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– Astronomia e Astrologia na Idade Média e a visão medieval do Cosmo Ricardo da Costa (Ufes)
In: Dimensões - Revista de História da UFES 14. Dossiê Territórios, espaços e fronteiras. Vitória: Ufes, Centro de Ciências Humanas e Naturais, EDUFES, 2002, p. 481-501 (ISSN 1517-2120). * Figura 1
Esta passagem magistral de um dos maiores poetas brasileiros ilustra magnificamente a ânsia humana de entender o universo. É uma pista literária que não deve fugir dos olhos do historiador, pois uma das formas mais notáveis de se compreender os homens de um determinado período histórico é descobrir como eles entendiam o tempo e o espaço e de que forma se sentiam inseridos neles. Ao historicizarmos a concepção humana desses dois vetores e os conceitos de ciência e natureza podemos circunscrever o homem em seu tempo e o “aprisionamos” dentro do conhecimento de sua época; no entanto, é fato que o espírito humano possui e dá asas à imaginação. Isso acontece porque possuímos a eterna angústia de buscar as respostas para aquelas perguntas clássicas: “De onde vim? Para onde vou?” Assim, as formas com as quais os homens se projetam para além das explicações científicas de sua época dão o tom de sua sensibilidade, de sua capacidade de imaginação, e, por que não, de seus sentimentos mais profundos e perenes (PERNOUD, s/d: 159-164). Certamente o homem medieval possuía todas essas capacidades sensitivas e talvez mais, pois tinha em si um sentimento profundo de pertencer ao universo, de fazer parte de algo transcendente, de integrar e estar unido a todo o espaço imaginado, visível e invisível. A teia de reciprocidades tão característica da sociedade dita feudal ultrapassava e muito o mundo material, mundo considerado das aparências. Ao contrário dos homens de hoje e do homem do tempo de Bilac – que considera tresloucado aquele que ouve e entende as estrelas porque ama – o homem medieval tinha esse amor em si quando contemplava o cosmo, quando dirigia seus olhos para as estrelas. Pois ele não era mesmo um microcosmo do universo? Para a visionária Hildegard de Bingen (c.1098-1179) sim: antecipando Leonardo da Vinci em quatro séculos, para a monja, o homem ocupava – e legitimamente – o centro do mundo, no centro de uma série de círculos maravilhosos:
Figura 2 São imagens fantásticas essas da visionária beneditina, imagens compartilhadas pela teoria geral do microcosmo vigente então (LOPEZ, 1965: 364). Juntamente com a concepção medieval do espaço, elas merecem um aprofundamento. Mas antes uma advertência: devemos necessariamente abandonar a prepotência de nosso racionalismo triunfante moderno (ou pós-moderno) e olhar para esses textos dos séculos XII-XIII com os olhos que devem ser olhados, isto é, com os olhos da delicadeza e da sensibilidade, com os olhos de Olavo Bilac. Só então poderemos perceber o quanto as mentes dos que tentavam entender o mundo das estrelas estava então impregnada de medo e temor mas também de poesia e lirismo, de amor contemplativo. Olhar para o céu, ver estrelas, é um dos atos primordiais que diferem o homem da besta. Algum idiota da objetividade nelsonrodrigueano dirá: “Ora, aí está um tema secundário para se estudar.” Tolo insensível, néscio, decerto. Pois dirigir os olhos para o céu e tentar entender a cor e o brilho das estrelas foi, é e sempre será uma atividade do espírito humano. Arrisco afirmar que essa talvez seja uma das ocupações humanas mais poéticas. E a História, por sua vez, se ocupa do homem e de suas atividades, materiais e imaginárias (DUBY, s/d: 11). Ou não? Assim, advirto que não escrevo este artigo para os néscios: eles passam, passarão. Para fruir intensamente essa sensação de integração cósmica, era necessário ao homem medieval percorrer a natureza e tentar encontrar nela o simbolismo