de cidadão? Obviamente, essas duas questões não se condensam ao código de nacionalidade, nem às leis de imigração.

É obvio que a integração dos imigrantes nas sociedades de acolhida é um processo complexo e multifacetário. A expressão “integração” é usada, aqui, como o processo de ajustamento e adaptação recíproca entre imigrantes e a sociedade de acolhida, pelo qual, com o passar do tempo, os imigrantes e a população dos territórios de chegada formam um todo integrado, processo com grande diversidade de intervenientes: imigrantes, governos, instituições e comunidades locais. Do mesmo modo, as formas de inserção dos imigrantes nas sociedades receptoras são processos dinâmicos, em permanente mudança, resultantes de influências bastante diversas ao nível da macro-estrutura econômica, social, política e institucional dos países de destino no momento da migração e das especificidades dos contextos locais dos territórios onde se fixam os estrangeiros. Daí resulta que as formas de incorporação dos imigrantes nas sociedades de acolhida são bastante mais complexas e matizadas do que a simples oposição entre regimes nacionais de assimilação e de multiculturalidade poderia fazer crer. A intervenção do sistema político local e dos preconceitos da sociedade relativamente aos imigrantes e minorias étnicas, raciais ou religiosas são fatores decisivos para o maior ou menor êxito da integração. Sem a aceitação da sociedade de acolhida, as políticas de integração podem ser bloqueadas. Assim, por exemplo, os Estados Unidos, um dos maiores receptores de imigrantes no mundo, possui uma política de assimilação, fenômeno conhecido como melting pot, e em geral cabem aos imigrantes os trabalhos pesados, perigosos, sujos e indesejados, com jornadas de trabalho sem limites.

A história das migrações internacionais, em cidades americanas e européias, demonstrou diferenças substanciais nas atitudes e formas de acolhida da população nativa, relativamente a imigrantes provenientes de determinadas origens geográficas, ou com características raciais, sociais ou culturais particulares. Assim, enquanto alguns são recebidos de braços abertos, outros passam despercebidos, e a chegada de outros é objeto de forte negação por parte da sociedade receptora. A conjuntura econômica no momento da chegada, sobretudo a estrutura do mercado de trabalho, constitui também uma condicionante importante das estratégias de integração dos imigrantes.

A influência dos líderes de opinião e de meios de comunicação social tem aqui um papel de grande relevo, na medida em que contribuem para reforçar ou afrouxar as imagens coletivas estereotipadas de algumas comunidades, dado que uma grande parte dos habitantes das regiões receptores revela um grande desconhecimento da dimensão e dos impactos da imigração. Os processos geradores de marginalização e exclusão social e espacial não são causados por características específicas dos indivíduos, variam de lugar para lugar. É por isso que as políticas urbanas e a participação ativa das organizações não-governamentais na vida da cidade têm um papel fundamental na prevenção dos mecanismos que conduzem a situações de exclusão, não só de alguns grupos de imigrantes e de minorias étnicas, mas também de outros grupos de risco. Importa também destacar o esforço feito no sentido do reconhecimento do papel ativo das associações de imigrantes na formulação e execução de determinadas ações políticas, bem como no desenvolvimento de parcerias.

Em síntese, é necessário diminuir o sentimento anti-estrangeiro e a desconfiança com relação à formação das novas comunidades e seus efeitos sobre a soberania dos países. Quando se está em dúvida sobre a sua própria identidade, qualquer signo de estranheza na sociedade é percebido como uma ameaça, e é essa “ameaça” que permite o ressurgimento de ideologias como o tradicionalismo e a xenofobia. Entretanto, curiosamente, os Estados mais desenvolvidos, com poucas e insuficientes exceções, ainda não realizaram mudanças significativas na política de imigração, com relação ao que vinha sendo feito nos últimos anos. Aparentemente, o “problema da imigração” na Europa, Estados Unidos e outros países desenvolvidos vai continuar sem solução enquanto as idéias do Front Nacional, vinculadas ao tradicionalismo, e do controle das fronteiras permanecerem dominando o debate.

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* Rodrigo Garcia Schwarz. Artigo publicado originalmente na REVISTA ELETRÔNICA INTERNACIONAL DIREITO E CIDADANIA e na REVISTA JURÍDICA CONSULEX.

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