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Evdokimov Persona

Paul Evdokimov - Prosopon - Persona - Pessoa

A pessoa humana

O coração representa a indizível profundeza do homo absconditus e é neste nível que se situa o centro da irradiação pessoal: a pessoa. Esta profundeza explica o motivo pelo qual o mais forte personalismo filosófico jamais encontra definição satisfatória da pessoa. Renouvier dizia: "fazer e, fazendo-se, fazer-se", mas é Gabriel Mareei que se coloca na verdadeira perspectiva: existir, para a pessoa, é fazer-se, transpondo-se: "sua divisa não é sum, mas sursum". A metafísica aproxima-se da mística e o próprio Gabriel duvida que exista entre elas fronteira demarcável.

A filosofia grega conhece bem a noção de indivíduo, mas ignora a noção de pessoa, no sentido moderno e, principalmente, psicológico. Nos escritos dos Padres da Igreja, constata-se o flutuar desta noção. Define-se, em primeiro lugar, no plano trinitário e é somente após o Concilio de Calcedônia que aparece na cristologia e na antropologia. Os Padres falam das Pessoas divinas, mas não se prendem à maneira filosófica de conceituar. Suas teses são metaconceptuais e, como toda fórmula dogmática, são sinais gravados da transcendência divina. Deste modo, as três hipóstases não são três deuses, mas três princípios — três centros conscientes — da existência una, da qual é preciso afirmar ao mesmo tempo a distinção e a identidade, a irredutibilidade e a consubstancialidade. Entre os Padres Capadócios, depois do Concilio de Nicéia, o termo "hipóstase", ou pessoa, é definido por sua diferença com "ousia", natureza ou essência. Esta diferença não corresponde, porém, de modo algum, à diferença entre o indivíduo e a espécie, entre o particular e o comum. A hipóstase é determinada por suas relações: Pai, Filho, Espírito Santo; é ela também a única maneira de cada uma fazer sua a natureza una e participar assim da vida divina una; mas hipóstase é também tudo o que excede essas relações: o Único em si mesmo. Esta noção de unicidade irredutível e incomparável que faz de cada indivíduo um ser único, uma pessoa, vem-nos do dogma. Escapa a toda definição racional e só pode ser captada por apreensão imediata, intuitiva, ou por revelação mística. A pessoa é o modo de existência que penetra e torna pessoal o todo do ser. Ela é o sujeito e o portador a quem pertence e em quem vive o ser dado. Todo ser existente deve ser in-hipostasiado numa pessoa (assim como o Verbo). A pessoa é o princípio de integração que realiza a unidade de todos os planos através da comunicação dos idiomas, a circunsessão ou pericorese (o corpo assim se espiritualiza e a alma vive o corporal).

A fórmula de Calcedônia b emprega dois termos gregos: hypostase e prosopon. Ambos significam pessoa, mas com conotações diferentes. O prosopon é o aspecto psicológico do ser voltado para seu próprio mundo interior, para a consciência de si mesmo e, como tal, segue a evolução, passa pelas fases do conhecimento e pelos graus de apropriação da natureza da qual é o portador. A hypostase tem o aspecto do ser aberto e transcendendo para o outro. Este segundo aspecto é o decisivo para apreender a dimensão teândrica da pessoa, sem jamais esquecer que a pessoa, no sentido absoluto, não existe a não ser em Deus e que toda pessoa humana só é sua imagem.

A pessoa é irredutível ao indivíduo e por outro lado não é algo que vem acrescentar-se ao conjunto corpo-alma-espírito, mas é este conjunto que se vê centrado em seu sujeito, seu portador, seu princípio de vida e neste ponto o aspecto expresso no termo "hipóstase" é fundamental para o destino do ser humano. A hipóstase é a superação de si mesmo, do unicamente humano; a pessoa, neste sentido, só se faz, superando-se (G. Marcel). O mistério da pessoa enquanto hipóstase reside no ato de sua transcendência em direção ao outro: é nele que temos a vida, o movimento e o ser (At 17,28). O homem, ao mesmo tempo que se descobre, cria sua pessoa pela mediação do outro humano, mas só atinge toda sua verdade quando remonta à consciência que Deus dele tem, quando atinge o auge do conhecimento segundo o modo pessoal do tu divino. Nesta profundeza o eu mais íntimo é "uma identidade por graça" (são Máximo, o Confessor) que não nos pertence necessariamente, mas que recebemos na ordem da graça.