da divindade ali impresso. O século XIII descobriu a maravilha de observar a natureza e perceber a beleza da criação. A curiosidade científica nasceu dessa capacidade de se espantar, de se maravilhar com o mundo e a vida nele contida. A estupefação do homem medieval não era menor quando ele dirigia seu olhar para as estrelas. Como ele entendia o universo? Responder a essa pergunta, pelo menos em parte é o objetivo desse texto. I. A divisão do Universo “O universo é totalmente entrelaçado”, pensavam eles. Quando algo não ia bem, era necessário perceber a manifestação de suas correspondências, de seus entrelaçamentos. O primeiro lugar que se devia então olhar era o céu. Foi o que fizeram Raul Glaber († 1044) e Ademar de Chabannes (n. 988), historiadores do ano mil. Eles interpretaram os signos do céu. Raul se impressionou com os cometas; eles indicavam o desejo de Deus e a vinda de adversidades:
Os eclipses indicavam, por sua vez, presságios de flagelos e o aumento dos desvarios do homem (crimes, cupidez, avidez, pilhagens, incestos): os pecados da terra ressoavam nos céus! (DUBY, 1986: 107). Para Ademar de Chabannes, as estrelas inclusive combatiam entre si:
Como se percebe nessas crônicas antigas, os homens de então viviam olhando para o céu à espera de algum anúncio, de alguma mensagem de Deus. O céu era o palco do grande drama da humanidade; projetava-se as angústias e as inseguranças nas estrelas, mas também as calmarias, as felicidades, e especialmente a necessidade da humildade para se chegar à paz interior. Pois muitos também olhavam para as estrelas em busca de uma solidão contemplativa. O céu exprimia os anseios humanos. Por que isso? A cosmologia medieval foi influenciada diretamente pelos escritos de Aristóteles (384-322 a.C.) e sobretudo Ptolomeu (c.100-170) e seu Tetrabilos. Era considerada a parte mais elevada da Astronomia, que por sua vez era a sétima das Artes Liberais (FRIAÇA, 1999), portanto, a ciência mais nobre antes da Teologia, nobre porque pretendia estudar as coisas próximas de Deus. Devo ressaltar logo de início porém que os conceitos de Astrologia e Astronomia estavam intrincados e queriam dizer na maior parte das vezes a mesma coisa. Poucos eram os que percebiam a diferença. Contudo, os mais sábios, como Hugo de São Vítor (c.1096-1141) em sua obra Didascálicon (1127), estabeleciam claramente a distinção entre as duas:
De qualquer modo, a cosmologia medieval distinguia duas regiões em todo o universo com características bastante distintas. A primeira era a esfera sublunar, que continha todas as substâncias sujeitas à corrupção devido à contrariedade natural existente entre os quatro elementos constitutivos dos corpos (fogo, ar, terra e água) e suas qualidades (quente, seco, frio e úmido). A segunda, a esfera supralunar (ou celeste), era povoada pelos astros, pelos santos que estão na Glória Eterna, os anjos e Deus. Acreditava-se que o mundo supralunar emitia fluidos, influxos invisíveis que influenciavam as coisas do mundo sublunar, idéia de base neoplatônica que influenciou decisivamente a astrologia. Eram os segredos naturais. A origem dessa concepção encontra-se em Dionísio, o Areopagita (séc. V): “Todo bom dom e toda dádiva descende do Pai das luzes. Mais: a Luz procede do Pai, se difunde copiosamente sobre nós e com seu poder unificador nos atrai e leva ao alto” (DIONISO AREOPAGITA. La jerarquia celeste, I, 1).” Ainda no Didascálicon, de Hugo de São Vítor, encontramos a distinção entre os dois mundos:
Assim, a divisão do universo, segundo Hugo de São Vítor, pode ser assim resumida:
Figura
