Fronteiras culturais: barreiras e contatos

As fronteiras culturais mostraram, já nos primórdios da Europa Moderna, sua dupla natureza de obstáculos e de aproximações

Peter Burke

A idéia de fronteira cultural é um conceito atraente. O problema é que a idéia é atraente demais, de modo semelhante à própria idéia de “cultura”, já que significa coisas diferentes para pessoas diferentes. Usar o conceito representa um perigo constante de passar do sentido literal da expressão para um sentido metafórico, de fronteiras lingüísticas, tais como aquela que separa o francês do alemão na Alsácia, por exemplo, para as ‘’fronteiras”entre classes sociais, entre o sacro e o profano, entre o sério e o cômico, entre a história e a ficção.

Em seus Ensaios, Montaigne sugeriu que havia uma fronteira da verdade e que o que seria considerado verdade de um lado dos Pireneus (à época em que o sul da França era em grande parte protestante) era considerado falso do outro. O historiador da sociologia Norbert Elias ligou o desenvolvimento da civilização ocidental à expansão daquilo que ele chamou de “fronteira da vergonha” (Schamgrenze), querendo dizer que, com o passar dos séculos, os europeus consideraram vergonhosas um número cada vez maior de ações.

A seguir usarei o termo “fronteira” na sua acepção primeira, espacial, e “cultura” na sua acepção ampla e antropológica, referindo-se a valores e sua expressão ou corporificação em artefatos e práticas. Pode ser útil (seguindo os antropólogos que, por sua vez, seguem os lingüistas) trabalhar simultaneamente com duas concepções de fronteira cultural.

A primeira é a abordagem da pessoa que está do lado de fora, o “outsider”, que se interessa por dados relativamente objetivos, que podem até mesmo ser mapeados. No caso da cultura culinária, por exemplo, podemos distinguir duas Europas, divididas pelas fronteiras do vinho e da cerveja, do óleo e da manteiga. No caso da moradia, ou do que os alemães chamam de Wohnkultur [cultura da habitação], houve, pelo menos entre 1400 e 1800, três Europas - as regiões da pedra, do tijolo e da madeira, mais ou menos correspondentes ao Mediterrâneo, à Europa Setentrional e à Oriental. No início da França moderna, uma linha diagonal de St. Malo a Genebra separava uma região com alto nível de alfabetização no Nordeste de outra com baixo nível no Sudoeste.

A segunda abordagem é aquela que parte de dentro, mais subjetiva, interessada na experiência de fronteiras, nos limites simbólicos de comunidades imaginárias. Essas fronteiras são difíceis, se não impossíveis de mapear, porém não deixam de ser fatos culturais, mesmo assim.

Barreiras

Segundo a concepção tradicional de fronteiras, elas eram essencialmente barreiras. Até que ponto essa idéia funciona no caso da cultura? É melhor ver as fronteiras culturais não como barreiras intransponíveis, mas, antes, como obstáculos que atrasam o progresso de inovações e até mesmo de notícias. Quando o monge Máximo o Grego chegou à Rússia em 1515, descobriu que os russos ainda não tinham ouvido falar da descoberta da América por Colombo.

As fronteiras religiosas são, freqüentemente, locais onde se recusa e resiste conscientemente à inovação. No início do período moderno, por exemplo, o mundo do Islã formava uma barreira à expansão da imprensa, porque a Palavra de Deus não deveria ser transmitida por meios mecânicos. De um lado da fronteira entre a Cristandade e o Islã havia Bíblias impressas; do outro, o Alcorão era aprendido de cor ou lido a partir de manuscritos.

Quanto ao nível subjetivo, os antropólogos muitas vezes indicaram a importância de distinguir-se dos outros, como parte da construção de identidades coletivas, demarcando os limites simbólicos de comunidades imaginárias. Neste nível subjetivo se enfatizaram com freqüência diferenças relativamente secundárias, usadas para erigir uma barreira entre “Nós” e “Eles”. Sigmund Freud desenvolveu esse aspecto em um ensaio sobre o que ele chamou de “narcisismo das pequenas diferenças”, e Pierre Bourdieu fez o mesmo em sua análise da “distinção”, que tratava especialmente da fronteira cultural entre a burguesia e a classe operária na França do final do século 20.
Intercâmbios

Uma segunda concepção de fronteiras as apresenta não (ou não apenas) como barreiras, mas, ao contrário, como pontos de encontro ou “zonas de contato”. Houve um tempo em que se pensava com freqüência que esses contatos tinham lugar entre a “selvageria” e a “civilização”, mas eles já passaram a ser descritos mais recentemente como encontros entre duas culturas diferentes.

É também esclarecedor ver as fronteiras como zonas com sua própria cultura, muitas vezes mais militar e, também, mais arcaica do que a cultura de centros urbanos. A cultura nos lados opostos de uma fronteira é freqüentemente muito similar, ao contrário da cultura das capitais, como ocorre no caso da cultura “gaúcha’ que o Rio Grande do Sul compartilha com o Uruguai e a Argentina.

Concluindo, neste breve ensaio, procurei mostrar que - mesmo sem recorrer a metáforas como Schamgrenze - é praticamente impossível escrever uma história cultural, mesmo no caso de um único país, ou até de uma única região, sem utilizar a noção de “fronteira”. Deixando de ser literalmente periférica, no que tange aos historiadores da cultura a noção de fronteira é - ou pelo menos se tornou - absolutamente central.
Peter Burke é professor de história da cultura na Universidade de Cambridge e membro da Emmanuel College, da mesma universidade. Autor de mais de trinta livros, entre eles, Popular Culture in Early Modern Europe (1978), A Revolução Historiográfica Francesa (1990), Amsterdã e Veneza: Um Estudo das Elites dos Séculos XVII (1991) e Uma história Social do Conhecimento: de Gutenberg a Diderot (2001).

Folha de S. Paulo

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1 Comentário »

  1. Ana Karoliny disse,

    7 de Abril de 2008 @ 16h 53m

    vcs podem manda fotos da primeira igreja e a primeira escola.
    obrigada

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