Todo ser humano possui um rudimento de pessoa, um centro psicológico de integração que faz gravitar o todo em torno do self metafísico e forma a consciência do "eu"; é o prosopon como dado natural da substância. Em contrapartida, a nível mais profundo, mesmo que todos sejam convidados, poucos eleitos chegam a se tornar hipóstase. A hipóstase é aquele posto avançado da imago Dei, o órgão e o lugar da comunhão com Deus que garante a estrutura teândrica à imagem de Cristo: no século futuro, conforme diz são João, seremos semelhantes a ele (1Jo 3,2).

Este teandrismo já está potencialmente contido na imago Dei. Do grau de sua atualização resulta a germinação e a expansão do prosopon em hypostase, a passagem do ser natural ao ser crístico, seguindo a grande iniciação sacramentai quando a estrutura humana é totalmente remodelada, tal uma estátua, segundo seu Arquétipo, o Cristo. Em Cristo, é Deus que se une ao humano, e a comunhão é máxima e única, pois, o lugar da comunhão é o Verbo e é a hipóstase divina que in-hipostasia a natureza humana. Em todo homem "à imagem de Cristo", a pessoa humana é o lugar da comunhão, é quem recebe en Christo a estrutura teândrica e torna-se hipóstase. No homem, é dentro da consciência de si mesmo que se estabelece a consciência divina e que se realiza o teandrismo: nós viremos e nele faremos nossa morada (Jo 14,23); não sou mais eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim (Gl 2,20); a missão pastoral de são Paulo aspira a este até que Cristo seja formado em vós (Gl 4,19).

"O homem, dizia são Basílio, é uma criatura que recebeu a ordem de tornar-se deus" 16, de tornar-se hipóstase deificada. Esta idéia é bem esclarecida por são Máximo, o Confessor17: a pessoa (prosopon) é chamada (para se tornar hipóstase) "a reunir pelo amor a natureza criada com a natureza incriada... pela aquisição da graça". Como podemos ver, o homem, pela graça, reúne em sua hipóstase criada o divino e o humano à imagem de Cristo e assim se torna um deus criado, deus segundo a graça. A hipóstase se define: a pessoa do ser deificado. Em Cristo, a natureza humana deificada é in-hipostasiada em pessoa divina. No homem deificado, a pessoa criada, nesta mesma deificação, vê sua natureza unida à energia divina deificante. Logo, a hipóstase é o modo pessoal, único, sem igual, de existência teândirca de todo cristão. Deve-se assinalar aqui a delimitação mística radical, transessencial entre o homem velho e a nova criatura. Mas, neste caso, toda análise fenomenológica passa para a transfenomenologia, atingindo o que está para além do imediatamente dado: a santidade. O indivíduo é a categoria sociológica e biológica que pertence inteiramente à natureza. É uma parte do todo natural e destaca-se por oposição, delimitação e isolamento. No estado natural, o prosopon confunde-se com o indivíduo; ele é apenas potencialidade da pessoa e, realizado, postula sua passagem para a hipóstase. A hipóstase é uma categoria espiritual; não uma parte, mas em si contém o todo, o que explica sua capacidade de in-hipostasiar.

O indivíduo a quem se atribui personalidade forte, só apresenta um misto peculiar dos elementos da natureza, com alguns traços pronunciados e, apesar destes, produz a impressão do "já visto". O místico impressiona pelo seu rosto, único no mundo, por sua irradiação sempre muito pessoal. Ele nunca fora visto.


Última modificação em 31 de Maio de 2007 12:18:40 UTC

Responsável

Murilo Cardoso de Castro Doutor em Filosofia, UFRJ (2005)

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