Literatura
A literatura e a filosofia no altar
Muitos autores usam a estrutura do romance e seus personagens para discutir temas filosóficos. Além disso, o aforismo, na fronteira entre poesia e Filosofia, é um recurso bastante utilizado

POR MARCELO BACKES



Representação de Dom Quixote, o engenhoso fidalgo, cavaleiro da triste figura que concilia o sublime, o patético e o burlesco

O romance filosófico é a Filosofia com caráter lúdico, a Metafísica com jogo de cintura, o tratado que sabe dançar. Onde fica, aliás, a fronteira entre Literatura e Filosofia? O romance O homem sem qualidades, de Robert Musil, por acaso não é uma das maiores obras filosóficas do século XX? Ademais, Platão escreveu tratados cheios de personagens e Nietzsche é considerado antes poeta do que filósofo por muitos. O parentesco entre escritores e filósofos é tanto que Arthur Schnitzler, em seu romance O caminho para a liberdade – uma das grandes obras alemãs da era burguesa –, compara diretamente os filósofos aos poetas e em seguida ainda degrada os filósofos a meros brincalhões, dizendo que qualquer sistema filosófico ou moral é um mero jogo de palavras, “uma fuga da abundância móvel dos fenômenos para a rigidez de marionete das categorias.”1

O romance sempre foi território dos mais favoráveis para ilustrar a dimensão humana das grandes questões filosóficas, fazendo as ideias brilharem em um enredo com personagens em conflito e ensaiando vida real e cotidiana através da ficção. Sigmund Freud, o pai da psicanálise, aprendeu muito com a Literatura e fundamentou algumas de suas principais teorias usando construções literárias gregas, além de citar exaustivamente autores como Shakespeare, Goethe e Heine.

Já o filósofo Karl Marx disse que aprendeu muito mais com Dickens e Balzac sobre a Inglaterra e a França do que com os economistas ingleses e franceses da mesma época. A ênfase das exposições teórico-culturais e estéticas do filósofo busca revelar as certezas objetivas e as leis gerais da cultura, da própria estética e da Literatura. Quando analisa uma obra ou uma situação literária, Marx sempre investiga a possibilidade e as perspectivas do ser humano. Um exemplo concreto disso pode ser observado em A ideologia alemã,2 obra em que Marx e Engels dinamitam – quase como críticos literários da mais alta estirpe – as obras dos jovens hegelianos, estendendo a abrangência das considerações que já haviam feito em obras anteriores como A sagrada família.Sobra especialmente para Ludwig Feuerbach, Max Stirner e Karl Grün. A crítica de Max Stirner, uma espécie de bisavô do existencialismo, chega a evocar diretamente uma das maiores obras da Literatura universal: o Dom Quixote, de Cervantes. As comparações são ácidas e incontáveis. Em determinado momento, Stirner passa a ser São Sancho, e Marx e Engels parodiam episódios que envolvem não apenas os moinhos de vento, mas inclusive o elmo de Mambrino, a gorda Maritornes e o ruço do escudeiro. Até mesmo Camões é citado por Marx e Engels – no original português! – para desancar a filosofia do “único” de Max Stirner.

“Os aforismos são formas de ‘eternidade’: a minha ambição é dizer em dez frases o que outro qualquer diz num livro, o que outro qualquer ‘não’ diz nem num livro inteiro” NIETZSCHE

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Leitura de poesia. Trata-se de um preconceito a tese de que a atividade filosófica não se concilia com a escrita poética. A precisão poética e sua riqueza expressiva muitas vezes enriquece a racionalidade do discurso filosófico

EXERCÍCIO DE ESTILO

Marx principiou vários de seus tratados – lúcidos, informativos e críticos – com uma metáfora literária. O expediente – esses tratados eram publicados em jornais –, além de demonstrar a ginga de Marx no baile da Literatura, facilitava a chegada do leitor ao fulcro naturalmente árido de suas análises econômico-sociológicas. Marx também chegou a ter colaborações intensas com um dos grandes autores de sua época: Heinrich Heine. Ambos até foram amigos durante o exílio em Paris. Embora crítico em relação a algumas posições de Heine – típicas dos poetas, para o autor de A ideologia alemã –, Marx jamais deixou de ver nele, inclusive quando o chamava de “cão sarnento”, um dos maiores poetas de seu tempo. E não foi por menos. Heine chegou a falar, antes de Marx –convém lembrar que era 20 anos mais velho do que este – do papel importante que o proletariado seria chamado a desempenhar em breve. Na sua crítica à religião, Marx recuperou, com a expressão “ópio do povo”, uma ideia cristalizada por Heine, que disse em seu livro sobre Ludwig Börne, de 1840, que a religião era um “ópio espiritual” para a “humanidade sofredora”.