3 Na concepção cosmológica medieval a Terra não era considerada um planeta e se encontrava na parte mais inferior e central da esfera sublunar, ou seja, no círculo mais baixo, no centro do Inferno – esse é o nome da Terra no Ymago Mundi de Gautier de Metz (figura 3). A Terra era o próprio Inferno porque era o triste mundo das inconstâncias, das coisas confusas e que se alternam incessantemente. Nesse círculo inferior do mundo sublunar os quatro elementos que compunham todos os corpos estavam em permanente estado de oposição e tinham uma tendência centrífuga de buscar sua perfeição, de ocupar seu lugar próprio: esse era o motivo pelo qual os corpos se decompunham, pensavam. Esse era o motivo da degeneração e da corrupção da vida. II. As estrelas e o temperamento humano Nesse mundo sublunar os quatro elementos – terra, ar, fogo e água – estavam em permanente correspondência, tanto com os astros quanto com os quatro humores (líquidos) em circulação no corpo humano: o sangue (qualidade de úmido), a fleuma (linfa, soro, muco nasal, saliva, muco intestinal, qualidade de seco), a bílis (amarela, quente) e a atrabílis (ou bílis negra, secreção do pâncreas, fria) (MICHEAU, 1985: 61). Figura
4 A doutrina dos temperos defendia que todas as coisas vivas derivavam desses quatro elementos e das quatro qualidades (quente, frio, seco e úmido) convenientemente temperadas (ZARAGOZA GRAS, 1992: 86) – temperado no sentido de interpenetração total das partes que se mesclam, e não a simples justaposição delas (REALE e ANTISERI, 1990: 361-368). Essa medicina total, que via o homem integrado ao universo, baseava-se em Galeno de Pérgamo (c. 129-179 d.C.), médico e anatomista grego, que por sua vez remontava a Hipócrates (c.460-380 a.C.). Nessa doutrina, a teoria clássica dos humores, o bem-estar do corpo estava condicionado a esses quatro fluidos corporais (BLACKBURN, 1997: 165 e 329). Por exemplo, o homem era quente e seco — sua irascibilidade era decorrência da bílis amarela; a mulher era fria e úmida: daí se completarem, daí serem feitos um para o outro, daí a homossexualidade ser considerada tão anti-natural. Todos os temperamentos humanos pertenciam a um ou outro dos quatro humores. Assim havia quatro temperamentos: 1) sangüíneo, 2) fleumático, 3) colérico (bilioso) e 4) melancólico (ou atrabiliário) A teoria dos humores chegou à Idade Média e foi reforçada pela medicina árabe, que a endossava (especialmente Avicena e Averróis). Em várias combinações com os signos do Zodíaco, que governava partes específicas do corpo, os humores e as constelações determinavam os graus de calor e umidade do corpo e a proporção da masculinidade e feminilidade de cada pessoa (TUCHMANN, 1990: 99). Na Árvore Celestial, sétimo capítulo de uma imensa enciclopédia intitulada Árvore da Ciência (1295-1296), o filósofo Ramon Llull (1232-1316) explica a razão da masculinidade e da feminilidade como conseqüência da forma e da matéria:
Figura
5 Por exemplo, a Lua controlava a fisiologia feminina e sua umidade; governava o cérebro, parte mais úmida do corpo, sendo responsável pela demência dos temperamentos lunáticos. Mulheres histéricas, mal da Lua! A melancolia era característica dos nascidos sob a lua cheia (DELUMEAU, 1989: 82), pessoas que possuíam um humor sombrio e era ligada ao outono, com o frio e seco (GARCÍA GUAL, 1984: 42). Os nascidos sob Saturno (Capricórnio) eram frios e sombrios; sob Júpiter (Sagitário), sóbrios e joviais; sob Vênus (Touro e Libra), afetuosos e férteis. Por exemplo, a Lua controlava a fisiologia feminina e sua umidade; governava o cérebro, parte mais úmida do corpo, sendo responsável pela demência dos temperamentos lunáticos. Mulheres histéricas, mal da Lua. A melancolia era característica dos nascidos sob a lua cheia (DELUMEAU, 1989: 82). As pessoas nascidas sob Saturno (Capricórnio) eram frias e sombrias; sob Júpiter (Sagitário), sóbrias e joviais; sob Vênus (Touro e Libra), afetuosas e férteis. A medicina medieval era, portanto, um Humorismo, pois atribuía a origem das doenças e o estado de espírito de uma pessoa às alterações dos humores do corpo (daí, hoje em dia, dizermos “fulano está de bom humor, sicrano de mau humor”), sempre em relação direta com a posição dos astros. Um manual de medicina árabe do século XV definiu bem a concepção médica medieval dos humores do corpo:
Naturalmente, essa teoria médica inseria-se num sistema global de explicação do mundo medieval – e nunca é demais destacar o fato dela ter prevalecido na medicina pelo menos até o século XVIII. Mesmo durante a Renascença a astrologia reinou soberana, especialmente quando se desejava tomar alguma decisão importante (DELUMEAU, 1989: 81). Portanto, não se tratava de uma exclusividade das “trevas medievais” e sim de uma concepção profunda de mundo que ainda hoje possui fortes raízes em diversas tradições populares. III. A influência dos astros na vida do homem: predestinação ou livre-arbítrio? A estreita relação entre a medicina e a astrologia fazia com que os mais ricos e poderosos fossem tratados, em caso de doença, por um médico e um astrólogo. Para aqueles homens, a idéia de que as estrelas podiam se deslocar sem afetar-nos pareceria tão inconsistente quanto a hipótese de Deus ter criado o universo apenas pelo ato de criar, sem um juízo e plano preestabelecido (LOPEZ, 1965: 376). O mundo era ordenado, tudo estava em seu lugar por um motivo específico de Deus. No entanto, essa questão levantava outra: se tudo está escrito nas estrelas, se tudo está predestinado, como explicar o livre-arbítrio? Como podemos escapar das influências astrais? Para Dante (1265-1321), o céu desencadeava os movimentos humanos, mas nossa vontade é sempre livre. Já Ramon Llull tenta resolver esse impasse filosoficamente, através de um exempla:
Para Ramon Llull, o homem vence o efeito das constelações com sua livre vontade. Por sua vez, o gênio de Tomás de Aquino (1225-1274) resolveu a questão da predestinação e os astros de forma bastante direta: não havia problema em utilizar a astrologia para prever tempestades, doenças ou colheitas. Todos se serviam dela. No entanto, a vontade humana não estava submetida à necessidade astral, caso contrário nosso mérito e livre arbítrio estariam arruinados. Portanto, é impossível adivinharmos o futuro baseando-nos nos astros:
Apesar da lógica de Tomás de Aquino refutar a influência dos astros nas decisões humanas, esse parecia ser o desejo de muitos. Era uma história que apaixonava os homens. A teoria dessa influência astral na vida humana remonta à Antigüidade. Já Aristóteles afirmara que
Contudo, o Estagirita não estendeu essa influência aos assuntos humanos, parecendo sim se referir às cheias dos rios, às marés, à configuração dos continentes e dos mares. Já Ptolomeu, em sua obra Opus Quadripartitum disse claramente:
Ptolomeu acrescenta ao tema aristotélico o conceito de emanação, mais tarde definida pelo neoplatônico Plotino (205-270) como “a eterna geração de seres inferiores por parte do ser perfeito”. De qualquer modo, estas poucas linhas tornaram-se o manifesto do astrologismo medieval (DE LIBERA, 2001: 246-247). Assim, por um lado (especialmente o acadêmico), considerava-se herético afirmar que a força dos astros era invencível, mas por outro lado (baseado especialmente nas tradições populares), seria considerado arrogante e presunçoso negar o papel das estrelas nos destinos do homem (LOPEZ, 1965: 376). Por todos esses motivos, o astrólogo, considerado por muitos um homem de ciência, auxiliava o médico nos diagnósticos, sugerindo o melhor momento para a aplicação dos remédios, fazer as sangrias, interferir no fluidos corporais e no estado úmido, seco, quente ou frio do doente. Figura 6 Mais: do ponto de vista intelectual, a astrologia era uma das mais exigentes disciplinas (THOMAS, 1991: 237). De acordo com a evolução da doença, o astrólogo alterava suas prescrições, conforme a posição dos astros e as novas combinações com os humores corporais. Por sua vez, cada signo tinha uma correspondência com a estação do ano, e isso tinha que ser levado em conta no momento do cálculo astronômico solicitado pela medicina:
Por sua vez, cada signo concordava com uma sensualidade humana; por exemplo, Áries com a visão (através de sua umidade e calor); Leão com a audição (através de seu calor e secura). Além disso,
Assim, o médico necessitava do astrólogo para definir o momento preciso para lidar com algum sentido doente. Naturalmente, esse sistema totalizante integrava o homem no universo, não permitindo a sensação de abandono, de solidão: todos faziam parte de algo maior. Na obra Da natureza, Isidoro de Sevilha (c.560-636) já afirmara que todo homem continha um pequeno mundo, todo homem transcendia para o além. Outra obra muito conhecida de então, o Elucidário, de Honório de Autun, um vulgarizador do século XII (LE GOFF, 1984: 308), ilustra belamente a relação direta entre o homem e o cosmo:
Assim, a visão do homem como um microcosmo, a teoria dos quatro humores e dos quatro elementos se encaixava bem na concepção astronômica/astrológica medieval. Assim, na esfera sublunar, em nosso mundo, os corpos se separavam devido à tendência de seus elementos compostos de ocupar seu lugar próprio, de buscar sua perfeição: a água existente no homem buscava sua perfeição, inatingível pela própria matéria humana, o calor, idem, e assim por diante. No centro da esfera sublunar estava a Terra, fria e seca. Entre a Terra e a Lua estavam situados a água, cujas qualidades eram o frio e a umidade; acima da água estava o ar (quente e úmido), e por fim a parte mais elevada antes da Lua, o fogo (quente e seco), também para alguns separados em esferas (ver figura 3). Por sua vez, na esfera celeste, a matéria dos corpos era distinta; a forma dos corpos celestes preenchia totalmente a potencialidade de sua matéria, motivo pelo qual não lhes era permitida nenhuma possibilidade de mudança fora da rotação circular das esferas. Sem os meios tecnológicos que permitem hoje medições precisas e uma variedade de pontos de vista interplanetários, o modelo astronômico medieval se mantinha muito próximo das primeiras percepções quando tentamos perceber o céu a olho nu. Como o universo era um conjunto de esferas concêntricas e cristalinas, isto é, transparentes, cada uma delas continha um planeta. Acima da Terra, na seguinte ordem de esferas: 1) Lua, 2) Mercúrio, 3) Vênus, 4) Sol, 5) Marte, 6) Júpiter e 7) Saturno. Essa última esfera possuía uma intensa luminosidade - não podemos nos esquecer que devido à inexistência de luz elétrica, o céu medieval devia ser um espetáculo assombroso para as pessoas de então, desde o mais rude camponês ao mais poderoso dos reis. Um céu estrelado em noite de lua cheia com certeza devia causar uma sensação de grandiosidade do Universo quase assustadora, mas ao mesmo tempo fascinante. Por exemplo, na cosmologia de Dante havia ainda o nono círculo (Primum Mobile ou Céu Cristalino), céu concêntrico e o mais veloz de todos, pois não continha nenhuma matéria, e comandava o movimento dos oito céus inferiores. Acima do nono círculo estava o Empíreo (imóvel), com a Rosa Mística (a glorificação dos beatos), e por fim os nove círculos angélicos (concêntricos), rodeando Deus. O número nove significa o amor incondicional, pois sua raiz quadrada é o três da Santíssima Trindade (DANTE ALIGHIERI. A Divina Comédia). Considerava-se que essas esferas eram perfeitas e não possuíam rugas nem manchas. Por esse motivo, a descoberta de manchas no Sol por Galileu foi um escândalo. Os eixos de cada esfera estavam encaixados na esfera seguinte: os medievais pensavam assim pois estavam orientados pela maneira na qual os astros, vistos da Terra, reproduziam com seus