A vida quotidiana esconde, às vezes, os melhores argumentos para relatar num cenário de guerra. Os carros, por exemplo. É um dos factos mais intrigantes para quem chega ao Afeganistão. Passadas quase duas semanas de cá estar, tive de começar a perguntar às pessoas na rua: por que razão 99% dos carros que eu vejo a circular são Toyota Corolla? Que obsessão é esta?
Um afegão dono de um Toyota Corolla branco semi-novo abriu-me o caminho: a verdade é que a ciência empírica desenvolvida ao longo das últimas décadas nas acidentadas estradas e ruas do país, onde não há um metro de chão que não tenha uma fileira de crateras e cumes montanhosos, provou que só há um modelo disponível no mercado preparado para resistir estoicamente às provações da rede rodoviária nacional.
Mesmo os Mercedes, tão comuns e apreciados em países muçulmanos, são rotulados aqui como um mau investimento, apesar de os venderem baratos, porque na maior parte do tempo não saem da oficina e são, por isso, desdenhados pelos automobilistas afegãos.
Quando o primeiro-ministro japonês veio a Cabul de visita, ficou tão impressionado com a interminável frota nipónica a circular na cidade que, num gesto de diplomacia comercial, resolveu oferecer logo ali 55 Toyota Corolla novos em folha para os ministros do Governo de Hamid Karzai poderem ser transportados com a dignidade devida.
Foi uma oferta generosa. Ninguém compra Toyota novos no Afeganistão. Nem os manda vir do Japão. Eles vêm do Canadá, em segunda mão.
O Canadá é um dos países preferidos pelos afegãos para emigrarem. E houve um dia que vários emigrantes ambiciosos resolveram entrar no rentável negócio de comprar Toyota sinistrados, que passaram a estar interditos de andar nas estradas canadianas, exportando-os para o seu próprio país.
É assim que eles vêm: batidos, desengonçados, avariados, para as milhares de pequenas oficinas montadas em velhos contentores do tempo da ocupação soviética.
A fronteira mágica de Islam Qila
Atravessam o mar e são desembarcados no Irão. E depois são levados em camiões até ao Afeganistão, entrando pela fronteira da província de Herat, em Islam Qila. E é aqui onde a história vai dar. Há um senhor em Herat, chamado Ismael Khan, que andava a cobrar nos últimos anos (e se calhar ainda cobra) uma taxa por cada Toyota que entra no país.
Ahmed Rashid, o aclamado jornalista paquistanês que escreveu o bestseller "Taliban", fala sobre ele no seu último livro, "Descent Into Chaos", publicado em 2008.
Ismael Khan, que chegou a alugar um palácio à CIA e às forças especiais norte-americanas nos primeiros meses da actual guerra contra os talibãs, em 2002, é o homem-forte de Herat e é, provavelmente, o mais rico dos senhores da guerra afegãos. Nessa altura, e depois de ter sido corrido pelos talibãs e regressado com os americanos, Ismael refez um exército privado de 20 mil homens.
Um exército à parte do exército oficial afegão (que tem hoje 30 mil militares, sensivelmente o mesmo que Portugal). Estima-se que conseguia (e talvez ainda consiga) obter um lucro mensal de três a quatro milhões de euros com os impostos paralelos vindos das importações, que passam pelo seu feudo a caminho das outras províncias.
Tendo sido um dos aliados mais ferozes do líder da Aliança do Norte, Ahmad Shah Massoud, contra o regime dos talibãs, chegando a estar inclusivamente preso, Khan é um caso controverso para olhos ocidentais.
É muito cruel, torturando e reprimindo a liberdade de movimentos (e a liberdade de imprensa), mas ao mesmo tempo tem atitudes magnânimas para com a população. Insiste, por exemplo, que todas as mulheres usem a burca, mas promove a ida das miúdas às escolas. É também por causa dele que Herat se tornou uma das mais limpas e tranquilas cidades do Afeganistão. Dentro do contexto local, claro.
"O povo afegão gosta de líderes fortes", dizia-me ontem Peter Jouvenal, um célebre ex-cameraman que vive no país desde 1980, quando veio para cá cobrir a guerra contra os soviéticos e que é hoje dono de um dos hotéis mais agradáveis de Cabul, onde os jornalistas americanos costumam parar para alinhar notas de reportagem na esplanada do jardim.
"Ismael Khan representa isso, essa forma de estrutura social, que mantém o equilíbrio e a ordem. As instituições como a ONU e a NATO querem fazer eleições neste país, não interessa quando nem como, para poderem pôr mais uma cruzinha à frente na lista de democracias, mas os afegão não estão preparados para uma democracia. A maioria deles não sabe ler. Não consegue perceber o que está escrito num jornal e ficar esclarecido. Não é isso uma democracia, decidir em consciência? Como é que se pode votar com base numa fotografia?".
Estou cheio de vontade de continuar a escrever sobre a lúcida e cortante visão de Peter sobre a situação actual do Afeganistão, mas tenho de me conter. Vou guardá-lo para a edição impressa do Expresso que sairá no fim-de-semana antes das eleições presidenciais e provinciais (marcadas para 20 de Agosto).
Amanhã, entretanto, vou estar com os Comandos afegãos, que estão a ser treinados por Comandos americanos. Supostamente, serão eles a estar em breve na linha da frente contra os talibãs e outros insurgentes. De volta aos bastidores militares da guerra.