Se a Literatura foi tão importante para Marx, também o foi para Hegel, como já tinha sido para Aristóteles e como seria para Theodor Adorno ou até mesmo para Michel Foucault ou Gilles Deleuze, que não cessam de fazer discursos de segunda mão – discursos críticos – sobre obras artísticas de primeira mão, os grandes romances de sua época ou de épocas anteriores. Conforme diria Cortázar em El perseguidor: “Todo crítico, ay, es el triste final de algo que empezó como sabor, como delicia de morder y mascar.” Quanta filosofia na brevidade do aforismo de um narrador!

O aforismo sempre viveu na fronteira entre poesia e Filosofia. Se a origem do aforismo no mais das vezes é espontânea como a da lírica, ele pensa o mundo com a consciência extrema típica da Filosofia. Fragmentário e antissistemático, sentencioso no ato de lapidar uma sensação ou um pensamento e propício tanto para representar a realidade quanto para esboçar aquilo que ainda não é real, o aforismo pode alcançar o estatuto de obra em apenas três linhas. É um estilhaço de pensamento, uma máxima espirituosa de fôlego curto e sabedoria imensa. É uma formulação arguta – ora combativa, ora contemplativa –, apta a desvelar o mundo na ligeireza de um espasmo.3

O ROMANCE SEMPRE FOI TERRITÓRIO FAVORÁVEL PARA ILUSTRAR A DIMENSÃO HUMANA DAS GRANDES QUESTÕES FILOSÓFICAS

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Meu quarto, de Paul Klee (1879-1940). O artista sofreria grande inspiração do Cândido de Voltaire, retratando personagens célebres da história da literatura universal em suas obras

Hipócrates foi o primeiro escritor de aforismos e criou um gênero ao publicar seus Aphorismoi, por volta de 400 a. C. O opúsculo era apenas uma compilação de regras de tratamento médico, expostas de forma curta e programática. O procedimento aforístico também marcou a obra de Heráclito, a especulação moral de Sêneca, a observação histórica de Plutarco, as cartas de Marco Aurélio, a ética de Confúcio e as sentenças de Salomão.

A partir do renascimento, a abrangência do aforismo estendeu-se ao estudo dos caracteres e ao ensinamento humano, ganhando desenvolvimento moderno com os adágios de Erasmo e com a teoria de Bacon. Mas foi só no barroco que o gênero veio a se desenvolver de verdade. A tentativa de iluminar, em sentenças curtas, os paradoxos vitais que surgiram a partir do período, deu origem ao aforismo segundo o conhecemos hoje. O espanhol Baltasar Gracián, carro-chefe do conceptismo espanhol, foi decisivo na popularização do gênero, com a publicação de Oráculo manual y arte de prudencia, em 1647. Pascal, com a seriedade religiosa dos Pensamentos, e La Rochefoucald, com a satirização do amor-próprio em suas Máximas, modernizaram o gênero.

Na Alemanha, a contemplação interior ganharia importância e o aforismo se tornaria mais subjetivo. Se na França ele teve sempre uma forma mais fechada e uma tendência didática – até La Rochefoucauld escreve para a sociedade –, na Alemanha o aforismo nasce mais aberto, é bem mais privado e configura uma forma de arte essencial sobretudo na lida do autor consigo mesmo.

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Cartão-postal da Alemanha, em cuja imagem vemos a conciliação do tradicional com o novo. Terra de fi lósofos-escritores e escritores-fi lósofos como Goethe, Schiller, Heine, Schopenhauer e Nietzsche

Lichtenberg foi o primeiro grande aforista alemão. Inaugurou uma tradição secundada pelo romantismo universalizante de Friedrich von Schlegel e Novalis, incrementada pelo “irracionalismo” brilhante de Schopenhauer, pessoalizada por Heine, trabalhada de forma oculta nos Diários de Hebbel e levada aos píncaros por Nietzsche. Karl Kraus, já no século XX, voltaria a fazer uso do aforismo em todo seu vigor; assim como Franz Kafka e Ernst Jünger. Antes de Lichtenberg, o aforismo já existia na Alemanha, na condição de procedimento, nos provérbios de Lutero, nos epigramas de Gryphius e nas fábulas de Lessing.

