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A morte de Raimon Panikkar, homem de fronteira entre o Oriente e o Ocidente

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. Manuel Augusto Rodrigues
 
Assim intitula Rosino Gibellini um interessante estudo sobre Panikkar. De facto, a fronteira transparecia no seu aspecto e estava inscrita nos seus dados: biológicos, culturais e religiosos. Filho de pai indiano e de mãe catalã católica. Nascido em Classe (Barcelona) em 1918, faleceu a 26 de Agosto passado com 91 anos na Fundação Vivarium de Tavertet (perto da capital da Catalunha), que ele tinha fundado como centro internacional de estudos e de investigação sobre as religiões do mundo, e onde vivia, depois de ter ensinado em prestigiadas Universidades. Foi sepultado no passado dia 3, na abadia de Montserrat, próximo de Barcelona. Nos convites enviados, lembrava-se que se tratava duma celebração «com todo o Criado».  O que confirma a visão cosmoteândrica, que animou Panikkar como sacerdote, filósofo e teólogo. Durante os anos da sua docência universitária passava o verão numa pequena aldeia, na Índia, nas margens do Ganges, lendo textos antigos, escrevendo e preparando os seus cursos. Possuía uma identidade cultural e religiosa complexa, e também harmónica, a do estudioso hindu-catalão, porque era nutrida de conhecimento e de experiência. Toda a obra de Panikkar está a ser recolhida e organizada em vários volumes, divididos por temas: mística e espiritualidade, religião e religiões, cristianismo, hinduísmo, budismo, cultura e religiões em diálogo, hinduísmo e cristianismo, visão trinitária e cosmoteândrica, mistério e hermenêutica, filosofia e teologia, secularidade sagrada, espaço, tempo e ciência.
Um dos seus textos mais lidos é “O dialogo intra-religioso” (1978), no qual pretende dar uma síntese entre pluralismo e harmonia. Nele escreve: «Parti como cristão, encontrei-me hindu e volto como budista, sem ter nunca deixado de ser cristão». E, por último, dizia: «No meu regresso, descobri-me como um cristão melhor». Como escreve Gibellini, o diálogo é dialéctico quando se move no plano intelectual; mas o diálogo religioso come diálogo de vida compromete a espiritualidade dos dialogantes: é mais do que diálogo inter-religioso, é diálogo «dialogo dialógico», «diálogo intra-religioso», come se exprimia nas suas múltiplas e sugestivas inovações linguísticas, que podiam desconcertar leitores e ouvintes, mas que são de interpretar como uma versão da teologia negativa presente na tradição do pensamento cristão, e que o autor das “Cartas de Benares” tinha ilustrado num grande livro, “O silêncio de Deus. A resposta de Buddha” (1970).
Uma das categorias mais importantes incluída na filosofia e na teologia das religiões de Panikkar é a de «experiência cosmoteândrica» clarificada na obra “A realidade cosmoteândrica. Deus-Homem-Mundo” (2004). Se o teandrismo foi a expressão tradicional para exprimir a união do humano com o divino em Cristo, já na experiência cosmoteândrica (melhor dito, teo-antropo-cósmica) ele traduz a ideia de experiência com que se experimenta a complexidade do real nas suas três dimensões: cósmica, humana, divina. O cosmoteandrismo está longe da Razão dialéctica, armada das suas categorias para dominar o real. É, sim, a harmonia conseguida dentro de cada um, com o mundo e com divino, que transcende o homem e o mundo, mas que se inscreve no homem e no mundo como Realidade das realidades. Ele escreve na conclusão da obra citada: «Uma espiritualidade cosmoteândrica não reduz Deus a um conceito ou a um elemento com mais respeito aos elementos da realidade. «Totum in quolibet, o todo em cada coisa», dizia Nicolau de Cusa, mas cada coisa é coisa porque num certo modo reflecte o Todo. É uma espiritualidade religiosa». Em palavras simples, o grande estudioso das religiões adverte o homem secular (mas também o homem confessionalmente religioso) «para que estejam abertos ao mistério» a fim de viverem uma vida completa, e não imperfeita, da experiência humana. Na análise das várias tendências da teologia das religiões, Panikkar é incluído entre os representantes da chamada teoria pluralista das religiões, que contrasta com a posição católica da unicidade e universalidade da salvação em Cristo. Mas deve-se também dizer que o pluralismo de Panikkar é sempre atravessado por uma tentativa de recondução à harmonia e da experiência existencial de «abertura ao mistério», ao qual pode chegar o homem secular e também o homem religioso.