movimentos as aparências da realidade. Como as esferas não necessitavam obter nenhuma outra forma para buscar sua perfeição, pois sua matéria tinha toda a sua potencialidade completa e as rotações não tinham fim, os movimentos celestes obedeciam a uma forma natural. Portanto, sua causa tinha que ser atribuída a alguma substância separada da matéria: eram os anjos. Com sua inteligência e poder, os anjos podiam conceber e realizar tanto aquele movimento incessante quanto seu fim (ver figura 7). Esse fim era obtido ao se completar o número dos eleitos, já que ao mover os céus, os anjos provocavam as mudanças das estações e tudo o que a Terra necessitava para a vida dos homens. Figura
7 IV. Conclusão A imagem que os medievais tinham do universo era cheia de simbolismos, de metáforas. O mundo que eles tentaram descobrir era um conjunto harmônico e completo de beleza. O amor estava unido ao temor: as estrelas e o Sol se moviam por causa do amor de Deus - e devemos temê-Lo e amá-Lo. Não importava tanto a descoberta de um sistema de leis e princípios, mas sim saber avaliar e julgar corretamente qual a lição deveria ser aprendida com aquela observação. A investigação deveria ser humilde e sincera, despojada. Deveria-se buscar a verdade acima de tudo: buscando-a, exercitaria-se a virtude. Então poderíamos nos aproximar um pouco de Nosso Criador: “Duas são as coisas que recuperam no homem a semelhança divina, e são elas: 1) a especulação da verdade e 2) o exercício da virtude. Pois o homem é semelhante a Deus quando é sábio e justo.” (HUGO DE SÃO VÍTOR. Didascálicon. Da arte de ler, Livro I, cap. 8). O temor de olhar para o céu dos historiadores do ano mil e perceber os presságios funestos dos males vindouros, como vimos, foi gradativamente substituído pelo amor à natureza dos homens dos séculos XII-XIII. Estes aceitavam a influência dos astros sem, no entanto, negar nossa capacidade de escolha, fruto do livre-arbítrio dado por Deus. O homem era influenciado pelas estrelas sim, mas sempre tinha a última palavra, sua consciência. Por esse motivo ele era o próprio microcosmo: esse homem-microcosmo, embora consciente de ser um grão no universo, não se sentia só, pois cada parte de seu corpo estava interligado à estrela mais distante. Esse universo integrado soava como música, estava ali ansiando para ser descoberto, mas com olhos amorosos. Assim, essa astrologia da segunda idade feudal, cheia de nuances e perspectivas de interpretação simbólica, era sobretudo uma tentativa sincera de se aproximar do outro mundo, do mundo do além, do mundo supralunar. Era mais uma forma daquele típico pensamento escatológico que fazia os homens de outrora buscarem Deus com profunda compaixão. A partir de então, maravilhados com o assombro da natureza, livro-espelho da criação divina, os medievais buscaram ávida porém racionalmente as conexões íntimas e invisíveis entre os dois mundos, os mistérios do movimento dos corpos celestiais que traduziam as sensações de pertença, de integração e de realização espiritual. O mundo e o universo eram entendidos como frutos de um momento sublime de amor. E, cheios desse amor contemplativo, os espaços dos medievais se expandiam, suas fronteiras eram redesenhadas em direção ao além conforme sua capacidade de amar. Bastava apenas olhar com olhos amorosos, com aqueles olhos de Olavo Bilac que, voltados para a Via Láctea, amava as estrelas para entendê-las. Pois quando amamos, ouvimos e entendemos as estrelas. * Este artigo é dedicado a José Rivair Macedo (UFRGS), Manuel M.ª Domenech Izquierdo (Universidade de Barcelona), Maria de Nazareth Lobato (mestra pela UFRJ), e Jéssica Fortunata do Amaral (graduanda da Ufes), que muito me auxiliaram com suas sugestões advindas da leitura desse texto. * Fontes impressas
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