Jean Paul Sartre foi outro gênio do aforismo, base de seu pensamento humorístico- humano acerca de si mesmo e da humanidade. A obra de Sartre é uma verdadeira plantação de chistes, aquilo que em alemão recebe o nome de Witz e é semelhante ao wit inglês. Entre os outros aforistas da Alemanha, Goethe abandonou o tom pessoal típico do aforismo alemão e se mostrou bem mais objetivo em suas máximas (só é pessoal, mas bem menos do que Heine, nas Xênias, escritas em parceria com Schiller). Marie von Ebner-Eschenbach, por sua vez, foi a prova de que as mulheres também sabem fazer aforismos (assim como a Filosofia, o aforismo é terreno essencialmente masculino). Nietzsche transformaria o aforismo em base de suas obras e de sua filosofia, como aliás já era, em parte, no caso de Schopenhauer. Nas mãos de Karl Kraus o aforismo viraria arma. Adorno, por sua vez, se mostrou aforístico em Minima moralia e Brecht fez aforismos de tom ficcional ou contos aforísticos em Histórias do senhor Keuner e O livro Me-Ti.

Elias Canetti foi o último grande aforista da língua alemã. Tudo o que ele pensou, tudo o que ele fez podia virar aforismo. Canetti foi um misantropo humanista à maneira de Lichtenberg, de quem disse que jamais teria gostado de conversar tanto com alguém quanto com ele.

MARX DISSE TER APRENDIDO MAIS COM DICKENS E BALZAC SOBRE A INGLATERRA E A FRANÇA DO QUE COM OS ECONOMISTAS INGLESES E FRANCESES DA MESMA ÉPOCA

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Mas antes de existir na Alemanha, o aforismo já existia na França. Foi a França do marquês de Vauvernagues e de Nicolas Chamfort que deu ao aforismo o potencial universal capaz de estender seu alcance à Literatura de Oscar Wilde (irlandês de expressão inglesa), Emil Cioran (romeno), Stanislaw Lec (polonês) e Millôr Fernandes. Sem contar os próprios franceses, do calibre de Paul Valèry, um dos primeiros a nomear o aforismo como tal na França.

Mas o romance também pode ser marcadamente filosófico - e não apenas por apresentar índole aforística. Onde cadastrar, por exemplo, O elogio da loucura, de Erasmo de Roterdã? Se a obra é um ensaio satírico, não deixa de beber abertamente na fonte do romance, apresentando inclusive uma grande personagem, a Loucura. Num dos momentos mais altos da obra – um monólogo cheio de verve e verdade – a Stultitia, soberana no mundo, mostra toda sua elegância retórica e narrativa ao atacar as tolices e vícios da humanidade.

“Para ocultar a falta de pensamentos verdadeiros, muitos constroem um imponente aparato de longas palavras compostas, intrincadas flores de retórica, expressões novas e inauditas” SCHOPENHAUER

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Romance de Primavera, de Leon Kroll (1884-1974). Do mesmo modo que no início da primavera todas as folhas têm a mesma cor e quase a mesma forma, nós também, na nossa tenra infância, somos todos semelhantes e, portanto, perfeitamente harmonizados (Schopenhauer)

ROMANCE FILOSÓFICO

O Dom Quixote de Cervantes, por sua vez, é um romance tão carregado de filosofia que vários filósofos, além de Marx, se debruçaram sobre ele. Friedrich Schelling marcou nele o embate entre o idealismo e a realidade, e viu no herói um lutador trágico; Hegel estendeu a análise ao conflito entre a poesia do coração e a prosa da realidade, entre o mundo da fantasia e a realidade empírica. Na figura de Dom Quixote Hegel viu uma índole nobre, deslocada e isolada, absolutamente convicta, que não chega à “consciência infeliz” (unglückliches Bewusstsein), embora se choque constantemente com um mundo ordenado e convencionado a sua revelia. Schopenhauer foi tão longe que viu em Dom Quixote a alegoria da vida de qualquer ser humano, sempre lutando em vão para levar adiante o fardo de sua vida, apesar das bordoadas que a realidade lhe dá.