Como afirmou alguém: «A perspectiva dialogal estava envolvida na sua vida como o musgo na pedra. Não via futuro nas religiões a não ser no intercâmbio criativo entre elas. Dizia que sem a interlocução externa as religiões não poderiam senão afogar-se. Propunha um «diálogo dialógico», mais existencial, de «fecundação mútua», que pudesse de facto envolver os parceiros numa busca comum do mistério. O diálogo para ele era, antes de tudo, um acto espiritual, que implicava uma profunda consciência da humildade e vulnerabilidade dos interlocutores diante do Mistério sempre maior e mais afastado. Mesmo reconhecendo todas as dificuldades que acompanham a abertura e o êxodo para o mundo do outro, acreditava que esse era o caminho seguro para a construção da identidade. Tornava-se necessário conhecer e dialogar com uma outra tradição religiosa para poder situar verdadeiramente a própria tradição. Em frase lapidar, assinalava que «aqueles que não conhecem senão a sua própria religião não a conhecem verdadeiramente». Na visão de Panikkar, o diálogo inter-religioso requer como condição fundamental a atitude de «uma busca profunda, uma convicção de que estamos caminhando sobre um solo sagrado». Há que nos despirmos de preconceitos para chegar ao mundo do outro. E essa viagem não é fácil. Mas há que sair do «esplêndido isolamento». O encontro com o outro torna-se hoje «inevitável, importante e urgente». Mas alongar as cordas é sempre muito difícil. Exige um questionamento profundo às nossas convicções e a disposição de deixar-se transformar pelo outro. Como indica Panikkar, é também um encontro «perigoso e desconcertante», mas certamente purificador. É a condição indispensável para nos darmos conta da profundidade inexaurível da experiência humana e dos limites precisos de nossos vínculos contingenciais e limitados. Para Panikkar, o salto desarmado na realidade é «audacioso e mortal», e esse foi o exemplo deixado por peregrinos como Buda e Jesus. No horizonte dessa busca o que existe é algo admiravelmente simples, como destaca Mestre Eckhart: algo que é «florescente e verdejante». Panikkar indica que quem procura verdadeiramente deve voltar-se para o que é simples por excelência: o Mistério que nos habita e que também brilha no mundo do outro. Na verdade, o diálogo é uma viagem com novidade que toca de perto a nossa própria peregrinação pessoal, no sentido do encontro com a plenitude de nós mesmos. Há que atirar-se com liberdade nessas águas, diz Panikkar, ainda que as nossas pernas vacilem e nosso coração titubeie. Mesmo sabendo que há o risco de nelas nos perdermos e afogarmos, é o caminho essencial para tocar o fundo.
No último período de sua jornada, Panikkar dedicou-se ao tema da mística e da espiritualidade. Para ele, a mística vem entendida como a «experiência integral da vida» ou «experiência da Realidade última». E a categoria Realidade assumia para ele uma importância única, de densidade mais ecuménica, para expressar o significado profundo da experiência do Mistério que é sempre maior. Enquanto a mística traduz para ele essa «experiência suprema da realidade», a espiritualidade é entendida como o caminho para alcançar essa experiência. É ela que faculta o fermento essencial para uma vida de qualidade e para o encontro autêntico com o outro. A especialista Milena Carrara Pavan editou em 2009 o livro “I mistici nelle grandi tradizioni. Omaggio a Raimon Panikkar” que contém os textos de muitos estudiosos e amigos do filósofo catalão que participaram no Congresso Internacional organizado em Veneza, de 5 a 7 de Maio de 2008, para homenagear Panikkar na passagem do seu 90.º aniversário. Na abertura afirmou. «Duas são as coisas que tornam o homem aquilo que ele é: a consciência de que é homem e, ao mesmo tempo, o facto de não saber que coisa é homem».
A experiência da realidade está no centro de todos os livros de Panikkar. A religião é mística, ou seja percepção daquela dimensão da realidade que escapa à razão, mas que é possível encontrar na experiência. A mística não é revelação sobrenatural; é pelo contrário algo de uma íntima imanência, é experiência da espessura e da profundidade das coisas, que em certo sentido está para além das coisas, mas não fora das coisas. Místico é quem é capaz de ver na semente a rosa florida, sem conhecer o como do florescimento, e é capaz de gozar a rosa florida, sem que tal alegria tenha um porquê. O místico, o religioso, o sábio convergem neste ponto. A tomada de consciência de si próprio, da parte do homem, numa perspectiva histórico-evolutiva inicia-se com o misticismo cósmico natural dos aborígenes e acaba com a filosofia da mística, passando pelas religiões abraamíticas, pelo budismo japonês, pelo taoismo chinês e pela mística moderna de Gandhi e Teilhard de Chardin. Mas, de facto, não há início nem fim, nem acumulação de saber. Porque não há verdadeiramente fim para a experiência humana.
 

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