Diante de tanta consideração filosófica, não há como não lembrar de Walter Benjamin, que disse num ensaio precioso sobre Em busca do tempo perdido de Marcel Proust (obra que aliás tem muito a ver com o Dom Quixote): “Nada é mais evidente para os alunos-modelo da vida do que o fato de que uma grande realização é o fruto exclusivo do esforço, do sofrimento e da decepção. Que a felicidade também pudesse participar do Belo seria uma benção excessiva, e o ressentimento dessas pessoas jamais teria consolo.” Ao fim e ao cabo, depois de centenas de páginas que apresentam um herói que é muito mais do que meramente cômico, um cavaleiro que se chama de “el Bueno”, o “ridículo” mais virtuoso de todos os tempos, porque é valente, reverencioso, altruísta, justo, fiel e paciente no sofrimento; depois de nos perguntarmos mais uma vez e da maneira mais profunda o que significa ser um indivíduo em meio ao mundo; depois, enfim, de nos questionarmos se podemos mudar o mundo ou se é o mundo que nos muda, talvez reste dizer, numa síntese, que Dom Quixote não parece louco porque mete uma bacia de barbeiro na cabeça pensando que é um elmo guerreiro, e sim porque insiste em viver num mundo antigo, talvez mais nobre e mais belo, quando o novo, mais duro e mais rude, já chegou.

Um romance que até recebeu oficialmente o epíteto de “romance filosófico” é o Cândido, de Voltaire, um autor que sempre dançou na fronteira entre Filosofia e Literatura. Publicado anonimamente, Cândido acabou se transformando numa das grandes obras filosóficas do século XVIII, inspirando desde um musical de Leonard Bernstein a ilustrações de Paul Klee.

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Gravura sobre Oliver Twist, romance de Charles Dickens (1812-1870). Nas suas narrativas são tecidos comentários ferozes a uma sociedade que permitia a pobreza extrema, as más condições de vida e de trabalho e a estratifi cação social abrupta da era vitoriana, a par de uma empatia solidária pelo homem comum e uma atitude céptica em relação à alta sociedade

A tese da obra é eminentemente filosófica, mas cheia de amor e aventura, parodiando o otimismo de Leibniz – que disse em sua Teodicéia que vivemos necessariamente no melhor de todos os mundos – e a ingenuidade natural de Rousseau, e fazendo, de quebra, uma grande pergunta: a vida tem sentido? Depois de uma série de catástrofes particulares e gerais, individuais e coletivas (da mulher que perde uma de suas nádegas ao embevecido amante Cândido, obrigado a saber que Cunegundes, sua amante, “foi estripada por soldados búlgaros, depois de ter sido violada o mais possível”, entre outras barbaridades, mais guerras e terremotos que varrem milhares, inocentes e culpados, do “melhor dos mundos”), Voltaire chega à conclusão de que a única possibilidade de viver tranquilamente na face da terra é cultivando nosso jardim, numa espécie de apologia à autossustentabilidade. O grande representante do iluminismo francês antecipa, assim, um tema que vem ganhando cada vez mais importância no roldão autodestrutivo e autofágico em que se encontra o mundo, revolvido por crises que se tornam cada vez mais constantes e duradouras.

A LITERATURA FOI IMPORTANTE PARA HEGEL, COMO JÁ HAVIA SIDO PARA ARISTÓTELES E COMO SERIA PARA ADORNO OU ATÉ MESMO PARA FOUCAULT OU DELEUZE

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Não são poucos os romances que poderiam ser classificados como filosóficos. Que dizer, por exemplo, de A filosofia na alcova, do Marquês de Sade, que se autointitula de “leitura instrutiva”? O romance de Sade já começa com um prefácio “aos libertinos” e, muito além do âmbito meramente sexual, adentra o terreno da Filosofia, da ética e da política. O autor se mostra, ao mesmo tempo, um Rousseau para emancipados e o avesso de Kant. A filosofia poucas vezes teve tanta pimenta e molho.

E Moby Dick, de Herman Melville? Além de pontilhado de ensaios filosóficos, os “galhos que crescem no tronco” de uma árvore, o romance apresenta a busca e a luta louca e autodestrutiva de um indivíduo, o capitão Ahab (Acab), contra uma quase entidade que o mutilou. Mais que isso, Ahab – Fausto e Prometeu ao mesmo tempo – em suas pretensões onipotentes mostra uma superação de caráter tão heroico quanto mórbido e encara uma batalha contra a ordem “divina” e o ente diabólico, testando os limites da conditio humaine. “Eu lutaria contra o sol se ele me insultasse”, diz ele a certa altura.

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Coroação de Cristo, de Antoon Van Dyck (1599-1641), grande expoente do Barroco. Neste período o gênero aforismático veio a se desenvolver plenamente. A tentativa de iluminar, em sentenças curtas, os paradoxos vitais que surgiram a partir do período, deu origem ao aforismo tal como o conhecemos hoje

A Montanha mágica, de Thomas Mann, se situa na vasta esteira do diálogo filosófico. Os diálogos romanescos entre Hans Castorp, Naphta e Settembrini são veículos fundamentais de ideias filosóficas. No romance de Mann a filosofia visita o sanatório e debate metafísica e felicidade, enquanto o século XX desce barranco abaixo, se contorcendo em uma guerra terrível. A realidade do vale de lágrimas, lá embaixo, é confrontada com a paz entediante do cume montanhoso dos Alpes, “aqui em cima”. Settembrini, pedagogo, iluminista, democrata, “literato da civilização” briga com Naphta, jesuíta ascético, lógico sofista, argumentador retórico frio e anacrônico, de índole messiânica, anárquica e comunista ao mesmo tempo, até o duelo final, em que o primeiro atira para o ar e o segundo se suicida. Tudo isso enquanto o apologeta da vida e do vigor, Mynheer Pieter Peeperkorn, sucumbe, também suicida, diante de sua impotência sexual - ele que comparara a vida com “uma mulher deitada, com os seios exuberantes e apertados, o ventre amplo e macio entre as ancas salientes, braços delgados, coxas redondas e olhos semicerrados” dizendo que, “na sua provocação magnífica e zombeteira” ela exigia “o nosso mais alto fervor, toda a nossa tensão de prazer de macho, que se deve confirmar ou perecer diante dela”.

Esses são apenas alguns entre os grandes romances filosóficos que a Literatura deu ao mundo. Meu espaço termina, a areia da ampulheta está quase acabando e mostra que o tempo está chegando ao fim. E eu nem falei de A náusea, de Sartre, e de O estrangeiro, de Camus. Aliás, Sartre foi um filósofo que escreveu Literatura ou um literato que fez filosofia? A náusea em vários momentos parece um O ser e o nada com enredo e personagens, nem por isso menos enfadonha. E O estrangeiro é uma pedra fundamental do existencialismo e um grande romance. Meursault e Antoine Roquentin, os personagens centrais, são dois estrangeiros no mundo, que mergulham em sua condição de indivíduos e encaram um universo feito de conceitos e estruturas fixas que transformam sua existência em náusea.

Contemporaneamente, é cada vez mais difícil delimitar as fronteiras entre os gêneros e até mesmo entre os diferentes campos do conhecimento. O ensaio – um gênero que sempre se caracterizou por bailar nas divisas – ganha espaço até mesmo no interior do romance, dando a ele um caráter filosófico cada vez maior e mais abrangente. Se Literatura e Filosofia sempre viveram em concubinato, o que se vê hoje em dia – depois de séculos de uma união ilegítima – é um casamento com alguns grandes momentos felizes em meio ao inferno inflacionado e cheio de papel que se tornou o mundo contemporâneo. O consolo é que, quando a virtualidade chegar definitivamente, será ainda pior.

O presente ensaio sintetiza e ao mesmo tempo estende algumas ideias debatidas no curso “Grandes romances filosóficos”, dado na Casa do Saber do Rio de Janeiro.

A análise linguística dos aforismos pode revelar certas estratégias lexicais, sintáticas e semânticas. Assim, para além do conteúdo, deve-se ter em conta a forma de expressão, normalmente curta e concisa. Tem habitualmente sentido figurado e grande expressividade estilística

1 No prelo, o romance de 1908 será publicado em 2010 pela Editora Record, em tradução minha, acompanhada de posfácio e glossário. A obra, a mais volumosa de Schnitzler, além de constituir um panorama muito bem delineado da sociedade vienense no fin de siècle, discute questões fundamentais como o judaísmo, invade escandalosamente o âmbito privado de algumas grandes personalidades da época e mostra uma percepção absolutamente moderna do que significa a vida em sociedade, apresentando uma série de personagens cujos comportamentos são vagos como o mundo que então começava a se esfacelar.
2 Ver Karl Marx e Friedrich Engels. A ideologia alemã. Tradução de Marcelo Backes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 .
3 Desenvolvo extensivamente a questão em um livro de aforismos e epigramas intitulado Estilhaços (Editora Record, 2006).